as provas da existencia de deus em descartes

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FACULDADE DE SÃO BENTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA MESTRADO ACADÊMICO WILLIAM MORAES DA SILVA AS PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS EM DESCARTES: uma análise à luz de alguns comentadores contemporâneos São Paulo 2012

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FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

MESTRADO ACADÊMICO

WILLIAM MORAES DA SILVA

AS PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS EM DESCARTES:

uma análise à luz de alguns comentadores contemporâneos

São Paulo

2012

FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

MESTRADO ACADÊMICO

AS PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS EM DESCARTES:

uma análise à luz de alguns comentadores contemporâneos

WILLIAM MORAES DA SILVA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação Stricto Sensu em Filosofia da

Faculdade de São Bento do Mosteiro de São

Bento de São Paulo, como requisito parcial

para a obtenção do título de Mestre em

Filosofia.

Área de Concentração: História da Filosofia

Orientador: Prof. Dr. Djalma Medeiros

São Paulo

2012

WILLIAM MORAES DA SILVA

AS PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS EM DESCARTES:

uma análise à luz de alguns comentadores contemporâneos

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu

em Filosofia da Faculdade de São Bento do

Mosteiro de São Bento de São Paulo

Dissertação defendida e aprovada pela

Comissão Julgadora em ___ / ___ / ___

Membros da Comissão Julgadora

Prof. Dr. Alexandre Guimarães Tadeu de Soares – Universidade Federal de Uberlândia

Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva – Faculdade de São Bento

Prof. Dr. Djalma Medeiros (orientador) – Faculdade de São Bento

AGRADECIMENTOS

Agradeço a meus pais, Wilson Nunes da Silva e Perpétua Moraes da Silva, e a meu irmão,

Eder Moraes da Silva, cujos esforços permitiram-me chegar até aqui. Sou também grato ao

Prof. Dr. Djalma Medeiros pela orientação recebida e à Faculdade de São Bento pela

generosidade em oferecer-me condições de realizar esse curso.

RESUMO

Tendo como ponto de partida o cogito, o presente trabalho trata das provas da existência de

Deus desenvolvidas por Descartes, especialmente nas Meditações Metafísicas e nos

Princípios da Filosofia, sob a ótica de alguns de seus comentadores contemporâneos.

Pretende-se a partir deles apontar os principais problemas envolvidos no tema.

Palavras-Chave: Descartes, cogito, provas da existência de Deus.

RÉSUMÉ

Prenant comme point de départ du cogito, le présent ouvrage traite de la preuve de l’existence

de Dieu développée par Descartes, en particulier dans les Méditations Métaphysiques e dans

les Principes de la Phisophie, du point de vue de certains de ses commentateus

contemporains. Il est prévu, de leur part, d’identifier les principaux problèmes impliquès dans

la question.

Mots-clés: Descartes, cogito, preuve de l’existence de Dieu.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 10

1 A PROVA A POSTERIORI NA TERCEIRA MEDITAÇÃO ................. 13

1.1 O cogito – as formas de pensamento, a dúvida e a regra geral ................ 13

1.2 Os Gêneros do pensamento –

as idéias, as vontades ou afecções e os juízos ............................................ 18

1.3 As idéia inatas, adquiridas e fictícias ........................................................ 20

1.3.1 Natureza versus razão .................................................................................. 21

1.3.2 Vontade versus razão ................................................................................... 23

1.4 A realidade objetiva das idéias .................................................................. 24

1.4.1 Idéias entendidas apenas como modos de pensamento ................................ 25

1.4.2 A realidade objetiva da idéia de Deus .......................................................... 27

1.4.3 A relação de causa e efeito ........................................................................... 27

1.4.4 As implicações da relação de causa e efeito ................................................ 30

1.5 As idéias de Deus, de coisas corporais e inanimadas,

de anjos, de animais e de homens .............................................................. 33

1.5.1 Idéias de homens, de animais, e de anjos ..................................................... 33

1.5.2 Idéias de coisas corporais ........................................................................... 33

1.5.3 As idéias e a falsidade material ................................................................... 34

1.5.4 Idéias de substância, duração e número ...................................................... 35

1.5.5 Qualidades de extensão, aspecto, a situação e o movimento ........................ 35

1.5.6 A idéia de Deus ............................................................................................ 36

1.6 A primeira prova a posteriori da existência de Deus ................................ 36

1.6.1 A idéia de substância infinita versus a idéia de substância finita ................. 37

1.6.2 A noção de infinito versus a negação do finito ............................................. 37

1.6.3 A impossibilidade da idéia de Deus ser materialmente falsa........................ 38

1.7 A incompreensibilidade do infinito ........................................................... 39

1.7.1 A idéia mais clara e distinta ......................................................................... 40

1.7.2 Não posso ser a causa da idéia de Deus ...................................................... 41

1.8 A segunda prova a posteriori da existência de Deus ................................. 42

1.8.1 Não posso ser a causa da origem de minha própria existência .................... 42

1.8.2 Não posso ser a causa da manutenção de minha própria existência ............ 43

1.8.2.1 A natureza do tempo ..................................................................................... 43

1.8.2.2 Nenhuma causa menos perfeito do que Deus

poderia concorrer para manutenção de minha existência ............................ 44

1.9 A origem da idéia de Deus – Verdade e Falsidade ................................... 45

1.9.1 Meus pais não podem ser a causa de minha existência

enquanto substância pensante ..................................................................... 47

1.9.2 A idéia de Deus não pode ser oriunda dos órgãos dos sentidos ................... 47

1.9.3 A idéia de Deus – A marca do artífice em sua obra ..................................... 49

1.9.4 A impossibilidade de um ser perfeitíssimo e infinito ser enganador ............. 50

2 A PROVA A PRIORI NA QUINTA MEDITAÇÃO ................................ 52

2.1 A natureza verdadeira e imutável ............................................................. 52

2.1.1 A quantidade e suas propriedades ................................................................ 53

2.1.2 A natureza verdadeira e imutável versus construção pelo pensamento ........ 53

2.1.3 A regra geral e a natureza verdadeira e imutável ........................................ 54

2.2 O argumento ontológico ............................................................................. 55

2.2.1 A existência não pode ser separada da essência de Deus ............................ 55

2.2.2 A idéia de Deus implica na atribuição de todas as perfeições ...................... 57

2.2.3 A idéia de Deus é a mais clara e a mais distinta dentre todas ...................... 58

2.3 A existência de Deus e as ciências .............................................................. 59

3 AS PROVAS DA EXISTENCIA DE DEUS

NOS PRINCÍPIOS DA FILOSOFIA ........................................................ 62

3.1 A primeira prova da existência de Deus (a priori).................................... 62

3.2 A segunda prova da existência de Deus (a posteriori) .............................. 65

3.3 A terceira prova da existência de Deus (a posteriori) ............................... 67

3.4 A ordem valorativa das provas da existência de Deus ............................. 71

4 A QUESTÃO DA RELAÇÃO ENTRE REALIDADE OBJETIVA

E REALIDADE FORMAL NA TERCEIRA MEDITAÇÃO ................. 73

4.1 A relação entre a realidade formal e a realidade objetiva da idéia ......... 73

4.2 A realidade objetiva enquanto modo da Substância Pensante Finita ..... 76

4.3 A realidade objetiva enquanto parte essencial do ato de representar .... 79

4.4 A realidade objetiva e o caso limite da idéia de Deus .............................. 81

5 O ARGUMENTO ONTOLÓGICO – O CONCEITO DE NATUREZA

IMUTÁVEL E A EXISTÊNCIA COMO PREDICADO ........................ 90

5.1 A prova a priori da existência de Deus ...................................................... 91

5.2 A primeira parte da prova ontológica....................................................... 94

5.2.1 O critério de divisibilidade ou decomposição ..............................................104

5.2.2 O critério das conseqüências necessárias imprevistas .................................106

5.2.3 Composição necessária ou composição arbitrária.......................................109

5.3 A segunda parte da prova ontológica:

a essência de Deus implica sua existência. ................................................110

6 O ARGUMENTO ONTOLÓGICO – A INCONSISTÊNCIA DA

CONCEPÇÃO DE DEUS COMO UM SER

SUMAMENTE PERFEITO ......................................................................119

6.1 A estrutura silogística da versão cartesiana do argumento ontológico ...119

6.2 A existência entendida como uma perfeição .............................................124

6.3 A definição de Deus ....................................................................................128

6.4 Um ser sumamente perfeito entendido como aquele

que agrega todas as perfeições ...................................................................136

7 A IDÉIA DE DEUS – ALGUNS PROBLEMAS ENVOLVENDO

AS PROVAS DE SUA EXISTENCIA ......................................................145

7.1 A importância da idéia de Deus nas provas de Sua existência ................145

7.2 As provas a posteriori e a priori .................................................................147

7.3 O discurso do método –

o abismo entre a natureza divina e a existência de Deus. ........................149

7.4 A idéia de Deus – a marca do artífice impressa em sua obra ..................151

7.5 A idéia de Deus –

será construída ou elicitada pelos processos do pensamento? .................153

7.6 A idéia de Deus e a habilidade de elevar os números ao infinito .............156

7.7 A idéia de Deus – a relação entre a essência (quid) e a existência (quod)158

7.8 A idéia de Deus e a conexão entre os atributos divinos ............................161

7.9 A indução – o movimento do pensamento de um atributo a outro .........164

7.10 A unidade dos infinitos atributos divinos e a

unidade da substância pensante finita ......................................................166

7.11 A incompreensibilidade do infinito – intelligere versus comprehendere ..169

CONCLUSÃO ...............................................................................................................172

REFERÊNCIAS ............................................................................................................181

INTRODUÇÃO

Este trabalho consiste em uma análise das provas da existência de Deus desenvolvidas

por Descartes. As obras principais utilizadas nessa tarefa são as Meditações Metafísicas e os

Princípios da Filosofia. Paralelamente, são analisados alguns textos de seus comentadores

contemporâneos que nos apresentam os principais problemas envolvidos na prova. Sendo

assim, essa pesquisa tem um duplo objetivo: em primeiro lugar, percorrer o caminho

intelectual traçado por Descartes nas Meditações Metafísicas e nos Princípios da Filosofia até

a descoberta das provas e, em segundo lugar, apontar as dificuldades que comprometem as

demonstrações da existência de Deus. É intrigante que um tema tão antigo na História da

Filosofia, não tenha até os dias atuais, encontrado sua refutação ou consistência efetiva. Nem

mesmo as reflexões recentes de filósofos acostumados à complexidade das formas

argumentativas da lógica contemporânea ofereceram uma resposta satisfatória aos embaraços

presentes nas provas da existência de Deus desenvolvidas por Descartes.

Esta dissertação está estruturada em sete seções principais. A primeira sessão destina-

se a apresentar as duas provas a posteriori da existência de Deus elaboradas por Descartes na

Terceira Meditação. A primeira prova consiste em demonstrar que a idéia de um ser perfeito

e infinito, que está em mim, exige uma causa que deve ser ela própria perfeita e infinita; a

segunda, que é uma variante da primeira, procura provar que eu, que possuo essa idéia, devo

necessariamente ter sido criado por um ser perfeito e infinito (aquele que eu concebo por essa

idéia).

A segunda sessão expõe a prova a priori da existência de Deus desenvolvida na

Quinta Meditação. Conhecida a partir de Kant como prova ontológica, esse argumento

inspirado por Santo Anselmo, procura afirmar que Deus, concebido tal como deve sê-lo, isto

é, como um ser soberanamente perfeito, tem de existir (a inexistência sendo comparada a uma

privação). É necessário avançar passo a passo na ordem das razões propostas por Descartes, a

fim de obter um resultado justo na análise.

A terceira sessão reapresenta as três provas da existência de Deus a partir dos

Princípios da Filosofia de Descartes. Diferentemente do itinerário seguido na análise da

Terceira e Quinta Meditação, a qual segue a ordem das razões desde o início da meditação,

analisam-se nos Princípios da Filosofia tão somente os artigos que tratam das provas

propriamente ditas, a fim de evitar repetições desnecessárias. A análise dessa obra de

Descartes é, incidentalmente, ilustrada por um conjunto de comentários desenvolvidos por

Leibniz em suas observações à parte geral dos Princípios da Filosofia.

A quarta sessão é consagrada a análise do artigo intitulado O Conceito de Realidade

Objetiva na Terceira Meditação de Descartes, escrito por Ethel Menezes Rocha. O objetivo

dessa sessão é verificar os argumentos que procuram demonstrar que a realidade objetiva e a

realidade formal da idéia são dois aspectos de uma mesma entidade, em que um é resultado da

função essencial do outro e, principalmente, analisar de que modo, essa interpretação se

relaciona com a primeira prova da existência de Deus pelos efeitos.

A quinta sessão apóia-se em uma crítica de Raul Landim Filho ao argumento

ontológico. O texto relevante encontra-se na obra intitulada Questões disputadas de

metafísica e de crítica do conhecimento. A simplicidade da forma argumentativa dessa prova

e a aparente evidência de suas premissas se opõem à fragilidade da sua conclusão, indicando

que o argumento ontológico não passa de um sofisticado sofisma. O objetivo dessa sessão é

apontar o seu erro formal, indicar qual das premissas é inválida e quais problemas de caráter

ontológico e epistemológico estão ocultados nessas premissas.

Ainda no universo do argumento ontológico, a sexta sessão procura apontar o fracasso

da prova, mas sob um aspecto diferente daquele apresentado na sessão anterior. Para tanto, é

analisado um artigo de Edwin Curley denominado de “De volta ao Argumento Ontológico”.

Frequentemente, a crítica desse argumento é fundamentada em razões gassendianas, em que

existência não é um predicado. Contudo, essa sessão indica a inconsistência da compreensão

da natureza de Deus assumida na prova.

A sétima e última sessão versa sobre as três provas da existência de Deus em

Descartes, partindo de um elemento comum encontrado em cada uma delas, a saber, a idéia de

Deus. Alguns problemas tratados nas sessões anteriores são retomados e outros ainda não

abordados, são discutidos aqui. O texto fundamental para o desenvolvimento dessa sessão é o

artigo intitulado A idéia de Deus e as provas de sua existência, de Jean-Marie Beyssade,

escrito para o Cambridge Companion. Esse artigo procura solucionar um paradoxo que está

no coração da metafísica cartesiana. De um lado, toda ciência, segundo Descartes, depende do

conhecimento que temos de Deus; por outro lado, a idéia de Deus é assumida por Descartes,

como sendo incompreensível. É justamente nas provas da existência de Deus que surge esse

paradoxo, o qual articula-se na relação entre a afirmação da existência de Deus e aquilo que a

fundamenta, ou seja, a elucidação da idéia que o representa. O objetivo principal dessa última

sessão é o de explicitar essa difícil relação.

1 A PROVA A POSTERIORI NA TERCEIRA MEDITAÇÃO

A primeira apresentação por Descartes de sua prova da existência de Deus nas

Meditações ocorre na terceira parte dessa obra. Nesse capítulo, investigaremos os argumentos

implicados na Terceira Meditação ao lado das Segundas Objeções e Respostas, estabelecendo

um diálogo entre eles. Mas não se trata de estudar a Terceira Meditação partindo

imediatamente das provas da existência de Deus, mas antes disso, de percorrer o caminho

traçado por Descartes até o momento em que ele descobre o argumento1

No início da Terceira Meditação, Descartes propõe apagar do pensamento todas as

imagens das coisas corpóreas, ignorando-as completamente, com o objetivo de voltar-se a si

próprio, e, assim, estar mais familiarizado consigo. A única certeza que Descartes desfruta

nesse momento da meditação é o conhecimento da substância pensante “Eu, eu sou coisa

pensante, isto é, coisa que duvida, que afirma, que nega, que entende poucas e ignora muitas

coisas, que ama, que odeia, que quer, que não quer, que imagina também e que sente”

(Terceira Meditação, 2004, p. 69/1/). Essa afirmação de Descartes implica que todo

conhecimento posterior adquirido por ele encontra um fundamento seguro neste princípio

. Tal postura parece

afinar-se com a seriedade exigida por Descartes, fundamental para reconhecermos a

existência de Deus que “[...] tornar-se-á manifesto aos que pensarem seriamente no assunto,

e quiserem dar-se ao trabalho de meditá-lo comigo”. (Segundas Respostas, 2010, p. 220)

1.1 O cogito – as formas de pensamento, a dúvida e a regra geral

2

1 Muito do itinerário por mim seguido nesse capítulo e no capitulo seguinte, que trata, principalmente, das provas a posteriori e a priori da existência de Deus, foi inspirado por Martial Gueroult (GUEROULT, 1968, vol. 1. A discussão sobre a prova a posteriori se encontra nas pp. 154-284 e sobre a prova a priori nas pp. 331-380).

. A

2 Nesse caso, o termo ‘princípio’ designa as primeiras causas do conhecimento humano. Na Carta Prefácio à tradução francesa da obra intitulada Princípios da Filosofia, Descartes estabelece duas condições para que algo seja considerado um princípio: em primeiro lugar, é que seja tão claro e evidente que o espírito humano não

idéia de Deus, que é o coração das provas de Sua existência, dependerá da descoberta da

substância pensante “esta idéia nasceu comigo, e ela não me vem de outra parte senão de

mim mesmo” (Segundas Respostas, 2010, p. 218)

Desse modo, notamos que, assim como na Primeira Meditação, Descartes suspende

todo conhecimento adquirido desde a sua infância, mas nesta altura de sua meditação, ele não

se encontra mais ‘mergulhado em águas muito profundas’, pois o cogito3 será o terreno

seguro que Descartes cultivará com o objetivo de alcançar outros possíveis conhecimentos

que se pode adquirir através dele. A partir disso, Descartes investigará tudo aquilo que

sobrevém ao pensamento. Coerente com seu método, ele não estabelece qualquer juízo4 sem

antes submetê-lo a dúvida5. Nas Segundas Respostas, Descartes afirma que a dúvida é um

hábito indispensável na busca do conhecimento “Eis por que, não conhecendo nada mais útil

para alcançar um firme e seguro conhecimento das coisas do que acostumar-se, antes de

estabelecer algo, a duvidar de tudo” (Segundas Respostas, 2010, p. 215). A exemplo disso,

Descartes não considera a imaginação e os sentimentos senão enquanto modos de

pensamento6

possa duvidar da sua verdade desde que se aplique a considerá-lo com atenção; em segundo lugar, é que o conhecimento das outras coisas dependa dele, de maneira que possa ser conhecido sem elas, mas não o inverso. (cf. DESCARTES, 1997, p. 15, 16). 3 Trata-se de uma expressão latina que desígna a proposição cartesiana: Cogito, ergo sum, que traduzido para o português é “penso, logo sou”. Podemos dizer em poucas palavras a imensa importância desse conhecimento no sistema cartesiano. A principal certeza acessível nas condições da dúvida hiperbólica, a existência da coisa que pensa, no momento em que pensa, é também e por esse motivo o modelo de todas as evidências e o fundamento a partir do qual deverão ser concebidas todas as principais verdades da metafísica. (cf. BUZON; KAMBOUCHNER, 2010, p. 19). 4 Em Descartes, o juízo não é uma operação do entendimento que compõe as noções das coisas, mas antes um ato da vontade que posiciona-se acerca do que o entendimento lhe representa. No ato de julgar podem-se distinguir dois hábitos: o hábito de dar seu assentimento a representações obscuras ou, ao contrário, o hábito de reservá-lo para representações claras. (cf. Ibid., p. 49). 5 A dúvida é um procedimento de caráter voluntário e geral. No resumo da Primeira Meditação, Descartes define com bastante precisão o objetivo deste procedimento: trata-se de livrar a mente dos preconceitos e de acostumá-la a se separar dos sentidos. (cf. DESCARTES, 2004, p. 19). 6 Modos de pensar nada mais são do que todas as propriedades que encontramos na coisa pensante. (cf. DESCARTES, 1997, p. 46).

, desconsiderando-os assim, como coisas existentes fora de si ou como sendo

algo em si mesmos. Entretanto, enquanto modos de pensamento, a imaginação e os

sentimentos não podem ser separados do próprio ato de pensar, pois é no exercício desse

mesmo ato que as concebemos, e, por conseguinte, não podemos duvidar que elas estejam

presentes, pelo menos, em mim mesmo. Conseqüentemente, a redução dos modos de

pensamento ao método da dúvida seria o mesmo que duvidar de que se pensa, e, portanto,

contradizer-se. No que tange aos modos de pensamento, afirma Descartes:

Pois, como antes fiz notar, embora as coisas que sinto e imagino fora de mim talvez não sejam nada ali, todavia, os modos de pensar que chamo sensações e imaginações, na medida em que são somente certos modos de pensar, tenho certeza de que eles estão em mim. (Terceira Meditação, 2004, p. 69 e 71/1/).

A próxima tarefa que Descartes propõe é verificar se existem outros conhecimentos

que, porventura, tenham passado despercebidos no decorrer da meditação. Lançando seu olhar

sobre aquilo que já estabeleceu como fundamento, ou seja, o cogito, Descartes descobre algo

mais por meio dele. Presente neste mesmo conhecimento encontra-se o que é necessário para

convencer-se da verdade, a saber, a percepção clara e distinta7 daquilo que se mostrou veraz.

Tendo em vista que o primeiro conhecimento postulado foi adquirido por meio de uma

percepção clara e distinta do objeto conhecido, desde já Descartes estabelece como regra

geral que todas as coisas que concebemos clara e distintamente são verdadeiras. Em outras

palavras, a percepção do cogito é acompanhada pela clareza e distinção intuitiva8

7 A definição de clareza e distinção proposta por Descartes encontra-se nos Princípios da Filosofia. Segundo o artigo 45 da Parte I, o conhecimento claro é aquele que se manifesta ao espírito atento, enquanto o conhecimento distinto é aquela percepção de tal modo precisa e diferente de todas as demais que apenas compreende em si aquilo que surge manifestadamente aos que a considera de modo apropriado. (cf. Ibid., p. 43). 8 A intuição é um dos dois principais atos do entendimento, sendo o outro a dedução. Trata-se da concepção de um espírito puro e atento, concepção essa, tão fácil e distinta que nenhuma dúvida permanece sobre o que compreendemos e que nasce apenas da luz da razão. (cf. Id., 2010, p. 412). A intuição é um ato unitário da mente que apreende de maneira absoluta, e, por conseguinte, em sua totalidade um dado conteúdo objetivo. (cf. BUZON; KAMBOUCHNER, 2010, p. 48).

daquilo que

percebo. Descartes acrescenta que a clareza e a distinção seriam insuficientes para assegurar a

verdade de um conhecimento, caso ocorresse de perceber algo clara e distintamente que se

mostrasse falso. Mas, pelo contrário, a descoberta do cogito trouxe à luz o primeiro

conhecimento capaz de dissipar a obscuridade e confusão de um reino de incertezas,

instaurando em seu lugar, uma única verdade (até o momento) que trouxe, com ela, sua marca

característica, que é a clareza e a distinção. Desse modo, é o conhecimento do cogito que

inaugura na filosofia cartesiana a regra geral que serve de critério de verdade. A clareza e a

distinção, por assim dizer, é a própria indubitabilidade. A presença da clareza e distinção na

percepção daquilo que conheço anula a possibilidade de reduzir tal conhecimento à dúvida, e

a possibilidade de se reduzir um determinado conhecimento à dúvida sugere que a percepção

daquilo que conheço não foi claro, nem distinto. Caso a regra geral da clareza e distinção

pudesse ser reduzido à dúvida, o próprio conhecimento do cogito seria ameaçado, pois a

clareza e distinção são o modo pelo qual eu percebo a substância pensante, como afirma

Descartes: “nesse primeiro conhecimento nada há senão uma percepção clara e distinta do

que afirmo”. (Terceira Meditações, 2004, p. 71/2/). Mas como não podemos duvidar da

substância pensante, não podemos duvidar, também, da clareza e a distinção que a ela está

unida. Tendo a primeira verdade sido percebida com clareza e distinção é razoável estabelecê-

las como regra geral para identificar todas as verdades adquiridas a partir desta: “E, por

conseguinte, parece-me que já posso estabelecer como regra geral que: é verdadeiro tudo o

que percebo muito clara e muito distintamente” (Terceira Meditações, 2004, p. 71/2/).

Contudo, Descartes afirma que existem diversas coisas que considerava como sendo

claro e distinto, mas que, no entanto, se mostraram duvidosas, logo após serem submetidas ao

critério da dúvida metódica. Para conservar a eficiência da regra geral, Descartes atribui a

origem do engano não a clareza e distinção, mas a ausência deles. Ele sustenta que o homem é

causa do seu próprio engano. A atitude de postular a existência de coisas fora da substância

pensante, e consagrá-las como causa de idéias que supostamente se assemelhariam a elas,

nada mais é do que o fruto de um ato impensado, um vício. É verdade que não posso duvidar

que a substância pensante seja povoada por idéias, mas supor a existência de coisas que às

correspondam implica num engano que resulta não da clareza e da distinção, mas em dar o

meu assentimento àquilo que se poderia facilmente duvidar. Descartes afirma que todo

julgamento deve possuir um conhecimento que lhe seja causa. Não se deve dar assentimento

ao conhecimento que carece de razões claras e distintas que o sustente.

Mesmo um conhecimento elementar de aritmética e geometria podem ser colocados à

prova. O postulado da existência de um gênio maligno9

9 Ao retomar a discussão sobre a imperfeição da minha natureza no final da Primeira Meditação, o Deus enganador ressurge na figura de um “gênio maligno sumamente poderoso e manhoso”. (COTTINGHAM, 1995, p. 52).

leva a dúvida metódica de Descartes

até as últimas consequências. Na possibilidade de existir um ser assim, um cálculo simples,

como por exemplo, que a soma do número dois ao número três resulte no número cinco, pode

ser questionado. O inusitado argumento de Descartes é patente. Ele se mostra cuidadoso não

apenas em suspender a existência das coisas que julgava conhecer muito bem, mas também

em postular a possibilidade da existência de alguma coisa que pudesse ameaçar o

conhecimento mais seguro. Além disso, a idéia de um gênio maligno se apresenta ao nosso

espírito do mesmo modo que a idéia de terra, céu e astros, ou seja, como modos de

pensamento e que, portanto, não devem ser ignorados (já que são verdadeiros enquanto tais).

Em outras palavras, o que Descartes faz é colocar em questão sua própria natureza. O

argumento afirma que um criador, superior a mim em força e astúcia, causa de minha

existência, poderia me conferir uma natureza tal que me fizesse enganar mesmo nas coisas

que julgo serem mais claras e distintas. Sendo assim, a natureza humana seria destituída de

um critério de verdade. Não haveria garantia suficiente para assegurar a procedência de

qualquer julgamento, pois a natureza do homem seria incapaz de reconhecer a verdade, e,

portanto, qualquer separação conceitual entre aquilo que é duvidoso, daquilo que é claro e

distinto seria inútil. Mas, mesmo com a força deste postulado, Descartes encontra, mais uma

vez no cogito, um fundamento seguro, mesmo na possibilidade de existir um deus embusteiro.

Pois, mesmo que haja a possibilidade de existir um deus embusteiro capaz de nos enganar

naquilo que consideramos mais evidente, a exemplo da geometria e da aritmética, não

podemos duvidar da evidência de existirmos. O ato de postular a existência de um deus

embusteiro ou a capacidade de realizar operações matemáticas, mesmo no caso de se cometer

equívocos, são atos de pensamento, e, portanto, fortalecem, ainda mais, a intuição da

existência da substância pensante. Do “nada”, pelo contrário, nada pode advir. Assim,

Descartes afasta definitivamente, qualquer possibilidade da substância pensamente não

existir:

[...] engana-me quem puder, nunca poderá fazer no entanto que eu nada seja, enquanto eu pensar que sou algo ou que alguma vez seja verdadeiro que eu nunca fui, quando é verdadeiro que agora sou ou, talvez mesmo, que dois juntos a três fazem mais ou menos do que cinco, ou coisas semelhantes, nas quais conheço manifesta contradição. (Terceira Meditação, 2004, p. 73/4/)

Além do mais, Descartes considera que o ato de julgar deve estar calçado por um

conhecimento que é a sua causa. Desse modo, ele reconhece que, mesmo na possibilidade de

existir um deus embusteiro, não há razão alguma para afirmar a sua existência. Entretanto,

não ter razão alguma para postular a existência de um deus embusteiro não é suficiente para

afastar totalmente essa possibilidade, pois não há razão também para afirmar sua inexistência.

Para Descartes, a hipótese da existência de um deus embusteiro só pode ser rejeitada

cumprindo duas etapas. A ordem fixada por ele consiste primeiro em provar a existência de

Deus, e, em seguida, precisar a Sua natureza, isto é, demonstrar que Ele não é embusteiro10

10 Como critério utilizável para as ciências, a certeza de fato do Cogito não aboliu, de modo algum, de direito, a hipótese do gênio maligno. Somente uma razão superior poderá extinguir a dúvida universal de direito que atinge diretamente minha certeza subjetiva de fato. Deus cumprirá esse papel: “Por onde se vê que Deus será o anel superior da cadeia de certezas; que ele será finalmente colocado como o único fundamento da ciência – em lugar do Cogito que será concebido somente como seu ponto de partida (...)”. (GUEROULT, 1968, vol. 1, p. 158).

. O

conhecimento destas duas verdades é fundamental para Descartes, pois delas depende toda

ciência: (...) Pois, na ignorância disso, não parece que eu possa jamais estar completamente

certo de nenhuma outra coisa. (Terceira Meditação, 2004, p. 73/5/).

1.2 Os Gêneros do pensamento – as idéias, as vontades ou afecções e os juízos

Para provar que Deus existe e, em seguida, precisar a Sua natureza (no caso Dele

existir), Descartes conserva a ordem das razões11

Dentre nossos diversos pensamentos, existem aqueles nas quais cabe propriamente o

nome de idéia

por ele estabelecida, que consiste em passar

paulatinamente das idéias que primeiro constatar no espírito para àqueles que forem

percebidos posteriormente. Em outros termos, Descartes passa da idéia pela qual represento a

mim mesmo, para àquelas que primeiramente se afiguram ao espírito. Tais idéias parecem

possuir maior clareza e distinção, devendo assim, serem primeiramente analisadas. De fato,

não faz sentido ignorar tais conteúdos a fim de analisar idéias que se encontram mais distantes

da substância pensante, pois supõem serem mais obscuros e confusos. Esse procedimento

exigiria um maior esforço do espírito para elucidá-los. A ordem estabelecida por Descartes

indica que a análise das idéias claras e distintas facilita a elucidação daquelas noções que

posteriormente se apresentem ao espírito humano. Outra proposta de Descartes para elucidar

as idéias presentes no espírito é classificar todos os seus pensamentos em determinados

gêneros e, em seguida, estabelecer quais deles são verdadeiros e quais são falsos.

12

11 A ordem das razões consiste em conhecer as coisas primeiro propostas sem a ajuda das posteriores, e as posteriores demonstradas a partir das coisas que a antecedem. Esse procedimento consiste em passar da verificação das coisas mais fáceis para as mais difíceis. (cf. BUZON; KAMBOUCHNER, 2010, p. 57, 58). 12 O termo idéia é um dos conceitos filosóficos mais ambíguos. Em Descartes, essa expressão possui dois aspectos, sendo um psicológico e outro lógico. Por um lado, a natureza de uma idéia é de tal maneira que não exige de si outra realidade a não ser a que extrai de meu pensamento, do qual é apenas um modo. Trata-se do aspecto psicológico. Por outro lado, contudo, a idéia teria um certo conteúdo representacional, pois enquanto modos de pensar, não existe desigualdade entre as idéias, pois todos parecem provir de mim, mas quando consideradas como representantes de coisas diversas, existem entre elas grandes diferenças, à medida que possuem maior realidade objetiva ou conteúdo representacional do que outras. Nesse sentido, podemos dizer que as pessoas podem ter uma mesma idéia quando possuem um conteúdo representacional comum. Trata-se do aspecto lógico. (cf. COTTINGHAM, 1995, p. 76, 77).

. Segundo Descartes, a idéia é a imagem ou a representação que temos de algo

no pensamento, independentemente de existir algo fora de mim. Desse modo, a idéia pode ser

a representação de Deus, do mundo ou de qualquer outra coisa. Mas existe, também, outro

gênero de pensamentos caracterizado pelo querer e pelo afastar-se, pela afirmação e pela

negação. Nesse caso, concebo algo como o sujeito da ação do meu espírito, mas agrego

alguma coisa na idéia que tenho dele, em virtude desta ação. Para esta classe de pensamentos,

ele denomina algumas como vontades13 e afecções, e outros, como juízo14

No que tange às idéias, todas elas devem ser consideradas verdadeiras

.

15

13 Descartes sustenta que nossa vontade é totalmente sujeita a nossa liberdade. Temos o poder de dar ou não nosso assentimento espontaneamente. Trata-se de uma das primeiras noções comuns que em nós são inatas. (cf. DESCARTES, 1997, p. 41). 14 A teoria do juízo de Descartes é elaborada de maneira mais exaustiva na Quarta Meditação. Nela, Descartes atribui à inclinação humana o incorrer no erro, não ao intelecto, que está em si mesmo, livre de engodo, embora seja limitado, mas ao mau uso de nossa liberdade da vontade (infinita) para fazer juízos acerca de temas que ultrapassam nosso conhecimento. (cf. DESCARTES, 2004, p. /10/ 121). 15 A definição de verdade apresentada pelo filósofo francês é inovadora. Embora a palavra verdade na sua própria significação, implique na adequação do pensamento ao objeto, quando atribuímos às coisas que estão fora do pensamento, ela indica apenas que essas coisas podem servir de objetos para pensamentos verdadeiros. Assim, o que faz com que um pensamento seja verdadeiro é somente que seja um verdadeiro pensamento, munido do máximo de precisão de que um pensamento possa se apropriar. Essa definição de verdade proposta por Descartes possui um maior alcance que o conceito escolástico de verdade como “adequação da coisa e do entendimento”. (cf. BUZON; KAMBOUCHNER, 2010, p. 80, 81).

em si mesmas.

Sem relacioná-las a qualquer coisa que suponho existir fora de mim, não existe àquela idéia

que posso considerar verdadeira, e outra, como sendo falsa. Dessa forma, a idéia de um

unicórnio não é menos verdadeira que a idéia de uma árvore, pois ambas se encontram no

meu espírito. O mesmo ocorre com as vontades ou afecções. Mesmo que seja perverso ou

inexistente o objeto de meu desejo, não é falso o fato de que o desejo. Não é aquilo que desejo

o fator relevante neste momento, mas o modo de pensamento em si, que é o de desejar.

Quanto aos juízos, ele afirma que o ato de negar e afirmar não podem ser considerados

como sendo verdadeiros em si mesmos. Ele sustenta que o equívoco principal do juízo

consiste em relacionar idéias presentes no espírito com coisas que se encontram fora dele,

como se lhes fossem semelhantes ou correspondentes. Em outras palavras, o erro ocorre

quando as idéias deixam de ser consideradas verdadeiras em si mesmas, para tornarem-se algo

mais.

1.3 As idéia inatas, adquiridas e fictícias

Descartes classifica as idéias em três gêneros diferentes: idéias inatas, idéias

adquiridas e idéias fictícias. As idéias inatas16 são àquelas representações que não podem ter

tido outra origem, senão, na própria natureza humana. As idéias adquiridas17, ao contrário,

são caracterizadas por serem estranhas a natureza humana, e, portanto, terem vindo de fora. Já

as idéias fictícias18

A tarefa primordial de Descartes é descobrir as razões que o obrigam a considerar

determinadas idéias como correspondentes ou semelhantes a objetos que existem

independentemente dele. A primeira razão possível é que, por força de um impulso

espontâneo, estabelecemos uma relação entre idéias e coisas que supostamente existam fora

, correspondem a representações de quimeras, ou seja, composição de

elementos percebidos pelos sentidos que são arbitrariamente formados pelo espírito humano.

Essa classificação fixada por Descartes representa apenas aquilo que se lhe afigura nesta

altura da meditação, sem uma causa suficiente que lhe justifique o motivo. Em outras

palavras, como ele ainda não descobriu clara e distintamente a origem das representações,

todas as idéias podem ser classificadas em um único gênero, dentre as três apresentadas. Ele

propõe, primeiramente, determinar quais são as idéias adquiridas, através da investigação do

que me leva a atribuir sua origem a algo fora mim. Feito isso, deixamos de julgá-las todas

provenientes dos sentidos e abrimos caminho para determinarmos a natureza das demais, que

aparentemente estão em menor número.

1.3.1 Natureza versus razão

16 As idéias inatas são aquelas nascidas com nossa mente, seja porque são as idéias das coisas mais simples, a partir das quais compomos as demais, como por exemplo, as idéias de extensão, do movimento, do pensamento, da existência e da unidade, seja porque nos representam naturezas verdadeiras e imutáveis, cujas propriedades desvelamos gradativamente, sem que esteja em nosso poder acrescentar ou subtrair tais propriedades, como, por exemplo, a idéia do triângulo e a idéia de Deus. Trata-se de idéias não forjadas pela mente humana ou adquiridas por meio dos sentidos. (cf. Ibid., p. 43, 44). 17 As idéias adquiridas são imagens das coisas que nos são representadas pelos sentidos, porque devem sua formação a determinadas circunstâncias externas. (cf. Ibid., p. 43). 18 As idéias fictícias são aquelas compostas arbitrariamente ou conforme nossa fantasia. Trata-se da idéia de alguma coisa que nunca encontramos um exemplo. (cf. Ibid., p. 43).

de nós. A segunda razão é que temos experiência com determinadas idéias que se nos

afiguram independentemente de nossa vontade. O sentimento ou a representação provocados

pelo calor, por exemplo, independe do espírito humano desejá-lo ou não. A presença do calor

convence-nos que a idéia provocada em nosso espírito por ele é estranha ao próprio espírito,

neste caso, o fogo. Há razão, por assim dizer, para julgar que este corpo diferente de mim,

imprime no meu espírito sua similitude.

Todavia, essas duas razões apresentadas por Descartes de julgar determinadas idéias

como semelhantes ou correspondentes a objetos extrínsecos a elas são postas à prova19. Sua

tarefa fundamental é verificar se essas razões são suficientes para justificar o ato de julgar. Ele

inicia sua investigação com o ensino que se adquire através da natureza. Para tanto, ele

esclarece primeiro o sentido em que utiliza o termo “natureza”. Natureza é a tendência do

espírito humano a dar seu assentimento ao ato de julgar que as idéias são semelhantes ou

correspondentes a objetos supostamente alheios a ele. Diferentemente da razão, o

assentimento precipitado não oferece conhecimento que justifique o estabelecimento da

similitude e correspondência entre idéias e coisas. Ele acrescenta que a natureza e a razão são

muito diferentes entre si. A razão, por exemplo, não permite que se duvide ou que se engane

acerca de assuntos que ela revelou ser verdadeiro. A descoberta do cogito justifica esta

afirmação. Desse modo, a razão é o que permite o espírito humano distinguir o verdadeiro do

falso. Estando sob a luz soberana da razão20

19 O juízo é o elemento da consciência mais difícil de eliminar, na tarefa de estabelecer o caminho para se alcançar a verdadeira ciência. Em primeiro lugar, o juízo tem contra si, os prejuízos e hábitos do senso comum, que datam de minha infância e incorporam, na própria idéia, os resultados do juízo. Além disso, a idéia, anunciando-se em si para a minha consciência como quadro de uma coisa exterior a ela, exige continuamente apenas por sua presença em mim um juízo formal de objetividade que dificilmente é dissociado dela: “Excluir o juízo, portanto, é a uma só vez a primeira e a mais difícil das urgências, pois não se trata somente de delimitar a pesquisa, restringindo-a à consideração da idéia; trata-se, ao mesmo tempo, de estar certo de que aquilo que se isolou dos outros elementos da consciência a título de idéia é realmente a idéia e não um complexo que lhe incorporaria ingredientes estranhos”. (GUEROULT, 1968, vol. 1, p. 177). 20 Chama-se luz natural ou razão, no homem, a potência de distinguir o falso do verdadeiro e de comportar-se conforme essa percepção. O ato de cultivar a razão não era apenas uma vocação pessoal de Descartes, mas, o que, para ele, deveria ser a preocupação primeira de cada homem. (cf. BUZON; KAMBOUCHNER, 2010, p. 71, 72).

, não há nada que me faça assumir como

verdadeiro o que é falso ou tomar o falso como sendo verdadeiro. As palavras que vem a

seguir demonstram o lugar absoluto ocupado pela razão no sistema filosófico cartesiano:

“[...] porque não pode haver nenhuma outra faculdade em que confie tanto quanto nessa luz,

e que possa ensinar-me que elas não são verdadeiras”. (Terceira Meditação, 2004, p. 77 e

79/13/).

Em outras palavras, não há outra instância que seja capaz de sobrepujar a luz natural.

Não há nada suficientemente eficaz que enfraqueça suas demonstrações ou que ponha em

dúvida aquilo que ela provou ser seguro. Aquilo que a luz natural revelou ser claro e distinto

não pode ser tornado obscuro ou confuso. Os impulsos naturais, pelo contrário, induz ao erro.

Segundo Descartes, esses impulsos não o levaram menos ao mal do que ao bem, razão pela

qual, não temos motivos de segui-la na tarefa de distinguir o verdadeiro do falso.

1.3.2 Vontade versus razão

Sendo assim, aquilo que aprendemos por meio de nossa natureza, não nos assegura do

ato de se associar determinadas idéias a objetos estranhos a elas, como se lhes fossem

semelhantes ou correspondentes.

Mas ainda resta outra razão para Descartes verificar. Trata-se do viés da vontade. Não

menos que a proposta anterior, o argumento baseado na vontade é inconsistente para justificar

o ato de associar idéias a objetos que supostamente existiriam fora do pensamento. Logo de

prima facie, ele apresenta um problema. As inclinações, por exemplo, estão presentes no meu

espírito, muito embora não atendam aos apelos da vontade, e, portanto, é possível que exista

no cogito uma capacidade de produzir tais idéias sem o auxílio de algo exterior. A experiência

do sonho21

21 O argumento do sonho foi apresentado de forma mais completa por Descartes na Primeira Meditação. Naquela ocasião, ele utilizou esse argumento como “dinamite” para abalar as bases de suas crenças anteriormente

esclarece o embaraço proposto. Ao dormir, idéias desta natureza se apresentam

nos sonhos sem que precisem ser relacionadas com algum objeto extrínseco a elas. Desse

modo, sensações experimentadas nos sonhos, mesmo que alheios à vontade do espírito

humano, não dependem de nada exterior a essas representações. Mas ele não encerra seu

argumento aqui. Segundo ele, mesmo que essas idéias fossem oriundas de objetos exteriores a

elas, não há razão suficiente para lhes atribuir similitude ou correspondência. De fato, por

inúmeras vezes, ele experimentou uma disparidade entre o objeto e sua idéia. Pode haver em

nosso espírito, como realmente há, duas idéias completamente diferente de um único objeto.

O sol, por exemplo, pode ser representado por pelo menos duas idéias. A primeira é fruto do

contato visual, e, portanto, classificada no gênero daquelas que, supostamente, foram oriundas

de objetos externos. Neste caso, a representação do sol é de um objeto muito pequeno. A

segunda idéia do sol nasce das razões derivadas da astronomia, que utiliza as noções que

Descartes julgou serem inatas. O resultado da ciência astronômica é a representação do sol em

tamanho absurdamente maior em comparação aquela que supostamente originou-se dos

nossos sentidos. Segundo Descartes, a razão nos oferece dupla convicção: que apenas uma das

duas representações apresentadas pode ser verdadeira, e que, a idéia cuja origem deriva do

contato imediato com o objeto é o menos semelhante.

1.4 A realidade objetiva das idéias22

Nessa sessão, veremos de que modo Descartes articula a noção de realidade objetiva

23,

fundamental para as provas da existência de Deus a posteriori24

sustentadas. Em última análise, o argumento serviu para demonstrar que não há marcas precisas que diferenciem a vigília do sono. Nesse momento da meditação, mais uma vez o argumento do sonho mostra-se útil, mas de uma outra forma. Segundo Descartes, não há razão suficiente para estabelecer a existência de coisas fora de mim, simplesmente por se me afigurarem objetos ao pensamento independentemente de minha vontade, pois esse fenômeno é experimentado quando durmo. (cf. COTTINGHAM, 1995, p. 145). 22 Por diversas vezes, Descartes estabelece um contraste entre os termos “objetivo” e “formal”. Do ponto de vista psicológico, a idéia pode ser considerada como uma certa modificação na consciência, mas, do ponto de vista lógico, ela pode ser considerada a partir do conteúdo representacional. A realidade formal é o ato mental desempenhado para se representar alguma coisa, enquanto, que, a realidade objetiva, é a coisa representada no momento em que é concebida. (cf. Ibid., p. 138, 139).

, com a relação de causa e

efeito25. A idéia através da qual represento um Deus inclui os atributos de soberania,

eternidade, infinitude, imutabilidade, onisciência, onipotência e fonte criadora absoluta, ou

seja, um grau máximo de ser, mesmo sendo eu imperfeito. Por outro lado, duas noções

comuns26

Como vimos, tanto a força de nossos impulsos naturais, quanto as idéias que se

apresentam contra nossa vontade são insuficientes para justificar o ato de relacionar idéias, às

no axioma de causalidade implicam que do nada, nada provém, e que aquilo que

possui em si mais realidade não pode originar e depender de um ser menos perfeito. Assim,

Descartes terá que investigar a causa da idéia que tenho de Deus, que não pode ter sido eu.

1.4.1 Idéias entendidas apenas como modos de pensamento

23 A tarefa de atribuir o valor objetivo das idéias engaja-se em duas direções complexas e totalmente diferentes. Por um lado, a dúvida em relação ao valor objetivo das idéias é alimentada pela ficção do gênio maligno, que só será destruída mediante a prova da existência de Deus. O objetivo mais urgente da investigação é, portanto, demonstrar que Deus existe. É a conseqüência dessa demonstração que resolverá o problema do valor objetivo das idéias claras e distintas. A solução valerá desse modo, para a universalidade dessas idéias. Por outro lado, provar a existência de Deus é provar que a idéia de Deus tem um valor objetivo. Nesse caso, não é mais o problema da existência de Deus que soluciona o problema do valor objetivo, mas o inverso. O problema do valor objetivo das idéias surge, desse modo, como devendo ser tratado em si mesmo, uma a uma, sem passar pelo viés de Deus, uma vez que ignoramos até então que Deus existe. Contudo, essas duas direções investigativas se convergem admiravelmente: “(...) no momento em que constato que minha investigação, ao examinar uma a uma as idéias, só consegue resolver positivamente para uma delas o problema de seu valor objetivo, eu apercebo, por conseguinte, que descobri a solução universal desse problema. Com efeito, se Deus existe, como ele é necessariamente veraz, a hipótese do Deus enganador e a ficção do gênio maligno são imediatamente destruídas. A dúvida metafísica que atacava as idéia claras e distintas é ipso facto necessariamente abolida. Portanto, todas estas idéias, necessariamente em bloco e de uma só vez, recuperam seu valor objetivo”. (GUEROULT, 1968, vol. 1, p. 183). 24 As duas provas a posteriori são conhecidas também como provas “pelos efeitos”. A primeira consiste em demonstrar a existência de uma causa infinita, para a idéia de um ser infinito (Deus) que possuo na minha mente. A segunda, sendo uma variante da primeira, consiste em demonstrar a existência de uma causa infinita de mim mesmo, já que possuo a idéia de um ser infinito. (cf. BUZON; KAMBOUCHNER, 2010, p. 23, 24). 25 A articulação entre a realidade objetiva e o axioma de causalidade dá-se basicamente a partir de três movimentos: 1 – o reconhecimento de um princípio de causalidade segundo a qual “deve haver ao menos tanta realidade na causa quanto no efeito”; 2 – a construção de uma teoria das idéias que diferencie da realidade formal delas, uma realidade objetiva, que é função do grau de ser da coisa que elas representam; 3 – a definição de Deus como ser infinito. Ao abarcarem o princípio de causalidade às próprias idéias e não apenas à sua “realidade formal”, mas inclusive à sua “realidade objetiva”, concluem que, sem a intervenção de um ser realmente infinito, eu não possuiria de Deus, a idéia que Dele recebi. (cf. Ibid., p. 24, 25). 26 Essa expressão originalmente foi utilizada para fazer referência aos axiomas de Euclides. Descartes por diversas vezes utiliza essa expressão como termo técnico para designar axiomas lógicos fundamentais. (cf. COTTINGHAM, 1995, p. 128). Nos Princípios da Filosofia, Parte I, Artigo 49, Descartes classifica “noção comum” ou “axioma” como “verdade eterna que tem o seu lugar no pensamento”. Segundo ele, o axioma “do nada, nada se faz” é tão importante quanto a idéia de que “aquele que pensa não pode deixar de ser ou existir enquanto pensa”. (DESCARTES, 1997, p. 44).

coisas, como se lhes fossem correspondentes27 ou semelhantes28. Segundo ele, essa atitude é

fruto de um cego e arrojado impulso, e não de um julgamento acertado e cuidadoso. Podemos

asseverar que neste momento da meditação, Descartes ainda não encontrou uma causa que

justifique a existência de coisas fora do pensamento; objetos que supostamente forneceriam

idéias adquiridas através de nossos órgãos externos29

Além dessas duas razões rechaçadas

e que fixariam em nós suas

semelhanças.

30 de considerar que, dentre as idéias que trago em

mim, algumas têm origem fora do pensamento, Descartes propõe outro caminho. Quando

essas idéias são concebidas, senão enquanto determinados modos de pensar31

27 A experiência do engano e o constrangimento experimentado nos sonhos são, para Descartes, suficientes para desqualificar os juízos de origem, muito usual no senso comum. No que tange aos apelos de minha natureza, vê-se que: “(...) a experiência me ensina que a inclinação natural engana-me no que concerne ao bem; logo, ela pode enganar-me no que concerne ao verdadeiro (GUEROULT, 1968, vol. 1, p. 169). No que concerne ao constrangimento que minha vontade sofre na percepção, nota-se que: “(...) sofro o mesmo constrangimento no sonho; logo, nada me impede de conjecturar que há em mim faculdade ainda desconhecida, que produz em mim a representação da coisa exterior, e se opõe à minha vontade da mesma maneira que as minhas inclinações naturais.” (Ibid., p. 169). 28 O segundo juízo, que versa sobre o valor objetivo – que consiste em afirmar, em virtude do juízo de origem, a conformidade da idéia, como imagem ou quadro, à coisa de que ela seria a cópia – não se sustenta: “(...) mesmo se coisa exterior fosse a causa da idéia, disso não resultaria, de modo algum, que aquela seria semelhante a essa”. (Ibid., p. 169). 29 Segundo Descartes, o sentido é um tipo de pensamento que conhecemos imediatamente como distinto da intelecção pura e da imaginação. O mecanismo causal do sentido pode ser dividido entre três graus, sendo que, apenas o primeiro nos importa para fins de explicação, pois trata-se das impressões que os objetos externos causam imediatamente no órgão corporal. Essas impressões se reduzem às operações puramente mecânicas que ligam os objetos sensíveis aos órgãos externos do corpo, e depois esses ao centro do cérebro, localizado na glândula pineal. Desse modo, Descartes pode eliminar completamente a teoria escolástica das espécies, segundo a qual os corpos transmitem para os órgãos dos sentidos pequenas imagens que com ele se parecem. Para Descartes, as impressões cerebrais correspondem mecanicamente aos objetos, mas não têm nenhuma semelhança com eles. (cf. BUZON; KAMBOUCHNER, 2010, p. 74, 75). 30 Os juízos de origem são expostos aos mesmos riscos e às mesmas incertezas que os juízos de valor objetivo. O primeiro corresponde ao juízo de causalidade e o segundo ao juízo de semelhança da idéia e seu ideado. A refutação desses juízos reduz-se a nada, às objeções de todos aqueles que contestam o valor das provas da existência de Deus sob pretexto de que a idéia de Deus seria fictícia, ou seja, uma “quimera”, ou uma idéia adventícia, ou seja, “adquirida por ouvir dizer”, pois a presunção de origem não pode decidir antecipadamente o valor objetivo da idéia: “Com efeito, o que importa essa presumida origem da idéia, a partir do momento que nos colocamos unicamente em face de seu conteúdo, isto é, de sua realidade objetiva, que permanece a mesma qualquer que seja a hipótese de sua origem?” (GUEROULT, 1968, vol. 1, p. 173). 31 Enquanto modificações da consciência, todas as idéias são iguais. (cf. COTTINGHAM, 1995, p. 121).

, não existem

entre elas qualquer diversidade, e cada uma parece ser oriunda do espírito, sem desigualdade.

1.4.2 A realidade objetiva da idéia de Deus

Entretanto, quando essas idéias não são consideradas modos de pensar, mas são vistas

como imagens, cada qual representando uma coisa diferente, elas são diversas entre si. As

idéias que representam uma substância32 são algo mais, e, por assim dizer, carregam em si,

mais realidade objetiva. Em outros termos, as idéias de substâncias participam, justamente por

representar substâncias, num maior grau de ser ou de perfeição que as idéias que representam

apenas modos33 ou acidentes. Como veremos mais adiante, a noção de realidade objetiva

introduzida por Descartes será fundamental para as provas da existência de Deus a posteriori.

A idéia de Deus representa uma substância que possui um grau máximo de ser, pois, através

dela, concebo um Deus soberano, eterno, infinito, imutável, onisciente, onipotente e criador

absoluto34

32 Substância é aquilo que existe de uma maneira tal que não precisa senão de si mesma para existir. O conceito cartesiano de substância comporta equivocidade, pois é aplicado em sentidos diferentes a Deus e às substâncias criadas. Deus, definido como “substância não-criada que pensa e que é independente”, é o único ser que merece com todo rigor as implicações envolvidas, “só precisa de si para existir”. As substâncias criadas, por outro lado, não poderiam existir sem a ação de Deus, contudo, as concebemos sem relação de dependência necessária com outras substâncias criadas. (cf. Ibid., p. 76, 77). 33 Os modos, qualidades e os atributos são aquilo que dependem de outra coisa para existir. A utilização dessas três noções, que indicam a mesma realidade, depende do contexto de sua aplicação: a substância é diversificada por seus modos; caso o modo possibilite denominar a substância, ele é uma qualidade; na medida em que é aferida a substância, ele é um atributo. (cf. Ibid., p. 76, 77). 34 Dentre a lista de atributos divinos apresentada por Descartes, a menção ao atributo criador é intrigante. Os atributos da soberania, eternidade, infinitude, imutabilidade, onisciência e onipotência são fundamentais para caracterizar um ente sumamente perfeito e infinito, mas não o atributo criador. A primeira vista, um ente sumamente perfeito e infinito que não seja criador, não deixa de ser perfeito. Tal constatação desqualifica o criador como atributo essencial à perfeição. Descartes não justifica a inclusão desse atributo em sua lista e os textos utilizados para realização desse trabalho não pontuam esse problema. Considerando o rigor com que Descartes procura estabelecer os fundamentos para a ciência, segundo a ordem das razões, é pouco provável que o atributo de criador incluído na lista, seja um artigo de fé. Para todos os efeitos, o atributo de criador, como se verá mais adiante, será indispensável para elucidar a causa formal e objetiva da idéia de Deus que se encontra em mim.

de tudo o que existe fora dele. Assim, a idéia de Deus contém em si mais realidade

objetiva do que aquelas através das quais represento as substâncias finitas.

1.4.3 A relação de causa e efeito

Segundo Descartes, deve haver ao menos tanta realidade na causa eficiente35

A propósito disso, Descartes oferece, ao invés de uma resposta, uma demonstração da

inconsistência desta objeção. O Meditador lembra seus contraditores que, ao término da

Terceira Meditação, ele havia afirmado que a idéia de Deus é inata; que ela está

fundamentada no próprio homem. Afirma também, que de fato, poderíamos formá-la, mesmo

que não tivéssemos conhecimento da existência de um soberano ser, mas não se efetivamente

não existisse um ser tal. Descartes afirma “que toda força de meu argumento consiste em que

e total

quanto em seu efeito. Ele justifica essa asserção de dois modos, a saber: o efeito não pode

tirar sua realidade a não ser de sua causa e a causa não pode comunicar ao efeito aquilo que

não possuía em si mesma. Nas Segundas Objeções, os contraditores de Descartes argumentam

que o simples fato de podermos produzir a idéia de um ser soberano não é suficiente para

demonstrar a existência de um ser assim. Segundo eles, verificamos em nós um fundamento

suficiente para forjar esta idéia, mesmo que um ser soberano não exista efetivamente.

Acrescentam que, na faculdade de pensar encontramos pelo menos um grau de perfeição, e

que somos capazes de reconhecê-lo também em outros. Tal constatação é suficiente para

conceber qualquer número e agregar a ele um grau de perfeição ao outro, até o infinito

[...] da mesma maneira que, mesmo se houvesse no mundo um único grau de calor ou de luz, poderia, não obstante, juntá-los e supor sempre outros novos até o infinito. Por que analogamente não poderia acrescentar a qualquer grau de ser que percebo existir em mim, outro grau qualquer, e, de todos os graus capazes de serem adicionados, constituir a idéia de um ser perfeito? (Segundas Objeções, 2010, p. 209)

35 A luz natural nos impõe que não existe nenhuma coisa sobre a qual não se deva questionar por que ela existe ou da qual não se deva procurar a causa eficiente, ou mesmo, caso não haja nenhuma, questionar por que ela não a exige. Na herança escolástica proveniente da concepção aristotélica, Descartes lida com a quadripartição clássica do conceito de causa. De acordo com os comentadores da Física de Aristóteles, o conhecimento pleno de uma coisa é adquirido quando se estabelece duas de suas causas internas, a forma e a matéria, e duas de suas causas externas, o agente e o fim. Trata-se da causa formal, causa material, causa eficiente e causa final. Para Descartes é diferente. A causalidade se resume essencialmente à causa eficiente. Pode-se distinguir entre uma causa primeira, a saber, Deus entendido como criador de todos os seres (possíveis e reais, bem como as verdades), de quem os seres dependem ininterruptamente, e as causas segundas, que são as leis da natureza. (cf. BUZON; KAMBOUCHNER, 2010, p. 12, 13).

não poderia ocorrer que a faculdade de formar essa idéia existisse em mim se eu não tivesse

sido criado por Deus”. (Segundas Respostas, 2010, p. 218)

Ainda nas Segundas Objeções, os contraditores de Descartes apresentam um exemplo

baseado na natureza, para demonstrar que é possível haver no efeito alguma realidade ausente

na sua causa. Eles argumentam que existem inúmeros animais e vegetais produzidos pelo sol,

pela chuva e pela terra, em que não há vida, tal como existe nos animais e vegetais; vida esta,

que possui maior nobreza que qualquer ente puramente corpóreo “de onde resulta que o efeito

cobra, de sua causa, alguma realidade, que no entanto não existia na causa”. (Segundas

Objeções, 2010, p. 209)

Sem apresentar dificuldades, Descartes responde esta objeção. Categoricamente ele

afirma “E o que dizeis das moscas, das plantas, etc. não prova, de maneira alguma, que

algum grau de perfeição possa estar num efeito, não tendo estado antes na causa”.

(Segundas Respostas, 2010, p. 218). Ele acrescenta que é evidente não existir perfeição nos

animais privados de razão que não se ache também nos corpos inanimados, ou, caso exista

alguma perfeição, esta lhes advém de outra coisa, não sendo o sol, a chuva e a terra as causas

totais desses animais. Além disso, seria irracional se alguém, pelo simples motivo de

desconhecer a causa que concorra para a geração de uma mosca e que tenha tantos graus de

perfeição quanto há nela, não estando, contudo convicto de que existam outras além das que

conhece, “... aproveitasse a ocasião para duvidar de uma coisa, a qual, como logo direi mais

amplamente, é manifesta pela luz natural”. (Segundas Respostas, 2010, p. 218)

Somado a isso, Descartes afirma que exemplos desse tipo, sendo extraídos da

observação das coisas materiais são um indicativo da ausência de cuidado em seguir a ordem

proposta por ele nas Meditações, pois tais considerações não podem sobrevir ao espírito

“daqueles que, seguindo a ordem de minhas Meditações, desviam seus pensamentos das

coisas sensíveis, para começar a filosofar.” (Segundas Objeções, 2010, p. 218).

1.4.4 As implicações da relação de causa e efeito

De volta à Terceira Meditação, notamos que, ao menos duas conseqüências

necessárias são concluídas dessa relação entre causa e efeito. Em primeiro lugar, a declaração

de que do nada, nada provém. E, em segundo lugar, o que possui em si mais realidade não

pode originar e depender de um ser menos perfeito.

Ele nos lembra que essa reflexão acerca da relação entre causa e efeito é herdada da

tradição filosófica precedente: “E isto não é só claramente verdadeiro para os efeitos cuja

realidade é aquela que os filósofos chamam atual e formal, mas também para as idéia em que

só se considera a realidade que denominam objetiva (...)36

Para melhor desenvolver esse assunto, ele utiliza dois exemplos didáticos, que são

elementos presentes na natureza, acessível a qualquer pessoa. A pedra, segundo ele, não pode

por si mesma vir a ser, caso não seja produzida por algo que contém em si, formalmente, toda

nota característica presente na composição da pedra, ou seja, que possui em si própria as

mesmas coisas ou outras mais perfeitas do que aquelas que compõem a pedra; o calor não

pode aquecer um objeto que dele antes era privado se não for por algo que pertença a uma

ordem, um grau ou um gênero, munido de perfeição, tanto quanto o calor, e assim os outros.

O fogo, por exemplo, contém em si, tudo o que entra na composição de calor. O mesmo

princípio deve ser adotado na análise de qualquer idéia. A idéia de calor ou de pedra não pode

estar em mim, sem que tenha sido impressa por algo que possua em si mesma, ao menos tanta

realidade quanto aquela que percebo no calor ou na pedra

”. (Terceira Meditação, 2004, p.

83/18/)

37

36 A extensão do princípio de causalidade às próprias idéias e não apenas à sua “realidade formal”, mas também à sua “realidade objetiva” é fundamental para as provas a posteriori da existência de Deus. A partir dela, posso concluir que, na ausência da ação de um ser realmente infinito, eu não poderia ter de Deus, a idéia que Dele tenho. (cf. Ibid., p. 25).

. Pois, mesmo que essa causa não

37 Descartes aplica a distinção entre realidade formal e realidade objetiva não apenas às idéias, mas inclusive às entidades e objetos. Nesse caso, realidade “formal” será a existência atual, extra-mental, enquanto que a

comunique à minha idéia nada de sua realidade atual ou formal, não há razão para julgar que

essa causa deva ser menos real; contudo, por ser toda idéia uma obra do espírito, sua natureza

é de tal modo que não reivindica de si nenhuma outra realidade formal, além da que recebe do

pensamento, do qual ela é apenas uma forma de pensar. Todavia, para que uma idéia possua

uma realidade objetiva superior a outra, ela deve esse diferencial a alguma causa, na qual se

encontra ao menos tanta realidade formal quanto essa idéia possui de realidade objetiva. A

concepção da existência de algo na idéia que não está presente na sua causa induz ao erro de

admitir que talvez ela tenha adquirido esse algo do nada. Tal acepção é impossível. Nas

Segundas Respostas, o axioma de causalidade38

“realidade objetiva” será, apenas, a existência, no pensamento, de um objeto do entendimento. (cf. COTTINGHAM, 1995, p. 138). 38 A relação entre o princípio de causalidade e o princípio de correspondência da idéia com o ideado suscita uma questão bastante interessante. A intervenção necessária do princípio de correspondência da idéia com o ideado é condicionada pela afirmação de que não basta que uma coisa cause uma idéia para que essa, por isso mesmo, lhe seja semelhante. Ora, tal afirmação não contradiz o axioma comum e verdadeiro que o efeito é semelhante à causa? Esse axioma, contudo, não é aplicável no caso. Para justiçar isso, distinguem-se três tipos de causalidade: a causalidade absolutamente criadora (a de Deus), a produção natural (geração de uma pedra), e a produção artificial (a de um arquiteto que constrói uma casa). Ocorre que o axioma citado aplica-se apenas ao primeiro e o segundo caso: “Com efeito, quando a causa é ela própria um ser e uma substância e produz alguma coisa chamando-a à existência, isto é, criando-a do nada, uma tal coisa deve lhe assemelhar, uma vez que também essa deve ser uma substância, um ser”. O axioma, todavia, não se aplica ao terceiro caso, porque não se trata de uma causa criadora, mas de uma causa que não faz senão “aplicar coisas ativas a coisas passivas”. Sendo assim: “(...) a prova pela causa que imprime em nós a idéia entra no terceiro caso, uma vez que a idéia é em nós uma paixão, da qual se trata de descobrir a causa ativa. Deus não é aqui colocado como criador de meu ser, mas como causa da paixão que se exerce sobre o meu ser imprimindo nele a idéia do infinito”. (GUEROULT, 1968, vol. 1, p. 186).

ocupa o estatuto de noção primeira na

filosofia de Descartes. Segundo ele, o fato de que nada exista em um efeito que não tenha

existido de forma parecida ou mais elevada na causa é tão evidente, que não há nada tão claro.

Isso é equivalente a dizer que de nada, nada se faz, pois se admitirmos que haja algo no efeito

que não existiu em sua causa, cumpre admitir também, que este algo advém do nada.

Descartes acrescenta que “se é evidente que o nada não pode ser a causa de algo, é somente

porque, nesta causa, não haveria a mesma coisa do que no efeito”. (Segundas Respostas,

2010, p. 219). Por mais imperfeito que seja o modo de ser através do qual algo é objetiva ou

representativamente no pensamento por sua idéia, não se pode afirmar que esse modo não seja

nada, nem, portanto, que essa idéia tenha como fonte, o nada. Também, não há de se duvidar

que a realidade necessite estar, formal ou atualmente presente na causa de minhas idéias,

embora a realidade que concebo nessas idéias seja objetiva. Nem mesmo há de se pensar que

é suficiente que essa realidade se apresente objetivamente em suas causas; pois, assim como

esse modo de ser pertence às idéias, por sua própria natureza, da mesma maneira a forma de

ser formalmente pertence às causas dessas idéias. Mesmo existindo a possibilidade de que

uma idéia gere outra, isso não pode retroceder ao infinito, mais é necessário postular uma

primeira idéia, cuja causa seja uma matriz fundamental, na qual toda realidade esteja presente

formalmente e a qual somente se encontre objetiva ou representativamente nessas idéias.

Segundo ele, a razão revela que as idéias manifestam-se no pensamento como quadros39

Podemos seguramente afirmar que o axioma da causalidade estabelece um critério

para legitimar idéias, cuja origem e semelhança, repousam em objetos que existem fora do

meu espírito. Segundo Descartes, caso a realidade objetiva de alguma de minhas idéias

claramente não se apresentem a mim, formal ou eminentemente

, que

podem não corresponder perfeitamente às coisas de onde se originaram, mas que de nenhum

modo podem possuir algo de mais perfeito.

40

39 Graças ao entrelaçamento do princípio de causalidade e do princípio da correspondência da idéia com seu ideato, a conciliação de Deus causa eficiente e de Deus arquétipo é viabilizado: “existe (...) uma perfeita medida entre Deus e minha idéia de Deus e, é graças a essa medida comum, que eu posso conhecer que não há nenhuma medida entre mim e Deus”. (cf. Ibid., p. 208, 209). 40 Na terminologia escolástica, que Descartes faz uso aqui, ter algo “formalmente” significa tê-lo de modo literal e estrito, conforme sua definição; ter algo “eminentemente” é, ao invés disso, tê-lo de modo mais elevado, por se estar desfrutando, nesse particular, de um grau mais excelente de perfeição. (cf. COTTINGHAM, 1995, p. 32).

, devo concluir que eu não

sou a causa dessa idéia. Nas Segundas Respostas, ele sustenta que se trata de “uma primeira

noção que toda a perfeição que está objetivamente numa idéia deve estar realmente em

alguma de suas causas” (Segundas Respostas, 2010, p. 220). Segue-se daí que eu não existo

sozinho no mundo, mas que há algo mais de existente, que é responsável por produzir esta

idéia em meu espírito “e toda opinião que jamais nutrimos sobre a existência das coisas fora

de nós apóia-se tão somente nela (Segundas Respostas, 2010, p. 219-220). Desse modo, o

axioma da causalidade cumpre a difícil tarefa, fracassada pelas duas razões postuladas

anteriormente por Descartes. Ele reconhece, entretanto, que uma idéia assim ainda não foi

encontrada, e, portanto, a única existência admitida até este momento, é a sua própria.

1.5 As idéias de Deus, de coisas corporais e inanimadas, de anjos, de animais e de

homens

Salvo a idéia que representa meu próprio “eu”, da qual não há qualquer obscuridade,

Descartes cita aquelas que devem ser elucidadas, dentre as quais: a idéia de Deus, de coisas

corporais e inanimadas, de anjos, de animais e de homens semelhantes a mim. Para ele, tais

idéias não devem ser consideradas como imagens de objetos externos ao meu espírito, sem

que antes se faça um exame minucioso.

1.5.1 Idéias de homens, de animais, e de anjos

Poderia ocorrer que as idéias através das quais represento outros homens, animais e

anjos fossem fruto da capacidade do meu espírito, em compor e misturar elementos, a partir

de idéias que tenho de coisas corporais e de Deus, mesmo que, talvez, não existam objetos

assim fora de mim.

1.5.2 Idéias de coisas corporais

Quanto à idéia de coisas corporais, ele argumenta que não há nada de tão excelente

presente nela que não poderia ser causada por mim mesmo. Ele retoma a abordagem da idéia

de cera41

41 O exemplo da cera é apresentado por Descartes pela primeira vez, e de forma mais exaustiva, nas Segundas Meditações. (cf. DESCARTES, 2004, p. /12/ 55).

e relembra que há pouca coisa para se reconhecer clara e distintamente nela, como,

por exemplo, a grandeza ou a extensão em comprimento, largura e profundidade; a figura que

é formada pelos termos e pelos limites dessa extensão; a situação que os corpos

diferentemente figurados guardam entre si, e o movimento ou a modificação dessa situação,

aos quais podemos acrescentar a substância, a duração e o número.

Mas há, também, outras qualidades que se nos afiguram na idéia de cera, que são

obscuras e confusas. Desse modo, não sabemos se tais qualidades são verdadeiras e falsas e,

portanto, não merecem nosso assentimento. Pode ocorrer que essas qualidades não

correspondam a alguma coisa real, mas sejam invenções do nosso pensamento. Dentre elas,

pode ser citada, a luz, as cores, os sons, os odores, os sabores, o calor, o frio, entre outros42

Não obstante, ele introduz uma nova possibilidade de cometermos engano, que não

havia sido prevista anteriormente. Trata-se da falsidade material. Ele descobre que, além dos

juízos, cujo equívoco é de natureza formal, pode acontecer que se encontrem idéias em mim

que representam algo inexistente, como se fosse real. Ele acrescenta que as idéias que trago

referentes a calor e a frio são pouco claras e distintas, pois através delas não posso distinguir

se o frio é uma privação do calor ou vice-versa, nem mesmo saber se tratam de qualidades

reais. E ainda, outro problema é postulado: por serem as idéias como imagens, não há

nenhuma idéia que não nos pareça representar alguma coisa. Se for legítimo afirmar que o frio

nada mais é do que a privação do calor, a idéia que me representa o frio como algo efetivo

será sem despropósito considerado como falsa, e deste modo outras idéias semelhantes, as

quais não é necessário que eu atribua outro autor que não seja eu mesmo. Caso essas idéias

sejam falsas, por representarem coisas que não existem, a razão me faz admitir que tenham

.

1.5.3 As idéias e a falsidade material

42 Tratam-se das qualidades sensíveis. Essas qualidades não são inerentes aos objetos, pois esses possuem apenas extensão, figura e movimento. Contudo, não se pode dizer que os sentidos são enganosos, pois cabe ao homem fazer um uso adequado deles e discernir sua verdadeira função. (cf. BUZON; KAMBOUCHNER, 2010, p. 74).

origem do nada, ou seja, que se apresentam em mim somente porque sou privado de algo por

natureza e porque ela não é perfeita. Todavia, se tais idéias são verdadeiras, tendo em vista

que me apresentam tão pouca realidade que sou incapaz de separar com clareza e distinção a

coisa representada do não-ser, não vejo razão para afirmar que não tenham sido produzidas

por mim mesmo.

1.5.4 Idéias de substância, duração e número

Apesar de considerar claras e distintas determinadas qualidades encontradas na idéia

de coisas corporais, não segue daí que coisas corporais existam fora do pensamento. A idéia

de substância, duração e número, por exemplo, são idéias que concebo ao representar a mim

mesmo, e, que, por assim dizer, poderia aplicá-las a idéia de coisas corpóreas. Quando penso

que a pedra é uma substância, que é capaz de existir por si mesma, e posteriormente penso

que também sou uma substância, embora admita que seja uma substância que pensa e não

extensa, e que a pedra, por sua vez, é uma coisa extensa e não pensante, e assim, que há

enorme distinção entre ambas, elas se harmonizam quando são representadas como

substâncias. O mesmo problema pode ser aplicado no caso da duração e do número. Quando

penso que sou neste instante e me recordo, ademais, de ter sido em outro momento e, assim,

conceber diversos pensamentos, cujo número eu conheço, então formo em mim as idéias de

duração e do número que, posso transmitir a todas as outras coisas que julgar conveniente.

1.5.5 Qualidades de extensão, aspecto, a situação e o movimento

Ele propõe também, a possibilidade das qualidades de extensão, aspecto, a situação e o

movimento, cujas idéias compõem as coisas corporais, terem origem em mim mesmo.

Embora essas qualidades não estejam formalmente presentes em mim, considerando que sou

apenas algo que pensa, vale salientar que, tais qualidades são somente certos modos da

substância. E, tendo em vista que essas qualidades são o modo através das quais a substância

corporal nos se dá a conhecer, e que sou também uma substância, não é absurdo que tais

qualidades possam estar presentes em mim eminentemente.

1.5.6 A idéia de Deus

Tendo elucidado todas estás idéias e postulado a possibilidade de todas elas terem sido

tiradas ou produzidas por mim mesmo, resta abordar a idéia de Deus. Assim como as demais

idéias, Descartes assume a tarefa de esgotar toda a possibilidade da idéia de Deus ter sido

produzida por mim mesmo. Em primeiro lugar, ele elenca todas as propriedades que se lhe

afiguram ao conceber o nome de Deus. Segundo ele, neste nome apresenta-se a noção de uma

substância infinita43

43 Além da Terceira Meditação, em vários outros textos, o infinito aparece como o primeiro “nome” cartesiano de Deus. Existe um único ser que pode ser dito infinito. A infinidade em Descartes, dever ser entendida como uma determinação positiva, e não negativa. O finito sim, é negativo, pois é concebido a partir de uma limitação. Contudo, o infinito não é apenas indefinido, isto é, aquilo para que, numa determinada relação não percebemos nenhum limite, pois há eminentemente no infinito todo ser. (cf. Ibid., p. 46).

, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e criador de todas

as coisas (se é que tais coisas existem). A experiência provada por Descartes, ao elucidar a

idéia de Deus, é bem diferente daquela obtida através da análise de outras idéias. Quanto mais

atentamente ele elucida a idéia de Deus, mais cresce a convicção de que ela não tenha sua

origem em si mesmo.

1.6 A primeira prova a posteriori da existência de Deus

Descartes apresentará dois argumentos com o objetivo de afastar completamente a

possibilidade da idéia de Deus não representar algo de real44

44 A discussão envolvendo a realidade objetiva de Deus tratada por Descartes, em nada compromete o idealismo que caracteriza os caminhos da nova filosofia. A presença de Deus em mim não é a intuição de Deus corporalmente. Trata-se da iluminação de mim pela idéia de Infinito: “Deus é posto como causa de minha idéia a partir da minha idéia: é, portanto, a luz do meu entendimento que se esclarece ela mesma. Assim, a inspiração não cessa de ser idealista e não contradiz de forma bruta, de fato, um relicário de ontologia antiga”. (GUEROULT, 1968, vol. 1, p. 246).

. O primeiro argumento consiste

em demonstrar que a noção de infinito não pode ser uma negação da noção de finito, pois há

mais realidade na substância infinita do que na substância finita e, portanto, tenho primeiro a

noção do infinito do que do finito. O segundo argumento consiste em demonstrar que a idéia

de Deus não pode ser materialmente falsa, como se estivesse em mim por estar privado de

alguma coisa, pois o máximo de realidade objetiva presente na idéia de Deus implica que não

exista outra que seja mais real.

1.6.1 A idéia de substância infinita versus a idéia de substância finita

Descartes afirma que “Por isso, do que foi dito deve-se concluir que Deus existe

necessariamente” (Terceira Meditação, 2004, p. 91/24/). Mesmo o fato da idéia de substância

estar presente em mim, por ser eu mesmo uma substância pensante, não poderia ocorrer que

eu possuísse a idéia de uma substância infinita, sendo eu um ser finito, sem que ela tenha sido

colocada em mim por alguma substância que, ao menos, fosse igualmente infinita. Nas

Segundas Respostas, Descartes sustenta que “... a idéia que temos, por exemplo, do

entendimento divino, não me parece diferir da que temos de nosso próprio entendimento,

senão apenas como a idéia de um número infinito difere da do número binário ou do

ternário” (Segundas Respostas, 2010, p. 221).

1.6.2 A noção de infinito versus a negação do finito

Descartes descarta a possibilidade de que a noção de infinito seja uma negação da

noção de finito, e, que, assim, não seja uma idéia verdadeira. Diferentemente da compreensão

que tenho acerca do repouso e das trevas como privação do movimento e da luz, é com

clareza e distinção que percebo a existência de mais realidade na substância infinita do que na

substância finita, e, portanto, que tenho em mim o conceito de infinito primeiro do que o

conceito de finito. Tenho primeiro a noção de Deus, e só posteriormente, a noção de mim

mesmo. A substância infinita não poderia ser uma privação, tendo em vista, seu alto grau de

realidade. Ele acrescenta que não seria possível que eu pudesse conhecer que duvido e que

desejo, isto é, que sou privado de algo e que não sou perfeito, se não tivesse em mim, idéia

alguma de um ser mais perfeito que eu, servindo de referência e comparação, através do qual

eu conheceria as necessidades da minha natureza.

1.6.3 A impossibilidade da idéia de Deus ser materialmente falsa

Ele afasta também, a possibilidade da idéia de Deus ser materialmente falsa, e assim,

que eu possa tê-la adquirido do nada. Isto é, ele afasta a hipótese de que a idéia de Deus possa

estar em mim pelo fato de eu ter falta de algo, como por exemplo, das idéias de calor, de frio e

coisas análogas. Ao contrário dessas idéias, aquela que me representa Deus é bastante clara e

distinta, e tendo em vista seu elevado grau de realidade, que é superior a qualquer outra, não

existe nenhuma que se me afigure mais verdadeira, e que menos levante suspeita de

equívocos. Contudo, nas Segundas Objeções, os contraditores de Descartes afirmam que a

idéia de Deus é apenas um ente de razão “(...) mas, digo eu, essa idéia nada mais é que um

ente de razão, que não é mais nobre do que vosso espírito (...)” (Segundas Objeções, 2010, p.

209). Em resposta a esta objeção, Descartes afirma que, se por um ente de razão se entende

uma coisa inexistente, estas objeções são infundadas, mas caso a expressão designe todas as

operações do entendimento, ou seja, todos os seres que partem da razão, não há o que

contestar, pois nesse sentido, todo esse mundo pode também chamar-se um ser de razão

divina. (Segundas Respostas, 2010, p. 219). Ele acrescenta:

E já adverti suficientemente, em vários lugares, que falava apenas da perfeição ou realidade objetiva dessa idéia de Deus, a qual não requer menos uma causa, onde esteja contido de fato tudo o que não está contido nela senão objetivamente ou por representação, do que a requer o artifício objetivo ou representado, existente na idéia que qualquer artesão tem de uma máquina muito artificial. (Segundas Respostas, 2010, p. 219)

A idéia de Deus, segundo Descartes, é absolutamente verdadeira. Mesmo que,

porventura, por um esforço eu pudesse fingir que um ente sumamente perfeito e infinito não

existisse, não se pode negar que tal idéia me representa algo de real, como se pode negar no

caso da idéia do frio.

A idéia de Deus é clara e distinta, inclusive, porque qualquer coisa que meu espírito

compreende clara e distintamente de real e verdadeiro, e que possui em si alguma perfeição,

está encerrado totalmente nessa idéia.

1.7 A incompreensibilidade do infinito

Segundo Descartes, a incompreensibilidade45 é a marca que caracteriza o infinito.

Mesmo sendo o infinito incompreensível, nossa idéia de Deus é a mais clara e mais distinta

dentre todas. Basta que eu admita que seja da natureza do infinito que não compreendo muitas

coisas para que a idéia de Deus seja a mais verdadeira dentre todas46

45 O infinito ultrapassa nossa compreensão e, mesmo que possamos nomear em Descartes determinadas perfeições, as perfeições dele são infinitamente “elevadas” em relação as nossas. (cf. BUZON; KAMBOUCHNER, 2010, p. 47).

. Logo em seguida,

46 Se o infinito é incompreensível e se existe na natureza divina diversas coisas das quais não podemos conhecer, devemo-nos perguntar como nossa idéia de Deus pode ser considerada a mais clara e a distinta que as outras. Há

veremos os três argumentos que Descartes apresenta para afastar a possibilidade de que talvez

as perfeições que concebo na idéia de Deus estejam presentes em mim potencialmente, e, que,

através da ampliação do meu conhecimento possa adquiri-las efetivamente.

1.7.1 A idéia mais clara e distinta

Segundo Descartes, a idéia de um ente sumamente perfeito e infinito não compreende

tudo o que se encontra na substância divina. Desse modo, a prova da existência de Deus em

Descartes não nos permite conhecer tudo o que Lhe diz respeito: “E não importa que eu não

compreenda o infinito, ou que em Deus haja inúmeras outras coisas que não posso de modo

algum nem compreender, nem talvez até atingir pelo pensamento”. (Terceira Meditação,

2004, p. 93/30/)

O simples fato de reconhecer que é acerca da natureza do infinito, sobre o que minha

natureza limitada não pode compreender, para tornar suficiente a consideração de que todas as

coisas que concebo clara e distintamente, e nas quais sei que existe alguma perfeição, ou

mesmo, uma diversidade de outras perfeições que ignoro, estão formal ou eminentemente em

Deus, para que a idéia que tenho de um ente sumamente perfeito e infinito seja a mais

verdadeira, clara e distinta em relação as demais. É nesse espírito que, nas Segundas

Respostas, Descartes explica o que significa dizer de Deus que Ele é inconcebível “... por isso

se entende uma plena e inteira concepção, que compreende e abrange perfeitamente tudo

quanto há nele, e não essa concepção medíocre e imperfeita que há em nós, a qual no entanto

basta para conhecer que ele existe”. (Segundas Respostas, 2010, p. 223)

pelo menos duas respostas: a idéia de Deus sendo a do “soberano ser”, ela possui em si “tudo o que podemos conceber de real e de verdadeiro.” E, considerando que tudo o que conhecemos das coisas acrescenta algo ao conhecimento de nossa própria mente, tudo o que conhecemos da natureza acrescentará algo ao nosso conhecimento de Deus. Nada é mais claro e mais distinto que essa incompreensibilidade. (cf. Ibid., p. 47).

1.7.2 Não posso ser a causa da idéia de Deus

Ele sugere, também, a possibilidade de que eu seja algo maior do que compreendo ser,

e que, deste modo, todas as perfeições que aplico à natureza divina estejam presentes em mim

potencialmente, muito embora, não manifestem ainda suas ações. Todo o labor filosófico de

Descartes, por exemplo, proporciona a extensão de seu conhecimento, e paulatinamente,

amplia mais, e nada impede de pensar que se possa estender mais e mais até o infinito. Tendo

aumentado o conhecimento, não há nada que impeça que ele possa apropriar, através dele,

todas as demais perfeições da natureza de Deus. E, assim, a capacidade que tenho para

adquirir essas perfeições, caso ela exista em mim, pode ser capaz de imprimir suas idéias.

Contudo, ele afasta esta possibilidade de três maneiras:

i) Mesmo que considerasse possível que meu conhecimento galgasse todos os dias novos

níveis de perfeição, e mesmo que existissem em minha natureza muitas coisas em potencial

que ainda não se manifestaram, essas vantagens não se aplicam à idéia que tenho da

divindade, pela qual nada se apresenta em potência, mas onde tudo está encerrado. Aliás, a

própria possibilidade do meu conhecimento ampliar paulatinamente revela que sou

imperfeito.

ii) Mesmo que o meu conhecimento se estendesse gradativamente, nem por isso deixo de

compreender que ele não poderia ser infinito neste momento, uma vez que nunca alcançará

tão alto nível de perfeição que não seja capaz, ainda, de adquirir acréscimos posteriormente.

Todavia, neste instante, penso em Deus em tão alto grau, que nada se pode adicionar à

supremacia da perfeição que ele possui.

iii) A razão me persuade de que a realidade objetiva de uma idéia não pode ser produzida por

um ser que existe apenas potencialmente, pois não é absolutamente nada, mas somente por

um ser formal ou atual.

Ele sugere que este rigoroso saber é iluminado pela razão natural, e, que, portanto,

todos têm acesso47

Sem dificuldades, ele se livra da possibilidade dele mesmo ser o autor de sua própria

existência. O argumento consiste em afirmar que se eu fosse independentemente de todos os

demais seres e fosse eu mesmo o autor de meu próprio ser, obviamente não duvidaria de coisa

. Nas Segundas Respostas, Descartes afirma que “(...) é notável que todos

os metafísicos concordem unanimemente na descrição dos atributos de Deus (ao menos dos

que a simples razão humana pode conhecer (...)” (Segundas Respostas, 2010, p. 221-222).

Entretanto, quando abandonamos esse cuidado investigativo e cedemos lugar à desatenção,

nosso espírito é facilmente obscurecido pelas imagens das coisas sensíveis, comprometendo a

lembrança das razões pelas quais atribuímos à origem da idéia de um ente sumamente perfeito

e infinito, uma dada substância, que é, ainda, mais perfeita.

1.8 A segunda prova a posteriori da existência de Deus

A próxima tarefa de Descartes é descobrir, se eu mesmo, que tenho a idéia de um ente

sumamente perfeito e infinito, poderia existir, no caso de não haver Deus. Em outras palavras,

ele propõe investigar a fonte de sua própria existência. Algumas possibilidades são sugeridas

por ele: eu mesmo, meus pais ou quaisquer outras causas menos perfeitas que Deus, pois nada

se pode pensar mais perfeito ou igual a Ele.

1.8.1 Não posso ser a causa da origem de minha própria existência

47 Descartes utiliza essa noção sempre que pretende introduzir no argumento premissas que, supostamente, manifestam-se de maneira evidente ao intelecto. Essa noção tem seus embaraços. A transparência da cognição supõe a existência de determinadas verdades que, ao serem apresentadas ao intelecto, não dão lugar à negação. Contudo, proposições cuja negação é considerada logicamente impossível, como, por exemplo, o princípio causal, possui implicações complexas e discutíveis. (cf. COTTINGHAM, 1995, p. 92).

alguma, não desejaria nada, pois não estaria privado de perfeições, já que eu me teria

conferido as perfeições das quais possuo alguma idéia, e, por conseguinte, seria Deus.

Segundo Descartes, não existe razão para supor que seria mais fácil adquirir o que

possuo, do que aquilo que me escapa. Ao contrário, seria muito mais difícil que eu, definido

como uma coisa que pensa, tivesse surgido do nada, do que me seria alcançar o conhecimento

de muitas coisas que ignoro, e que são apenas afecções dessa substância. E, assim, se eu

próprio tivesse me conferido este algo mais que é a minha própria existência, não teria me

privado de coisas que são de mais fácil obtenção, ou seja, de muitos conhecimentos que

minha natureza ignora. E mais, não teria me privado de nada que está presente na idéia que

me representa Deus, pois não há nenhuma que me afigure ser mais difícil de obter, e mesmo

que houvesse uma idéia mais árdua para adquirir, ela me pareceria assim, porque eu sentiria

que minha força se esgotaria nesse limite e não teria condições de alcançá-la. Essa é a

segunda prova da existência de Deus.

1.8.2 Não posso ser a causa da manutenção de minha própria existência

Segundo Descartes, mesmo que eu pudesse postular a possibilidade de ter sido sempre

como sou nesse instante, a razão me persuade de que é necessário que Deus seja o autor da

minha vida. Ele argumenta que todo o tempo de minha existência pode ser dividido em

infinitas partes, cada qual dependendo apenas de si mesma. O fato de ter existido antes não

implica que eu deva ser nesse momento, a não ser que alguma causa me crie a cada instante,

me mantendo assim, na existência.

1.8.2.1 A natureza do tempo

Esse argumento é embasado na natureza do tempo48

48 Tal como considera a matéria indefinidamente divisível no que tange à sua extensão, Descartes também considera o tempo como indefinidamente divisível no que tange à sua duração. Segundo ele, é coisa evidente que todas as divisões do tempo são independentes, pois ao considerar o tempo ou duração de algo, os momentos individuais podem ser afastados daqueles que o precedem ou sucedem imediatamente, o que resulta que a coisa que dura pode, a qualquer instante, deixar de ser. (cf. Ibid., p. 150).

. Para Descartes é bastante claro e

distinto que uma substância, para ser mantida em todas as circunstâncias de sua duração,

necessita da mesma capacidade e do mesmo ato, que exigiriam para criá-la novamente. A

razão nos assegura que a manutenção e a criação não se distinguem entre si a não ser no que

tange ao nosso próprio modo de pensar. Ao investigar cuidadosamente se possuo alguma

capacidade que me forneça condições de fazer com que seja no futuro, como sou agora,

constato que sendo eu apenas uma coisa que pensa, caso um poder semelhante existisse em

mim, sem dúvida eu deveria ao menos ter conhecimento acerca dele, entretanto, não percebo

capacidade alguma que esteja presente em mim e em virtude disso devo necessariamente

admitir que dependo de algum outro ser, que deve ser diferir de mim.

1.8.2.2 Nenhuma causa menos perfeito do que Deus poderia concorrer para manutenção de

minha existência

Neste momento, ele procura descobrir se, talvez, o ser que o mantêm e o recria a todo

o momento, que designa pelo nome de Deus, não é, na verdade, seus pais ou quaisquer outras

causas menos perfeitas do que Deus. A propósito disso, os contraditores de Descartes

levantaram duas questões:

“(...) como sabeis que esta idéia jamais se vos ofereceria ao espírito, se tivésseis passado toda a vida num deserto, e nunca em companhia de pessoas sapientes?” E não se poderia alegar que a hauristes dos pensamentos que vos haviam ocorrido anteriormente, dos ensinamentos dos livros, dos discursos e conversações de vossos amigos, etc., e não de vosso exclusivo espírito, ou de um soberano ser existente?” (Segundas Objeções, 2010, p. 209)

Segundo Descartes, seu argumento permanece inabalável “(...) se, dirigindo-me

àqueles de quem se diz que eu a recebi, eu lhes perguntar se a têm por si mesmos, ou por

outrem, em vez de perguntá-lo a mim próprio; e eu concluirei sempre que este outro é Deus,

de quem ela é primeiramente derivada”. (Segundas Respostas, 2010, p. 220). Na Terceira

Meditação, ele descarta esta possibilidade retomando o axioma da causalidade49

49 O raciocínio de Descartes supõe o que se pode designar como o princípio da “não-inferioridade da causa”. De acordo com esse princípio, a causa de algo que contém um certo grau de perfeição deve possuir perfeição igual ou superior à da coisa causada envolvida. (cf. Ibid., p. 28).

. Seu

argumento insiste em afirmar que deve haver tanta realidade na causa quanto em seu efeito.

Disto decorre que sendo eu uma substância pensante que traz em si a idéia de um ente

sumamente perfeito e infinito, seja qual for à causa de minha natureza, é necessário admitir

que ela deva ser de igual modo uma coisa pensante e conter em si a idéia de todas as

perfeições que considero na natureza de Deus. Depois, poder-sei outra vez investigar se essa

causa é oriunda de si mesma ou de outro ser. Caso ela seja responsável por sua própria origem

e existência, ela deve ser Deus, pois possuindo o poder de ser e existir por si, esta causa deve

conter atualmente todas as perfeições cujas idéias concebe, ou seja, as mesmas perfeições que

atribuo a Deus. No entanto, se a causa elucidada tiver retirado sua existência de alguma outra,

então a elucidação será concentrada nesta segunda causa, balizada pela mesma pergunta

acerca da origem e existência própria, ou seja, se elas são derivadas de si ou de alguma outra

causa, até por fim alcançar a última causa que coincidirá com Deus. Tal procedimento,

segundo Descartes, não deve se estender até o infinito, pois a tarefa não consiste em descobrir

tanto a causa que me criou outrora quanto da que me conserva neste exato momento.

1.9 A origem da idéia de Deus – Verdade e Falsidade

Descartes dispensa a possibilidade de que muitas idéias reunidas tenham participado

em parte na minha criação. Essa possibilidade consiste em supor que, de uma determinada

idéia, eu tenha recebido a noção de uma das perfeições que atribuo a Deus, e que de outra

idéia, eu tenha recebido outra perfeição, como se todas as perfeições se encontrassem esparsas

no Universo, ao invés de estarem todas unificadas. Ele refuta essa possibilidade, pois a

unidade, a simplicidade ou a inseparabilidade de todas as coisas em Deus é uma das

perfeições mais claras e distintas que reconheço haver Nele. A idéia da unidade de todas as

perfeições não foi colocada em mim por nenhuma causa que eu não tenha recebido as idéias

de todas as demais. Porque ela não mais pôde ter feito entender, reunidas e indissociáveis,

sem fazer simultaneamente com que eu conhecesse o que elas eram e que as concebesse cada

uma delas de alguma forma. Nas Segundas Respostas, Descartes afirma que o ato de conceber

os atributos de Deus separadamente uns dos outros é fruto de nossa imperfeição:

(...) sabemos que nenhuma das coisas que concebemos estar em Deus e em nós, e que consideramos Nele por partes e como se fossem distintas, por causa da fraqueza de nosso entendimento, e que experimentamos como tais em nós, não convém a Deus e a nós na forma denominada unívoca nas Escolas50

A idéia de um ente sumamente perfeito, representando um Deus na imensidade,

simplicidade, ou unidade absoluta de todos os seus atributos, e da qual não encontramos em

nós, nada semelhante é “(...) como que a marca do obreiro impressa em sua obra” (Segundas

Respostas, 2010, p. 221)

. (Segundas Respostas, 2010,p.221).

51

50 A Escolástica, ou filosofia da Escola, é a doutrina ensinada nos colégios e nas universidades. Em meados do século XVII, esse pensamento versou sobre comentários das principais obras de Aristóteles e do aristotelismo, obras sistemáticas, como as Sumas de Tomás de Aquino, as Disputas metafísicas, de Suarez, ou a Suma filosófica, de Eustachius a Sancto Paulo, ou, enfim, dicionários, como o Léxico de Goclenius. (cf. BUZON; KAMBOUCHNER, 2010, p. 31).

. Em oposição ao que Descartes declara acerca da unidade e

simplicidade, seus contraditores afirmam que:

51 A expressão “marca impressa” desígna o argumento da existência de Deus desenvolvido por Descartes na Terceira Meditação. Trata-se de inferir a existência de um ente sumamente perfeito e infinito como única explicação para idéia de Deus que o meditador carrega em sua mente. A apresentação do argumento da “marca

“a idéia de unidade e simplicidade de uma única perfeição que envolva e contenha todas as outras constitui-se unicamente pela operação do entendimento que raciocina, assim como se constituem as unidades universais, que não estão nas coisas, mas somente no entendimento, como é visível pela unidade genérica, transcendental etc”. (Segundas Objeções, 2010, p. 210).

Descartes responde que a idéia de unidade de todas as perfeições que há em Deus é

totalmente distinta da unidade genérica e de qualquer universal, pois em Deus ela “... denota

uma particular e positiva perfeição em Deus, ao passo que a unidade genérica nada

acrescenta de real à natureza de cada indivíduo” (Segundas Respostas, 2010, p. 223).

1.9.1 Meus pais não podem ser a causa de minha existência enquanto substância pensante

Descartes afirma que, no que tange aos meus pais, a quem devo meu nascimento,

mesmo que proceda tudo quanto nunca pude acreditar a seu respeito, não é suficiente para

afirmar que eles me conservem na existência, nem que tenham me criado enquanto substância

pensante. Meus pais foram responsáveis apenas por me conferir algumas disposições nessa

matéria, na qual considero que eu, que sou a única substância que admito atualmente como

eu, se encontra encerrado. Desse modo, devo concluir necessariamente que do fato de eu

existir e possuir a idéia de um ente sumamente perfeito e infinito, Deus existe

necessariamente.

1.9.2 A idéia de Deus não pode ser oriunda dos órgãos dos sentidos

impressa” passa por duas fases diferentes: na primeira, Descartes conclui que minha idéia de Deus somente pode ser elucidada mediante a postulação de Deus como sua causa; na segunda, ele sustenta que o simples fato de que eu existo e possuo em mim uma idéia de um ser perfeito, ou seja, Deus, fornece-me prova clara de que Deus existe. (cf. COTTINGHAM, 1995, p. 104, 106).

A tarefa seguinte de Descartes é investigar o modo como ele recebeu a idéia de um

ente sumamente perfeito e infinito da parte de Deus. De antemão, ele afasta a possibilidade da

idéia de Deus ter sido recebida por meio dos órgãos dos sentidos, pois em nenhum momento

ela se ofereceu a mim contra a minha vontade, como é comum fazer as idéias oriundas das

coisas sensíveis quando tais coisas parecem se manifestar aos órgãos sensitivos. Os

contraditores de Descartes, ao contrário, argumentavam que é possível formar a idéia de Deus

a partir das coisas corporais “os canadenses, os hurões e os outros homens selvagens... a qual

podeis até formar (tal idéia) do conhecimento que tendes das coisas corporais” e prosseguem

“de sorte que vossa idéia nada mais representa senão esse mundo corporal, que abrange

todas as perfeições que poderíeis imaginar; de sorte que não podeis concluir outra coisa,

exceto que há um ente corpóreo muito perfeito” (Segundas Objeções, 2010, 209-210). Fica

evidente que, segundo os contraditores de Descartes, a idéia que temos de Deus, só é mais

arrojada, em virtude de determinados acréscimos que atribuímos às coisas corpóreas “... a não

ser que junteis algo mais, que eleve vosso espírito ao conhecimento das coisas espirituais ou

incorpóreas” (Segundas Objeções, 2010, p. 210). Adicionado a isto, eles ainda afirmam que

“(...) é possível afirmar que a idéia de um anjo pode existir em vós, tanto quanto a de um ser

mais perfeito, sem que haja necessidade, para tanto, de que seja formada em vós por um anjo

realmente existente, embora o anjo seja mais perfeito do que vós” (Segundas Objeções, 2010,

p. 210). A propósito de responder esta objeção, Descartes afirma que a idéia de um Deus

corpóreo é falsa, pois implica contradição “Assim, quando vós falais aqui de um ser corporal

mui perfeito, se tomais a denominação mui perfeito de modo absoluto, de maneira que

entendais que o corpo é um ser onde se encontram todas as perfeições, dizeis coisas que se

contrariam, [visto] que a natureza do corpo encerra muitas imperfeições (...)”, e ele dá

alguns exemplos de imperfeição presentes no corpo “(...) a que o corpo seja divisível em

partes, que cada uma de suas partes não seja a outra, e outras semelhantes” (Segundas

Respostas, 2010, p. 222). Para Descartes, é muito evidente que representa maior perfeição não

poder ser dividido do que poder sê-lo. Quanto à objeção de que, da idéia de um anjo, o qual é

mais perfeito do que nós, que não é necessário que tenha sido colocada em meu espírito por

um anjo, Descartes não contesta. Segundo ele, ela poderia compor-se das idéias que temos de

Deus e do homem (Segundas Respostas, 2010, p. 157). Na Terceira Meditação, Descartes

rejeita a hipótese da idéia de Deus ser uma quimera, ou seja, fruto da genialidade do meu

espírito, pois não possuo a virtude de lhe suprimir ou adicionar qualquer coisa. Sendo assim,

tal como a idéia através da qual represento a mim mesmo, a idéia de Deus é inata.

1.9.3 A idéia de Deus – A marca do artífice em sua obra

Não há contradição em reconhecer que Deus, ao me criar, tenha imprimido em mim

essa idéia para servir de marca do artífice presente em sua obra. Não há contradição também,

em negar que esse sinal seja algo distinto da própria obra52. Pois o simples fato de Deus ter-

me criado, é muito plausível que ele tenha produzido à sua imagem e semelhança em mim, e

que também eu perceba esta semelhança, cuja idéia de Deus está presente, através da própria

faculdade pela qual me percebo53

52 Para Descartes, provar que uma idéia tem um valor objetivo equivale a provar que ela é efetivamente tal qual se apresenta na consciência, ou seja, que ela é efetivamente a imagem ou “o quadro” exato de um original que ela representa e da qual procede e, considerando que demonstrar a existência de Deus é, antes de tudo, demonstrar que nossa idéia de Deus possui um valor objetivo, disso resulta que o papel dessa demonstração é, antes de qualquer coisa, estabelecer que essa idéia é a cópia fiel da coisa que ela representa e, que essa coisa é seu “padrão” ou “original”: “É, portanto, completamente natural que Descartes apresente o Deus de quem se trata de provar a existência, como sendo não apenas a causa da primeira de nossas idéias mas, ao mesmo tempo, um padrão ou original (...).” (GUEROULT, vol. 01, 1968, p. 184). 53 No entanto, diversos intérpretes censuraram Descartes por essa concepção de Deus como Original ou Modelo. Eles enxergaram nisso, um resíduo do pensamento escolástico e realista, que contradiria tanto a verdadeira doutrina cartesiana de Deus como causa eficiente e livre, quanto a inspiração idealista, que faz toda originalidade da prova. Essa consistiria em colocar de lado, o princípio da correspondência da idéia com um ideado, como um erro, em favor do principio de causalidade, único em condições de conferir êxito na demonstração. Diante disso, surge a seguinte pergunta: “Levando ao extremo nessa direção, não se poderia dizer depois de tudo que (...), a idéia de Deus nos faz realmente saber que Deus existe, mas não nos faz conhecer o que ele é? (...) Com isso se recuperaria a observação que suscitava a crítica do senso comum: não basta saber que uma coisa é a causa de minha idéia para estar ipso facto legitimamente certo de que minha idéia seja conforme a essa coisa. Por esse viés, introduzir-se-ia um verdadeiro agnosticismo.” (Ibid., p. 191).

. Disto segue que quando penso acerca de mim mesmo, além

de perceber que sou uma substância imperfeita, incompleta e dependente de outrem, que

deseja algo maior do que sou, percebo, também, que aquele a quem dependo contém em si

todas as coisas excelentes a que desejo e cujas noções estão presentes em mim mesmo54

Trata-se do mesmo Deus que imprimiu Sua idéia em mim

.

Idéias estas que estão presentes em mim, não potencialmente, mas que Ele as usufrui

atualmente em mais alto grau, e, que, deste modo, reconheço que se trata de Deus. Descartes

afirma: “E toda a força do meu argumento consiste em que reconheço ser impossível a

existência de uma natureza tal qual sou, isto é, possuidora da idéia de Deus em mim, a menos

que Deus Ele mesmo também exista”. (Terceira Meditação, 2004, p. 105/42/)

55, isto é, que guarda em si56

54 A premissa de que temos uma idéia de um ser perfeito segue-se, para Descartes, a partir do reconhecimento da nossa imperfeição. A capacidade que temos de fazer juízos comparativos não poderia existir a não ser que possuíssemos em nós um saber do bem perfeito. (cf. COTTINGHAM, 1995, p. 105.) 55 Princípio da correspondência da idéia com o ideado à parte, o princípio de causalidade ocupa sozinha, uma função capital na prova, que constitui mesmo, sua mola essencial e, que, a posição de Deus como causa eficiente ajusta-se notavelmente com a imagem que encontramos em nós mesmos de um Deus, cuja infinitude absoluta envolve uma liberdade sem limite. A primazia do princípio de causalidade é devida principalmente em razão de que: “(...) a noção cartesiana de Deus incompreensível, livre, criador de todas as coisas, aí compreendidas as verdades eternas, levaria muito naturalmente a uma concepção de causalidade eficiente que, colocando a potência de Deus para além do conteúdo de sua própria idéia em nós, permitirá fundar a realidade objetiva dessa idéia e das outras idéias sem aprisionar o próprio Deus na necessidade de nenhuma de nossas idéias”. (GUEROULT, 1968, vol. 1, p. 192, 193). 56 Embora o princípio de causalidade domine todo o processo da prova, é impossível que o princípio de correspondência da idéia com seu ideado seja eliminado. Sem esse último, temos apenas a demonstração da existência de um Deus misterioso, sem, contudo, nos fazer conhecer o que ele é. Desse modo, o valor objetivo da idéia de Deus, incapaz de nos garantir a conformidade dessa idéia com as coisas, não ultrapassaria o valor objetivo das imagens sensíveis. E, mais, como poderíamos estabelecer o valor objetivo da idéia de Deus, sem precisar suas propriedades? Ora, para ser bem sucedida, a prova deve alcançar menos a demonstração que Deus existe, do que estabelecer que conhecemos realmente esse Deus existente. “Apenas sob essa condição é que o desejo de Descartes pode se realizar, que o gênio malígno pode ser recusado e a verdade das ciências fundada como verdade das coisas”. (Ibid., p. 195).

todas essas elevadas perfeições de que meu espírito pode conceber, sem, entretanto,

compreender a todas. Aquele do qual não é um ser passível de necessidade e que nada tem de

todas as coisas que implicam alguma imperfeição.

1.9.4 A impossibilidade de um ente sumamente perfeito e infinito ser enganador

O argumento demonstra, também, que a idéia de um ente sumamente perfeito e

infinito elimina a possibilidade de Seu autor ser um enganador. A razão me persuade que o

engano depende de alguma privação57. Para contestar esta posição de Descartes, seus

contraditores recorrem à força da tradição escolástica58

e à autoridade das Escrituras. Segundo

eles, escolásticos como Gabriel, Ariminensis, entre outros, sustentavam que Deus mente, no

sentido absoluto, ou seja, que ele manifesta aos homens coisas contrárias à sua intenção e

decreto “(...) Deus mente (...) como quando, sem acrescentar condição, diz aos ninivitas por

seu profeta: ‘Ainda quarenta dias, e Nínive será subvertida’, e ao dizer muitas outras coisas

que não aconteceram (...)” (Segundas Objeções, 2010, p. 211). Ainda utilizando a linguagem

antropomórfica de Deus nas Escrituras, os contraditores de Descartes levantaram a seguinte

questão “Por que se empederniu e cegou o Faraó, e se pôs nos profetas um espírito de

mentira, como podeis afirmar que não podemos ser enganados por Ele (Deus)? (Segundas

Objeções, 2010, p. 211). Descartes argumenta que o sentido que ele atribuiu a “mentira” não

foi àquela que se manifesta verbalmente, mas somente a malícia interna e formal presente no

engano. No que tange à primeira passagem, Descartes faz a seguinte observação “(...) essas

palavras que citais do profeta: ‘Ainda quarenta dias, e Nínive será subvertida’, não

constituam mesmo uma mentira verbal, porém uma simples ameaça, cuja ocorrência

dependia de uma condição” (Segundas Respostas, 2010, p. 226). A propósito da segunda

passagem, Descartes afirma que no caso de Faraó “(...) não cumpre pensar que o tenha feito

positivamente, mas apenas negativamente, a saber, não dando ao Faraó uma graça eficaz

para que se convertesse”. (Segundas Respostas, 2010, p. 226)

57 Descartes afirma ser contraditório atribuir o engano a um ser de suprema perfeição, e tal premissa ocupa uma função importante no projeto cartesiano de construir um sistema sólido de conhecimento humano. Uma vez demonstrada a existência de um ser perfeito, o engano divino pode ser considerado um absurdo e a confiabilidade da mente humana pode ser assegurada. (cf. COTTINGHAM, 1995, p. 72). 58 Sob diversos aspectos, Descartes assumia seu estilo filosófico como oposto ao da filosofia “escolástica”. A correspondência de Descartes oferece grandes sinais da hostilidade que seus ensinamentos provocavam entre os “homens da Escola”. Parte dessa hostilidade foi levantada pela preocupação geral, percebida no século XVII, de que os ensinamentos dos “novos” filósofos pudessem atingir a autoridade da Igreja. (cf. Ibid., p. 59, 60)

2 A PROVA A PRIORI NA QUINTA MEDITAÇÃO

Na Quinta Meditação, Descartes estabelece como meta descobrir se é possível

conhecer algo de verdadeiro no que tange às coisas materiais. Contudo, para investigar se

existem coisas fora de mim, cumpre primeiro elucidar as idéias e identificar quais são

distintas e quais são confusas. Segundo ele, pode-se pensar de maneira distinta esta

quantidade59

A seguir, veremos de que modo as noções de quantidade e suas propriedades auxiliam

Descartes a estabelecer o conceito de natureza verdadeira e imutável. Existem diversas idéias

que não podem ter sido inventadas por mim, pois não estão à mercê do meu arbítrio, como se

eu pudesse agregar ou subtrair algo de seu conteúdo. Embora possam não existir fora do meu

pensamento, estas idéias não podem ser consideradas como um mero nada. O triângulo

que os filósofos denominam vulgarmente de quantidade contínua, ou a extensão

em longitude, largura e profundidade que existe nessa quantidade ou, antes, na coisa à qual

ela é aferida. Posso enumerar nessa quantidade diversas partes e atribuir a cada uma delas

várias grandezas, de figuras, de situações e de movimentos; e, enfim, posso conferir a cada

um desses movimentos toda espécie de duração.

2.1 A natureza verdadeira e imutável

60

59 Descartes utiliza o termo “quantidade” de modo mais ou menos intercambiável com o termo “extensão” ou “substância extensa”. A diferença entre quantidade e substância extensa é meramente conceitual, como a que se distingue o número da coisa numerada. (cf. Ibid., p. 137). 60 A ciência da geometria tem importância central no sistema cartesiano em diversos aspectos. O principal deles, é que ela serve como um modelo para todo o conhecimento. As longas cadeias compostas de raciocínios simples e fáceis, que os geômetras fazem uso para alcançar as mais difíceis demonstrações, levaram Descartes a supor que todas as coisas que estão dentro da esfera do conhecimento humano conectam-se da mesma maneira. (cf. Ibid., p. 73).

, por

exemplo, apresenta diversas propriedades que são claras e distintas, e, portanto, é algo de

verdadeiro. Desse modo, Descartes articula a regra geral com o conceito de natureza

verdadeira imutável.

2.1.1 A quantidade e suas propriedades

Descartes sustenta que a distinção apresentada na consideração destas coisas surge

mesmo que se aplique pouca atenção nessa investigação. Reconhecemos uma infinidade de

particularidades no que concerne aos números, às figuras, aos movimentos e a outras coisas

parecidas, cuja verdade se impõe com tanta evidência e se ajusta tão bem com nossa natureza

que, quando desveladas, não parece que se trata de um novo conhecimento, mas, antes, que

lembramos de algo que já tínhamos conhecimento, ou seja, estavam presentes em nosso

espírito, mesmo que não tivéssemos aplicado nosso pensamento a elas.

2.1.2 A natureza verdadeira e imutável versus construção pelo pensamento

O que é mais notável, segundo Descartes, é ter descoberto uma diversidade de idéias

de determinadas coisas que não podem ser tratadas como um puro nada, embora, talvez, elas

não tenham existência fora de mim, e saber que elas não são forjadas por mim, como se

estivesse em minha liberdade pensá-las ou deixar de pensá-las “embora elas sejam pensadas

por mim, de certo modo, segundo meu arbítrio” (Quinta Meditação, 2004, p. 135/5/). Mas, ao

contrário, elas possuem suas naturezas verdadeiras e imutáveis. Descartes propõe o exemplo

do triângulo. Ainda que não exista em qualquer lugar do mundo uma figura assim, e mesmo

que nunca tivesse existido, não deixa de ser verdade que ela possui uma certa natureza ou

forma, ou essência determinada dessa figura, que é imutável e eterna61

61 Para Descartes, as verdades eternas podem ser afirmadas sem nos comprometermos com a existência atual de qualquer objeto. (cf. Ibid., p. 152).

, que eu não forjei de

maneira alguma e que não depende de meu pensamento. Pelo motivo de que se pode

demonstrar várias propriedades dessa figura, como, por exemplo, que os três ângulos são

iguais a dois retos, que o maior ângulo é oposto ao maior lado e outras coisas do tipo, dentre

as quais, neste momento, quer deseje, quer não, admito com muita clareza e muita evidência

estarem nele, mesmo que não tenha me aplicado nisto antes, quando pensei pela primeira vez

um triângulo. Desse modo, não se pode dizer que eu as tenha forjado.

2.1.3 A regra geral e a natureza verdadeira e imutável

A única objeção que se coloca é que talvez essa idéia de triângulo tenha vindo ao meu

espírito por meio de meus sentidos, pois contatei visualmente diversos corpos de forma

triangular, haja vista que posso formar em meu espírito uma infinidade de outras figuras, sob

as quais não se podem afastar a menor possibilidade de que nunca tenham recaído sob os

meus sentidos. Contudo, não deixo de poder demonstrar várias propriedades pertinentes a sua

natureza, as quais devem ser todas verdadeiras, pois as concebo com clareza. E, por

conseguinte, elas são algo e não um mero nada (Quinta Meditação, 2004, p. 137/6/), porque é

muito óbvio que tudo o que é verdadeiro é alguma coisa e, como já foi demonstrado, todas as

coisas que se pode conhecer com clareza e distinção são verdadeiras. E mesmo que não o

tivesse demonstrado, contudo, a natureza do espírito, afirma Descartes, é de tal modo que não

me poderia evitar em julgá-las verdadeiras, na medida em que as concebe de forma clara e

distinta. Ele se lembra de que, mesmo quando estava ainda intensamente envolvido aos

objetos dos sentidos, tivera entre as mais seguras verdades aquelas que concebia clara e

distintamente no que tange às figuras, aos números e a outros postulados do universo da

Aritmética e à Geometria.

2.2 O argumento ontológico62

Descartes está seguro que mesmo que suas conclusões nas Meditações anteriores

fossem falsas, a existência de Deus deve manifestar-se ao seu espírito de modo, pelo menos,

tão certo quanto todas as evidências das Matemáticas

A partir desse raciocínio, Descartes pôde elaborar a sua prova a priori da existência de

Deus, chamada desde Kant, de argumento ontológico. Tudo o que se pode reconhecer

pertencer clara e distintamente à idéia de alguma coisa, pertence-lhe de fato. Sendo assim, se

posso extrair da idéia de Deus a sua existência atual, devo concluir que Ele existe

necessariamente. Nas palavras de Descartes:

É certo que encontro em mim a sua idéia, isto é, a idéia de um ente sumamente perfeito, não menos do que em mim encontro a idéia de qualquer figura ou de qualquer número. E entendo não menos clara e distintamente que à sua natureza pertence a existência atual, o existir sempre, tanto quanto entendo que à natureza de uma figura ou de um número pertence o que demonstro pertencer-lhes. (Quinta Meditação, 2004, p. 137/7/)

2.2.1 A existência não pode ser separada da essência de Deus

63, no que tange apenas aos números e às

figuras, embora, ressalva ele, isto não seja a princípio inteiramente esclarecido e aparente

possuir engano. Ora, tendo o hábito, em todas as outras coisas, de distinguir a existência64

62 O termo “argumento ontológico” deve-se a Kant, que se refere a um tipo especial de prova da existência de Deus, na qual se faz abstração de qualquer experiência, e a existência de um ser soberano é inferida a priori apenas dos conceitos. (cf. Ibid., p. 23). 63 “A Quinta Meditação restaura cientificamente a verdade das essências matemáticas (...)” (GUEROULT, 1968, vol. 1, p. 333). Descartes se interessava pelas matérias tradicionais da matemática (aritmética e geometria) desde o colégio. Toda sua dedicação de reforma radical e de modernização resultou numa obra muito significativa, a Geometria. (cf. BUZON; KAMBOUCHNER, 2010, p. 52). 64 De modo geral, a existência é tratada por Descartes como uma natureza “comum” e simples, tendo em vista que se aplica indistintamente tanto às coisas corpóreas quanto às mentes ou espíritos. Não há necessidade de definir “existência”, pois o próprio termo encerra seu significado. De modo particular, na Quinta Meditação, quando Descartes fornece uma prova da existência de Deus, a existência é descrita como uma propriedade, que, nesse caso, deve ser aferida a Deus, definido como o conjunto de todas as perfeições. (cf. COTTINGHAM, 1995, p. 63).

e a

essência65

Contudo, mesmo que eu não possa pensar um Deus carente de existência, do mesmo

modo que não posso pensar uma montanha sem vale, todavia, como do simples fato de eu

pensar uma montanha com vale não resulta que exista qualquer montanha no mundo, da

mesma forma, embora eu pense Deus com existência, parece não resultar daí que exista um

Deus. Há de se considerar que meu pensamento não impõe necessidade alguma às coisas, e

como depende apenas de mim o imaginar um cavalo alado, embora não exista algum que

possua asas, assim eu poderia, talvez, conferir existência a Deus, embora não houvesse Deus

com existência. Entretanto, Descartes afirma que não é assim, pois sob a aparência de uma

objeção, esconde-se um sofisma (Quinta Meditação, 2004, p. 139/8/). Pelo fato de que não

posso pensar uma montanha sem vale não resulta que não exista montanha ou vale, mas

apenas que, montanha e vale, quer existam quer não, não devem, sob qualquer circunstância,

ser afastados um do outro, de maneira que, do simples fato de eu não poder pensar Deus sem

, convence-se sem dificuldades, de que a existência pode ser separada da essência

de Deus e que, deste modo, é possível pensar Deus como não existindo de maneira atual.

Entretanto, ele afirma que no instante em que se aplica maior atenção, nota-se claramente que

a existência de Deus não pode ser separada de sue essência (Quinta Meditação, 2004, p.

139/7/), da mesma forma que da essência de um triângulo retilíneo não pode ser separado a

grandeza de seus três ângulos iguais a dois retos ou, da idéia de uma montanha, a idéia de um

vale, de modo que não se sente menos discordância em pensar um Deus (ou seja, um ente

sumamente perfeito) ao qual careça de existência (perfeição), do que em pensar uma

montanha que esteja privada de vale.

65 O predecessor escolástico de Descartes, Eustachius a Sancto Paulo, definia “essência” como a “razão, natureza, forma, definição formal ou conceito formal de algo”. A noção provém da “causa formal” aristotélica, que especifica a essência de uma coisa ou “o que ela é para ser algo”. Descartes utiliza essa terminologia tradicional com o objetivo de elucidar sua própria teoria das idéias. A idéia é um elemento da mente, um modo do pensamento. Contudo, a idéia possui um aspecto representativo, pois são como imagens das coisas. No caso das coisas representadas por nossas idéias, devemos fazer duas considerações. Em primeiro lugar, verificar se elas existem. E, em segundo lugar, sendo uma questão mais radical, envolve a noção de natureza ou essência imutável. Existem idéias em nossa mente que, quer representem algo fora do pensamento, quer não representem, não são inventadas pelo nosso pensamento, pois não estão em nosso poder acrescentar ou subtrair algo de sua natureza. (cf. Ibid., p. 62, 63).

existência, resulta que a existência lhe é indissociável, e, portanto, ele existe verdadeiramente

(Quinta Meditação, 2004, p. 141/8/). Não se trata de supor que meu pensamento imponha às

coisas qualquer necessidade, mas pelo contrário, a necessidade da própria coisa, ou seja, da

existência de Deus, impõe ao meu pensamento pensá-lo desse modo. Ocorre que não depende

da minha liberdade pensar um Deus sem existência, ou seja, um ser perfeitíssimo sem uma

perfeição, como me é permitido imaginar um cavalo sem asas ou com asas.

2.2.2 A idéia de Deus implica na atribuição de todas as perfeições

Ele argumenta que não é necessário eu admitir que Deus exista depois de ter suposto

que ele possui uma infinidade de perfeições, visto que a existência é uma delas, mas que, na

verdade, minha primeira suposição não era necessária, do mesmo modo que não é necessário

pensar que todas as figuras de quatro lados podem inscrever-se no círculo, mas que, sabendo

que possuo este pensamento, sou impelido a admitir que o rombóide pode inscrever-se no

círculo, visto que é uma figura de quatro lados, e, deste modo, ser impelido a admitir uma

coisa falsa. Não se pode afirmar isto, pois mesmo que não seja preciso que eu incida em

algum pensamento de Deus, todas as ocasiões que me acontecer de conceber um ser primeiro

e soberano, e extrair, deste modo, sua idéia da riqueza de meu espírito, é preciso que eu lhe

atribua todos os tipos de perfeição, apesar de não poder contabilizá-las e a dedicar a minha

atenção a cada uma delas. Para Descartes, essa necessidade basta para me fazer reconhecer

que este ser primeiro e soberano existe verdadeiramente, da mesma maneira que não é preciso

que tenha algum dia imaginado algum triângulo; contudo, todas as ocasiões que tiver de

considerar uma figura retilínea composta apenas de três ângulos é necessário que eu lhe

atribua todas as coisas indispensáveis para concluir que seus três ângulos não são maiores do

que dois retos, mesmo que não considere isto particularmente. Entretanto, quando investigo

que figuras podem ser inscritas no círculo, não é necessário que eu pense que todas as figuras

de quatro lados se encontram neste grupo. Mas, ao invés, não posso ao menos fingir que isso

acontece enquanto eu nada quiser receber em meu pensamento que não possa conceber de

forma clara e distinta. Conclui ele que existe uma grande disparidade entre as falsas

suposições, como essa, e as verdadeiras idéias que nasceram comigo e a primeira e principal

das quais é a de Deus (Quinta Meditação, 2004, p. 143/9/).

De fato, admito de diversas maneiras que essa idéia não é algo forjado, que dependa

apenas de meu pensamento, mas que é a representação de uma natureza verdadeira e

imutável. Em primeiro lugar, porque eu nada poderia conceber, a não ser Deus, a cuja

essência, a existência pertence de modo necessário. Em segundo lugar, porque não é possível

pensar dois ou mais deuses do mesmo modo. E visto que há um que neste momento existe,

noto claramente que é preciso que ele tenha existido antes por toda eternidade e que existirá

para sempre. E, enfim, porque reconheço uma infinidade de outras coisas em Deus, das quais

nada posso reduzir nem modificar.

2.2.3 A idéia de Deus é a mais clara e a mais distinta dentre todas

Seja qual for a prova de que me sirva, devo sempre considerar que são apenas as

coisas que concebo de maneira clara e distinta que têm condições de me convencer

plenamente. E, mesmo que, entre as coisas que concebo desse modo, existam na verdade,

algumas claramente conhecidas para qualquer pessoa e existam outras que não se manifestam

a não ser àqueles que as investigam mais de perto e que as examina com maior exatidão, não

devem ser tratadas como menos certas umas em relação às outras. No caso do triângulo

retângulo, por exemplo, mesmo que seja difícil reconhecer a princípio que o quadrado da base

é igual aos quadrados dos dois outros lados, como é claramente manifesto que essa base é

oposta ao maior ângulo, uma vez tendo descoberto isso, ficamos convencidos de ambas as

verdades. E no que tange a Deus, evidentemente, se meu espírito não estivesse prevenido de

prejuízos e se meu pensamento não se encontrasse disperso pela presença eminente das

imagens das coisas sensíveis, não existiria nada que eu admitisse melhor e com maior

facilidade. “Pois que é por si mesmo mais patente do que isto: que o ente supremo e perfeito

ou Deus, a cuja essência somente pertence a existência, existe?” (Quinta Meditação, 2004, p.

145/11/)

2.3 A existência de Deus e as ciências

Descartes reconhece que, para alcançar essa verdade, foi necessário grande labor de

espírito, mas que, todavia, ele está mais seguro dela do que de qualquer outra coisa. A

convicção acerca de todas as outras coisas depende desse conhecimento, a tal ponto que, sem

ele, seria impossível conhecer algo perfeitamente.

Embora eu seja dotado de tal natureza que, tão logo descubra algo clara e

distintamente, sou naturalmente impelido a admiti-lo como sendo verdadeiro, contudo,

considerando que sou também de tal natureza que não posso sustentar sempre o espírito

aplicado a uma mesma coisa, e que, muitas vezes, me lembro de ter julgado uma coisa

verdadeira, quando passo a não considerar as razões que me levaram a julgá-las desse modo,

pode ocorrer que, nesse instante, outras razões se me afigurem, as quais me fariam mudar de

opinião se eu ignorasse que existe um Deus. E, deste modo, eu nunca teria uma ciência

verdadeira e segura de qualquer coisa, mas, apenas opiniões esparsas e volúveis66

66 A princípio, o cogito aparece como o primeiro princípio de toda ciência humana possível, visto que é unicamente por meio dele, que se pode construir a ciência humana como sistema de razões ligadas por uma necessidade rigorosa – não há ciência sem essa necessidade. Todavia, Deus surge como primeiro princípio de toda ciência válida, pois é somente Ele que funda as verdades impostas a mim mesmo por meu próprio entendimento, como verdades impostas pelas coisas elas mesmas. Ele é responsável por transmutar a veritas rationum em veritas rei. Não há ciência se a verdade de minhas razões é estranha as verdades das coisas. No

.

Ao considerar a natureza de triângulo, percebo obviamente, eu que sou um pouco

perito em Geometria, assim diz Descartes, que seus três ângulos são iguais a dois retos e não

me é permitido não concordar com isso, à medida que dedico meu pensamento à sua

demonstração. Contudo, assim que eu me afasto dela, embora me lembre de tê-la claramente

percebido, pode acontecer que duvide de sua veracidade caso ignore que Deus existe. Haja

vista que posso convencer-me de ter sido criado de tal maneira pela natureza que posso

equivocar-me com facilidade, mesmo nas coisas que julgo perceber com mais evidência e

certeza. Lembro-me, afirma ele, de ter em muitas ocasiões, valorado coisas como verdadeiras

e certas, que, posteriormente, outras razões me conduziram a julgá-las falsas.

Entretanto, depois de ter admitido existir um Deus, pois simultaneamente admiti

também que todas as coisas dependem dele e que ele não é embusteiro, e que, além disso,

considerei que tudo quanto concebo clara e distintamente não pode ser falso. Mesmo que não

mais me aplique as razões pelas quais considerei tal Ser como verdadeiro, estando na

condição de recordar-me de tê-lo compreendido clara e distintamente, não há quem possa me

argüir através de razão contrária que me leve a pô-lo em qualquer dúvida. Deste modo, tenho

dele uma ciência segura e verdadeira. E esta mesma ciência se estende, inclusive, a todas as

outras coisas que me lembro ter, em outro momento, demonstrado, como no caso das

verdades da Geometria e outras parecidas. Não há nada que me faça objetar a ponto de forçar-

me a colocá-las em dúvida, mesmo que alguém afirme que minha natureza é tal que sou

vulnerável a equivocar-me, pois já demonstrei que não posso equivocar-me nos juízos cujas

razões são claras e distintas. Alguém poderia insistir que, em outro momento, admiti muitas

coisas como verdadeiras e seguras, as quais, depois, eu admiti serem falsas. Entretanto, eu não

instante em que meu espírito decide na sua reflexão sobre si mesmo, transferir sua reflexão do sujeito que pensa, ao conteúdo desse sujeito pensante, a análise é constrangida a abandonar o fio condutor que ela retira do cogito, isto é, aquele das condições que tornam possível meu conhecimento em geral, para se apegar a outro, que ela tira da idéia de perfeito. Conclui-se que: “A partir desse momento (...), o fundamento de possibilidade dos julgamentos de evidência, do qual resulta a construção de minha ciência e, por consequência, a certeza simplesmente subjetiva de seu encadeamento, não é mais o cogito, mas a idéia de Deus”. (GUEROULT, 1968, vol. 1, p. 236).

tinha conhecido tais coisas de forma clara e distinta e, não dispondo desta regra pela qual me

convenço da verdade, era forçado a crer nelas por razões que admiti depois serem menos

convincentes do que então acreditava. Alguém poderia objetar ainda, que talvez eu durma ou

que todos os pensamentos que carrego atualmente não são mais verdadeiros do que os sonhos

que nos sobrevêm ao dormir. Contudo, ainda que estivesse sob o efeito do sono, tudo o que se

me afigura no espírito com clareza, é verdadeiro. E, desse modo, afirma Descartes, “vejo

plenamente que a certeza e a verdade de toda ciência dependem unicamente do conhecimento

do verdadeiro Deus, de tal maneira que, antes de O conhecer, não pude saber perfeitamente

nada sobre nenhuma coisa” (Quinta Meditação, 2004, p. 149/16/)67. Ele conclui que, agora

que o conhece, possui o que é necessário para alcançar uma ciência perfeita68

67 Essa conclusão de Descartes representa uma violação característica do princípio cardinal da ordem que consiste somente que as coisas que são primeiramente propostas devam ser conhecidas sem a ajuda das posteriores e, que, as posteriores devam em seguida, ser dispostas de tal modo que elas sejam demonstradas somente pelas coisas que a precedem. Trata-se do clássico problema do círculo cartesiano: “Se o cogito serve para provar Deus e, Deus para provar o cogito, (estamos) diante de um paralogismo”. (Ibid., p. 237, 238). 68 A única forma de se escapar do problema do círculo cartesiano é concebendo o cogito autenticamente, ou seja, unido a Deus (de quem recebe a idéia de perfeição). A verdadeira ciência só pode nascer dessa relação: “(Como) o cogito nos forneceu a natureza absoluta que constitui subjetivamente o primeiro elo da cadeia de razões como princípio de uma ciência subjetivamente necessária e válida, Deus nos faz atingir a natureza absoluta que consiste objetivamente o primeiro elo, isto é, o princípio de ciência objetivamente necessário e válido”. (Ibid., p. 246).

no que concerne

a uma infinidade de coisas, não apenas das que existem Nele, mas também das que

correspondem à natureza corpórea, na medida em que ela pode servir de objeto às

demonstrações dos geômetras, os quais não se interessam pela existência de Deus.

3 AS PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS NOS PRINCÍPIOS DA FILOSOFIA

O objetivo deste capítulo, diferentemente do método adotado na Terceira e Quinta

Meditação, é explorar os argumentos da existência de Deus diretamente dos artigos em que

eles aparecem, sem deter-se aos parágrafos anteriores. Nos Princípios da Filosofia69

69 Algumas citações desse capítulo foram extraídas de um conjunto de observações realizadas por Leibniz à parte geral dos Princípios da Filosofia de Descartes. (cf. LEIBNIZ, 1982, p. 407-433).

, veremos

como Descartes articula as idéias inatas com a demonstração da existência de Deus.

3.1 A primeira prova da existência de Deus (a priori)

A primeira prova da existência de Deus é apresentada no Artigo Décimo Quarto.

Descartes argumenta a necessidade de se reconhecer a existência de Deus a partir da noção

que temos Dele. Nessa prova, Descartes articula as idéias inatas com a prova da existência de

Deus. Segundo ele, dentre as inúmeras idéias que povoam nosso pensamento, existem aquelas

que são inatas e, dentre as idéias inatas, há uma, cuja noção é de Ser onisciente, todo-

poderoso e extremamente perfeito. A idéia de um Ser todo perfeito é a única que implica a

existência necessária e eterna de seu objeto. As demais idéias, por outro lado, permanecem na

esfera da possibilidade, pois não há nada em sua natureza que garanta a existência necessária.

Assim como nas Meditações Metafísicas, Descartes utiliza o exemplo do triângulo (Quinta

Meditação, 2004, p. 135/5/). Tal como na idéia de triângulo se pode demonstrar que

necessariamente seus “três ângulos são iguais a dois retos”, na noção de Ser perfeito, e

somente nesta noção, a existência necessária e eterna está compreendida necessariamente.

Logo, um Ser todo perfeito, existe. Eis as palavras de Descartes na primeira prova da

existência de Deus:

(...) E como vê que na idéia que fez do triângulo se encontra compreendido que os três ângulos são iguais a dois retos, da mesma maneira e só pelo fato de se aperceber de que a existência necessária e eterna está compreendida na idéia de um Ser perfeito, deve concluir que um tal Ser, todo perfeito, é ou existe. (Princípios da Filosofia, 1997, Parte I, Artigo 14, p. 32)

Este argumento de Descartes responde a pergunta acerca da possibilidade de haver

uma idéia que corresponda a algo fora do cogito. O Ser perfeitíssimo deve existir, pois a

própria idéia que temos Dele, impõe essa necessidade. Em outras palavras, a idéia de Ser

perfeitíssimo é a única cuja essência implica na existência70

No Artigo Décimo Sexto, Descartes propõem explicar a razão da dificuldade que

enfrentamos em reconhecer a existência necessária do Ser todo poderoso. Segundo ele, os

preconceitos e hábitos do pensamento impedem o espírito humano de reconhecer que a

.

No Artigo Décimo Quinto, Descartes ressalta que, somente no caso da noção de Ser

perfeitíssimo, a existência é absolutamente necessária. Neste momento, ele apresenta seu

argumento de forma negativa: não é possível pensar a idéia de Ser todo perfeito e concebê-la

como noção que não implica a existência necessária de seu objeto; não temos em nós,

qualquer outra idéia, cuja essência implica a existência. Nesse mesmo Artigo, Descartes

afirma que a idéia de Ser todo perfeito não pode ter sido inventada pelo pensamento, pois não

está na liberdade do espírito humano conceber a essência de Deus sem a existência necessária.

Em outras palavras, a idéia de Ser todo perfeito possui uma natureza imutável e verdadeira

“... só por isso saberá que a idéia de um Ser todo perfeito não está nele por ficção... pelo

contrário, só porque nele está impressa uma natureza imutável e verdadeira e que

necessariamente deve existir, dado que só é possível ser concebido como tendo existência

necessária”. (Princípios da Filosofia, 1997, Parte I, Artigo 15, p. 32-33)

70 Segundo Leibniz, o argumento de Descartes possui certa beleza, mas é incompleto. O argumento só terá fundamento se a possibilidade do Ser perfeitíssimo for demonstrada. Como não é possível inferir a possibilidade do Ser perfeitíssimo da definição, o argumento de Descartes é insustentável: “Esses argumentos são procedentes, somente se se concede que o Ser perfeitíssimo ou Ser necessário é possível, que não implica contradição ou, o que é o mesmo, que é possível a essência da qual se segue a existência. Mas, enquanto não se demonstra essa possibilidade, deve-se considerar que esse argumento não demonstra perfeitamente a existência de Deus”. (Ibid., p. 421).

essência de Deus implica sua existência “Se a nossa alma ou pensamento estivesse livre de

preconceitos não teria nenhuma dificuldade em se persuadir desta verdade (...)” (Princípios

da Filosofia, 1997, Parte I, Artigo 16, p. 33), pois a maioria das pessoas está acostumada a

separar a existência da essência de todas as outras coisas. Argumenta também, que a

genialidade do espírito humano em fantasiar e deliberar acerca de muitas coisas inexistentes

pode levar a crer que a idéia de Ser todo perfeito também está na esfera da imaginação, ou das

coisas meramente possíveis. O antídoto para este tipo de hábito, segundo Descartes, é elevar o

espírito humano à contemplação desse Ser todo perfeito, que resultará na constatação da

existência necessária deste objeto, que não está entre as coisas meramente possíveis, mas

entre as absolutamente necessárias.

Em contrapartida, na tradição filosófica aristotélico-tomista, tudo quanto podemos

definir implica somente na essência de algo. Para Tomás de Aquino, por exemplo, a definição

é um dos modos de dizer a essência. Sendo assim, definir algo não pode implicar a sua

existência. Definir, por exemplo, uma sereia, é o mesmo que atribuir uma essência a ela. Mas

a proposta de Descartes é mais ambiciosa. Ele argumenta que a noção de Ser todo perfeito não

compreende apenas a essência pela definição, mas também a existência necessária e eterna do

seu objeto. A noção de Ser todo perfeito implica que todas as perfeições estejam reunidas

nele, inclusive a existência. A afirmação, por assim dizer, de que o Ser todo perfeito não

existe, implica numa contradição, pois seria o mesmo que privá-lo de uma de suas perfeições

que é a existência e, por conseguinte, negar o que foi assumido na noção que temos Dele.

Nesse momento, Descartes elucida a noção de Ser todo perfeito e as propriedades que

lhe são inerentes. O problema versa, a partir de então, sobre a origem da noção de Ser todo

perfeito. E é na solução dada a esse problema, que surge a segunda prova da existência de

Deus.

3.2 A segunda prova da existência de Deus (a posteriori)

No Artigo Décimo Sétimo é estabelecido os fundamentos para a segunda prova da

existência de Deus. Segundo Descartes, há uma primeira noção em nós que, ao concebermos a

perfeição em alguma coisa, necessariamente concluímos que a causa desta perfeição deve ser

no mínimo igualmente perfeito. Nesse argumento, Descartes recorre ao princípio de causa e

efeito. De acordo com este axioma, o efeito não deve possuir uma perfeição superior àquela

presente na causa. Igualmente, a causa não pode produzir um efeito que lhe seja superior. O

mesmo princípio é adotado no caso das idéias. Embora as idéias, consideradas enquanto

formas de pensamento, não divirjam entre si, elas se distinguem na medida em que, uma

representa uma coisa, e outra representa outra coisa. Descartes afirma que as idéias podem ser

fruto da genialidade do meu espírito, ou da experiência sensível. No caso de alguém ter

pensado numa máquina que tem muitos artifícios devemos admitir que “(...) o artifício

representado na idéia que esse homem tem, como num quadro, deve estar na sua primeira e

principal causa, não-somente por imitação, mas da mesma maneira ou de uma forma ainda

mais eminente daquela que foi representada”. (Princípios da Filosofia, 1997, Parte I, Artigo

17, p. 33)

Por assim dizer, devemos nos perguntar pela causa da idéia que temos de Ser

sumamente perfeito. No Artigo Décimo Dezoito, Descartes argumenta que a idéia de Ser

sumamente perfeito não pode ter origem no nada, pois há uma primeira noção em nós, ou seja,

exigência de nossa luz natural, que do nada, nada provêm. A idéia de Ser todo perfeito não

poderia também, ter sido produzida pelo cogito. Por mais genial que seja o espírito humano,

já foi demonstrado que o homem é imperfeito por natureza, e como argumenta Descartes “(...)

o mais perfeito não poderia também ser uma conseqüência ou uma dependência do menos

perfeito (...)” (Princípios da Filosofia, 1997, Parte I, Artigo 18, p. 33). Assim como ele

sugere na Terceira Meditação, caso o homem fosse perfeito, iria prover sua própria

existência, a partir da idéia que possui de Ser sumamente perfeito. A idéia de Ser sumamente

perfeito é infinitamente superior a idéia que representa o meu próprio espírito, pois na idéia

que tenho de Deus concebo infinitas perfeições. Desse modo, se a idéia de Ser sumamente

perfeito não é inventada pelo homem e não provém do nada, ela poderia encontrar sua causa

fora de mim. Contudo, a idéia de Ser sumamente perfeito não pode ter sido produzida por

nada que há no mundo, pois não há nada que tenha recaído sobre meus sentidos que

englobasse todas as perfeições. A conclusão necessária é que a causa da idéia de Ser

sumamente perfeito encontra-se numa natureza diferente da nossa e de qualquer coisa que

tenha recaído sobre nossos sentidos, a este Ser Descartes chama de Deus. O argumento de

Descartes consiste em que:

(...) sabemos que o nada não pode ser a origem do que quer que seja e que o mais perfeito não poderia ser conseqüência ou uma dependência do menos perfeito, mas também verificarmos (por meio desta mesma luz) que é impossível que tenhamos a idéia ou a imagem do que quer que seja se em nós ou fora de nós não houver um original que engloba todas as perfeições (que assim nos apresentam). Mas como sabemos que estamos submetidos a muitas imperfeições (e que não possuímos essa extrema perfeição de que temos a idéia), devemos concluir que elas estão nalguma natureza diferente da nossa, e na verdade muito perfeita, isto é, em Deus. (Princípios da Filosofia, 1997, Parte I, Artigo 18, p. 34)71

No Artigo Décimo Nono, Descartes afirma que, embora a natureza do infinito seja

incompreensível, a idéia de Ser sumamente perfeito é a mais clara e distinta que se pode

encontrar no homem. Dada a limitação da natureza humana, ele não poderia ter plena

compreensão da natureza infinita representa pela idéia de um Ser sumamente perfeito. A

incompreensibilidade da natureza infinita não implica que não tenhamos de Deus uma

71 Para Leibniz, o simples fato de podermos dissertar acerca de alguma coisa, não é suficiente para demonstrar que possuímos a idéia que a representa. Aliás, é bastante comum falarmos ou pensarmos em coisas que são contraditórias e, que, portanto, são desprovidas de idéia: “E não importa que ao falar sobre algo entendendo o que dizemos, tenhamos a idéia da coisa (...) Pois frequentemente sucede que combinamos coisas incompatíveis, como quando pensamos no movimento mais veloz que, como se sabe, é impossível e do qual, portanto, não temos idéia e, contudo, nos é possível falar dele entendendo-o”. (Ibid., p. 421, 422). Sendo assim, é duvidoso que tenhamos em nós a idéia de Ser perfeitíssimo.

compreensão clara e distinta, mais do que em qualquer outra coisa. A clareza e distinção

daquilo que compreendemos em Deus, segundo Descartes, é fruto da simplicidade de Sua

natureza. O princípio evocado por Descartes nesse argumento consiste em que, quanto mais

simples for o objeto de meu conhecimento, melhor será meu entendimento acerca dele. A

idéia que temos de Deus é aquela em que encontramos maior simplicidade, visto que Nele não

há partes, e, portanto, Ele é pensado de maneira mais clara e distinta do que qualquer outra

coisa, de tal modo que “(...) a consideração de um objeto que não possui limites nas suas

perfeições nos enche de satisfação e segurança”. (Princípios da Filosofia, 1997, Parte I, Artigo

14, p. 34)

3.3 A terceira prova da existência de Deus (a posteriori)72

A terceira prova da existência de Deus

73

72 O problema mais importante colocado pela segunda prova a posteriori é a determinação do número, da função e da natureza dos elementos a priori que a condiciona. Mais que a primeira prova, a segunda prova pelos efeitos parece indicar de forma mais enfática seu caráter de ser a posteriori. Ao invés de partir da realidade objetiva da idéia, da qual o caráter de efeito não é evidente, ela parte de um dado irrecusável, a saber, minha existência como eu finito portando a idéia de perfeito. Contudo, a passagem desse efeito evidente à sua causa supõe certo número de axiomas a priori que não se extraem do efeito do qual se ocupa para dar conta, ou seja, da idéia do perfeito, presente no meu espírito: “(...) o axioma que impõe a necessidade de uma causa atual (causa sui) para o efeito que ela conserva atualmente é uma noção a priori independente da idéia de perfeito. Ora, trata-se de um elemento capital da prova, pois sem ele seria impossível exorcizar o progresso ao infinito das causas”. (GUEROULT, 1968, vol. 1, p. 266). 73 Se a prova depende, acima de tudo, da noção de a priori, se ela se fundamenta sobre o conceito de causa sui, se esse conceito, por sua vez, fundamenta-se na essência de Deus, que na prova ontológica mostra-me a sua propriedade necessária de se causar a si mesma por sua própria potência, não somos levados a concluir que essa prova pelos efeitos é a posteriori apenas de nome? Na verdade, a prova considerada nela mesma, a conexão necessária entre a essência do perfeito e a causalidade por si, não interferem como elemento da demonstração: “Se a noção a priori de causa sui é utilizada, ela é compreendida à parte de seu fundamento na essência de Deus, tomada ela mesma, destacada dessa essência, aceita como uma evidência primeira subtraída da dúvida, ao mesmo título que os outros axiomas (...)” (Ibid., p. 270).

encontra-se no Artigo Vigésimo. Segundo

esse, em razão de não nos lembrar de quando e como o Ser sumamente perfeito fixou a sua

idéia em nós, é fundamental que, quem possui em si a idéia das infinitas perfeições em Deus

pergunte-se pelo autor de seu próprio entendimento. Pois quem conhece algo cuja natureza é

infinitamente superior, não pode ter sido a causa de seu próprio ser74. Descartes argumenta

que se alguém fosse autor da sua própria existência teria conferido a si mesmo todas as

perfeições das quais tivesse conhecimento75

Podemos admitir por meio da lógica que o Criador não tenha deliberado as suas

criaturas o mesmo grau de perfeição que possui. Em primeiro lugar, pelo próprio limite que se

. E que possuindo tal conhecimento, nem ao

menos poderia subsistir por si mesmo, mas por um Ser que possui pelo menos todas as

perfeições das quais conhece. Nas palavras de Descartes:

(...) aquele que conhece alguma coisa mais perfeita do que a si próprio não se deu o seu próprio ser, visto que, pelo mesmo processo, ter-se-ia dado todas as perfeições de que tivesse conhecimento; nem poderia subsistir por nenhum outro meio senão por Aquele que possui efetivamente todas as perfeições, isto é, Deus. (Princípios da Filosofia, 1997, Parte I, Artigo 20, p. 34-35).

Nesse Artigo o que esta em voga é o tema da criação. Todos nós temos a idéia de Ser

sumamente perfeito, cuja noção implica num conjunto de infinitas perfeições. Se fôssemos

responsáveis pela nossa própria criação, seríamos tão perfeitos quanto a idéia de Ser

sumamente perfeito que possuímos. Mas sabemos que somos imperfeitos, assim, não

podemos ser causados por nós mesmos, mas subsistimos por intermédio de outro Ser,

responsável por engendrar a idéia de Ser sumamente perfeito em nós. Não implica contradição

que esse Ser sumamente perfeito tenha comunicado a nós certas perfeições e nos privado de

outras.

74 Diferentemente da primeira prova a posteriori, em que Deus é colocado em relação a nós mesmos, caracterizando-o apenas como causa eficiente da idéia de perfeito em nós, a segunda prova a posteriori, coloca Deus absolutamente nele mesmo, considerando sua causalidade, não mais apenas em relação a nós, mas em relação a si mesmo, ou seja, causa sui. Correlativamente, vê-se que: “Deus não é mais simplesmente posto como causa em nós de uma idéia, mas como causa de nós, que temos essa idéia. Por isso, Deus é atestado como criador de minha substância”. (Ibid., p. 248, 249). 75 A refutação da hipótese que eu seja a causa de minha própria existência, repousa sobre o conceito cartesiano de vontade. Assim como os escolásticos, Descartes define vontade como desejo necessário do bem. O bem, por sua vez, identifica-se com o ser e, uma vontade só pode ser vontade do ser. Ocorre que a minha vontade é infinita, assim com a de Deus. Ora, se eu não posso me dar às perfeições das quais tenho idéia, é porque essa vontade infinita possui em mim, somente um poder finito: “Resulta disso, que eu não pude crer em mim mesmo, pois a distância entre o nada e o ser finito é infinita; e a passagem de um para o outro supõe, por consequência, um poder infinito. Toda criação ex nihilo envolve a onipotência” (Ibid., p. 251).

impõe a natureza divina. Sendo Deus infinito, ele poderia criar somente o que é limitado, pois

caso criasse algo com sua mesma constituição, Ele deixaria de ser o que é. Em segundo lugar,

caso o homem fosse criado perfeito (se isso fosse possível), não teria condições de reconhecer

a existência de Deus, já que atribuiria à causa da idéia de Ser sumamente perfeito a si

próprio.76

No Artigo Vigésimo Primeiro, Descartes reapresenta a terceira prova da existência de

Deus de uma forma diferente. Nessa passagem, seu argumento fundamenta-se na natureza do

tempo e duração de nossa vida. A natureza do tempo e duração implica que suas partes são

independentes entre si e que não existem como um todo. A noção de dependência entre as

partes ou totalidade não pertence à natureza do tempo e duração como a definição de que três

ângulos são iguais a dois retos pertence à natureza do triângulo. Desse modo, a natureza do

tempo e duração de nossa vida carece de uma causa que garanta nossa existência, pois a razão

de existirmos nesse instante, não implica que existiremos no instante seguinte

77. Mas se

existimos é porque somos produzidos, recriados todo tempo. Aquele que nos criou é

responsável por realizar a manutenção de nossa existência a cada instante. Ele deve ser

suficientemente poderoso para conservar não apenas nossa existência que se encontra fora

Dele, mas conservar-se a si próprio, já que não depende de nenhum outro para subsistir78

76 Leibniz rechaça o terceiro argumento da existencia de Deus de Descartes pelas mesmas razões pelas quais reprovou o segundo. A menos que entendamos a coisa de que tratamos e a dividamos em seus elementos de maneira suficiente, não temos certeza da idéia que julgamos existir em nossa mente: “O terceiro argumento está afetado, entre outros, pelo mesmo vício enquanto afirma que existe em nós a idéia da suma perfeição de Deus e daí conclui que Deus existe porque nós que temos essa idéia existimos”. (LEIBNIZ, 1982, p. 422). 77 Levando em conta que eu não posso ser por mim mesmo, a não ser me recriando a cada instante, eu deveria ter um poder de me conservar, na mesma proporção que o poder de me criar, ou seja, ser causa sui. Sendo assim, esbarra-se na primeira hipótese já refutada (ver nota 75). Contudo, nesse caso, não está em voga apenas o poder que eu teria tido de me criar numa ocasião passada. O que está em questão aqui é o poder atual de me criar nesse momento presente. A definição de meu ser como consciência é usada por Descartes, para provar que, a partir do instante que eu não tenho consciência desse poder atual, implica que eu não o possuo. Estabelece-se a diferença entre a refutação da primeira hipótese em relação à segunda, do seguinte modo: “O uso dessa definição refere-se aqui ao positivo: o poder criador atual. Na precedente hipótese, ele referir-se-á ao negativo, a saber, o eu dizendo os limites que encontraria esse pretenso poder criador de mim mesmo, devido ao fato de me dar atualmente às perfeições que me faltam”. (GUEROULT, 1968, vol. 1, p. 257).

. Ao

78 Concebendo-me como imperfeito, em razão da idéia de perfeito presente no meu espírito, eu me apercebo como não sendo o autor do meu ser, pois, caso fosse, eu me teria criado perfeito. Por outro lado, sabendo que o autor do meu ser não poderia ser por si, sem ser criado perfeito, eu não posso deixar de colocar esse ser como

final do Artigo Vigésimo Primeiro, Descartes encerra a terceira e última prova da existência

de Deus:

(...) E sabemos que não há força em nós pela qual possamos subsistir ou conservar-nos a nós próprios por um só momento, e que Aquele que possui tanto poder que até nos faz subsistir fora de si e nos conserva, deve conservar-se a si próprio, pois não carece de ser conservado seja por quem for, já que é Deus. (Princípios da Filosofia, 1997, Parte I, Artigo 21, p. 35)

Em suma, a natureza do tempo79 e duração80 não garantem que o que existe nesse

instante existirá no instante seguinte, dessa maneira, a causa que me produziu, continua a

produzir-me continuamente. Descartes conclui que há um Ser responsável por me conservar

na existência.81

Deus ocupa na filosofia de Descartes o lugar de segundo princípio do conhecimento

humano

82

sendo causa de si, postulando uma série infinita de causa por outros, visto que é necessário que essa causa perfeita real esteja lá para me conservar atualmente, assim com eu sou agora, ou seja, um ser pensante portando a idéia de Deus. Conclui-se que: “Se pode considerar que, de certo modo, a segunda prova pelos efeitos é uma prova pelo absurdo. Ela estabelece que o ser infinito é o único que pode se criar a si mesmo, demonstrando a absurdidade da hipótese de uma substância finita, eu, ser a causa de si mesma” (Ibid., p. 262). 79 O tempo sendo uma quantidade como a força, o movimento e a velocidade, ele é, como a extensão, divisível ao infinito. Tal divisibilidade ao infinito, sendo objeto do conhecimento claro e distinto é verdadeira. Embora a divisibilidade do infinito não seja compreensível, podemos ter dela, um conhecimento seguro: “Sim, ela é incompreensível para nosso pensamento finito, mas tudo que é infinito é claramente e distintamente apercebido apenas como incompreensível”. (Ibid., p. 272). 80 A duração e a existência são sinônimas. Assim como a existência, a duração é explicada a partir do ato criador divino. A duração é a expressão da liberdade criadora de Deus. (cf. Ibid., p. 275). 81 No que tange a natureza do tempo, Leibniz propõe uma leitura contrária aquela apresentada por Descartes. Segundo ele, o simples fato de existirmos nesse momento implica que existiremos no momento seguinte, pois não há razão que interrompa nossa existência. Sendo assim, o argumento de Descartes não concorre para provar a existência de Deus: “Do fato de que já somos se segue que continuaremos sendo enquanto não exista razão de uma mudança. E assim, se não soubéssemos de outro modo que somente podemos existir pela mercê de Deus; nada se segue de nossa duração em favor da existência de Deus; como se se descontara que cada parte dessa duração é absolutamente independente de toda outra, o que não se deve conceder. (LEIBNIZ, 1982, p. 422). 82 Visto sob outro ponto de vista, Deus é conhecido antes do cogito. Um conhecimento propriamente dito é uma ciência inteiramente clara, distinta e definitiva. Ora, se no decorrer da análise, nós descobrimos o cogito antes de Deus, é ainda um conhecimento imperfeito e precário que, unicamente o conhecimento de Deus permite transformar em conhecimento perfeito e estável. Sendo assim, o conhecimento do cogito está condicionado ao conhecimento de Deus. “De fato, sendo primeira razão, Deus é, estritamente falando, conhecido antes do cogito”. (GUEROULT, 1968, vol. 1, p. 232).

, depois da alma humana. Com base nesse fundamento metafísico, ele investigará a

existência das coisas extensas, e dará a elas, o lugar de terceiro princípio do conhecimento

‘humano. Nas palavras de Descartes “Assim considerei [...] a existência de tal pensamento,

como o primeiro princípio, do qual deduzi muito claramente os seguintes: que Deus existe [e]

que há corpos extensos em comprimento, largura e altura (...)” (Princípios da Filosofia, 1997,

Carta Prefácio, p. 19). Como vimos, embora na ordem epistemológica Deus ocupe o segundo

lugar, na ordem ontológica ele é o primeiro, pois é o Criador e mantenedor de tudo que existe.

3.4 A ordem valorativa das provas da existência de Deus

As provas da existência de Deus elaboradas por Descartes são apresentadas nas

seguintes obras: Meditações Metafísicas, Discurso do Método, Princípios da Filosofia e no

Apêndice das Segundas respostas (Razões que provam a existência de Deus e a distinção que

existe entre a mente e o corpo humano, dispostas de forma geométrica). As provas cartesianas

da existência de Deus podem ser a posteriori ou a priori. Nas Meditações Metafísicas e no

Discurso do Método, as provas a posteriori são desenvolvidas antes da prova a priori,

enquanto que, nos Princípios da Filosofia e no Apêndice das Segundas respostas, essa ordem

é invertida. No que tange às possíveis razões que levaram Descartes a fazer essa inversão não

encontramos uma resposta satisfatória83

83 Pois como bem notado por Gueroult, o argumento ontológico não é válido a não ser sob a condição que já se tenha provado o valor objetivo das idéias claras e distintas. “A Quinta Meditação confirma que ‘a principal e por assim dizer única’ prova da existência de Deus é aquela fornecida pela Terceira Meditação”. (GUEROULT, 1968, vol. 1, p. 355).

. Mas de acordo com o Vocabulário de Descartes

escrito por Frédéric du Buzon e Denis Kambouchner “Pode-se indagar sobre os motivos e a

possibilidade dessa inversão, mas foi sem dúvida nenhuma a prova pelos efeitos (com suas

duas versões) que Descartes considerou sua criação mais decisiva” (Vocabulário de

Descartes, 2010, p. 24). Segundo Descartes, a prova a priori pode ser confundida com um

sofisma, em virtude de nosso hábito de distinguir a essência da existência de todas as outras

coisas (Quinta Meditação, 2004, p. 139/7/). Nota-se, também, que a apresentação do

argumento a priori na Quinta Meditação não se diferencia de sua defesa contra todas as suas

objeções. Ao final do Apêndice das Segundas respostas, após ter apresentado a prova a priori

de forma geométrica, Descartes afirma que “sua conclusão pode ser conhecida sem prova

pelos que se acham isentos de todos os prejuízos (...); mas como não é fácil chegar a tão

grande clareza de espírito, procuremos provar a mesma coisa por outras vias” (Apêndice das

Segundas Respostas, 2010, p. 244). As outras vias em questão são as provas a posteriori.

Essas provas implicam a admissão de um princípio de causalidade, uma teoria das idéias que

introduza a noção de realidade objetiva e a definição de Deus como um ser infinito. Em suma,

ao aplicar os princípios de causalidade às idéias e não somente em sua realidade formal, mas

inclusive em sua realidade objetiva, Descartes argumenta que, sem a existência de um ser

infinito, eu não possuiria Dele a idéia que o representa.

Ao que tudo indica as provas a posteriori da existência de Deus foram construídas de

forma mais progressiva e analítica que a prova a priori. Contudo, foi a prova a priori que

concentrou maior atenção de seus sucessores.

4 A QUESTÃO DA RELAÇÃO ENTRE REALIDADE OBJETIVA E REALIDADE

FORMAL NA TERCEIRA MEDITAÇÃO

Um dos problemas importantes na discussão da prova da existência de Deus na

Terceira Meditação é o da concepção de que a intencionalidade da representação na teoria

cartesiana das idéias resulta na aceitação de um tipo de existência de um conteúdo da

representação que difere e não depende da substância pensante e da substância pensada, de

modo que consistiria no objeto propriamente dito da percepção84

84 Gueroult, por exemplo, sustenta que o valor objetivo da idéia remete efetivamente a algo exterior: “O que define a idéia é sua propriedade de aparecer como uma imagem referindo-se a um objeto exterior a ela. O que define o valor objetivo de uma idéia é sua propriedade, não mais simplesmente de apresentar-se como um quadro, mas de ser efetivamente o quadro de um objeto que lhe é exterior.” (Ibid., p. 163).

. Isto foi recentemente

abordado por Ethel Menezes Rocha através do artigo intitulado O Conceito de Realidade

Objetiva na Terceira Meditação de Descartes, na qual nos pautaremos a partir de agora.

4.1 A relação entre a realidade formal e a realidade objetiva da idéia

Rocha analisará duas noções indispensáveis implicadas no conceito de representação

na teoria cartesiana, a saber, a realidade objetiva da idéia e a realidade formal da idéia.

Segundo ela, trata-se de dois aspectos de um mesmo ente, em que a realidade objetiva da idéia

é a conseqüência da função essencial da realidade formal da idéia que, sendo função

essencial, configura naquilo que caracteriza a realidade formal da idéia, que é estabelecer uma

unidade diferente do espírito e de existência possível. Ou seja,

(...) trata-se de mostrar que intencionalidade é uma propriedade não relacional do ato mental, que consiste na função essencial de um ato do pensamento (a função de dirigir a idéia para algo possível fora dela) que resulta necessariamente na determinação de um conteúdo da idéia como uma unidade possível de existir independentemente do pensamento. (Analytica 1997, p. 203-204).

Consiste, ainda, em demonstrar que, se é deste modo, então esse conteúdo é

inseparável ao ato representativo e segue disso que tal conteúdo não possui existência

ontológica própria, mas é imanente a esse ato cuja realidade consiste em ser um modo do

pensamento, que tem como característica exercer esta função essencial. Desse modo, o

objetivo desse texto é demonstrar que, no pensamento de Descartes, embora toda

representação seja intencional, ou seja, consista na representação de algo (implicando que é

direcionada a um objeto possível), disso não resulta que tal objeto necessariamente exista, de

maneira independente, seja como objeto extenso existente no mundo, seja imanentemente ao

pensamento, como objeto da mente presente no espírito. Em outros termos, a representação é

intencional não porque seu conteúdo representativo é uma realidade independente que possui

uma existência própria de tal forma que viabilize a relação sujeito e objeto, isto é, entre

realidade formal e realidade objetiva da idéia. Mas somente em razão de existir uma relação

imediata entre o ato de pensar e seu conteúdo, conteúdo esse que, ao estabelecer algo possível

como distinto do ato, considerando a diferença real entre substância pensante e substância

extensa, determina a possibilidade de um objeto externo.

Rocha apresentará dois argumentos que justifica a distinção somente de razão entre a

realidade objetiva e a realidade formal da idéia:

i) Argumento contra a tese de que a realidade objetiva da idéia consiste numa existência

ontologicamente especial de algo na mente: admitir que a realidade objetiva da idéia

consiste na existência independente de algo implicaria em um problema para a ontologia

cartesiana que admite a existência apenas de certas substâncias e de seus modos (Analytica,

1997, p. 204). Logo, o que existe, ou é a substância, que pode ser divina (Deus) e criada

(pensamento ou extensão) ou é ato, que são os modos das substâncias. Caso a realidade

objetiva das idéias possua uma existência, ou essa existência é independente ou é uma

existência que depende da substância (modos da substância). Todavia, se é uma existência

independente então é uma nova espécie de substância não tratada por Descartes. Pensar a

realidade objetiva da idéia como um modo resulta na admissão de uma relação imediata entre

a realidade formal do pensamento (ato de representar) e sua realidade objetiva, de tal maneira

que a realidade objetiva da idéia é, em relação ao próprio ato de pensar, algo essencial.

ii) Argumento em favor da tese de que a realidade formal e a realidade objetiva de uma idéia

são aspectos distintos de uma mesma entidade o que implica que essa distinção entre dois

tipos de realidade é uma distinção de razão (Analytica, 1997, p. 204). Descartes, na Segunda

Meditação, após caracterizar a substância pensante, enumera diferentes modos de pensar. A

substância que pensa é definida como “coisa que duvida, que entende, que afirma, que nega,

que quer, que não quer, que imagina também e que sente (Segunda Meditação, 2004, p.

51/09/)”. Nos Princípios da Filosofia, Descartes aponta o ato de representar como um dos

modos de pensar, com certas características peculiares, já que as idéias são certos modos de

pensar ou, em outras palavras, dependências de nossa alma ou do nosso pensamento “além

disso, quando refletimos sobre as diversas idéias que estão em nós, facilmente nos

apercebemos de que não existe muita diferença entre elas enquanto as considerarmos

simplesmente como as dependências da nossa alma ou do nosso pensamento” (Princípios da

Filosofia, 1997, Parte I, Artigo 17, p. 33). A possibilidade de Descartes enumerar diferentes

modos de pensar e de afirmar que um determinado modo de pensar, ou seja, representar, é

somente um certo modo de pensar, mostra que ele considera os modos de pensamento neles

próprios, como diferentes entre si. Em outras palavras, o ato de pensamento de querer não é o

mesmo ato que o de afirmar, nem de representar, nem de julgar, e o que os diferencia é aquilo

que são em si, ou seja, sua realidade formal. O que caracteriza a realidade formal do modo do

pensamento de representar, como diferente da realidade formal do modo do pensamento de

afirmar, por exemplo, é o fato de que, ao representar, a substância pensante se coloca a si uma

possibilidade, enquanto que, ao afirmar, a substância pensante se confere assentimento a uma

possibilidade colocada ao espírito. Por assim dizer, a realidade objetiva de uma representação,

que é o conteúdo distinto apresentado ao espírito, não pode ser separada da função essencial

de sua realidade formal.

4.2 A realidade objetiva enquanto modo da Substância Pensante Finita

Segundo Rocha, lidar com a realidade objetiva da idéia como uma realidade imanente

à sua realidade formal e, por assim dizer, não possuindo uma existência própria, parece

resolver o problema pertinente à ontologia do sistema cartesiano, que emerge da compreensão

da realidade objetiva como uma entidade diferente do sujeito pensante e do objeto pensado.

No sistema do pensamento cartesiano a ontologia de substâncias e modos é exaustiva: tudo é

substância ou modo da substância. E, como aponta Descartes nos Princípios da Filosofia,

uma substância é “não-criada (...) e independente” (Princípios da Filosofia, 1997, Parte I,

Artigo 54, p. 46). Restritamente, por conseguinte, somente Deus seria uma substância, pois

apenas Deus pode existir sem depender de alguma coisa distinta dele. Contudo, Descartes

reconhece, também, dois tipos de substâncias criadas, pois são coisas que, para existir,

precisam somente da intervenção divina. Sendo assim, existem três tipos de substâncias

segundo Descartes: uma substância infinita que existe por si mesma – Deus, e duas

substâncias criadas, a saber, a alma finita e o corpo finito. Sendo apenas esses três seres

chamados de substâncias, tudo o mais que “é”, mas que não é substância, é inerente à

substância e, assim, é um modo da substância. Sendo assim, Rocha conclui que, “se

admitirmos que existem conteúdos de idéias que são existências na mente, isto é, se

interpretamos a realidade objetiva das idéias como uma realidade que tem algum tipo de

existência, temos que conceber esses conteúdos ou bem como substâncias ou bem como

modos de substância”. (Analytica, 1997, p. 206)

Reconhecer, por um lado, o conteúdo das idéias como substâncias seria o mesmo que

reconhecê-los, ou como uma mente infinita, ou como um corpo finito, ou uma mente finita.

Contudo, mesmo reconhecendo que a realidade objetiva da representação existe por si

mesmo, ou seja, mesmo assumindo que um conteúdo representativo é determinado por

alguma coisa que não é diferente dele, concebê-la como substância resultaria num obstáculo

para a ontologia cartesiana. Caso os conteúdos representativos sejam realidade que são

substâncias então diferem da substância corpórea e da substância pensante, pois são realidade

que, por um lado, são o objeto de um dos modos da substância pensante e, por outro lado, são

independentemente da existência da substância corpórea estar assegurada. Se for desse modo,

a realidade do conteúdo representativo remonta, então, um terceiro elemento no processo de

percepção. Mas caso essa realidade seja uma substância, logo, é preciso assumir que se trata

de uma nova espécie de substância: “admitir que a realidade objetiva da idéia consiste na

realidade de uma substância implicaria, portanto, no embaraço de se introduzir um novo tipo

de substância no sistema cartesiano: nem pensamento, nem corpo, nem Deus, mas um quarto

tipo de substância”. (Analytica, 1997, p. 207)

Reconhecer, por outro lado, que realidade objetiva é modo seria o mesmo que afirmar

que esta pode ser um modo da substância extensa ou um modo da substância pensante, já que

não se pode conceber que existam modos em Deus, pois modos são alterações da substância e

não se pode dizer haver variações em Deus, como declara Descartes nos Princípios “(...) E

como não devo conceber em Deus nenhuma variedade ou mudança, não digo que n’Ele haja

modos ou qualidade (...)” (Princípios da Filosofia, 1997, Parte I, Artigo 56, p. 47). Para que

a realidade objetiva da idéia seja concebida como um modo da substância extensa, seria

preciso assumir a existência da substância extensa para cada idéia. Caso exista como um

modo seria o mesmo que ter sua existência determinada pela substância de que se é o modo,

como afirma Descartes “(...) porque não poderíamos conhecer os modos sem as substâncias

de que dependem (...)” (Princípios da Filosofia, 1997, Parte I, Artigo 61, p. 50), e ter sua

existência determinada por alguma coisa significa que esse algo que é determinante existe,

logo, ser um modo da substância extensa resulta na existência da substância extensa. Assim,

caso a realidade objetiva da idéia seja um modo da substância extensa, isto é, o modo como

essa substância “é”, não formalmente, mas objetivamente, então é preciso postular a

existência dessa substância para que haja tal conteúdo. Entretanto, isso não é admitido na

economia do sistema cartesiano, pois sabemos que a representação, ou seja, aquilo que se

apresenta no espírito ou conteúdo da idéia prescinde da existência do mundo sensível. “Se é

assim, a realidade objetiva da representação não pode ser um modo da substância extensa e,

se, mesmo que apenas sob um certo aspecto, esse conteúdo representativo existe (já que se

trata de uma realidade objetiva) então deverá ser compreendido a partir da substância

pensante”. (Analytica, 1997, p. 204)

Desde então, podemos asseverar que a realidade objetiva da idéia não é uma

substância que existe por si mesma, pois isso resultaria em uma nova espécie de substância no

pensamento cartesiano, e também não é um modo da substância extensa porque existe

independentemente dela e, por fim, não pode ser um modo da substância infinita porque não

existem variações em Deus, mas mesmo assim é uma realidade. Para Rocha, só pode tratar-se

de uma “realidade enquanto modo da substância pensante finita”. (Analytica, 1997, p. 208)

Contudo, Descartes é contundente na distinção que realiza entre a realidade formal e a

realidade objetiva da idéia: a realidade formal de uma idéia é o que a idéia é em si, ou seja,

um certo modo da substância pensante e, em razão disso, enquanto realidades formais, as

idéias não se diferenciam, embora diferenciem de outros modos ou formas do pensamento

“(...) Pois, na medida em que essas idéias são somente modos de pensar, não reconheço

nenhuma desigualdade entre elas, já que todas parecem proceder de mim pelo mesmo modo

(...)” (Terceira Meditação, 2004, p. 81/16/). Por outro lado, a realidade objetiva de uma idéia,

é aquilo que possibilita que uma idéia seja diferente de outra “(...) Na medida, porém, em que

uma idéia representa uma coisa, outra, outra coisa, é patente que são muito diversas umas

das outras. Pois, não há dúvida de que as que mostram substâncias são algo mais e contêm,

por assim dizer, mais realidade objetiva (...)” (Terceira Meditação, 2004, p. 81/16/). E caso

seja dessa maneira, dizer que o conteúdo das idéias, ou seja, a realidade objetiva de uma idéia

é elucidada pela substância pensante deve significar algo distinto de ser apenas um modo da

substância pensante, pois que enquanto modo as idéias são realidades formais e não se

diferenciam. Sendo assim, “é necessário mostrar, então, em que sentido há uma relação

imediata entre realidade objetiva e realidade formal da idéia de tal forma que constituem

aspectos diferentes de um mesmo modo de uma mesma substância”. (Analytica, 1997, p. 204)

4.3 A realidade objetiva enquanto parte essencial do ato de representar

Segundo Rocha, a realidade formal da idéia é um certo modo do pensamento. Pelo fato

de ser um modo do pensamento, a realidade formal da idéia não é o que possibilita diferenciar

uma idéia de outra. Mas por ser um certo modo do pensamento, a realidade formal da idéia

possibilita que se diferencie esse modo dos demais modos do pensamento. Se, na Terceira

Meditação, Descartes pode classificar diferentes atos do pensamento, e, inclusive, destacar

um, a saber, o ato de representar, por estar relacionado com todos os outros, isso implica que é

possível diferenciar cada ato do pensamento em sua realidade formal. Com o objetivo de

diferenciar o ato de representar dos demais atos do pensamento é preciso, então, considerar

sua característica essencial. O ato do pensamento de representar pode ser considerado um

certo ato do pensamento porque reenvia a algo possível. Salvo a idéia de substância pensante,

todas as demais idéias remetem a algo possível, o que significa estabelecer algo como externo

ao intelecto, já que estabelece algo como diferente dele. Caso seja desse modo, um ato do

pensamento só é um ato de representar em função de diferenciar algo da substância pensante

e, em razão disso mesmo, podemos afirmar que o que é estabelecido nesse ato lhe é inerente

de tal maneira que o ato não seria este ato, sem esse algo estabelecido.

Sendo assim, Rocha conclui que, “a realidade objetiva da idéia está, portanto, em

última análise, intrinsicamente ligada à sua realidade formal (a de ser um certo ato do

pensamento) que tem a função essencial de voltar-se para algo fora dela mesma na medida

em que determina algo possível como distinto dela”. (Analytica, 1997, p. 209)

A realidade objetiva e a realidade formal de uma idéia, no pensamento cartesiano, não

são, por conseguinte, duas existências diferentes, e em decorrência disso, não são passíveis de

separação sem que percam o significado. Desse modo, não é possível interpretar que a

realidade formal da idéia, ou seja, o ato de representar, se volta à realidade objetiva, isto é, o

conteúdo representado, como se esta fosse um outro ente presente no espírito, visto que, por

intermédio do ato representativo não vislumbramos um objeto, mas, ao invés disso,

determinamos algo como distinto do espírito, e, assim, um objeto possível fora do espírito.

Isso implica que o ato e o conteúdo da representação estão intrinsecamente unidos, ou seja,

existe uma relação imediata entre a realidade formal e a realidade objetiva da representação,

de tal modo que se retiramos o conteúdo de uma representação, da representação eliminamos

o que é essencial nela, ou seja, o que o qualifica como esse modo do pensamento e não outro

qualquer.

Qualquer representação é representação de alguma coisa, de tal maneira que, qualquer

representação possui uma relação essencial com um objeto individual possível, com alguma

coisa possível estabelecido como diferente da substância pensante. A realidade objetiva da

representação, que é o que a qualifica como esse ato do pensamento e não outro, não é alguma

coisa extrínseca ao ato, mas é parte essencial desse ato, já que determina sua estrutura

intencional. Tratando-se do Cogito, esse conteúdo da representação identifica-se com o ato do

pensamento de representar, o que implica que nessa idéia limite, a realidade formal está

intrinsicamente unida a sua realidade objetiva de modo máximo, de tal maneira que a

realidade objetiva não remete para algo diferente da substância pensante, mas para ela própria.

No que tange à idéia da substância pensante, o que é estabelecido como possível, ou seja, a

realidade objetiva da idéia, é o próprio ato de representar. E também no caso da idéia de Deus,

por tratar-se de um caso limite, como no Cogito, a realidade objetiva tem o máximo de

propriedades distintas, visto que estabelece algo com propriedades infinitas, sendo, em razão

disso mesmo, imensuravelmente diferente da substância pensante

(...) Por sua vez, aquela (idéia) pela qual entendo um certo Deus supremo, eterno, infinito, imutável, onisciente, onipotente, criador de todas as coisas que estão fora dele, seguramente tem em si mais realidade objetiva do que as idéias pelas quais se mostram as substâncias finitas. (Terceira Meditação, 2004, p. 81/16/).

Rocha acrescenta que em função da distinção real entre alma e corpo, bem como da

completude da ontologia cartesiana, se a realidade objetiva da idéia de Deus se diferencia

completamente da substância pensante, então aponta para alguma coisa que necessariamente

existe fora da substância pensante. Desse modo, ao que tudo indica, a realidade objetiva de

qualquer idéia é determinada pela substância pensante finita, pois é imanente a um modo

dessa substância, já que é a conseqüência intrínseca do papel essencial desse modo, que é a de

estabelecer algo que ou é a própria substância pensante, ou é diferente dela e, em razão disso

mesmo, é um objeto externo possível, salvo a idéia limite de Deus que remonta um objeto

externo necessário.

4.4 A realidade objetiva e o caso limite da idéia de Deus

Segundo Rocha, ao considerar que a realidade objetiva não é uma substância, mas

somente a conseqüência intrínseca de um ato, que é o mesmo ato do pensamento, em oposição

aos demais, isto é, o ato de estabelecer algo possível, devemos investigar o sentido de dizer

que as idéias se diferenciam no que tange à sua realidade objetiva. Dirigir-se para algo

externo possível é o mesmo que estabelecer algo diferente da substância pensante: “(...) no

universo cartesiano, dada a distinção real entre as substâncias segundo a qual o que é

propriedade de uma não é propriedade da outra, se algo é diferente da substância pensante,

é algo fora da substância pensante” (Analytica, 1997, p. 211). Desse modo, se a realidade

objetiva da idéia não consiste em um objeto da mente, então sua diferença em relação à outra

realidade objetiva se dá, não pela quantidade de ser da coisa existindo no intelecto, mas por se

diferenciarem em maior grau ou menor grau da substância pensante. Dizer que uma realidade

objetiva se diferencia em maior ou em menor grau da substância pensante é o mesmo que

dizer que quanto mais propriedades desvinculadas da substância pensante surgir na

determinação de alguma coisa, mais diferente da substância pensante será isso que é

determinado e, por essa razão, mais será determinado como um objeto possível fora da

substância pensante. Ou seja, possui mais realidade objetiva a idéia mais clara e distinta, pois

estabelece mais propriedades diferentes das propriedades da substância pensante e, por esse

motivo, mais se diferencia da substância pensante, afirmando-se dessa forma, como objeto

externo possível. Por conseguinte, dizer que uma idéia possui em si mais realidade objetiva do

que outra é o mesmo que afirmar apenas que este conteúdo é determinado com mais

veemência e de maneira mais distinta com respeito à substância pensante em função da

determinação mais clara e distinta das propriedades daquilo que é determinado “(...) as

(idéias) que mostram substâncias são algo mais e contêm, por assim dizer, mais realidade

objetiva (...)”. (Terceira Meditação, 2004, p. 81/16/). Diferenciar as idéias sob o critério de

mais ou menos realidade objetiva aponta, por conseguinte, não uma hierarquização das idéias

no que tange a graus de ser do objeto na mente, mas sim que as idéias se diferenciam entre

elas segundo sua diferenciação com respeito àquilo que a condiciona que é a substância

pensante. E afirmar que se diferenciam em razão de como se diferenciam da substância

pensante é o mesmo que afirmar que quanto mais diferentes forem da substância pensante

mais apontam para algo possível fora da substância pensante. Em outros termos, o caráter

intencional da representação se baseia no aspecto essencial de um modo específico do

pensamento, ou seja, o de representar, que é o de estabelecer alguma coisa como diferente da

substância pensante que, dada a diferenciação real entre as substâncias, resulta que esse algo

estabelecido como distinto da substância pensante seja possível fora dessa substância.

Conclui-se que, “quanto mais determinado como distinto da substância pensante, em virtude

da determinação de seus atributos, mais determinado como algo fora de mim, isto é, mais

determinado como um objeto possível, e, portanto, mais realidade objetiva terá a

representação”. (Analytica, 1997, p. 212)

Por assim dizer, para a grande maioria das idéias, a condição para possuir uma

determinada realidade objetiva e não outra é algo que é intrínseco ao ato de representar, ou

seja, é o fato desse ato possuir uma determinada função essencial que é a de apontar para uma

possibilidade diferente dele, e por esse motivo, fora dele, e não um objeto existente na mente.

A operação intelectual de representar implica dois componentes: a substância pensante e o

objeto pensado. Sendo assim, a representação é entendida como um modo da substância

pensante, ou seja, um ato do pensamento, e como aquilo que é estabelecido pelo mesmo ato

como possível, isto é, o conteúdo do pensamento. Descartes denomina de realidade formal da

representação da idéia, o ato particular do pensamento que é o de representar. Em outras

palavras, a representação é um certo modo de pensar. E denomina de realidade objetiva aquilo

que é o aspecto fundamental desse ato: a determinação de algo como diferente e, por essa

razão, fora da mente. Por assim dizer,

a distinção entre a realidade formal e a realidade objetiva da representação tem como fim apenas chamar a atenção para o fato de que embora o ato representativo seja um ato subjetivo, ele é de tal forma que reenvia necessariamente, por ser esta sua função

básica, a algo distinto dele e, portanto, dado o dualismo cartesiano, a possibilidade de algo fora dele. (Analytica, 1997, p. 213)

Assim, a diferenciação entre a realidade objetiva e a realidade formal da idéia não se

trata de uma diferenciação real, mas sim, uma diferenciação de razão cuja tarefa é a de

ressaltar o fato de que sempre que pensamos algo diferente do pensamento, algo é

estabelecido como possível e, desse modo, tem em vista um objeto possível fora do

pensamento. Se esse algo visado é algo de determinado como tal, pelo ato do pensamento,

então essa realidade só pode pertencer a esse algo enquanto for pensado. Outrossim, a

realidade objetiva de uma idéia consiste na realidade do objeto pensado, e somente enquanto

pensado, ou seja, não atualmente, mas apenas como possível. Não obstante, não se trata “de

uma realidade em si, mas sim de uma realidade enquanto visada, isto é, enquanto resultado

de uma operação intelectual.” (Analytica, 1997, p. 212)

A realidade estabelecida como possível pelo ato de representar não consiste em um

mero ser de razão, pois ao pensar algo, algo diferente do pensamento é visado, ou seja, é uma

existência diferente do pensamento que é estabelecida como possível e, por conseguinte, algo

externo é estabelecido como possível. Menos ainda se trata de uma entidade, pois se trata de

algo condicionado pela substância pensante, pois é algo que existe apenas enquanto pensado.

E, justamente por ser uma realidade condicionada pelo pensamento, ou seja, por não consistir

de uma entidade é que se trata de algo cujo modo de existir é verdadeiramente muito mais

imperfeito que aquele pelo qual as coisas existem fora do entendimento.

Portanto, considerando que a realidade objetiva da idéia é inerente ao ato de

representar, e esse ato consiste em um ato do pensamento, a realidade objetiva da idéia pode,

conseqüentemente, ser elucidada pela realidade formal da substância pensante. Existe o

pensamento, e um dos modos desse pensamento é o ato de representar a cuja essência

pertence o fato dele possuir um conteúdo que implica na determinação de algo externo como

possível, pois estabelece algo como diferente dele. Desse modo, a realidade objetiva de uma

idéia é um elemento da natureza da realidade formal da representação que, por sua vez, se

trata de um certo modo da substância pensante. Partindo do princípio de causalidade de que

tudo que é possui uma causa, Descartes investiga um princípio de elucidação para cada

realidade objetiva. Salvo a idéia de Deus, o princípio de elucidação da realidade objetiva, em

última análise, é a realidade formal da substância pensante que é também o princípio de

elucidação da realidade formal dessas idéias, como afirma Descartes “Mas, como toda idéia é

uma obra da mente, a natureza dessa idéia é tal que ela não exige por si mesma nenhuma

realidade formal além da que recebe de meu pensamento ou de minha mente, da qual é um

modo, isto é, uma maneira ou feitio de pensar” (Terceira Meditação, 2004, p. 83/18/). A

realidade formal de quase todas as idéias, com exceção da idéia de Deus, e, por conseqüência,

a realidade objetiva da maioria das idéias depende da substância pensante, porque a realidade

formal da idéia é um modo característico da substância pensante e a realidade objetiva da

idéia, por sua vez, é parte integrante desse modo do pensamento. Nesse momento, não

existiria qualquer obstáculo em dizer que a realidade objetiva e a realidade formal da idéia são

aspectos fundamentalmente imbricados de um mesmo ato, pois aquilo que elucida uma,

elucida a outra, ou seja, as duas dependem da realidade formal do pensamento. Contudo,

Descartes diz que existe pelo menos uma realidade objetiva, a saber, a da idéia de Deus, de

substância infinita, que não pode ser elucidada por essa realidade formal, que é da substância

pensante finita, em razão do princípio de causalidade “a idéia de Deus (...) quanto mais

cuidadosamente lhe presto atenção, tanto menos parece que elas possam provir somente de

mim” (Terceira Meditação, 2004, p. 91/24/). Por assim dizer, teríamos ao menos uma

exceção em que o que elucida a realidade formal da idéia, ou seja, a substância pensante, não

seria o mesmo que elucida a realidade objetiva dessa idéia, isto é, a própria coisa externa que

é Deus, o que resultaria numa distinção real entre a realidade objetiva e a realidade formal das

idéias “por isso, do que foi dito deve-se concluir que Deus Existe necessariamente” (Terceira

Meditação, 2004, p. 91/24/). Caso a realidade objetiva e a realidade formal da idéia sejam

aspectos diferentes de um mesmo ato do pensamento, devem possuir o mesmo princípio de

elucidação. Desse modo, somente o caso da idéia de Deus seria uma exceção para a noção de

que a realidade objetiva é intrínseca ao ato de representar, visto que, com base no princípio de

causalidade, tratando-se de uma idéia do infinito, sua realidade objetiva não pode ser

elucidada pela realidade formal do pensamento, já que esse é finito “pois, embora haja em

mim certa idéia de substância pelo fato mesmo de que sou substância, não seria, por isso, no

entanto, a idéia de substância infinita, já que sou finito, a menos que ela procedesse de

alguma substância que fosse deveras infinita”. (Terceira Meditação, 2004, p. 91/25/)

Contudo, dizer que a realidade formal e a realidade objetiva possuem o mesmo

princípio de elucidação, visto que são aspectos inerentes a uma mesma substância não implica

dizer que esse princípio de elucidação seja incondicionalmente a realidade formal da

substância pensante finita. De fato, a realidade formal da substância pensante finita não se

basta para elucidar a realidade objetiva da idéia de Deus. Muito menos ainda, podemos

afirmar que é suficiente para elucidar a realidade formal da idéia de Deus, por tratar-se de

uma idéia limite. Caso a realidade formal da idéia consista no fato dessa ser um certo modo

ou ato do pensamento, em contraposição aos outros, ou seja, o ato de representar, e caso o ato

de representar se diferencie por ser aquele ato do pensamento que, ao contrário dos demais,

possui como função essencial de estabelecer algo como diferente do pensamento e, por

conseguinte, visar um objeto externo possível, então esse ato específico do pensamento inclui

sua realidade objetiva. Ou seja, para mostrar que a realidade formal da idéia é ser esse ato

específico do pensamento, o ato de representar, ao contrário dos demais, é preciso considerar

que faz parte da natureza desse ato um conteúdo representativo. Vale lembrar que, estabelecer

algo como diferente da substância pensante, em razão da ontologia cartesiana, é o mesmo que

estabelecer um objeto externo possível. Se no caso da idéia de Deus, por tratar-se de um caso

limite, esse conteúdo somente pode ser elucidado pela realidade formal da própria coisa, disso

resulta, em última análise, que a realidade formal da idéia de Deus, que é em sua essência

intrinsicamente unida a seu conteúdo também será elucidada pela realidade formal da coisa

Deus. Logo, “para o caso limite da idéia de Deus, o que ocorre não é que a realidade formal

da idéia de Deus seja causada pela substância finita e a realidade objetiva seja causada pela

realidade formal de Deus, mas sim que ambas tem como princípio explicativo a própria

realidade formal da substância divina”. (Analytica, 1997, p. 216)

Assim, a realidade objetiva de uma idéia consiste na determinação de um objeto

externo possível, por intermédio da sua diferenciação da substância pensante. Essa

diferenciação acontece em função do estabelecimento de propriedades que são separados da

substância pensante. Quanto mais propriedades diferentes da substância pensante mais

realidade objetiva possui uma idéia, porque assim, esta se diferencia mais da substância

pensante e, por essa razão mesmo, reenvia para um objeto externo possível. A conseqüência é

que uma realidade objetiva com o máximo de propriedades separadas da substância finita é

aquela que se diferencia de modo máximo dessa substância pensante. De acordo com a

ontologia cartesiana, o nível de distinção das propriedades determinadas pelo ato de

representar equivale ao nível de possibilidade desse algo determinado ser algo externo. Por ter

a idéia de Deus o máximo de realidade objetiva, por ter suas propriedades infinitas distintas

de maneira mais plena da substância pensante, visto que as propriedades desta são limitadas,

então essa realidade objetiva não resulta numa possibilidade de algo externo mais em algo

externo necessário. Em outras palavras, a realidade objetiva de um ser infinito resulta em

propriedades infinitas e, por conseguinte, em propriedades que não permitem negação

“Entendo pelo nome de Deus certa substância infinita, independente, eterna, imutável,

sumamente inteligente e sumamente poderosa e pela qual eu mesmo fui criado e tudo o mais

existente, se existe alguma outra coisa” (Terceira Meditação, 2004, p. 91/24/). Já a

substância pensante, por permitir negação, pois erra e duvida, é uma substância finita. Em

virtude da realidade objetiva da idéia da substância infinita ser uma realidade objetiva que não

implica em negação, então essa realidade objetiva é de maneira máxima85

85 O valor objetivo das idéias é indispensável na explicação de todas as realidades objetivas, onde a idéia de Deus é a mais elevada: “Ele (valor objetivo) governará a explicação de todas as realidades objetivas, desde da mais elevada, isto é, desde do maximum absoluto no qual ela é infinita (Deus), até o minimum (...)”. (Ibid., p. 221).

, diferente da

substância pensante e, por essa razão, por ser de forma máxima diferente da substância

pensante, resulta não em algo externo possível, mas em algo externo necessário, porque se

diferencia totalmente da substância pensante. Trata-se então, de outra substância. De fato, a

idéia de Deus é um caso limite, cuja realidade objetiva possui o máximo de propriedades

divinas, visto que estabelece algo com propriedades infinitas, sendo, por esse motivo,

completamente diferente da substância pensante. Na situação em que a realidade objetiva de

uma idéia é completamente diferente da substância pensante, de tal modo que não depende

dela, e na situação em que a realidade objetiva de uma idéia é o que a caracteriza como idéia,

de tal modo que não é uma idéia se não possui uma realidade objetiva, então o próprio ato do

pensamento de representar a substância infinita não pode depender da realidade formal da

substância pensante finita. Categoricamente Rocha afirma que “Só é possível representar

Deus em virtude da realidade formal da substância Deus, e não da realidade formal da

substância pensante finita” (Analytica, 1997, p. 217). Por ser o ato de representar diferente

dos demais atos em razão da sua característica essencial, que consiste em reenviar a algo

externo possível, então somente é possível esse ato em razão de seu conteúdo. No que tange à

idéia de Deus, esse conteúdo reenvia não a uma existência possível, mas a uma existência

necessária, pois é completamente diferente da substância pensante. Portanto, o ato de

representar é viabilizado unicamente em função dessa existência necessária, a saber, a

realidade formal da substância divina. E mais, a realidade formal da idéia, ou seja, a de ser um

modo específico do pensamento, que é o de representar, no que tange a essa idéia limite, bem

como a sua realidade objetiva, também só é possível mediante a realidade formal da própria

coisa. Em outros termos, a condição da realidade objetiva da idéia de Deus equivale a mesma

condição de sua realidade formal, isto é, sua própria existência formal, o que apenas ratifica

que a realidade formal de uma idéia e sua realidade objetiva são intrinsicamente unidas, visto

que, por essa razão, possuem o mesmo princípio de elucidação. Rocha conclui que, a primeira

prova da existência de Deus elaborada por Descartes nas Meditações, a prova, que inclui o

princípio de causalidade e a relação entre a realidade objetiva da idéia e sua realidade formal,

vem ratificar a hipótese de que essas duas expressões explicam aspectos intrinsicamente

conectados de um mesmo ato, a saber, o ato de representar, visto que, para todas as idéias, o

princípio elucidativo de uma é o mesmo princípio elucidativo da outra. Na maioria das idéias

esse princípio elucidativo é a realidade formal da substância pensante finita. Mas no caso

limite da idéia de Deus esse princípio é a realidade formal da substância infinita.

5 O ARGUMENTO ONTOLÓGICO – O CONCEITO DE NATUREZA IMUTÁVEL E

A EXISTÊNCIA COMO PREDICADO

O objetivo dessa sessão é apresentar a crítica de Raul Landim Filho a prova a priori da

existência de Deus em Descartes. Esse tema é desenvolvido no Capítulo 2 da Segunda Parte

de sua obra intitulada Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento. A

crítica ao argumento ontológico se inicia com uma problematização. Segundo ele, é intrigante

que um argumento surgido no século XI não tenha sido efetivamente aceito ou mesmo,

rechaçado. Isto porque “A simplicidade da forma argumentativa dessa prova conjugada com

a aparente obviedade de suas premissas, que contrastam com a dubitabilidade de sua

conclusão, sugere que o argumento ontológico, quando muito, é um sofisticado sofisma”

(Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 191). À luz de

Landim, investigaremos o erro formal contido no argumento, detendo-se a qual das premissas

seria inválida e apontar os problemas de caráter ontológico e epistemológico ocultados nelas.

A discussão acerca da validade do argumento ontológico é permeada por questões

acerca dos critérios de provas de existência, onde o próprio conceito de existência está

implicado. Obviamente, os adeptos do argumento ontológico dispensam o compromisso com

a existência de objetos abstratos, nem precisam postular que o conceito de existência

envolvido na prova tenha outro sentido do que o da simples efetividade ou atualidade. O

defensor do argumento ontológico não necessita também, recusar critérios de existência que a

princípio apenas se aplicariam a objetos empíricos, tal como o critério desenvolvido por Kant

na Crítica da Razão Pura. Mais do que isto, o defensor do argumento ontológico pode admitir

que as provas de existência, em princípio, são provas a posteriori. O argumento ontológico

não pretende ser o modelo de prova da existência, mas a exceção, pois se fundamenta no

caráter singular e único que emerge de uma de suas premissas.

5.1 A prova a priori da existência de Deus

A partir dessas prerrogativas é que deve ser avaliada a prova a priori cartesiana da

existência de Deus. Tal prova é desenvolvida por Descartes, principalmente nas Meditações

Metafísicas, quando trata da natureza dos objetos matemáticos. De fato, as provas

matemáticas, assim como a prova da existência de Deus são a priori, pois a verdade de suas

premissas não é chancelada pela experiência. Entretanto, essas provas matemáticas não são

problemáticas, pois não reclamam a existência de objeto, mas apenas as suas propriedades

necessárias. De acordo com Santo Tomás de Aquino, Anselmo conjuga as características de

uma prova a priori, não problemática quando aplicado a objetos matemáticos, com as

propriedades de uma única idéia que representa uma essência que é idêntica à existência. O

pressuposto é que se o modo de demonstrar a matemática é paradigmática, então provas a

priori podem ser legítimas. Desse modo, se a idéia de Deus aceita pela tradição filosófica é

uma idéia verdadeira, então se pode inferir a existência da essência de Deus. Para explicitar o

argumento ontológico de Descartes, Landim propõe o seguinte silogismo:

(1) Tenho uma idéia clara e distinta de um ente sumamente perfeito. (2) Tudo o que é claro e distinto é verdadeiro. (3) A idéia clara e distinta de um ente sumamente perfeito representa um ente possível, não contraditório. Em termos cartesianos, representa a essência real desse ente. (4) Um ente, cuja essência é a de ser sumamente perfeito, tem todas as perfeições. (Em razão da definição de ente sumamente perfeito). (5) A existência é uma perfeição. (6) Portanto, a essência de um ente sumamente perfeito contém como uma das suas propriedades, a propriedade de existir. (7) Propriedades da essência de um ente são propriedades ou atributos do ente. (8) Segue-se que um ente sumamente perfeito existe. (Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 193)

Desse modo, a prova ontológica elaborada por Descartes é constituída de duas partes: a

primeira parte consiste em inferir da idéia clara e distinta de Deus, como um ente perfeito, a

essência verdadeira de Deus. E a segunda parte tem como premissa a essência de Deus,

entendida como o conjunto de todas as perfeições, em que a existência é uma delas. Como, na

verdade, as propriedades da essência são também propriedades da própria coisa, Deus existe.

O pressuposto implicado na prova é que a existência seja uma perfeição, isto é, uma das

propriedades que pertenceriam à essência do ente sumamente perfeito.

Landim utiliza como crítica ao argumento ontológico cartesiano as considerações de

Santo Tomás de Aquino ao unum argumentum, que foi desenvolvido por Santo Anselmo nos

capítulos iniciais do Proslogion. Não seria anacrônico criticar o argumento cartesiano por

intermédio do Aquinate, já que esse é anterior àquele? Para responder essa pergunta, devemos

recorrer ao tomista Caterus, que nas Primeiras Objeções afirma que as críticas de Santo

Tomás de Aquino ao argumento de Santo Anselmo podem ser estendidas a Descartes. Muito

embora, numa carta a Mersenne, Descartes tenha admitido que desconhecia o argumento de

Santo Anselmo, fato é que ele foi antigo aluno jesuíta, e, que, portanto, era de seu

conhecimento, pelo menos a reconstrução e a crítica que Santo Tomás realizou à prova

anselmiana.

O cerne da crítica de Santo Tomás é demonstrar que do conceito de Deus pode-se

inferir no máximo o conceito da existência de Deus, e não, concluir a existência propriamente

dita. Entretanto, Santo Anselmo pretende mais do que isso, pois seu argumento conclui: “(...)

o ser do qual não é possível pensar nada maior, existe (...)” (Proslógio, 1973, p. 108). Para

Tomás de Aquino, se Deus é pensado através de um conceito adequado pode-se concluir

apenas, que necessariamente, através desse conceito, Deus é pensado como um ente existente.

Descartes procura desqualificar as críticas tomistas, demonstrando que a premissa

principal de seu argumento não é o conceito, mas a essência de Deus. Pois, “(...) toda a

dificuldade do argumento cartesiano consistirá na prova da possibilidade da essência

verdadeira de Deus (...)” (Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento,

2009, p. 195). Não haveria problema, por exemplo, em considerar possível o conhecimento da

essência de objetos matemáticos. E por quê? Porque diferentemente dos objetos fictícios, cuja

essência é fictícia, ou seja, inventada pelo pensamento, os objeto matemáticos, embora não

sejam encontrados na natureza, possuem propriedades necessárias, e, justamente, por serem

necessárias não podem ser propriedades consideradas inventadas pelo pensamento. Desse

modo, por intermédio das idéias claras e distintas que representam os objetos matemáticos

pode-se inferir o conhecimento da essência verdadeira desses objetos. Resguardadas as

devidas proporções, é possível estabelecer uma analogia entre a representação da essência dos

objetos matemáticos e a representação da essência divina. Assim como a essência dos objetos

matemáticos, a essência divina, representada pela idéia de Deus, não é inventada pelo

pensamento, logo se trata de uma essência imutável e verdadeira. “A uma atenção mais

cuidadosa, porém, fica manifesto que a existência de Deus não pode ser separada de sua

essência, tanto quanto não pode ser separado da essência do triângulo que a grandeza de

seus três ângulos é igual à de dois retos (...)”. (Quinta Meditação, 2004, p. 139/7/)

Entretanto, o argumento ontológico cartesiano é muito mais ambicioso do que a

matemática. Admite-se que os objetos matemáticos não existem na natureza, mas a prova

ontológica afirma que necessariamente Deus existe. Desse modo, o argumento ontológico

pretende alcançar, mais do que o conhecimento da essência imutável, como é no caso da

matemática, que não precisa existir na natureza para ser verdadeira. A essência de Deus deve

implicar sua existência. “Pois que é por si mesmo mais patente do que isto: que o ente

supremo e perfeito ou Deus, a cuja essência somente pertence a existência, existe? (Quinta

Meditação, 2004, p. 139/7/)

O primeiro movimento da prova cartesiana consiste em distinguir, através da análise de

suas idéias, a natureza dos objetos matemáticos, da natureza dos objetos fictícios, com

objetivo de demonstrar que, tanto a natureza dos objetos matemáticos, quanto a natureza

divina são de caráter imutável. Logo depois, é dissociada a natureza dos objetos matemáticos

da natureza divina, pois apenas a natureza divina implica necessariamente a existência.

A segunda parte da prova inaugura uma nova dificuldade no argumento ontológico

cartesiano. A prova supõe que a existência seja uma propriedade da essência e, que, portanto,

é válido predicar a existência da essência. Muitos filósofos objetaram essa tese, entre eles

estão Gassendi e Kant. Para Landim, “Se a prova cartesiana tem alguma plausibilidade, ela

deve se esquivar não só das críticas tomistas, como também das críticas dos filósofos acima

citados”. (Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 196)

5.2 A primeira parte da prova ontológica

De acordo com Landim, a crítica de Santo Tomás à prova de Santo Anselmo, retomada

por Caterus nas Primeiras Objeções contra a prova cartesiana da Quinta Meditação, sugere

que “mesmo que se admita que “existência” seja um predicado, do conceito de Deus, como o

de um ser sumamente perfeito, pode ser extraído o conceito de existência, já que a existência

é uma perfeição. Mas, isto prova apenas que não se pode conceber Deus sem existência”.

(Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 196)

Tomás de Aquino pauta sua crítica na separação entre as operações cognitivas de

apreensão e de juízo. A apreensão é a primeira operação intelectiva, e tem como função,

conceber, por intermédio de um conceito, a qüididade das coisas materiais. O juízo, por outro

lado, tem a função de afirmar como existente, ou seja, como em ato, o que é apreendido.

O aspecto inteligível da coisa singular é o conteúdo apreendido pelo intelecto, que se

encontra potencialmente na própria coisa e que, em virtude de um processo abstrativo, está

em ato e de modo universal no intelecto. Esse aspecto inteligível (abstraído da imagem

sensível da coisa) que é expresso pelo conceito, representa, de maneira abstrata e universal, a

qüididade da coisa singular.

Entretanto, confusamente, tudo que é apreendido, apreende-se sob a forma de ente. De

fato, toda qüididade é algo de real. Através de um processo particular de abstração, é possível

formar o conceito de ente, que significa aquilo que é ou aquilo que tem ser. Por outro lado,

para Tomás de Aquino, o conceito de ente não tem o mesmo significado que o conceito de ato

de ser, pois todos os conceitos exprimem uma apreensão qüididativa e o esse não é uma

qüididade, mas o que a torna real (atual). Sendo assim, o esse não se pode conceitualizar, pois

não é uma qüididade e só pode ser conhecido através do ato judicativo. Acerca das operações

cognitivas de apreensão e de juízo, Landim afirma que “(...) todo conceito exprime a

apreensão quididativa de algo real, pois tudo o que é apreendido é apreendido como uma

realidade (como um ente). Mas da apreensão da quididade, por mais geral que ela seja, não

se pode inferir o ato de ser, que só é conhecido no ato judicativo”. (Questões disputadas de

metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 197)

Assim, do conceito de Deus podem ser extraídas notas que compõem esse conceito. Se

“existência” fosse uma quididade, o conceito de Deus conteria essa nota característica, pois

esse conceito deve abrigar todas as notas que exprimem perfeição. Entretanto, de nenhuma

dessas notas características poderia ser extraída a prova da existência de Deus. O caminho é o

inverso. Provada a existência de Deus, pode-se demonstrar que todas as notas que pertencem

ao seu conceito estão efetivamente realizadas. Disso nasce a necessidade de se dar conta

primeiro da existência de Deus e, em seguida, responder à questão sobre as suas

características descobertas por via negativa, eminente e analógica.

Para verificarmos as conseqüências dessa tese tomista, o exemplo apresentado por

Caterus nas Primeiras Objeções é bastante apropriado. A ilustração consiste em acrescentar a

nota “existência” a um conceito qualquer. Do conceito leão forma-se o conceito leão

existente. Poderíamos afirmar daí, que o objeto significado por esse conceito existe?

Uma exigência óbvia da apreensão quididativa desse objeto composto (leão existe) é

que ele seja apreendido como leão e como existente. Em outras palavras, a apreensão apenas

de leão e não de existente, não seria uma apreensão do composto leão existente. A existência

é uma nota característica do conceito que representa a quididade do composto. Desse modo, a

afirmação “o leão existente existe” é uma proposição analítica. Contudo, a validade dessa

proposição garante a existência do objeto representado pelo conceito leão existente? Segundo

Landim, a análise de Caterus nos leva a concluir que:

(...) mesmo se do conceito leão existente pudesse ser extraído analiticamente o predicado existência, disto não se seguiria que o conceito leão existente teria efetivamente uma instância; seguir-se-ia apenas que desse conceito poderia ser extraído o conceito de existência. Assim, esse objeto, toda vez que é pensado por esse conceito, é pensado existente. No entanto, pensá-lo através de um conceito como existente não significa conhecer que esse objeto existe, pois uma prova de existência requer, além da apreensão conceitual quididativa, o ato judicativo, que afirma a existência efetiva da quididade apreendida conceitualmente. (Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 198)

As considerações de Caterus seriam ainda mais significativas se fossem acompanhadas

por uma análise do juízo que pretendesse não apenas distinguir as funções dos juízos

existenciais da dos juízos atributivos, mas também onde fosse ressaltado que os juízos de

existência possuem um alcance maior que os juízos atributivos, pois apenas os juízos

existenciais significam, antes de qualquer coisa, o ato de ser.

Caterus pretendeu, com esse exemplo, apontar uma falácia no argumento ontológico.

Descartes procurou inferir o juízo existencial Deus existe. Mas do conceito de Deus pode-se

inferir um juízo atributivo, que atribui justificadamente o predicado gramatical “existência”

ao objeto pensado pelo conceito-sujeito em virtude desse conceito possuir implicitamente a

nota característica existência. O juízo atributivo torna contraditório possuir um conceito

apropriado de Deus e negar uma de suas notas características, ou seja, o conceito de

existência. Deve-se considerar que uma característica peculiar do juízo atributivo afirmativo é

pressupor a existência do objeto representado pelo conceito-sujeito, sem afirmar. O seu

sentido depende da verdade do juízo existencial Deus existe. O juízo existencial depende de

procedimentos específicos para ser provado, nesse caso ele é apenas um pressuposto. O

argumento ontológico se revela inconsistente diante da tese acerca do juízo existencial:

Assim, a tese de que só através do juízo (sobretudo do juízo existencial) é conhecida a existência (esse) de um ente torna problemática a inferência da existência de Deus a partir de sua definição ou do seu conceito, já que a apreensão de uma qüididade por um conceito não é uma razão suficiente para justificar a verdade de um juízo existencial. (Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 199).

Entretanto, como propõe Tomás de Aquino, no caso de ser verdade que a essência de

Deus é idêntica ao seu ato de ser, daí não se seguiria a possibilidade de afirmar que a

existência de Deus pode ser extraída da sua essência? A resposta é não. Tudo que a mente

humana entende, enquanto substância composta de alma e corpo, entende pelas species

abstraídas da imagem sensível. Nenhuma species inteligível, dependente da imagem sensível,

pode representar a essência divina, pois as species inteligíveis são similitudes das essências

das coisas materiais, que, por sua vez, tem uma natureza diversa da essência divina.

Descartes sugere nas Respostas as Primeiras Objeções que o argumento ontológico

elaborado por ele é diferente da prova desenvolvida por Santo Anselmo. Isso porque ele

concorda com as críticas de Tomás de Aquino ao argumento anselmiano. Enquanto Santo

Anselmo estabelece como premissa do argumento a definição ou o conceito de Deus,

Descartes propõe a essência de Deus. A proposta cartesiana, desse modo, admite a

possibilidade da essência de Deus ser entendida (intelligere) pela mente humana. Disso

resulta, também, que algumas essências possuem uma realidade que independem de

representação. Tais essências devem ser consideradas como verdadeiras realidades. Mas como

é possível acessar a essência das coisas, sobretudo a essência de Deus?

De acordo com a tese cartesiana, os objetos de conhecimento não são as coisas

mesmas, mas as idéias das coisas:

Pois sendo certo que só posso ter algum conhecimento do que está fora de mim por intermédio das idéias que tive em mim, tomo bastante cuidado ao referir meus pensamentos imediatamente às coisas e de nada lhes atribuir de positivo que não tenha percebido anteriormente em suas idéias (...)”. (Carta a Gibieuf, de 19 de janeiro de 1642, 2010, p. 669).

Obviamente, para que a essência de Deus tenha a função de premissa do argumento

ontológico, ela precisa ser conhecida. E, para tanto, ela deve ser representada por uma idéia.

Ocorre que, nesse caso, a premissa da prova não seria a essência de Deus, mas sua idéia.

Consequentemente, a conclusão da prova seria que Deus não pode ser representado senão

como existente. Não seria essa a mesma conclusão do argumento ontológico desenvolvido por

Santo Anselmo?

A regra geral de Descartes afirma: “(...) parece-me que já posso estabelecer como

regra geral que: é verdadeiro tudo o que percebo muito claro e muito distintamente”

(Terceira Meditação, 2004, p. 71/2/). Esse princípio pode ser utilizado na prova a priori, pois

no caso das Meditações, a prova a priori é posterior à prova a posteriori, onde esse critério é

apresentado e validado. Entretanto, a regra geral não pode ser aplicada nas obras em que a

prova a priori antecede a prova a posteriori, como no caso dos Princípios da Filosofia e a

Exposição Geométrica. Independentemente disso, a regra geral torna-se irrelevante diante da

força da seguinte constatação: “(...) a natureza da minha mente é, no entanto, tal que não

posso senão dar-lhe meu assentimento, ao menos enquanto o perceba claramente”. (Quinta

Meditação, 2004, p. 137/6/)

Na Quinta Meditação, Descartes declara que tudo que é verdadeiro é real: “(...) tudo o

que é verdadeiro é algo” (Quinta Meditação, 2004, p. 137/6/). E, considerando o princípio de

que o nada não tem propriedades, tudo que é real deve possuir propriedades, caso contrário,

seria semelhante ao nada. Dessa forma, as coisas representadas pelas idéias claras e distintas

são objetos reais. Segue-se daí, que a idéia clara e distinta de Deus representa algo de real,

mas representar algo de real não é o mesmo que representar a realidade formal ou atual.

Diante disso, Landim levanta a seguinte questão “Mas, qual é o significado preciso do termo

real?” (Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 201)

Por certo, o conceito de realidade é distinto do conceito de existência na teoria

cartesiana. Para dar conta da diferença desses dois conceitos, ele analisa a natureza dos

objetos matemáticos que, segundo ele, embora não existam na natureza, são algo de real, têm

essência imutável.

Entretanto, devemos nos perguntar se é correto tirar das idéias claras e distintas dos

objetos matemáticos o conhecimento da essência imutável desses objetos. O fato de objetos

matemáticos serem representados por idéias claras e distintas segue-se que são reais. Mas

devemos nos perguntar ainda, se pelo fato de serem entes reais, seguir-se-ia que possuem uma

essência imutável, não forjada pelo pensamento. Analogamente, seria válido o argumento que

inferiria da idéia clara e distinta de Deus a afirmação de que Deus é um objeto real e que,

consequentemente, a sua essência não é forjada pelo pensamento? Na Exposição Geométrica,

Descartes afirma: “(...) mas que, na idéia de Deus, não só a existência possível está contida,

mas além disso a necessária. Pois, daí só, e sem qualquer raciocínio, conhecerão que Deus

existe (...)”. (Exposição Geométrica, 2010, Postulado V, p. 241)

Em outras palavras, a idéia de Deus como de um ente sumamente perfeito é clara e

distinta e, portanto, o objeto representado por ela é algo de real. Perceber Deus como algo real

é percebê-lo como existente. Logo, não é possível ter uma idéia clara e distinta de Deus e não

o reconhecer como existente.

Essas afirmações de Descartes não configuram uma prova da existência de Deus, mas

apontam aquilo que deve ser demonstrado pelo argumento ontológico. As colocações do

Postulado V da Exposição Geométrica não devem ser entendidas como a conclusão de uma

prova da existência de Deus, pois é desprovida de premissas anteriores. Caso o argumento

ontológico não se apoiasse em premissas, a prova da existência de Deus deixaria de ser um

argumento. Não sendo um argumento, a prova teria o status de intuição, permitindo, assim,

que o leitor contestasse sem incorrer em contradição. Um discurso desprovido de raciocínio

pode ser colocado em dúvida sem qualquer hesitação: “Se textos de Descartes afirmam que

“sem qualquer raciocínio” pode-se conhecer que Deus existe, todo leitor da obra de

Descartes tem o legítimo direito de duvidar disso, apesar de conceder, para efeito de

discussão, que tem uma idéia clara e distinta de Deus”. (Questões disputadas de metafísica e

de crítica do conhecimento, 2009, p. 203)

Mesmo Descartes reconhece que talvez seja necessário um longo esforço

argumentativo para tornar aceito o argumento ontológico: “... há coisas que são assim

conhecidas sem provas por alguns, enquanto outros só as entendem por um longo discurso e

raciocínio” (Exposição Geométrica, 2010, Postulado V, p. 242). Em nosso caso, participamos

do segundo grupo.

Além desse problema, ainda outro permeia a intuição imediata que pretendesse retirar

o conhecimento da essência de uma coisa, por intermédio da idéia clara e distinta dessa coisa,

mesmo pressupondo que as idéias claras e distintas representam algo de real. Descartes

postula, por exemplo, que mesmo as idéias inventadas pela mente, são algo de real. Se os

objetos fictícios, representados por idéias fictícias, são entes reais, do simples fato de serem

reais, não se segue que esses objetos tenham uma idéia imutável e verdadeira, ou seja, não

inventada pelo pensamento. Logo, mesmo admitida a realidade de um determinado objeto,

através da sua idéia clara e distinta, não haveria razão suficiente para afirmar que esse objeto

possui uma essência verdadeira e que ela é conhecida. Contudo, “(...) se os objetos fictícios

não são objetos reais, o predicado ‘ser um objeto real’ pode equivaler a ‘ter uma essência

verdadeira’. Daí seguir-se-á que a prova de que um objeto é real equivale à prova de que

esse objeto possui uma essência verdadeira, que é conhecida pela idéia clara e distinta que o

representa”. (Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 204)

Entretanto, os objetos fictícios seriam entes reais? Teriam eles uma essência

verdadeira? Tudo indica que o termo “real” se refere à possibilidade do objeto. Em outras

palavras, “real” é o objeto possível – o objeto possível é real. “Existência possível” é atribuída

a tudo aquilo que atende ao princípio de não-contradição, ou seja, “(...) tudo o que não

repugna ao pensamento humano (...)” (Segundas Respostas, 2010, p. 232). Desse modo, até

mesmo os objetos fictícios, entendidos como entes não contraditórios, seriam algo de real,

pois são entes possíveis. No axioma X da Exposição Geométrica, Descartes afirma que em

toda idéia, mesmo aquela que não é clara e distinta, a existência está contida nela. “Na idéia

ou no conceito de cada coisa, a existência está contida, porque nada podemos conceber sem

que seja sob a forma de uma coisa existente (...)” (Exposição Geométrica, 2010, Axioma X, p.

243). Não obstante, essa observação torna mais evidente que os objetos fictícios são entes

reais, já que são entes possíveis.

Um novo problema para o argumento ontológico surge a partir da tese acima. Se os

objetos fictícios são objetos reais, eles possuem qualidades e podem ter, até mesmo,

propriedades essenciais, conhecidos também como atributos. Desse modo, a ontologia

cartesiana procura classificar os objetos do seguinte modo: “Objetos reais atualmente

existentes, e objetos reais sem existência atual. Dentre os objetos reais sem existência atual,

devem ser distinguidos objetos não-fictícios (objetos matemáticos) e objetos fictícios”.

(Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 204-205). A

ontologia cartesiana reconhece que determinados objetos “existem” apenas no pensamento,

que são os objetos fictícios; que outros podem não existir para além do meu pensamento,

embora não sejam forjados pelo pensamento, como no caso dos objetos matemáticos, e que,

por fim, determinados objetos possuem uma realidade atual ou formal.

Considerando que os objetos fictícios são reais, qual o critério de distinção da essência

dos objetos matemáticos das propriedades dos entes fictícios? Admitida que as quimeras são

objetos reais e, portanto, possuem propriedades, é pertinente formular a seguinte hipótese:

muito embora, fossem propriedades de um objeto possível, ou seja, real, as propriedades que

comporiam a essência de Deus, formariam uma essência fictícia, forjada pelo pensamento

humano. Descartes não despreza essa possibilidade:

(...) e depois, porque não distinguindo as coisas que pertencem à verdadeira e imutável essência de alguma coisa daquelas que lhe são atribuídas somente por ficção do intelecto, ainda que nós estejamos bastante atentos ao fato de que a existência pertence à essência de Deus, disso nós não concluímos, entretanto que Deus existe, porque nós não sabemos se sua essência é imutável e verdadeira ou se ela foi somente inventada por nós. (Respostas às Primeiras Objeções, AT VII, p. 116, apud Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 205)

Por vezes, Descartes opõe a noção de essência imutável à noção de essência inventada

pelo pensamento. Tal distinção sugere que a essência imutável é aquela que não depende do

pensamento. Vale salientar que “não depender do pensamento” não significa existir “fora” do

pensamento. Os objetos matemáticos, por exemplo, não dependem do pensamento, possuem

uma essência imutável, mesmo não tendo existência “fora” do pensamento. As formas

geométricas, por exemplo, mesmo não tendo existência na natureza, possuem determinadas

propriedades, que não dependem do pensamento. Feitas essas considerações, nos importa

saber se a essência representada pela idéia de Deus depende do pensamento, ou seja, se foi

forjada pelo pensamento.

Essências “inventadas por nós” é o mesmo que “naturezas fictícias compostas pelo

intelecto”. Mas o que é exatamente uma essência inventada? É pertinente analisar primeiro o

que ela não é “(...) ‘essência fictícia’ não é uma falsa essência nem é um conjunto de

propriedades que não pertence a um objeto, propiciando, dessa maneira, a produção de

juízos atributivos falsos” (Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento,

2009, p. 206). Ao contrário, as essências fictícias são propriedades que, por invenção do

pensamento, seriam entendidas como pertencentes a objetos. Mas como é possível serem

forjadas pelo pensamento e serem consideradas como atributos essenciais de objetos? Uma

resposta simples seria que as essências fictícias seriam essências de entes fictícios. Mas, por

quais características, podem-se reconhecer os objetos fictícios?

Devemos iniciar a explicação definindo o termo “objeto”. “Objeto” é qualquer

conteúdo determinado de idéias. Objetos fictícios são aqueles objetos que são representados

por idéias complexas, não simples, que foram fabricados pelo pensamento por composição

aleatória de idéias dadas. Esses objetos, que são conteúdos de idéias ‘não simples’

arbitrariamente compostas, só possuem realidade, quando a possuem, na medida em que são

representados. São representados como objetos em razão da operação de composição

arbitrária de idéias realizada pelo pensamento. Os objetos são representados com pelo menos

uma propriedade, desse modo, a representação de um objeto fictício inclui a representação de

sua propriedade. O montante dessas propriedades configura a essência fictícia do objeto. Por

conseguinte, ela é uma essência forjada pelo pensamento caracterizando um objeto. A

conclusão é que o objeto caracterizado por ela é fictício.

Mas, qual o critério de distinção entre as essências fictícias dos objetos fictícios, das

essências dos objetos reais que não são fictícios? O desafio de Descartes será demonstrar que

os conteúdos de determinadas idéias claras e distintas, que são entes possíveis (não-

contraditório), mesmo que não existam “fora” do pensamento possuem propriedades

“verdadeiras e imutáveis”, que independem do pensamento. Ele terá que estabelecer um

critério de distinção dos objetos reais não-fictícios dos objetos reais fictícios que, por

conseqüência, separará as essências imutáveis das essências inventadas pelo pensamento.

Somente assim, poder-se-á descartar a hipótese de que a essência de Deus seja forjada pelo

pensamento.

Sendo assim, Landim levanta a seguinte questão “Como distinguir os objetos fictícios,

cuja essência é fictícia, dos objetos matemáticos que não existem ‘fora’ do pensamento (tal

como os objetos fictícios), mas cuja natureza é imutável e não depende do pensamento?”

(Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 207).

Um critério possível de distinção entre os objetos reais não-fictícios e os objetos reais

fictícios não seria devido os objetos fictícios serem compostos e os objetos não-fictícios

serem simples? De modo algum, pois Descartes admite que, não somente os objetos fictícios

são compostos, mas também os objetos matemáticos. O triângulo inscrito num quadrado é

um bom exemplo disto. Embora seja um objeto composto, ele tem natureza verdadeira e

imutável.

Descartes sugere que todos os objetos fictícios são compostos, mas que nem todos os

objetos compostos são fictícios, como por exemplo, os objetos da matemática. Todavia, a

pergunta acerca da distinção entre objetos fictícios dos objetos não-fictícios permanece “Por

que os objetos matemáticos compostos pela mente não são objetos fictícios?”. (Questões

disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 208). Na última parte das

Respostas às Primeiras Objeções, Descartes formula pelo menos dois critérios de distinção

entre idéias que representam objetos fictícios e idéias que representam objetos não-fictícios.

Trata-se do critério da divisibilidade ou da decomposição e o critério das conseqüências

necessárias imprevistas.

5.2.1 O critério de divisibilidade ou decomposição

O critério da divisibilidade sustenta que, se a idéia complexa não pode ser decomposta

por uma operação clara e distinta do pensamento, mas somente por abstração,

consequentemente, ela não foi forjada pelo pensamento, portanto, tem uma natureza imutável.

Entretanto, nas Repostas às Primeiras Objeções, Descartes apresenta a inconsistência desse

critério. De fato, algumas idéias de objetos matemáticos não podem ser decompostas seja

porque são idéias simples que representam objetos simples, seja porque são idéias complexas

de objetos compostos que não podem ser divididas a não ser por abstração. A idéia do objeto

triângulo e a idéia do objeto quadrado são bons exemplos. Mas existem idéias de objetos

matemáticos que podem ser decompostas por uma operação clara e distinta da mente. Trata-se

da idéia complexa do triângulo inscrito no quadrado. Tal idéia pode ser decomposta na idéia

de triângulo e na idéia de quadrado. Entretanto, na sequência do texto das Primeiras

Objeções, esse objeto é entendido como tendo natureza imutável que, consequentemente, a

idéia que o representa apenas poderia ser decomposto por abstração.

Em outras palavras, por um lado, a idéia do objeto triângulo inscrito no quadrado pode

ser decomposta na idéia de triângulo e na idéia de quadrado através de uma operação clara e

distinta do pensamento. Por ser um objeto composto pelo pensamento, esse objeto depende do

pensamento, tal como determina o critério de divisibilidade. Logo, ele não tem uma natureza

imutável. Por outro lado, a idéia desse objeto não poderia ser decomposta a não ser por

operação de abstração. Por conseguinte, ele não é inventado pelo pensamento, sendo assim,

possui uma natureza imutável.

Descartes justifica essa teoria afirmando que o objeto triângulo inscrito no quadrado

pode ser representado por uma ou por diversas idéias. No entanto, considerando que o

conteúdo das duas idéias é o mesmo, como distinguir se o objeto triângulo inscrito no

quadrado, é representado por uma idéia ou por várias idéias? Ou ainda, como separar o objeto

triângulo inscrito no quadrado, cuja idéia pode ser decomposta de forma clara e distinta, de

um objeto triângulo inscrito no quadrado, cuja idéia não pode ser decomposta de maneira

clara e distinta? Landim afirma que:

(...) não há nem contradição nem ambigüidade no texto de Descartes. Há, apenas, uma mudança de critério. Se o critério da divisibilidade discriminasse os objetos que teriam ou não uma natureza imutável, o objeto triângulo inscrito no quadrado não poderia ser considerado como tendo uma natureza imutável. (Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 208).

Contudo, o critério de divisibilidade teria esse papel? Sabe-se que o critério de

divisibilidade tem a função apenas de distinguir as idéias complexas das idéias não-

complexas. Determinar quais objetos teria ou não uma natureza imutável escapa do alcance

desse critério. Demonstram-se serem compostos os objetos cujas representações permitem

serem decompostas por uma operação clara e distinta do pensamento, como no caso do

triângulo inscrito no quadrado (objetos compostos representados por idéias complexas). O

critério para designar os objetos que teriam ou não uma natureza imutável seria o critério das

conseqüências necessárias imprevistas.

5.2.2 O critério das conseqüências necessárias imprevistas

O critério das conseqüências necessárias imprevistas consiste em demonstrar que, se

da idéia de um objeto provêm necessariamente propriedades imprevistas, essas propriedades

pertenceriam à natureza do objeto que, desse modo, possuiria uma essência imutável formada

por essas propriedades. Em outras palavras, se da idéia de um objeto podem ser retiradas

conseqüências necessárias imprevistas, o objeto dessa idéia possui uma natureza imutável.

Logo, se ele possui uma natureza imutável, ele não é um objeto forjado pelo pensamento, ou

seja, não se trata de um objeto fictício.

A utilização do critério das idéias complexas é problemática. Das partes que compõe

uma idéia complexa podem se seguir propriedades indissociáveis. À idéia composta de sereia,

por exemplo, seguem-se necessariamente as propriedades que são conseqüências necessárias

da idéia de peixe e da idéia de mulher. Contudo, Landim levanta a seguinte questão: “Mas da

idéia de sereia, considerada como um todo, seguir-se-ia necessariamente alguma

propriedade?” (Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p.

211)

É do objeto considerado como um todo que deve ser predicada uma natureza imutável,

pois ele possui uma unidade. Apenas os atributos que necessariamente decorreriam de uma

idéia complexa, considerada na sua totalidade e não das partes, caracterizariam o objeto da

idéia complexa como tendo uma natureza imutável. Acrescente-se a isso que o critério das

conseqüências necessárias imprevistas depende do critério de divisibilidade. Pois, por seu

intermédio, são distinguidas as propriedades que decorreriam da idéia complexa, entendida de

forma integral, das propriedades provenientes da idéia complexa em função de decorrerem

das idéias partes que a integram.

Em face do que foi exposto, a seguinte questão é suscitada: “Mas, o critério das

conseqüências imprevistas permitiria de fato discriminar os objetos fictícios dos objetos não

fictícios?” (Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 211). A

verdadeira dificuldade na legitimação desse critério não reside numa possível ambigüidade na

caracterização dos objetos que possuem uma natureza imutável, mas porque esse critério não

afasta a possibilidade de que um objeto fictício possa igualmente ter uma natureza imutável.

O critério das conseqüências imprevistas parece ter a função de determinar os objetos

que possuem uma natureza imutável, mas não exclui a hipótese dos objetos fictícios a terem.

Nada impede, por exemplo, que a sereia tenha uma natureza imutável, pois é possível que da

sua idéia decorram necessariamente propriedades ainda não conhecidas. Landim desenvolve

o seguinte raciocínio:

a) X é um objeto representado por uma idéia complexa, cujas partes foram aleatoriamente

associadas pelo pensamento, ou seja, X é um objeto fictício;

b) Se da idéia X, entendida como um todo, não se pode inferir conseqüências necessárias, não

está eliminada a possibilidade de que da idéia X possam decorrer conseqüências necessárias,

pois pode ser que elas ainda não sejam conhecidas;

c) Por conseguinte, o critério deve admitir que embora X seja um objeto fictício, forjado pelo

pensamento, X pode ter uma natureza imutável, por ocasião de existir alguma propriedade

ainda não conhecida (de acordo com o critério);

d) Desse modo, não há contradição em afirmar que X é forjado pelo pensamento e que X pode

ter uma natureza imutável.

Feita essa análise, podemos concluir que o critério das conseqüências imprevistas não é

significativo para a plausibilidade do argumento ontológico. Esse critério não é capaz de

demonstrar que, se Deus tem uma natureza imutável, então a sua essência não é forjada pela

mente humana. O critério das conseqüências imprevistas só teria valor se o predicado “ter

uma natureza imutável” fosse incompatível com o predicado “é um objeto fictício” ou “tem

uma essência fictícia”. O máximo que se pode obter do critério das conseqüências imprevistas

é que, se o objeto satisfaz o critério, então ele tem uma natureza imutável. Entretanto, se um

determinado objeto não satisfaz o critério, ou seja, se da sua representação não foram

extraídas conseqüências necessárias imprevistas, não fica excluída a possibilidade de que o

ente fictício possa atender a esse critério. Desse modo, não configura contradição afirmar que

um objeto fictício possa ter conseqüências imprevistas e, portanto, possa ter natureza

imutável. Assim, conclui-se que “o predicado ‘ter uma natureza imutável’ não é um critério

para distinguir objetos fictícios de não-fictícios, já que não é contraditório que um objeto

fictício possa ter uma natureza imutável”. (Questões disputadas de metafísica e de crítica do

conhecimento, 2009, p. 213)

Nesse caso o argumento ontológico fica comprometido. Poder-se-ia afirmar que Deus

tem uma natureza imutável, pois da idéia de Deus decorrem propriedades necessárias não

previstas; entretanto, disso não se pode inferir que Deus não seja um objeto fictício, forjado

pelo pensamento, já que os objetos fictícios podem ter uma natureza imutável. Assim, outro

critério deve ser postulado para tornar válida a prova a priori cartesiana.

5.2.3 Composição necessária ou composição arbitrária

Seja qual for o critério encontrado, ele deve ser suficiente para distinguir as idéias

inatas, claras e distintas, das idéias fictícias. Idéias inatas representariam essências verdadeiras

e imutáveis. Já as idéias fictícias representariam essências fictícias.

Alguém poderia propor que a distinção entre uma idéia fictícia e uma idéia inata seria

que a idéia fictícia é complexa e a idéia inata é simples. Entretanto, essa opinião não se

sustentaria, pois as duas poderiam ser idéias complexas formadas por associação de outras

idéias. Contudo, uma idéia inata é clara e distinta e, se é complexa, é composta por idéias

claras e distintas vinculados por elos clara e distintamente percebidos, ou seja, por elos

necessários. Idéias fictícias, por outro lado, são idéias complexas, compostas por conexão

arbitrária de idéias. Por conseguinte, elas têm caráter obscuro, mesmo que representem entes

possíveis, reais. Como são idéias compostas por conexão aleatória, os objetos representados

dependem do pensamento. Em última análise, a distinção entre essência fictícia e essência

imutável é equivalente a distinção entre as idéias compostas e idéias forjadas. E o critério para

isso é identificar o modo de composição das idéias, que pode ser necessário ou arbitrário.

Entretanto, como podemos saber se a conexão entre as idéias, que compõem uma idéia

complexa, é necessária ou arbitrária? Esse era justamente o objetivo do critério das

conseqüências necessárias imprevistas. Logo, os mesmos problemas apontados na

determinação da função daquele critério reincidirão nesse.

Assim, a primeira parte da prova ontológica fica comprometida pelo fracasso do

critério cartesiano da distinção entre essências imutáveis e essências fictícias. A prova

cartesiana depende de que se infira da idéias de Deus, a essência real Dele. No entanto, não é

possível demonstrar que a idéia de Deus representa uma essência que não é imaginada pelo

pensamento, pois não é contraditório o fato de que os objetos fictícios, que são entes reais,

possam ter naturezas imutáveis. Sem um critério preciso que realize essa distinção, não temos

qualquer garantia que a essência de Deus é imutável.

5.3 A segunda parte da prova ontológica: a essência de Deus implica sua existência

A reflexão anterior teve como objetivo apresentar a primeira parte da prova cartesiana.

Nessa tarefa, o cerne de toda discussão foi verificar a natureza dos objetos matemáticos. E no

seio dessa, surgiu a noção de natureza imutável. O conceito de natureza imutável foi

fundamental para distinguir os objetos que dependem do pensamento (compostos ou

inventados pelo pensamento), dos objetos que, embora possam não ser encontrados na

natureza, não são forjados pelo pensamento. Descobriu-se a partir dessa distinção que, da

essência imutável não se pode inferir uma existência atual. Desse modo, não há contradição

em perguntar pela existência efetiva de um objeto cuja natureza é imutável.

Nessa reflexão, o objetivo fundamental será analisar as implicações da segunda parte

da prova cartesiana. A segunda parte da prova procura demonstrar que, diferente dos objetos

matemáticos, a essência imutável de Deus implica existência. Em outras palavras, o

argumento consistirá em provar que a existência é um atributo indispensável da essência de

Deus e, portanto, não pode ser distinguida da própria essência. Sendo uma propriedade da

essência, a existência é um predicado de Deus. Entretanto, surge a seguinte pergunta, “Mas

será a existência um predicado?”86

d) Isso porque foi assumido que o ente realíssimo possui todas as perfeições e que a existência

é uma delas;

(Questões disputadas de metafísica e de crítica do

conhecimento, 2009, p. 215)

Kant e os representantes da lógica contemporânea muito contribuíram na tentativa de

responder essa questão. Aliás, todas as discussões atuais acerca da plausibilidade do

argumento ontológico, giram em torno disso.

Nas Quintas Objeções, Contra a Quinta Meditação, Gassendi contraria Descartes

afirmando que a existência não é uma perfeição, mas aquilo que torna possível que algo tenha

perfeição. Descartes se defende assumindo que a existência é uma propriedade, ou seja, pode

ser predicado a alguma coisa. Ele não justifica essa postura, mas afirma que uma sentença do

tipo Deus é onipotente, tem a mesma estrutura lógica que a proposição Deus é existente.

Uma famosa afirmação de Kant de que a existência não é um predicado real parece se

dirigir à proposta cartesiana de que a existência é um atributo da essência de Deus. Entretanto,

essa discussão ocorre num momento mais avançado na crítica da legitimidade do argumento

ontológico. Landim propõe uma reconstrução kantiana do argumento ontológico:

a) Seja Deus um ente realíssimo, que, para fins da argumentação, se admite que é um ente

possível, ou seja, em que não há contradição;

b) Um ente realíssimo possui todas as perfeições;

c) Desse modo, um ente realíssimo possível existe de modo necessário, pois caso fosse

negado sua existência, esbarraríamos no principio de não-contradição;

86 O que diferencia a realidade objetiva da idéia de Deus e a realidade formal de Deus é a existência da coisa, presente na segunda e ausente na primeira. Sendo assim, conclui-se que na realidade objetiva, a imperfeição da existência da coisa representada, não retira nada da perfeição intrínseca ao conteúdo da idéia. Essa constatação gera um problema difícil na prova: “O que nos leva a dizer que a existência em si não é uma perfeição, mas uma posição sui generis, sem relação com a perfeição ou com a imperfeição da coisa”. (Ibid., p. 210).

e) E foi assumido também, que o ente realíssimo com todas as suas perfeições é um ente

possível;

f) Por conseguinte, negar a existência do ente realíssimo é o mesmo que negar uma das suas

perfeições, ou seja, trata-se de negar que o ente realíssimo possui todas as perfeições, o que

equivale a negar ou bem que se esteja analisando a noção de ente realíssimo, ou bem que o

ente realíssimo seja possível;

g) Não há nada a contrapor na primeira alternativa, pois o que esta sendo discutido não é o

conceito de ente realíssimo;

h) O problema esta na segunda alternativa. Tendo admitida a possibilidade do ente realíssimo,

o ato de negar uma das suas perfeições, a saber, a existência e, assumir ao mesmo tempo, que

o ente realíssimo seja possível e, que, portanto, possui todas as perfeições é ilógico;

i) Logo, se não é possível negar que o ente realíssimo existe, necessariamente ele deve existir.

Kant refuta o argumento ontológico do seguinte modo: o juízo X existe (ente realíssimo

existe) é uma proposição analítica ou sintética. Caso a proposição seja analítica, pelo

predicado “existência” nada foi agregado ao pensamento do objeto apontado pelo sujeito da

proposição. Então há duas possibilidades para analisar. Ou a atribuição do predicado

“existência” ao sujeito indica que o objeto é pensado como existindo apenas no pensamento e,

“existência” nesse caso, designa existência intencional (primeira hipótese) ou o predicado

“existência” não indica existência no pensamento, mas que algo é efetivamente real (segunda

hipótese). Nas palavras de Landim, “na primeira hipótese, dizer que X existe significa apenas

dizer que X é pensado como existente. Na segunda hipótese, ‘existência’ não significa

existência intencional, mas efetividade.” (Questões disputadas de metafísica e de crítica do

conhecimento, 2009, p. 217)

Entretanto, nesse caso, afirmar que X existe não é apenas proferir uma proposição

analítica, mas também tautológica. De acordo com Kant, a proposição tautológica é uma

proposição analítica onde a identidade dos conceitos é explícita e, portanto, não tem qualquer

utilidade.

Surgem as seguintes questões: porque no caso da proposição X existe é tautológica? O

argumento ontológico não teve a tarefa de distinguir o sentido do conceito de realidade do

sentido do conceito de existência? A sentença X existe não propõe algo ainda não dito pela

sentença X é real?

De que modo se poderia demonstrar que o ente realíssimo existe efetivamente, partindo

da premissa de que ele é um ente possível? Seria preciso pressupor que o ente realíssimo,

enquanto ente possível abarcasse todas as perfeições, inclusive a existência. Para que o

argumento tenha consistência é necessário demonstrar que a “existência” em questão não é a

intencional, mas efetiva. Nesse caso, “as proposições: (i) que o ente realíssimo é possível, (ii)

que ele contém a perfeição “existência” e (iii) que “existência”, nesse contexto, significa

existência efetiva seriam também suposições dessa prova”. (Questões disputadas de

metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 218)

Sendo assim, as premissas da prova suporiam, implicitamente, que as perfeições do

ente realíssimo estariam efetivamente realizadas, tendo em vista que a existência efetiva seria

uma perfeição contida nele. Desse modo, o argumento seria apenas uma tautologia, pois a sua

conclusão não passaria de uma repetição daquilo que foi pressuposto nas premissas. Para

Landim, “um ente possível, que contivesse a perfeição de existência efetiva, existiria

efetivamente. E é isto que as premissas do argumento ontológico parecem assumir. Por

conseguinte, a conclusão de que o ente realíssimo, enquanto possível, existe efetivamente não

é senão uma mera tautologia”. (Questões disputadas de metafísica e de crítica do

conhecimento, 2009, p. 218)

Por assim dizer, segundo Kant, o argumento ontológico não pode ser formado por

proposições analíticas. As conexões analíticas entre a noção de Deus e a noção de existência

provam apenas que se Deus é pensado, então ele é pensado como existente. Também, supor

na premissa da prova que o ente realíssimo é um ente possível e perfeito e, que, sendo assim,

todas as perfeições, inclusive a existência, estão efetivamente realizadas, não é válido. Essa

demonstração não agrega conhecimento, pois supõe na premissa o que deveria ser deduzido

na conclusão. Em outras palavras, nesse caso, o argumento pode ser, ou bem analítico ou bem

tautológico:

i) Argumento analítico – a “existência” significa existência intencional e, então, é somente

demonstrado que através do conceito de Deus, Deus é pensado necessariamente como

existente;

ii) Argumento tautológico – a “existência” significa existência efetiva (existência pressuposta

na premissa, ao invés de ser deduzido na conclusão).

Como é possível escapar da tautologia e provar a existência efetiva de Deus? Segundo

Landim, ao menos duas condições são estabelecidas para que o argumento ontológico tenha

como resultado silogístico a proposição que exprima a existência atual de Deus, configurando,

assim, um conhecimento de objeto e não apenas a explicitação do sentido de um conceito:

“(a) a proposição ‘Deus existe’ não é uma proposição analítica, isto é, é uma proposição

sintética, (b) a noção de existência envolvida na prova é a de existência efetiva”. (Questões

disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 219)

A proposição Deus existe não poderia ser uma proposição sintética a posteriori, “pois

seria então uma proposição contingente que poderia ser falsa e a conclusão do argumento

ontológico pretende ser uma proposição sempre verdadeira (necessária)”. (Questões

disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 219). Sendo assim, a

proposição Deus existe deveria ser sintética a priori, que expressaria um conhecimento

racional por intermédio da formação de conceitos ou um conhecimento discursivo por

conceitos. Entretanto, é impossível exibir Deus numa intuição pura do espaço e do tempo,

assim, a primeira hipótese é descartada. E, mais, “o conhecimento da existência de Deus não é

um conhecimento de tipo matemático, justamente por se tratar de um conhecimento sobre a

existência de um objeto”. (Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento,

2009, p. 219). Sendo assim, um conhecimento discursivo por conceitos é um conhecimento

das regras indispensáveis para a formação de objetos, e não pode ser também um

conhecimento sobre a existência dos objetos.

Por aquilo que o argumento ontológico procura demonstrar – a proposição Deus existe

– não pode ser analítica. Desse modo, a proposição Deus existe deveria ser sintética. De fato,

como proposição sintética, a sentença Deus existe ganharia caráter cognitivo. E sem incorrer

em erro, o conceito de existência poderia designar existência efetiva. Entretanto, a proposição

Deus existe não pode ser sintética a posteriori, nem sentença a priori, pelas razões acima

apresentadas. Esse é o grande impasse colocado por Kant ao defensor do argumento

ontológico.

Por assim dizer, se “existência” fosse uma nota característica do conceito Deus

teríamos uma conclusão analítica para o argumento ontológico. Contudo, a existência efetiva

de Deus não seria demonstrada. Se a “existência” implicada fosse à efetiva, a prova da

existência de Deus poderia ser demonstrada. Contudo, teríamos uma conclusão sintética a

posteriori – já que uma proposição sintética a priori não seria possível – que, como tal,

oferece uma conclusão de caráter contingente, não necessária.

Para tornar mais consistente sua abordagem, Kant analisará o sentido do termo

“existência” efetiva, através da explicação do termo “ser”. Segundo ele, o termo “ser” tem

dois significados:

i) Posição relativa: expressa pela cópula do juízo, cuja função é colocar em relação dois

conceitos, e;

ii) Posição absoluta: designa existência. Ao contrário da posição relativa, ele não lida com a

relação entre conceitos, mas a satisfação de conceitos por objetos. Em outras palavras, a

“posição absoluta” designaria a relação entre conceitos e objetos. Nesse caso, dizer X existe é

equivalente a afirmar que um objeto satisfaz efetivamente a todas as notas presentes na noção

expressa por X.

De acordo com a tese de Kant, os juízos Deus é onipotente e Deus é possui uma

estrutura lógica diferente por conta da aplicação do termo “ser” designando “posição relativa”

ou “posição absoluta”. Designado pelo verbo cópula do juízo, o termo “é” na sentença Deus é

onipotente, põe em relação dois conceitos, isto é, que o conceito “onipotente” é uma nota do

conceito “Deus”. Portanto, caso um objeto satisfaça a noção Deus, ele satisfará, inclusive, a

noção onipotente. Por outro lado, Deus é (existente) não relaciona conceitos, mais exprime

que o conceito Deus é satisfeito por um objeto que possui todas as perfeições presentes no

conceito Deus. Kant afirma:

Se eu digo “Deus é uma coisa existente” parece que eu estou exprimindo a relação de um predicado com o sujeito. Mas há uma impropriedade nesta expressão. Falando estritamente, ela deveria ser assim formulada: “algo de existente é Deus”. Em outras palavras, pertencem a uma coisa existente aqueles predicados que, tomados conjuntamente, nós designamos através da expressão “Deus”. Estes predicados são colocados relativamente ao sujeito, enquanto que a coisa nela mesma, com todos os seus predicados, é colocada absolutamente (Der Einzig mögliche Beweisgrund ..., p. 634; cf. Kant 17, apud Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 221).

Desse modo, podemos concluir que “existência” não é um predicado real, mas

gramatical, pois designa uma posição absoluta, que não acrescenta qualquer determinação ao

conceito do objeto expresso num juízo.

Para melhor explicitar o que foi mencionado acima, Landim propõe um exemplo

colocado por Plantinga. Tomemos como análise três conceitos, o conceito de leão, o conceito

de leão existente e o conceito de leão domesticado. Caso um objeto satisfaça a noção de leão

domesticado, obviamente satisfaz também, a noção de leão. Entretanto, é possível que um

objeto satisfaça a noção de leão e não satisfaça a noção de leão domesticado. Desse modo, a

noção “domesticado” é um predicado real, pois agrega algo à determinação do objeto

apontado por meio da noção leão. Entretanto, todo objeto que satisfaz ao conceito leão

satisfaz também ao conceito leão existente, pois existência não acrescenta qualquer

determinação ao conceito leão.

Conclui-se que “para qualquer conceito C, se o predicado gramatical “existência” é

acrescentado às notas de C, formando aparentemente um novo conceito C’, todo objeto que

satisfaz a C satisfará também a C’ e vice-versa. Por isso, “existência” não é um predicado

real”. (Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 222)

Para a lógica moderna, o conceito de existência possui um significado diferente, não de

predicado de primeira ordem, e contribui com a proposta kantiana: “existência” é um

predicado de conceitos ou de funções proposicionais e seria expresso pelo quantificador

existencial interpretado objectualmente. Ela funciona do seguinte modo:

X existe (no caso de ser um nome próprio) → é equivalente a dizer que a algo que é X

(no caso de tratar-se de um nome próprio) ou se X é uma descrição definida seria o mesmo

que afirmar que há um objeto que tem a propriedade de ser X e que nenhum objeto diferente

de X contém essa propriedade. Em outras palavras, demonstrar que X existe implica em

encontrar um objeto no domínio da teoria designado por X ou significa encontrar um único

objeto que tenha a propriedade X. A lógica moderna lida com provas de existência que

remetem a um domínio de objetos já dados. As provas de existência têm um caráter

puramente formal.

Transformar a noção de existência em um operador existencial é suficiente para

esclarecer o significado de existir? A proposta parece simplista. Dizer que existe algo que tem

a propriedade P não é mais do que dizer que há um objeto no domínio que tem a propriedade

P. Tal teoria não é mais do que supor objetos dados, que poderiam satisfazer ou não às

propriedades presentes num determinado conceito. Contudo, “o operador existencial

interpretado objectualmente não esclarece o significado de existir, mas apenas o significado

da expressão ‘um objeto dado satisfaz a uma determinada propriedade’”. (Questões

disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento, 2009, p. 223)

É evidente que a crítica de Kant versa sobre provas que sustentam que a existência é

um predicado de primeira ordem. O argumento ontológico cartesiano assume essa condição.

Contudo, não é fundamental ao argumento ontológico que existência seja equivalente a um

predicado de primeira ordem, pois ele procura demonstrar que para um único conceito, em

função dele mesmo, segue-se que ele tem uma instância. A crítica kantiana não afasta essa

possibilidade. A lógica contemporânea, por sua vez, nem ao menos consegue recuperar o

sentido de existência envolvido no argumento ontológico.

Landim conclui que “O argumento ontológico ainda não encontrou nem uma crítica

definitiva nem uma formulação convincente. É o que nos mostra a prova a priori cartesiana e

a sua crítica kantiana”. (Questões disputadas de metafísica e de crítica do conhecimento,

2009, p. 223)

6 O ARGUMENTO ONTOLÓGICO – A INCONSISTÊNCIA DA CONCEPÇÃO DE

DEUS COMO UM SER SUMAMENTE PERFEITO

Em seu artigo denominado De volta ao Argumento Ontológico, Edwin Curley critica a

versão cartesiana do argumento ontológico, mas por razões diferentes daquelas apresentadas

por filósofos gassendianos. A objeção de Curley não é que a existência não seja um

predicado, mas que é assumido nela, uma compreensão da natureza de Deus que não se

sustenta no seu interior. À luz da crítica de Leibniz, ele afirma que o argumento não pode

lograr êxito sem uma noção consistente de Deus: “[...] essa linha de objeção ao argumento

me permite manter a esperança de que alguma versão do argumento ontológico possa ser

bem sucedida se partir de uma concepção de Deus de algum modo diferente” (Analytica,

1997, p. 51). Possivelmente, uma versão espinosista do argumento escape dos problemas que

parecem abater a versão cartesiana do argumento ontológico.

Curley não é o único filósofo a participar desta esperança. De fato, nos último 25 anos,

o argumento ontológico foi retomado na filosofia analítica cristã da religião. E, embora alguns

filósofos da religião considerem o argumento muito inconsistente para que seja digno de

abordagem, existem muito defensores importantes que se dedicam a esse assunto.

Obviamente, alguns desses preeminentes defensores podem não simpatizar com o fato de que

se trata de uma versão espinosista do argumento que se revele consistente, pois que

provavelmente conceberiam o Deus de Espinosa como não sendo Deus.

6.1 A estrutura silogística da versão cartesiana do argumento ontológico

Para tratar o argumento ontológico apresentado por Descartes na Quinta Meditação,

Curley o divide em 04 premissas, analisando-as individualmente:

Sumário/Análise da versão cartesiana do Argumento Ontológico como aparece na Meditação Quinta. Ofereço a seguinte concepção: Primeira 1: Tenho idéias de coisas que, quer existam, quer não existam, e quer eu pense nelas ou não, têm naturezas imutáveis ou essências. (Analytica, 1997, p. 52).

Para sustentar esse argumento, Descartes recorre a um exemplo da matemática. Dentre

as diversas idéias que povoam meu pensamento, uma delas é a idéia de triângulo, que

reconheço haver nela uma determinada natureza, já que posso demonstrar geometricamente, a

partir da definição de triângulo, que ele deve possuir determinadas propriedades, como por

exemplo, que seus três ângulos são iguais a dois retos, mesmo que não soubesse existir

triângulos independentes do meu pensamento: “mesmo que tal figura não exista talvez e

nunca tenha existido em parte alguma do mundo fora de meu pensamento, é seguro que há

uma sua natureza, essência e forma determinada, imutável e eterna, que não foi inventada

por mim e nem depende de minha mente”. (Quinta Meditação, 2004, p. 135/5/)

Há duas razões para Descartes duvidar que existam triângulos fora do pensamento:

i) Nesse momento das Meditações, não há razão alguma que justifique a existência da

matéria, portanto, qualquer relação de semelhança estabelecida entre idéias e corpos é

inconsistente: “Na verdade, antes de indagar se tais coisas existem fora de mim, devo

considerar as suas idéias” (Quinta Meditação, 2004, p. 133/2/). A tarefa de Descartes é

estabelecer a existência de objetos materiais, demonstrando que Deus existe e que é de tal

modo que não consentiria que estivéssemos por demais enganados, concebendo que existem

objetos materiais quando não existem.

ii) Por compreender os objetos matemáticos, eles são idealizados, aos quais os objetos físicos

ordinários poderiam corresponder, no máximo, aproximadamente. De fato, um triângulo, por

exemplo, se define também, como uma figura plana de três lados, cujos lados são linhas retas.

Entretanto, numa réplica a objeção de Gassendi, Descartes rejeita a possibilidade de que

qualquer objeto passivo de observação possa atender tal definição, já que ele concebe que

nenhuma linha passiva de observação pode ser de fato reta. Um exame mais acurado nos

revela isso. Descartes poderia ter acrescentado que uma linha é um objeto de uma dimensão,

ou seja, tem comprimento, mas não possui largura ou profundidade, de acordo com a

definição dos Elementos da Geometria de Euclides. Contudo, Curley afirma que “Qualquer

objeto que satisfizesse a essa definição não seria observável”. (Analytica, 1997, p. 53)

Não obstante, a Primeira Premissa nos leva a admitir a idéia de que podemos tratar de

triângulos como possuindo certa natureza, mesmo se admitimos que pudesse não haver, de

modo efetivo, qualquer triângulo “isso fica patente no fato de que várias propriedades desse

triângulo podem ser demonstradas (...)” (Quinta Meditação, 2004, p. 135/5/). Segundo

Descartes, o triângulo tem uma natureza que é verdadeira e imutável, pois os teoremas

geométricos que podemos deduzir a partir do triângulo são verdades eternas, “Por

conseguinte, não foram inventadas por mim” (Quinta Meditação, 2004, p. 135/5/). Descartes

acrescenta que o triângulo possui a natureza verdadeira e imutável, não somente

independentemente de existirem ou não, mas também de se pensamos neles ou não “(...)

ainda que, anteriormente, de modo algum tenha pensado nelas (...)” (Quinta Meditação,

2004, p. 135/5/). As verdades matemáticas não são inventadas. Mas, ao contrário, se tratam de

verdades que se impõe ao nosso pensamento à medida que analisamos a natureza das coisas

nas quais pensamos. Prova disso é que, uma vez que concebemos uma idéia clara de um

triângulo e percebemos com clareza o que se deduz dessa definição, não podemos negar que a

soma de seus ângulos internos é igual a 180 graus “(...) e já demonstrei amplamente que tudo

o que conheço claramente é verdadeiro”. (Quinta Meditação, 2004, p. 136/6/)

Existem problemas concernentes à noção de natureza verdadeira e imutável,

apresentada por Descartes. Nas Primeiras Objeções, Caterus questionou se não haveria tanta

razão para concluir que a natureza de um leão existente implica a existência atual desse leão,

tanto quanto para concluir que a natureza de um ser perfeitíssimo implica a sua existência.

Descartes nega, em resposta, que um leão existente possua uma natureza verdadeira e

imutável, e nega, também, que algum ente composto possua uma natureza verdadeira e

imutável. Contudo, o trecho não esclarece em que sentido um triângulo inscrito num quadrado

poderia ser composto e um triângulo simples não ser. Muitos intérpretes de Descartes não

foram capazes de oferecer uma abordagem satisfatória do uso dessa noção em Descartes, e

talvez esse labor seja inútil. Contudo, embora esse possa ser o caso, Curley nutre simpatia

pela filosofia platônica da matemática, que considera presente implicitamente na Primeira

Premissa. Desse modo, se a filosofia platônica da matemática é correta, então a Primeira

Premissa possui algum sentido.

Segunda Premissa: Sempre que vejo clara e distintamente que alguma propriedade pertence à natureza verdadeira e imutável de algo acerca de que tenho uma idéia, essa propriedade realmente pertence a essa coisa. (Analytica, 1997, p. 54)

Pelo modo como Descartes desenvolve esse argumento na Quinta Meditação, parece

indicar já ter demonstrado que tudo quanto ele percebe clara e distintamente é verdadeiro, ou

seja, parece indicar o êxito dos argumentos em prol da existência e verdade nas Meditações

Terceira e Quarta.

Definição: Possuo uma idéia de Deus como um ser sumamente perfeito.

Para Descartes, um ser sumamente perfeito é o conteúdo de uma de suas idéias. Curley

utiliza o termo “definição”, pois julga que ele tenciona que essa formulação seja uma

elucidação de uma concepção que todos nós compartilhamos acerca de Deus. Ao desenvolver

seu argumento geometricamente, apresenta essa formulação na forma de uma definição.

Terceira Premissa: Existência é uma perfeição. É claro, esse é um aspecto do argumento que tem recebido muita atenção dos críticos, embora frenquentemente se dê o crédito por essa objeção a Kant e não a Gassendi. Atualmente me parece que esse passo não precisa de tanta defesa como pensei precisar em 1.978, mas deixo o desenvolvimento dessa idéia para mais tarde. (Analytica, 1997, p. 55)

Primeiro Lema: Conceber Deus como não existindo é conceber um ser sumamente

perfeito que não possui uma perfeição, “(...) isto é, um ente sumamente perfeito sem a

suprema perfeição” (Quinta Meditação, 2004, p. 141/8/), em razão da terceira premissa e da

Definição.

Quarta Premissa: Mas é contraditório supor que um ser sumamente perfeito possa não possuir uma perfeição. Dito de outra maneira: um ser sumamente perfeito deve possuir todas as perfeições. Me parece que Descartes considerava que isso era evidente. (Analytica, 1997, p. 55)

Segundo lema: Desse modo, a idéia (clara e distinta) de Deus que encontro no meu

espírito é a idéia de um ser, cuja natureza verdadeira e imutável inclui a existência, “(...) E

entendo não menos clara e distintamente que à sua natureza pertence a existência atual, o

existir sempre (...)” (Quinta Meditação, 2004, p. 137/7/), em função da Definição, do

Primeiro Lema e da Quarta Premissa. Conclusão: Deus existe, em razão da Segunda Premissa

e do Segundo Lema.

Nessa formulação do argumento, a Primeira Premissa não é mencionada como o

fundamento para qualquer dedução posterior. Assim, parece uma suposição desnecessária,

que não precisava ser considerada. Contudo, podemos considerar a Primeira Premissa como

fornecedora da noção de uma coisa ter uma natureza verdadeira e imutável,

independentemente de sua existência efetiva ou de a concebermos “(...) mesmo que tal figura

não exista talvez e nunca tenha existido em parte alguma do mundo fora de meu pensamento

(...)” (Quinta Meditação, 2004, p. 135/5/). Já que a Segunda Premissa pressupõe a existência

de naturezas verdadeiras e imutáveis, em que “(...) todas as coisas que percebo pertencerem

clara e distintamente a essa coisa deveras lhe pertencem (...)” (Quinta Meditação, 2004, p.

137/7/), a Primeira Premissa determina uma pré-condição para a veracidade da Segunda

Premissa, mesmo se não pudermos concluir que a Segunda Premissa se segue da Primeira

Premissa. A Primeira Premissa é também uma pressuposição de que a existência é uma

perfeição, e Descartes o admite ser “(...) depois que o (Deus) afirmei possuidor de todas as

perfeições, visto que a existência é uma delas (...)” (Quinta Meditação, 2004, p. 141/9/).

Portanto, a Primeira Premissa parece exercer uma função relevante no argumento, mesmo se

Descartes não deduz explicitamente coisa alguma por intermédio dela.

Curley propõe, a partir desse momento, avaliar o argumento construído desse modo.

Para tanto, três questões são formuladas:

i) Se a existência realmente é uma perfeição;

ii) Se a definição de Deus apresentada por Descartes é consistente, e;

iii) Se é realmente possível, como Descartes supõe, que um ser reúna todas as perfeições.

6.2 A existência entendida como uma perfeição

Para Gassendi, existência não é uma perfeição, tal como proposto por Descartes. São

essas as sua palavras de contestação:

que existência não é uma perfeição em Deus nem coisa alguma; é aquilo sem o que nenhuma perfeição pode ser apresentada... o que não existe não tem perfeições nem imperfeições ... (a) existência (do que existe) é aquilo em virtude do que tanto a coisa ela mesma quanto suas perfeições são existentes... se uma coisa não tem existência, não dizemos que ela é imperfeita, ou destituída de uma perfeição, mas em vez disso dizemos que é nada. (AT VII, 323, apud Analytica, 1997, p. 56)

Em sua resposta, Descartes não torna evidente que está dirigindo-se à objeção

colocada por Gassendi. A réplica de Descartes indica que Gassendi tenha objetado que a

existência seja uma propriedade, ao invés de objetar que existência seja uma perfeição, ou

seja, uma propriedade de um tipo particular. Para Curley, “(...) o que Gassendi diz acerca da

existência de fato o compromete com a negação de que a existência seja uma propriedade”

(Analytica, 1997, p. 56). Portanto, a resposta de Descartes responde a objeção de Gassendi.

A objeção de Gassendi implica que a existência de uma coisa é uma condição

necessária para predicação a ela, tanto para afirmar que a coisa possui certa propriedade,

quanto para negar que tenha certa propriedade. Caso nunca houvesse existido rosas, de tal

modo que não houvesse rosas, não poderíamos emitir juízo algum acerca delas, tão pouco

afirmar que são flores. Evidentemente que, se jamais houvesse existido rosas, teríamos poucas

condições para falar qualquer coisa acerca delas, e mesmo classificá-las como um tipo de flor.

Entretanto, uma teoria biológica possibilita falar acerca de propriedades de espécies que ainda

não existem, e que podem não virem a existir, embora pudessem vir a existir por intervenção

de acerto genético.

Curley reconhece que Descartes não tenciona tratar de rosas por esse viés, já que não

considera a possibilidade de que tenhamos um conhecimento claro e distinto de sua essência.

Descartes, pelo contrário, retoma o argumento pelo viés das figuras geométricas, reiterando o

conceito presente na sua Primeira Premissa: “A menos que você esteja sustentando que a

geometria como um todo também é falsa, você não pode negar que se podem demonstrar

muitas verdades dessas essências; e visto que elas são sempre as mesmas, é correto chamá-

las de imutáveis e eternas”. (AT VII, 381, apud Analytica, 1997, p. 57)

Alguém poderia objetar que Descartes direciona essa resposta, não na afirmação de

Gassendi, de que existência não é uma perfeição, mas na afirmação de que não existem

naturezas imutáveis. Curley defende que há uma relação muito próxima entre essas duas

afirmações. Se existem naturezas verdadeiras e imutáveis de figuras geométricas, como, por

exemplo, o triângulo, cuja existência atual não é assegurada, então se pode predicar coisas

delas sem postular sua existência. Assim, a objeção de Gassendi concernente a considerar a

existência como uma propriedade perde seu valor.

De fato, mesmo que triângulos possam não existir, eles não podem ser considerados

como um nada, pois eles possuem uma natureza que podemos conhecer, “são algo e não um

mero nada” (Quinta Meditação, 2004, p. 137/6/). E, em função dessa natureza, podemos

considerá-los como sendo mais ou menos perfeitos. Além do mais, uma das coisas que

podemos conhecer acerca deles é que não se tratam de seres sumamente perfeitos, haja vista

que é parte de sua natureza ser objetos extensos. Vale salientar que qualquer objeto extenso é

divisível e, portanto, é imperfeito, “(...) pois é algo evidente por si que constitui maior

perfeição não poder ser dividido do que poder sê-lo” (Segundas Respostas, 2010, p. 157). No

devido tempo, essa articulação de Descartes conduzirá à afirmação de que o ser sumamente

perfeito deve ser um ser não-extenso, puramente espiritual. Esse raciocínio permite Descartes

rejeitar outros concorrentes argumentos ontológicos tais como a ilha paradisíaca sumamente

perfeita, com cuja existência Gaunilo acusava Anselmo estar comprometido.

Curley propõe que o trecho que mais clarifica a noção de Descartes de uma perfeição é

o Axioma VII da sua Exposição Geométrica do argumento das Meditações no fim das

Segundas Respostas: “A vontade se dirige voluntária e livremente (pois isto é de sua

essência), mas no entanto de modo infalível, ao bem que lhe é claramente conhecido. Daí por

que, se ela chega a conhecer quaisquer perfeições que não possua, entregar-se-á

imediatamente, caso estejam ao seu alcance”. (Segundas Respostas, 2010, p. 172)

Com base nesse texto, pode-se estabelecer a seguinte definição de perfeição:

Uma perfeição é uma propriedade de tal modo que: a) é melhor para um indivíduo ter essa propriedade do que não a ter; b) se o indivíduo tem essa propriedade, e se a propriedade é suscetível de graus, é melhor para o indivíduo ter a propriedade em um grau mais alto do que a ter em um grau mais baixo. (Analytica, 1997, p. 59)

A princípio é aparentemente aceitável conceber, desse modo, algumas das

propriedades que assumimos como exemplos de perfeição. “Poder” é uma perfeição, desse

modo, é melhor, para aquele que é um prospectivo possuidor do poder, tê-lo do que não o ter,

e, é melhor ampliá-lo do que diminuí-lo. Tal como as pessoas tendem a pensar, quando

sustentam que Deus, se é sumamente perfeito, então deve possuir poder e deve tê-lo em mais

alto grau. Outro exemplo é o do conhecimento. De acordo com Curley, há precedência

histórica para compreender perfeição nesses moldes. Mesmo que Anselmo não defina Deus

por meio das mesmas palavras usadas por Descartes, a definição “(...) um ser do qual não é

possível pensar nada maior” (Proslogion, 1973, p. 108) equivale àquela proposta por

Descartes. Anselmo, por assim dizer, antecipa a noção de perfeição que podemos encontrar

em Descartes, ao declarar no capítulo V do Proslogion que Deus é “tudo aquilo que é melhor

que exista do que não exista”. (Proslogion, 1973, p. 110)

Mas, e no caso da existência? É tarefa difícil decidir se, nessa análise de perfeição,

existência é uma perfeição. Será melhor, no caso de um existente prospectivo, existir do que

não existir? Talvez o tipo de existência que está em prospectiva deva ser considerado. Para

clarear esse assunto, Curley menciona uma estória no Recursos de Ouro da Dogmática de Al

Ghazali:

Imaginemos uma criança e um adulto no Paraíso, e imaginemos que ambos morreram na Fé Verdadeira, mas que o adulto tem um lugar mais alto do que o da criança. E a criança perguntará a Deus: “Por que destes a esse homem um lugar mais alto?” e Deus responderá: “Ele realizou muitas obras boas”. Então a criança dirá: “Por que me deixastes morrer tão cedo, de modo a tornar impossível que eu fizesse o bem?” Deus responderá: “Eu sabia que você cresceria como um pecador, por isso era melhor que morresse criança”. Surge, então, um rogo dos amaldiçoados das profundezas do inferno: “Por que, ó Senhor, não nos deixastes morrer antes de nos tornarmos pecadores?” (Introdução de Simon van den Bergh à sua tradução de Tahafut AL-Tahafut de Averroes, London: E.J.W.Gibb Memorial Trust, 1978, apud Analytica, 1997, p. 61)

A questão colocada pelos amaldiçoados supõe que nascemos inocentes. Mas caso

admitissem a doutrina do pecado original, poderiam em vez disso, questionar: “Por que, ó

Senhor, não nos poupastes de termos nascido?”

À luz desses argumentos, não parece razoável que a existência seja uma perfeição.

Contudo, esses argumentos são estranhos aos argumentos apresentados por Gassendi para

negar que a existência seja uma perfeição. Para Curley, “se aceitamos essa linha de objeção à

Premissa 3, podemos nos ver objetando, com argumentos similares, a alguns dos nossos

paradigmas de perfeição”. (Analytica, 1997, p. 61)

Será necessário que seja sempre melhor ter conhecimento do que não o ter, e que é

sempre melhor tê-lo mais do que menos? Afirma-se que nos Koheleth Eclesiásticos (aka, o

Padre) declara que “na medida em que cresce a sabedoria, cresce a exasperação; aumentar o

aprendizado é aumentar a dor de cabeça”. Koheleth é um personagem que pensa que tudo é

vão. Sem dúvida, em algumas ocasiões o conhecimento é algo que preferimos não ter. Para

ilustrar, Curley propõe o seguinte exemplo: Imagine que alguém esteja em seu leito de morte

e, que, seu melhor companheiro, repleto de ressentimento, confesse que há algum tempo atrás,

o traiu, com o objetivo de adquirir o perdão dele. Talvez a pessoa desenganada, teria preferido

morrer sem ter o conhecimento dessa decepção.

Outro exemplo problematiza a noção do “poder” entendido como uma perfeição, a

partir do critério de perfeição desenvolvido anteriormente. No que tange a ciência da

negociação, existem ocasiões em que seria melhor para quem negocia não dispor de poder.

Caso ele tenha condições de demonstrar suas limitações em atender os apelos colocados pela

outra parte, então possui condições para diminuir os apelos. Suas condições de resistir às

exigências podem favorecer um melhor negócio do que se seu “poder” fosse mais amplo.

Todavia, Curley reconhece possíveis problemas nessa análise. Sua conclusão nesse

assunto é modesta. Para ele, a dificuldade talvez não seja que existência não é uma perfeição,

mas que a definição de perfeição apresentada, no que tange a Descartes, seja muito simples.

Desse modo, seria preciso analisar com mais cuidado para não incorrer em contradição, seja

que existência é uma perfeição, seja que conhecimento e poder são perfeições. Todavia,

qualquer que seja o rigor de análise que justifique o status de conhecimento e de poder como

perfeições, será suficiente para justificar o status de existência como perfeição.

6.3 A definição de Deus

Para determinadas concepções, não existe definição de Deus que seja plausível. Pode-

se pensar, por exemplo, que o termo “Deus” é um nome próprio e, que, desse modo, não

devemos levar em conta o sentido de qualquer nome como sendo passível de análise em

termos de expressões descritivas que sejam compatíveis ao respectivo nome. Mas seja lá o

que for verdadeiro acerca de nomes em geral, afigura-nos equívoco para se afirmar a respeito

de “Deus”. Existe uma inclinação acentuada entre teólogos e filósofos de clarificar o que

entendem pelo termo “Deus”, dispondo de uma descrição ou outra, e de se reportar o suposto

nome como equivalente à descrição em questão. E como na verdade Deus, ao que tudo indica,

não pode ser manipulado empiricamente, de maneira a nos conferir condições de esclarecer

convincentemente a referência do termo “Deus”, isso parece inevitável.

Uma objeção a esse procedimento, que provavelmente Descartes tenha levado em

consideração ao produzir as Meditações, é aquela desenvolvida por Tomás de Aquino à

versão anselmiana do argumento ontológico. Para Aquino, alguém que ouve o termo “Deus”

pode compreender esse termo de maneira totalmente diferente como Anselmo concebe.

Tomás acrescenta que algumas pessoas têm afirmado que Deus é um ser corpóreo, afirmação

essa, inconsistente com a definição de Deus apresentada por Anselmo, como um ser do qual

não é possível pensar nada maior. Aliás, Tomás não propõe nenhuma definição de Deus que

seja preferível a de Anselmo. Diante das pessoas que afirmam que a existência de Deus é

coisa evidente, Tomás sustenta que a princípio não é coisa evidente para nós o que significa

ser Deus e, que, precisamos antes, compreender a natureza de Deus ao levar em conta seus

efeitos.

Curley revela simpatia por Anselmo nessa questão. Argumenta ele que Tomás

considera que é possível demonstrar a existência de Deus, embora de modo diferente que

Anselmo. E propõe seus argumentos em defesa da existência de Deus antes mesmo de

construir sua teoria sobre a natureza de Deus. A objeção feita a Tomás de Aquino é que não se

pode apresentar qualquer prova da existência de Deus, sem que se disponha de alguma noção

prévia da natureza do ser cuja existência intenta-se provar. É necessário ter alguma

concepção, mesmo que provisória, da natureza de Deus, para saber que o argumento

apresentado em defesa da existência de Deus tem alguma inclinação a estabelecer a existência

de Deus. Tomás de Aquino conclui o seguinte, em quatro de seus cinco argumentos: “Deve

haver (uma primeira causa de mudança, alguma primeira causa, uma causa da bondade e

perfeição das coisas, uma causa que direcione as coisas em natureza para suas metas). E isso

é o que todos compreendem por (pelo nome) “Deus”. (S.T. I, 2, 3, apud Analytica, 1997, p. 64)

Desse modo, Tomás de Aquino reconhece que todos nós compartilhamos uma noção

do que entendemos pelo nome de Deus (Ser). De fato, não seria possível discutir se Deus

existe, e muito menos tentar demonstrar sua existência, sem que houvesse alguma

compreensão da natureza do ser sobre cuja existência se está discutindo. Essa consideração

está pressuposta no argumento de Anselmo. É imprudente asseverar que possuímos uma

compreensão apropriada da natureza de Deus. Aliás, é opinião corrente que Deus é, de certo

modo, incompreensível. Mas Curley faz uma ressalva, “Mas o que isso significa (ou sugiro,

deveria significar) é que há muito sobre a natureza de Deus que não compreendemos, e não

que não temos uma concepção de Deus”. (Analytica, 1997, p. 64)

Sendo assim, admitida a possibilidade de possuirmos alguma noção da natureza de

Deus, a definição elaborada por Anselmo é razoável. Existe, antes mesmo de Anselmo, uma

definição similar nos padres da Igreja. Charlesworth, por exemplo, em seu comentário de

Anselmo, menciona dois trechos de Agostinho que se comparam em espírito, da definição

desenvolvida por Anselmo:

Alma alguma jamais foi ou será capaz de conceber alguma coisa melhor que Vós, que sois o sumo e maior bem. (Confessions, VII, iv, apud Analytica, 1997, p. 64). Se queremos evitar a blasfêmia, devemos compreender, ou pelo menor crer, que Deus é o ser absolutamente soberano, e aquele do qual nada melhor pode ser ou ser

pensado. (On the Morals of the Catholic Church and of the Manichaeans, II, xi, 24, apud Analytica, 1997, p. 64)

Outro padre da Igreja que merece ser lembrado é Tertuliano:

Na medida em que as limitações humanas podem definir Deus, esta é a minha definição de sua natureza, uma definição que só será aceita pelo senso geral do ser humano: Deus é o ser soberano, que existe na eternidade, que não nasceu, que não foi criado, que não tem começo, que não tem fim. Essas são as condições a serem atribuídas à eternidade que torna Deus o ser supremo... É uma questão de acordo geral, pois ninguém negará que Deus é o ser supremo, a menos que um homem possa se ver declarando que Deus é um ser inferior, o que seria roubá-lo da qualidade de divindade e negar assim sua existência. (Henry Bettenson, The Early Christian Fathers, Oxford UP, 1956, p. 104, apud Analytica, 1997, p. 65)

A negação de que Deus possa ser concebido como inferior muito se aproxima de sua

definição como um ser do qual não é possível pensar nada maior.

No caso da definição apresentada por Anselmo ser plausível, e admitida que a

definição elaborada por Descartes seja compatível com ela, conclui-se que a definição de

Descartes é plausível. Para Curley, “as duas definições são equivalentes, que um ser em

relação ao qual nada de superior pode ser concebido deva ser sumamente perfeito”

(Analytica, 1997, p. 65). Obviamente, se não fosse sumamente perfeito, ou seja, se carecesse

de alguma perfeição, então não seria um ser com relação ao qual nada superior poderia ser

pensado. Pensar algo maior é simplesmente incluir a perfeição que falta. Não há possibilidade

de conceber um ser superior diante daquele que é pensado como sumamente perfeito. No caso

da definição de Descartes ser equivalente a de Anselmo, segue-se daí que Anselmo estabelece

o fundamento para a definição de Descartes na tradição filosófica/teológica na qual se insere,

como configuram-se todos aqueles que definem Deus a maneira anselmiana.

Existe ainda outra forma de tratar esse assunto; para tanto, é necessário fazer uma

reflexão de Tomás de Aquino para auxiliar no entendimento da razão de Descartes proceder

desse modo. Tomás não afirma que não possuímos qualquer compreensão da natureza de

Deus. Ele propõe somente proceder primeiro em se estabelecer a existência de Deus para só

depois responder o que Ele é. Em outras palavras, na Summa, após postular a existência de

Deus, ele se vê envolvido com diversas perguntas acerca da natureza de Deus, argüindo que

Deus é perfeitamente simples, imutável, eterno, onisciente, onipotente, entre outros atributos.

Parece que ele não assume essa relação de atributos como sendo uma definição de Deus.

Contudo, caso a definição de Deus fosse possível, sem dúvida haveria alguma conexão entre

nossa definição e esses atributos.

Descartes, na Primeira Meditação, havia apresentado a noção de Deus, definindo-o

como um ser que tem pelo menos quatro atributos. Descartes não relaciona os atributos numa

única passagem, entretanto, à luz dos parágrafos finais da Primeira Meditação, temos uma

relação de atributos que Descartes procura aferir a Deus:

(1) Meu criador, onipotente, sumamente bom e uma fonte soberana da verdade

(cf. Primeira Meditação, 2004, p. 29/9/ e 31/12/)

Ao analisar a idéia de Deus, Descartes na Terceira Meditação, elabora mais duas

relações de propriedades de Deus:

(2) Supremo, eterno, infinito, (imutável), onisciente, criador de todas as que

estão fora dele;

(3) Substância infinita, independente, (eterna, imutável), sumamente inteligente

e sumamente poderosa e pela qual eu mesmo fui criado e tudo o mais

existente. (cf. Terceira Meditação, 2004, p. 81/16/ e 91/24/)

As listas, cujas passagens diferem na versão francesa, são cinco ao todo. É

fundamental observar que não há duas listas que sejam iguais, embora coincidam umas com

as outras em determinados aspectos. As listas ampliam-se gradativamente; contudo,

propriedades relacionadas na primeira lista nem sempre são mencionadas até as últimas. Por

exemplo, a primeira lista inclui a bondade de Deus, mas nenhuma das últimas apresenta essa

propriedade. A definição de ser sumamente perfeito surge pela primeira vez na Terceira

Meditação: “Essa idéia de um ente sumamente perfeito e infinito é, digo, verdadeira ao

máximo”. (Terceira Meditação, 2004, p. 93/28/)

Curley pensa que existe um propósito por trás disso. Segundo ele, Descartes utiliza as

listas como uma via insuficiente de clarificar a idéia de Deus, embora seja importante para

apresentar sua definição. As listas são insuficientes por dois motivos:

i) Se Deus é infinito, ou seja, no caso de possuir infinitos atributos, jamais uma lista finita de

atributos satisfará apropriadamente a natureza de Deus. Nota-se que Descartes concebe que

Deus possui infinitos atributos: “E não importa que eu não compreenda o infinito ou que em

Deus haja inúmeras outras coisas que não posso de modo algum nem compreender, nem

talvez atingir pelo pensamento”. (Terceira Meditação, 2004, p. 93/30/)

ii) No caso de Deus existir, não há certeza de que ele possui todos os atributos relacionados na

lista. Consideremos a hipótese de estarmos corretos em atribuir a onipotência àquele que nos

criou, mas que estamos enganados ao presumir que tal ser é bondoso. Pude verificar ao longo

de minha existência que posso ser ludibriado. A pergunta que surge é: há razão do fato de

Deus ser sumamente bom e fonte de toda verdade que ele crie um ser que pratique o erro?

Caso notemos uma conexão necessária entre diversos atributos, ou seja, perceber que se segue

do fato de Deus ser onipotente e meu criador que ele é bondoso, então essa pergunta é

impertinente. Entretanto, essa conexão é notada a partir de uma análise, e não no primeiro

momento. A princípio, o fato de acreditar termos sido criados por um ser onipotente, não

garante que ele seja bondoso. A compreensão da conexão necessária entre onipotência e

bondade demanda labor filosófico.

O papel fundamental das listas é que elas apontam para a fórmula geral que as

substitui. Cada atributo descrito nessas listas é uma perfeição. Trata-se de realizar uma

generalização com base nas listas e postular que por Deus referimo-nos a um ser sumamente

perfeito, aquilo para quem não falta qualquer perfeição. Admitida a idéia que Deus reuni em

si infinitos atributos, não somos capazes de oferecer uma relação que esgote esses atributos;

contudo, dispomos de um princípio para verificar se determinados atributos são propriedades

adequadas a serem referidas a Deus, a saber: se determinados atributos são perfeições, então

elas devem ser aferidas a Deus, caso não sejam, não compõem a lista dos atributos de Deus.

Logo, “a fórmula articula o conceito que inadequadamente tentávamos expressar com nossas

listas” (Analytica, 1997, p. 68). E, ao fazê-lo, pode auxiliar a clarificar por que

espontaneamente concebemos todas as perfeições reunidas em um único ser. A definição de

Deus como um ser sumamente perfeito indica que Deus possui todas as perfeições, não

algumas. Em vez de procurarmos clarificar nossa idéia de Deus como Descartes faz no início

de sua reflexão, relacionando propriedades, deveríamos assumir a fórmula geral como uma

expressão mais apropriada de nosso conceito impensado.

Curley privilegia, portanto, uma propriedade em especial, considerando a perfeição

suprema de Deus seu atributo primordial. Partindo desse princípio, ele discorda de Jean-Marie

Beyssade que em seu artigo (A idéia de Deus e as provas de sua existência - Cambridge

Companion to Descartes87

87 Discutido no próximo capítulo.

) admite a transição gradual na Terceira Meditação de uma

elucidação da idéia de Deus pela enumeração de suas perfeições para a sua elucidação por

intermédio de uma fórmula geral, mas que considera, contudo, que:

Nenhuma redução a um predicado único é possível. Nem a onipotência nem a perfeição podem desempenhar este papel. Deus não tem nenhum “atributo principal”, precisamente porque a absoluta unidade de Seus atributos acarreta que cada atributo, através de sua relação com todos os outros atributos, seja identicamente infinito, a sua própria maneira. (Cambridge Companion to Descartes, 2009, p. 230).

Curley sustenta que Descartes tenciona uma redução a um único predicado e, também,

que perfeição pode exercer essa função, embora tenha dúvidas em caracterizar perfeição como

a propriedade primordial de Deus. De acordo com os Princípios I, 54, o pensamento ocupa o

papel de ser o atributo primordial de Deus, pois temos “uma idéia clara e distinta de uma

substância não-criada que pensa e que é independente (...)” (Princípios da Filosofia, 1997,

Parte I, Artigo 54, p. 46). Entretanto, a definição de Deus elaborada por Descartes na sua

Exposição Geométrica sugere que perfeição possui uma função privilegiada. A definição

dessa obra diz: “A substância que entendemos ser soberanamente perfeita, e na qual não

concebemos nada que encerre qualquer falha, ou limitação de perfeição, chama-se Deus”

(Exposição Geométrica, VIII, 162, apud Analytica, 1997, p. 69)

No que tange a essa definição, declara Beyssade:

Não permite ao entendimento humano construir a idéia de Deus; não é uma matriz que gera um conjunto infinito de possíveis definições da natureza divina, cada qual partindo de uma dada perfeição que é aumentada ou elevada até o infinito. Em vez disso, é um tipo de crivo ou filtro que deixa passar qualquer coisa que pertença a nosso entendimento (intelligere) da perfeição suprema e elimina qualquer coisa que seja concebida (concipere) como um defeito ou limitação daquela perfeição. (Cambridge Companion to Descartes, 2009, p. 230).

Nesse ponto, Curley compartilha da mesma opinião de Beyssade. A ilustração do crivo

ou filtro é importante. Em razão da limitação do entendimento humano e da infinitude de

Deus, que implica que Deus tem infinitos atributos, conforme aponta Espinosa, não podemos

deduzir, à luz da definição de Deus, como um ser perfeito, uma relação exaustiva das

propriedades divinas. Contudo, tal definição nos permite (no máximo) estabelecer, em

qualquer caso singular, se um determinado atributo deveria compor a relação. Dispondo da

informação de que um atributo particular é uma perfeição, podemos concluir que Deus o

possui e, o possui no grau mais elevado. Dispondo da informação de que um atributo

configura defeito, podemos concluir que Deus não o possui. A perfeição exerce uma função

especial, pois nenhuma outra propriedade de Deus possibilita esse critério. Sendo assim,

Curley não concorda com Beyssade na declaração de que, “nas diversas provas da existência

de Deus nunca encontramos um predicado único emergindo como dominante”. (Cambridge

Companion to Descartes, 2009, p. 230)

Curley afirma também que a perfeição estabelece razão para conceber que existe um

nexo necessário entre os inúmeros atributos divinos que, sem um rigor analítico, tendemos

aferir a Deus. Assumido que Deus é, de maneira primordial, um ser sumamente perfeito, logo

ele não pode ser tanto onipotente, quanto mau. Desse modo, além de ser um critério, que

possibilita distinguir, entre os candidatos a atributo divino, aqueles que compõem e aqueles

que não compõem a natureza de Deus, a noção de Deus como um ser sumamente perfeito é o

elemento que conserva esses atributos reunidos, que nos possibilita conceber todos como

atributos de único ser. Assim, “eu veria a perfeição de Deus como dando conta da unidade de

seus atributos” (Analytica, 1997, p. 71). Através dela, podemos compreender o conceito de

que os atributos de Deus são basicamente idênticos, cada qual “de sua própria maneira”, em

razão de entender de que existe uma conexão necessária entre eles, de tal modo que um não

pode existir na ausência do outro. Eles não são desse modo, “realmente distintos”, uns em

relação aos outros, conforme o vocabulário cartesiano expressa. É a idéia de Deus como

sumamente perfeito que possibilita toda essa discussão ser compreensível.

6.4 Um ser sumamente perfeito entendido como aquele que agrega todas as perfeições

Essa indagação é apresentada por Curley no DATS (Descartes Against the Skeptics).

Entretanto, ele não abordou a questão de modo suficiente como nesse artigo julga necessário.

Ele demonstrou sua tendência em aderir à objeção de Leibniz, em que, caso o argumento

ontológico desenvolvido por Descartes seja válido como uma demonstração de sua conclusão,

deve ser complementado por uma prova de que a definição cartesiana é racionalmente

coerente. Na ocasião, pontuou que seria possível que existissem algumas dificuldades em

relacionar alguns dos atributos divinos. Contudo, não se dedicou em indicar quais eram esses

problemas. Ainda naquela ocasião, ele concluiu que, caso constatássemos que alguns dos

atributos que irrefletidamente aferíamos a Deus não compatibilizavam com outros atributos

que irrefletidamente aferimos a ele, poderíamos recuar definindo Deus como o ser que agrega

todas as perfeições compossíveis, contudo, tal definição deixaria nossa idéia de Deus

indefinida. O critério desenvolvido implicava que, se decidíssemos que duas perfeições na

nossa relação de prima facie perfeições divinas fossem inconciliáveis, então disporíamos de

duas maneiras razoáveis de tornar explícita a noção da perfeição de Deus. Para melhor

compreensão desse critério, chamamos duas imperfeições inconciliáveis de A e B.

Suponhamos que o fato de Deus conter todas as perfeições compossíveis resultaria que ele

contêm A e todas as outras prima facie perfeições, mas não B. Ou o contrário, suponhamos

que o fato de conter todas as perfeições compossíveis resultaria que contêm B e todas as

demais prima facie perfeições, mas não A. Tais explicações da natureza de Deus pretendem

tornar explícito o conceito de Deus como um ser que tem todas as perfeições compossíveis.

Apresentada desse modo, a respectiva definição não nos proporcionaria uma noção definida

de Deus. No seu artigo, A idéia de Deus e as provas de sua existência, Beyssade tentou

solucionar esse problema. Segundo ele, para dirimir a questão sobre a compossibilidade dos

atributos de Deus, é preciso admitir que nem toda categoria de ser desfruta de status

equivalentes. Caso tivessem

seria impossível ter certeza de que não poderia surgir alguma perfeição ulterior que fosse incompatível com aquelas descobertas até então, solapando assim a estabilidade lógica do conjunto. Mas as diversas categorias de ser não têm estatuto equivalente. A extensão é excluída da natureza divina por causa de sua divisibilidade (Segundas Respostas, 2010, p. 157; Princípios da Filosofia, Parte I, Artigo 23, p. 35); somente a categoria do pensamento é um local de residência adequada para a infinitude positiva ou suprema perfeição (..) Dizer que Deus é uma mente ou um espírito não é de maneira alguma o mesmo que cancelar a distância entre o infinito incompreensível e eu mesmo; é simplesmente reconhecer que a substância pensante, substantia cogitans, não é originalmente algo criado e dependente, mesmo embora o meditador comece por encontrar, no Cogito, uma tal substância que é de fato uma coisa incompleta e dependente... A consistência e coerente unidade dos atributos divinos não são nunca, portanto, reveladas na intuição de uma natureza simples, mas são confirmadas pela experiência de nossa natureza finita como coisas pensantes (...) Por haver uma lacuna infinita entre nós e Deus, a unidade que experimentamos em nosso interior é limitada e frágil, ao passo que a unidade que vislumbramos em Deus, e na idéia de Deus, é absoluta e além da nossa compreensão. Mas assim como há uma semelhança entre nossa mente e a mente divina, do mesmo modo, quando experimentamos em nosso interior uma unidade entre várias diferentes faculdades, isto nos fornece uma representação do que é, em Deus, a absoluta simplicidade de um único ato, e desta maneira somos assegurados da completa consistência da nossa idéia de Deus. (Cambridge Companion to Descartes, 2009, 231-233).

Essa longa citação de Beyssade não é gratuita. Curley pretende, a partir dela, oferecer

uma síntese justa de seu argumento.

Embora tencione oferecer uma síntese justa da solução proposta por Beyssade para a

questão, ele reconhece que ela não bastaria. Ele reconhece ainda, que até certo ponto foi

responsável por isso, pois em DATS (Descartes Against the Skeptics) não apresentou o

problema explicitamente como deveria. A dificuldade não é que “seria impossível ter certeza

de que não poderia surgir alguma perfeição ulterior que fosse inconciliável com aquelas

descobertas (...)” (Cambridge Companion to Descartes, 2009, p. 231). No caso de ser essa a

dificuldade, a proposta de Beyssade poderia dar conta do problema. Contudo, o problema é

que já existem entre as perfeições conhecidas, algumas prima facie incompatibilidades, que

não dispomos de solução. Curley apontou isso em DATS (Descartes Against the Skeptics), ao

referir-se a um artigo seu acerca de Espinosa, no qual procurou indicar que existe uma

incompatibilidade entre a perfeição de Deus e sua personalidade. No entanto, o artigo

consagrado a Espinosa não aborda esse problema no contexto do sistema cartesiano e,

também, o exemplo pode não ser o mais adequado para o que aspiramos. Acrescenta que,

embora Descartes conceba Deus como uma pessoa, tal atributo nunca compôs qualquer das

listas dos atributos divinos nas Meditações.

Descartes não introduz a idéia de Deus pela primeira vez na Terceira Meditação.

Antes mesmo, na Primeira Meditação, Descartes apresenta uma lista de atributos divinos: um

Deus que pode todas as coisas e me criou tal qual existo (...) sumamente bom (Primeira

Meditação, 2004, p. 29/9/); e é fonte soberana da verdade (Primeira Meditação, 2004, p.

31/12/). Ainda na Primeira Meditação, Descartes esboçou uma dúvida no que tange a

consistência desses atributos. Pois se Deus reúne em si, todos esses atributos, como é possível

que eu, sua criatura, cometa enganos? Nas palavras de Descartes “Ora se criar-me para que

sempre erre repugna à sua bondade, parece que a essa bondade deva também repugnar a

permissão para que eu erre às vezes (...)” (Primeira Meditação, 2004, p. 29/9/). A princípio,

sem uma análise rigorosa, supor que Deus seja onipotente e meu criador, não implica que ele

seja sumamente bom ou fonte soberana da verdade. Curley propõe que essa dúvida responde a

pergunta acerca da ausência desses dois últimos atributos da lista de propriedades na Terceira

Meditação, e que o motivo para prorrogar o argumento ontológico até depois da Quarta

Meditação é que somente mais tarde Descartes descobre como dirimir o problema. É somente

após ter conhecimento da liberdade humana, e sua função nos nossos juízos acerca da verdade

e falsidade, que Descartes pode conciliar a criação de mim por Deus, assim como sou, com

sua bondade e verdade. Assim como qualquer conhecimento, o argumento ontológico requer

uma idéia clara e distinta de Deus. E, por conseguinte, a clareza e distinção requerem

consistência. Descartes, desse modo, admite, antes mesmo de Leibniz apontar, que o

argumento ontológico requer alguma demonstração da consistência da nossa idéia de Deus.

Ele não procura, a exemplo de Leibniz, uma prova a priori de que a idéia de um ser

sumamente perfeito é coerente. Contudo, procura amenizar prima facie inconsistência mais

emergente que percebe nessa idéia.

O labor de provar consistência, ainda assim, produz mais obstáculos. A proposta para

solucionar a primeira dúvida requereu a pressuposição de que Deus nos criou, não como seres

determinados a errar, mas como seres que, cujo exercício da liberdade, invariavelmente

conduz a enganos. Entretanto, como conciliar a liberdade presente nessa solução com a

onipotência de Deus? Segundo Descartes, se Deus é onipotente, então nunca seria possível

realizar alguma coisa que Deus não tivesse preordenado. Contudo, se não é possível realizar

alguma coisa que Deus não tenha preordenado como podemos ter liberdade? A proposta de

Descartes para resolver esse problema é que não deveríamos abandonar algo que

apreendemos com tanta evidência, que é nossa liberdade “(...) é evidente que possuímos uma

vontade livre (...)”, pois isso se choca com algo que percebemos não poder compreender, que

é o poder infinito de Deus “(...) e assim a onipotência de Deus não deve impedir-nos de crer

nela (liberdade humana)” (Princípios da Filosofia, Parte I, Artigo 39, p. 41). Sendo assim,

existe ainda prima facie inconsistência que não foi resolvida. Não se trata, nesse momento, do

conflito entre meu erro e o fato de Deus ser uma fonte soberana da verdade, mas entre minha

liberdade e o infinito poder de Deus.

Alguém poderia objetar que, mesmo no caso desse embate ser legítimo, não implica

uma contradição na noção mesma de Deus. Implica uma contradição entre um atributo

essencial de Deus, nesse caso a onipotência, e um fato contingente, ou seja, de que tenho

liberdade. No entanto, se isso fosse satisfatório para explicar que a noção de Deus não implica

contradição, teria sido satisfatório inclusive para abordar o problema da Primeira Meditação.

De fato, a existência de homens que erram é um fato tão contingente quanto à existência de

homens que possuem a liberdade para errar. Para todos os efeitos, não está excluída a

possibilidade de que a contradição não possa ser atribuída à natureza divina. Curley explica o

problema do seguinte modo: “se acreditamos que Deus é responsável pelo fato contingente

de que há humanos que têm o poder de agir de modo contrário a preordenação de Deus,

então devemos acreditar que Deus tem o poder de realizar isso, isto é, que sua onipotência

implica sua capacidade de criar um ser com o poder de resistir à sua vontade” (Analytica,

1997, p. 75). Para diversos filósofos, o conceito mesmo de onipotência implica contradição.

Imagine que Deus possua a capacidade de criar um ser que ele não possa conduzir. Caso ele

manifeste esse poder, então não será mais onipotente, pois haverá um ser com a condição de

resistir à sua vontade. E, se, caso negamos que Deus tenha a capacidade de criar um ser que

não possa controlar, ele já não é onipotente.

Contudo, esse não é o único embaraço não dirimido na concepção cartesiana de Deus.

Pois se existe embaraço em conciliar a onipotência de Deus com a liberdade humana, existe

um embaraço tão acentuado quanto esse de conciliar a onisciência de Deus com a liberdade

humana. De acordo com a concepção incompatível de liberdade assumida por Descartes nos

Princípios, se Judas traiu Jesus pelo uso da liberdade, então na ocasião da traição ele tinha

condições de agir de maneira diferente. No entanto, o saber prévio de Deus implica que Deus

conhecia, ao criar o mundo, que Jesus seria traído por Judas. Desse modo, se em 33 D.C.

Judas tinha condição de não trair Jesus, então ele deve ter tido, nesse momento, a capacidade

de alterar o que Deus esperava da ocasião em 4.004 A.C. Contudo, a capacidade de alterar o

passado não é um poder que alguém possa exercer. Aliás, a própria teologia tradicional negou

a capacidade do exercício desse poder inclusive ao próprio Deus.

O problema consiste em conciliar uma propriedade de Deus, nesse caso a onisciência,

com uma propriedade dos homens que Ele criou contingentemente, a saber, sua liberdade.

Segundo Curley, a incorporização é mais latente nesse caso. Podemos afirmar da mesma

maneira que se Deus agiu com liberdade ao criar o homem, então Ele teve naquele ato, a

condição de não os criar, o que significa que Ele teria o poder de alterar o que concebia em

algum momento anterior àquele, quando decidiu criar, por exemplo, o céu e a terra. Desse

modo, se a onisciência de Deus compromete a liberdade humana, deve comprometer, de igual

modo, a Sua própria liberdade. O atributo da liberdade não compõe nenhuma das listas de

propriedades divinas apresentadas por Descartes na Terceira Meditação. Contudo, na Quarta

Meditação, Descartes propõe que é somente por meio da nossa liberdade de decisão que

podemos nos compreender como sendo a imagem de Deus “Somente da vontade ou da

liberdade de arbítrio, que experimento muito ampla em mim, não apreendo a idéia de outra

maior; de sorte que é ela principalmente a razão para que entenda haver em mim uma

imagem ou semelhança de Deus (...)” (Quarta Meditação, 2004, p. 119/9/). Por assim dizer, é

razoável incluir a liberdade como uma das perfeições que Descartes teria concebido como

essencial a Deus.

Não obstante, Descartes sustenta que Deus é eterno e imutável. Assim, se Ele detém

uma vontade, tal vontade, assim como Ele, deve ser eterna e imutável. Deus quer, de maneira

eterna e imutável, a criação, ou seja, o vir a ser dos seres finitos. Contudo, as criaturas, cujo

vir a ser Deus quer, não são eternas, conforme a teologia ortodoxa tradicional. Elas tiveram

um princípio de existência, num determinado tempo finito. Diante disso, Curley coloca a

seguinte questão “Como poderia um ser onipotente querer algo sem que o objeto de sua

vontade fosse realizado imediatamente? (Analytica, 1997, p. 77). Haja vista que o querer de

um ser onipotente deve bastar para a realização daquilo que ele almeja.

Existe uma solução para esse problema. Poder-se-ia argüir não que Deus eternamente

queira a criação simpliciter, mas que na verdade ele queira eternamente a criação em algum

tempo vindouro. Para explicitar o que acaba de propor, Curley usa como exemplo, a decisão

de um membro do Senado dos Estados Unidos, em renunciar seu cargo, sendo que, o ato que

escolheu praticar foi programado para ter efeito somente em algum momento futuro. Tal

solução, rechaçada por Averroes no Tahafut, é pertinente somente se podemos conceber o ato

da vontade de Deus como sendo um acontecimento em uma ordem temporal, que mantém um

afastamento temporal do acontecimento que é a efetivação do ato da vontade. Essa noção da

vontade de Deus parece chocar com a noção de Descartes da eternidade de Deus, e sua

implicação de que a vontade de Deus é eterna e imutável.

No entanto, esses problemas não são insolúveis. O que ocorre é que essas dificuldades

são fruto do esforço de se compreender como todas as coisas que Descartes afirma a respeito

de Deus podem ser verdadeiras conjuntamente, embaraços sobre a conciliação de atributos

que Descartes admite como já pertencendo a sua idéia de Deus. O problema da

compatibilização da criação do mundo no tempo com a eternidade de Deus é oriunda,

principalmente, do Tahafut al-Tahafut de Averroes, cujo legado, estava ao alcance dos

filósofos europeus em uma tradução latina desde o décimo sexto século. Curley acredita que

Espinosa tivesse conhecimento dessa obra de Averroes, ou pelo menos, alguns argumentos

contidos nela. Acredita também, que Descartes tivesse conhecimento desses problemas

apresentados.

No início dessa, vimos como Curley questionou a possibilidade de que exista um ser

sumamente perfeito, compreendido como aquele ser que agrega em si todas as perfeições. Sua

resposta é direta: não. Não enquanto agregar todas as perfeições for encarado como ter todas

as perfeições que Descartes relaciona nas suas listas de propriedades divinas. Ele evoca o dito

de Pascal de que ele almejava seguir o Deus de Abraão, Isaac e Jacob, e não o Deus dos

filósofos. Ele prossegue “Que são os filósofos a quem ele se refere? Serão apenas os filósofos

pagãos da antiguidade, figuras como Platão, Aristóteles e Plotino? Ou incluem também

aqueles filósofos das tradições teológicas judia, cristã e islâmica que tentaram harmonizar

suas escrituras com a filosofia grega?” (Analytica, 1997, p. 78). Curley explicitamente opta

pela interpretação mais geral da colocação de Pascal. Descartes e seu argumento ontológico

demonstram os perigos da tentativa de conciliação. Muito mais do que isso, o argumento

ontológico cartesiano (na tentativa de harmonização) é uma prova contra a existência de

Deus, uma demonstração de que um Deus pensado como agregando todas as perfeições que

Descartes pretende aferir a seu Deus não pode existir.

O esforço em compatibilizar a perfeição absoluta que a filosofia quer aferir a Deus

com as propriedades que as Escrituras determinam que sejam aferidos a Ele é um projeto

fadado ao fracasso. Caso estivéssemos dispostos a abandonar parte do conteúdo escritural,

afastando as idéias de criação e de liberdade humana e, com elas, a noção de Deus como um

legislador supremo, que com justiça pune o mau e recompensa o bom, então alcançaríamos

uma noção verdadeira de Deus como sumamente perfeito. Tal é a compreensão de Curley em

relação a Espinosa que, segundo ele, quase sempre acerta.

7 A IDÉIA DE DEUS – ALGUNS PROBLEMAS ENVOLVENDO AS PROVAS DE

SUA EXISTÊNCIA

Na obra intitulada Cambridge Companion to Descartes, organizada por John

Cottingham, encontramos um ensaio muito importante para a reflexão acerca das provas da

existência de Deus elaboradas por Descartes. O ensaio em questão, cujo título traduzido para

o português é A idéia de Deus e as provas de sua existência, foi escrita por Jean-Marie

Beyssade. Esse inicia sua reflexão tratando do papel de Deus no pensamento cartesiano, e

para tanto, propõe um paradoxo. Trata-se de um paradoxo que está no cerne da metafísica de

Descartes. Por um lado, todo o conjunto do saber científico cartesiano requer um saber seguro

que possuímos de Deus: “E, assim, vejo plenamente que a certeza e a verdade de toda ciência

dependem unicamente do conhecimento do verdadeiro Deus, de tal maneira que, antes de O

conhecer, não pude saber perfeitamente nada sobre nenhuma outra coisa” (Meditações

Metafísicas, 2004, p. 149/16/). Por outro lado, entretanto, a idéia de Deus é claramente

declarada por Descartes como uma instância que ultrapassa nossa compreensão, “pois, para

ter uma idéia verdadeira do infinito, ele não deve ser de maneira alguma compreendido (...)”

(Quintas Objeções, 2010, p. 265). O paradoxo em questão surge nas provas da existência de

Deus e articula-se por meio da relação entre a afirmação da existência de Deus e a clarificação

do que está contido na idéia de Deus, que é o fundamento para aquela afirmação. Em outras

palavras, o embaraço está em verificar se a idéia de Deus é primeira em relação à

demonstração de Sua existência.

7.1 A importância da idéia de Deus nas provas de Sua existência

Beyssade afirma que, nas provas da existência de Deus elaboradas por Descartes, a

idéia que O representa é fundamental, sejam elas, a priori ou a posteriori. Conforme as leis

da verdadeira lógica, não se deve questionar se algo existe (an sit) sem conhecer previamente

o que é esse algo (quid sit). Nas palavras de Beyssade, “na ausência de tal conhecimento

prévio, não poderíamos identificar como Deus o ente cuja existência estamos

demonstrando”. (Cambridge Companion to Descartes, 2009, p. 214). Desse modo, a idéia de

Deus assumiria então a função de premissa incondicional para qualquer prova da existência

Dele, e segue daí que devemos ter em nosso espírito a idéia relevante, a propósito de sermos

capazes de inferir que o objeto o qual representa ou ideatum efetivamente existe fora de nosso

pensamento. Contudo, a despeito disso, Descartes propõe que o mesmo raciocínio que nos

fornece condição de inferir a existência de Deus, nos torna capazes também, simultaneamente,

de saber o que Ele é. Sendo assim, a idéia de Deus é elucidada somente no real processo da

prova de Sua existência, e o mais intrigante, “(...) que seu conteúdo é tornado explícito

apenas ao final da prova, depois da afirmação da existência de Deus” (Cambridge

Companion to Descartes, 2009, p. 214). Acrescenta ele que, existem diversas incongruências

nisso, que a discussão sobre a “incompreensibilidade” da idéia de Deus, ao que tudo indica,

possui a função de ocultar.

Existem pelo menos duas linhas de pensamento que podem auxiliar a resolver esse

problema. Uma delas é concernente à estrutura diferenciada das diversas provas da existência

de Deus e a função específica que a idéia de Deus exerce em cada uma delas. A outra se

refere à relação, no universo da investigação metafísica, entre a afirmação da existência de

algo e a determinação da essência desse algo. Em outros termos, consiste em verificar a

relação entre o “aquilo” (quod) que equivale à questão “isto é?” e o “aquilo que” (quid) que

equivale à questão “que tipo de coisa é essa?”. A partir da conciliação dessas duas linhas de

pensamento, devemos ter condições de perceber com maior evidência o nexo entre, por um

lado, as várias propriedades que compõem a idéia de Deus (entendida como uma idéia que é

elaborada por nós), e por outro lado, o princípio sobre o qual tais propriedades são

combinadas (em razão do qual tal idéia é inata em nós). Na articulação dessa conexão, somos

confrontados com aquilo que Descartes denomina de “incompreensibilidade” no sentido

positivo – incompreensibilidade essa, que é a marca característica do infinito. Nas palavras de

Descartes, “a incompreensibilidade mesma está contida na razão formal do infinito”.

(Quintas Respostas, 2010, p. 265)

7.2 As provas a posteriori e a priori

Segundo Descartes, as provas que partem do efeito à causa são incompletas “são

incompletas a menos que acrescentemos a elas a idéia que temos de Deus” (carta a Mesland,

2 de maio de 1644: AT IV 112: CSMK, apud Cambridge Companion to Descartes, 2009, p.

215). De fato, na Terceira Meditação, Descartes inicia a primeira prova definindo o que

compreende por Deus. Beyssade nota que, por duas vezes, Descartes apresenta a referida

definição. A primeira passagem é quando Descartes explica a diferença que existe entre as

idéias em função de sua realidade objetiva, “aquela pela qual entendo um certo Deus

supremo, eterno, infinito, imutável, onisciente, onipotente, criador de todas as coisas que

estão fora dele” (Meditações Metafísica, 2004, p. 81/16/). A segunda passagem é quando ele

obtém êxito em descobrir a única idéia segundo a qual eu não poderia ter sido a causa,

“Entendo (intelligo) pelo nome de Deus certa substância infinita, independente, eterna,

imutável, sumamente inteligente e sumamente poderosa e pela qual eu mesmo fui criado e

tudo o mais existente, se existe alguma outra coisa” (Meditações Metafísicas, 2004, p.

91/24/). Existe aqui, uma identidade entre a idéia através da qual concebo Deus, presente na

primeira passagem, e o sentido do termo ‘Deus’, mencionado na segunda passagem. Sendo

assim, a prova não pode alcançar seu objetivo ou mesmo iniciar seu percurso, se alguém não

tem nenhuma idéia, ou seja, nenhuma percepção, que corresponda ao significado do termo

‘Deus’. No conjunto das provas a posteriori, Deus ocupa a função de um predicado na

conclusão atingida, a saber, existe necessariamente, fora de meu espírito, uma causa que é

Deus. Portando, a idéia de Deus é uma exigência, de dois modos. Primeiramente, ela

representa, na estrutura do efeito, que é o ponto inicial para a prova, um ponto de partida para

o argumento, ou ela é o efeito em sua totalidade, como no caso da primeira versão da prova,

que consiste em procurar a causa de minha idéia de Deus, ou ela é uma parte inseparável

desse efeito, como no caso da segunda e mais “simples” versão da prova, que consiste em

procurar a causa de minha existência na condição de possuidor dessa idéia de Deus. A idéia

de Deus representa mais do que isso. No que tange à conclusão atingida, ela é aquilo que

define a natureza da causa cuja existência é demonstrada. Beyssade afirma que “(A idéia de

Deus) É o que concede uma natureza determinada àquilo que seria de outro modo

indeterminado; sem ela, seria como se estivéssemos dizendo que acreditamos na existência de

um nada” (Cambridge Companion to Descartes, 2009, p. 216).

O segundo passo é precisar a função da idéia de Deus em cada uma de Suas provas. A

análise da apresentação efetiva da metafísica de Descartes, ou seja, as Meditações, mostra que

as diversas provas da existência de Deus incluem, como uma de suas premissas, uma menção

explícita à idéia de Deus.

No que diz respeito ao argumento a priori elaborado na Quinta Meditação,

denominado, desde Kant, de argumento ontológico, a função da idéia de Deus recebe uma

alteração fundamental. Nesse caso, Deus deixa de ser o predicado para ser o sujeito, e a

existência passa a ser o predicado que lhe é aferido. A idéia não é mais o significado de um

termo, mas uma “natureza verdadeira e imutável”. A definição inicial de um ser sumamente

perfeito nos conduz a admitir a existência desse ente, na condição de uma de suas perfeições.

A partir daí, podemos compreender como Descartes foi capaz, na ocasião em que

escreveu os Princípios da Filosofia, a unificar todas as provas desenvolvidas por ele, tanto a

priori quanto a posteriori, como pertencendo a um único modo de provar a existência de

Deus, “a saber, por meio da idéia de Deus” (Princípios da Filosofia, 1997, Parte I, Artigo 22,

p. 35). Beyssade encerra essa reflexão com a seguinte pergunta: “Mas até que ponto esta

reaproximação reflete uma genuína similaridade de estrutura entre as provas da existência

de Deus de Descartes?”. (Cambridge Companion to Descartes, 2009, p. 216)

7.3 O discurso do método – o abismo entre a natureza divina e a existência de Deus

No intuito de responder essa pergunta, Beyssade recorre a uma passagem mais antiga

do Discurso do Método. O trecho de interesse encontra-se na Parte IV do Discurso, localizado

entre as duas versões da prova a posteriori e o desenvolvimento da prova a priori. Após

demonstrar que não posso ser a causa de minha própria existência, Descartes acrescenta:

“Pois, segundo os raciocínios que acabo de fazer, para conhecer a natureza de Deus, tanto

quanto a minha o era capaz, bastava considerar, acerca de todas as coisas de que achava em

mim qualquer idéia, se era ou não perfeição possuí-las, e estava seguro de que nenhuma das

que eram marcadas por algum imperfeição existia Nele (...)” (Discurso do Método, 2010, p.

89). É evidente, com base nesse texto, que a clarificação da natureza divina ou, mais

exatamente, o desenvolvimento de uma idéia de Deus, não antecede a prova a posteriori, mas

pelo contrário, vem depois dela ou pelo menos é elaborada com ela. É no próprio curso do

raciocínio acerca da própria natureza, que Descartes ascende para contemplar a Deus, ou seja,

contemplar a existência de Deus concomitantemente com sua natureza.

Essa passagem não tem nenhum paralelo nas Meditações, entretanto, Beyssade sugere

que a observação da apresentação posterior de Descartes, nos Princípios de Filosofia, nos

fornece uma passagem correspondente. O texto relevante encontra-se na Parte I, art. 22, que

trata de “mais uma vantagem” do método cartesiano em provar a existência de Deus por

intermédio da idéia de Deus, isto é, que “pelo mesmo processo conhecemos o que Ele é, tanto

quanto a fragilidade da nossa natureza o permite” (Princípios da Filosofia, 1997, Parte I,

Artigo 22, p. 35). Tornando ao argumento apresentado no Discurso, somos confrontados com

o contraste entre a prova a priori, que surge a partir de uma idéia de Deus, ou seja, a idéia de

um ente sumamente perfeito que possuo, tal como desenvolvido na Quinta Meditação, e as

provas a posteriori, que em contraste com a Terceira Meditação, não existe nenhuma idéia

dessa natureza. De fato, o que as provas a posteriori exigem é “procurar de onde aprendera a

pensar em algo mais perfeito do que eu era” (Discurso do Método, 2010, p. 88). Nas duas

versões da prova a posteriori no Discurso, Descartes apenas passa de “uma natureza que

fosse verdadeiramente mais perfeita do que a minha” para a existência de “algum outro mais

perfeito” (Discurso do Método 88). Desse modo, existe um vazio que não pode ser ignorado,

quase um abismo, posto entre ambas as conclusões que podemos denominar de “A” e “B”:

um “ente mais perfeito” (A) situa-se distante da “coisa mais perfeita que somos capazes de

conceber” (B). A única alternativa de transição que resta fazer entre A e B é apresentada na

passagem do Discurso a seguir: “De forma que restava apenas que tivesse sido posta em mim

por uma natureza que fosse verdadeiramente mais perfeita do que a minha, e que mesmo

tivesse em si todas as perfeições de que eu poderia ter alguma idéia, isto é, para explicar-me

numa palavra, que fosse Deus” (Discurso do Método, 2010, p. 88).

A partir daí, poderíamos tentar ocupar o vazio através da hipótese de que o argumento

do Discurso não está plenamente elaborado, e que deve ser entendido como tacitamente

pressupondo a idéia ou definição de Deus, que é declaradamente apresentada na Terceira

Meditação. Entretanto, Beyssade sugere que “pode ser mais instrutivo enxergarmos

Descartes buscando uma maneira de gerar uma idéia de Deus por meio de uma construção

que opera em paralelo com a prova de Sua existência” (Cambridge Companion to Descartes,

2009, p. 218). De acordo com essa posição, é apenas após essa construção estar acabada, que

podemos migrar para a prova a priori, a qual partirá da idéia pronta, de um ente sumamente

perfeito.

7.4 A idéia de Deus – a marca do artífice impressa em sua obra

Beyssade afirma que a prova a priori de Deus parte da hipótese, que é admitida como

procedente, de que todas as perfeições estão unificadas em uma única natureza, que é

denominada de “Deus”. Assim, a única tarefa a cumprir é analisar tal unidade e destacar uma

das perfeições em questão, isto é, a existência. Em contrapartida, as duas provas a posteriori

iniciam por observar uma lacuna entre mim, ou minha natureza, e o pensamento de algo mais

perfeito que eu mesmo. O argumento tem como ponto de partida essa lacuna ou disparidade,

que pode, para os objetivos do argumento, ser entendida como pequena, ou seja, concebo um

ente que pode ser um pouco mais sábio que eu, ou como grande, isto é, um ente de perfeição

infinitamente maior em todos os aspectos de ser ou de perfeição88. Iniciando do comparativo

que é o “mais perfeito que”, finalizamos com o termo absoluto89

Diante do que foi exposto, Beyssade levanta a seguinte questão: “Deveríamos concluir

daí que, ao seguirmos as provas a posteriori da existência de Deus de Descartes,

que ultrapassa toda

comparação, a saber, a natureza incomparável, que é infinita e transcende qualquer

compreensão.

88 O cogito, longe de ser a natureza simples absoluta, apenas pode ser pensado de forma clara e distinta por meio do perfeito como única razão absoluta. O cogito isoladamente, não resolve o problema da legitimidade dos julgamentos referente à perfeição das realidades objetivas. Nota-se que: “Eu não posso de fato pensar-me sem a idéia de perfeição, pois eu tenho consciência de mim apenas como ser imperfeito”. (Ibid., p. 227). 89 Com a posição do infinito e do perfeito como princípio último, tanto do meu conhecimento (cogito) que do meu ser finito (eu pensante possuidor da idéia de Deus), o cogito não tem mais, doravante, necessidade de se atualizar perpetuamente para conservar sua certeza, graças à certeza de Deus. Em outras palavras: “a presença de sua intuição (cogito) não é mais indispensável para me conduzir, de fato, a uma dúvida que cessou de ser válida de direito. A certeza de Deus constitui, então, a certeza definitiva da verdade do cogito”. (Ibid., p. 231).

testemunhamos a construção de uma idéia de Deus – e que a idéia relevante é uma idéia que

é formada ou confeccionada pela mente humana?” (Cambridge Companion to Descartes,

2009, p. 219)

Em certo sentido, a resposta dessa questão é sim. Para justificar essa posição, devemos

recorrer à segunda das provas a posteriori, pois é a mais ilustrativa. Ao observar que minha

natureza não é como eu almejaria que fosse, venho a concluir que o ente que garante minha

existência possui todas as perfeições das quais necessito e aspiro. A respectiva inferência

possui duas partes:

i) Em cada grupo de perfeição, tais como, conhecimento, poder, duração, constância, entre

outras, tenho uma noção de um ente mais perfeito e, dependendo, venho a pensar essa

perfeição como infinita ou indefinida, o que significa a mesma coisa.

ii) Logo após, passo paralelamente, por conseguinte, de um grupo de perfeição para outro, e

assim formo a idéia de um ente completamente infinito ou sumamente perfeito.

Poder-se-ia talvez sintetizar o problema afirmando que Deus é, nesse sentido, tanto

formado quanto definido como aquele objeto que labuto para atingir, como aquilo que almejo

ser. Beyssade adverte que, não podemos confundir idéias com pensamentos. Alguns de meus

pensamentos, como o desejo e a dúvida, por exemplo, não são idéias. A idéia é aquilo que

representa um objeto. Nesse caso, é todo meu ser enquanto coisa pensante que é levado em

conta, para os propósitos da construção da idéia de Deus. De fato, a idéia de Deus é como

afirma Descartes “a marca do artífice impressa em sua obra. E não é preciso que a marca

seja algo diverso da própria obra” (Meditações Metafísicas, 2004, p. 103/42/); aspiração,

dúvida e vontade não são idéias propriamente ditas, mas no que tange a Deus elas funcionam

como signos ou traços – assinaturas que são o ponto inicial para a eventual formação da idéia

de Deus. Nesse contexto, a construção é na verdade uma espécie de redescoberta: “pois qual

a razão por que me daria conta de que duvido, desejo, isto é, de que sou indigente de algo e

de que não sou totalmente perfeito, se não houvesse em mim nenhuma idéia de um ente mais

perfeito (entis perfectioris), por comparação com o qual confesso meus

defeitos?”(Meditações Metafísicas, 2004, p. 91-93/26/). “Ora, se eu fosse independente de

tudo o mais e recebesse meu ser de mim, não duvidaria, não desejaria” (Meditações

Metafísicas, 2004 p. 97/34/).

Beyssade conclui que “há aqui uma assimilação entre o conceito da divindade e o

estatuto que eu desejaria idealmente possuir. A formação da idéia de Deus equivale,

efetivamente, à determinação do objeto ao qual eu viso”. (Cambridge Companion to

Descartes, 2009, p. 220).

7.5 A idéia de Deus – será construída ou elicitada pelos processos do pensamento?

Beyssade propõe nesse momento de sua reflexão, voltar do modo como à idéia de

Deus surge para o modo como ela é. Trata-se de tornar a idéia de Deus elicitada ou tornada

explícita. Como foi anteriormente discutido, o argumento primeiro funciona através da

extensão das perfeições notadas em meu espírito; segundo, através da agregação das várias

perfeições infinitas ou indefinidas. Contudo, esses processos não geram a idéia de Deus, pois

“se o fizessem, a idéia seria inventada ou construída pela mente humana” (Cambridge

Companion to Descartes, 2009, p. 220). Mas ao contrário, esses processos tornam a idéia de

Deus elicitada; a idéia presente previamente é que possibilita os processos de pensamento. Por

ocasião da idéia de infinito ser prévia e incompreensível é que ela pode compreender ou

ultrapassar esses processos de pensamento sem ser sintetizadas a eles.

Em diversos momentos, Descartes ressalta que a idéia que desse modo formo, ou que é

elicitada dessa maneira, é uma idéia que é adaptada à natureza finita de meu pensamento, ou

que leva em conta a diferença entre o infinito e meu pensamento finito. A idéia possibilita ter

um saber legítimo do infinito, tal como ele é, mas somente “tanto quanto a minha (natureza)

o era capaz” (Discurso do Método, 2010, p. 89), “tanto quanto o pode o olhar obnubilado de

minha inteligência” (Terceira Meditação, 2004, p. 105/44/), ou “na medida em que a

fraqueza de nossa natureza permite” (Princípios da Filosofia, 1997, Parte I, Artigo 22, p.

35). O infinito que é desse modo representado é realmente representado como

incompreensível: “pois a verdadeira maneira de uma mente finita abrir-se para o infinito e

conhecê-lo de uma maneira metódica e racional é fazendo uso de uma idéia que represente o

infinito fielmente, e como um objeto verdadeiro, mas sem se atrever a encompassá-lo e sem

esconder a distância que nos separa dele (Cambridge Companion to Descartes, 2009, p.

221). Apenas com essa distância reverente, como os súditos se aproximam de seu rei, pode a

mente finita achegar-se do infinito.

Na passagem dos Princípios anteriormente citada, equivalente à discussão apresentada

no Discurso, observamos uma menção explícita à qualidade inata da idéia de Deus e a

precedência que ela possui em relação a qualquer processo de construção mental. “Ao

refletirmos sobre a idéia de Deus que naturalmente fazemos d’Ele (...)” (Princípios da

Filosofia, 1997, Parte I, Artigo 22, p. 35): os diversos predicados, tais como “eterno” e

“onisciência”, entre outros, que Descartes passa a destacar são todos relacionados à idéia de

Deus – trata-se de um processo de raciocínio que é análogo à prova ontológica. Beyssade

sustenta que, embora o raciocínio não seja idêntico, sem dúvida alguma ele é análogo, pois ele

depende não tanto da análise do elo que existe entre os diversos predicados presentes no

interior de uma idéia já dada, quanto do aperfeiçoamento daquela idéia através da agregação

de um conteúdo determinado à forma unitária da infinitude ou perfeição. Ambos os conceitos

são intercambiáveis, já que o argumento aplica-se a “todas essas perfeições” ou à

“imensidade, simplicidade ou unidade absoluta” (Segundas Respostas, 2010, p. 221).

A idéia de Deus precede, no decorrer da prova, ao menos no que tange a seu estatuto

no argumento, o desejo da mente humana à perfeição. Em outras palavras, não é o desejo

humano que determina a idéia de infinito, mas é a idéia do infinito que é a fonte desse desejo.

Quando passo das perfeições finitas que tenho ou que noto nas coisas sensíveis, para as

perfeições superiores, nas quais, desejo e imagino, é a idéia do infinito que controla o

processo de expansão através do qual aquelas perfeições finitas são conduzidas até o infinito.

As duas passagens a seguir, fundamentam as considerações de Beyssade: “(...) bastava

considerar, acerca de todas as coisas de que achava em mim qualquer idéia, se era ou não

perfeição possuí-las, e estava seguro de que nenhuma das que eram marcadas por alguma

imperfeição existia Nele, mas que todas as outras existiam” (Discurso do Método, 2010, p.

89). E, ainda, “Ao refletirmos sobre a idéia de Deus que naturalmente fazemos d’Ele,

vemos... finalmente (que Ele) tem em si tudo aquilo em que podemos reconhecer alguma

perfeição infinita, ou que não está limitado por nenhuma imperfeição” (Princípios da

Filosofia, 1997, Parte I, Artigo 22, p. 35).

Conclui-se que a idéia de perfeição é descoberta, pensada e reconhecida, prévia e

independentemente de qualquer desejo humano. E a idéia da unidade entre todas as

perfeições, que é o fundamento da natureza verdadeiramente infinita de cada uma delas, e da

“incompreensibilidade positiva” do todo, vem antes de qualquer outra idéia. Na condição de

uma idéia inata, não é tanto uma idéia realmente presente quanto uma faculdade de gerar a

idéia.

Por ser essa faculdade um poder positivo mostra por que é adequado afirmar que a

mente humana constrói a idéia de Deus. Assim, a capacidade de construir a idéia está, em

última instância, enraizada em algo passivo: o sentimento de “admiração e adoração” que se

apropria do intelecto quando ele submete-se ao infinito (Terceira Meditação, 2004, p.

105/44/).

7.6 A idéia de Deus e a habilidade de elevar os números ao infinito

Beyssade propõe retornar ao texto um tanto restrito do Discurso, no qual o argumento

parte simplesmente do conceito de uma natureza “mais perfeita do que a minha”, e atinge em

primeira instância somente a modesta conclusão de que “devia necessariamente haver algum

outro (ser) mais perfeito” (Discurso do Método, 2010, p. 88). Conforme já havia tratado, essa

modesta abertura leva a um labor mais ambicioso, que poderia ser chamado um tornar

explícita uma idéia inata entendida como uma forma cujo teor tem de ser completado, ou um

processo de construção, de uma idéia que é formada, na medida em que a mente reúne seus

diversos conteúdos90

90 Na Terceira Medição, Descartes pôde seguir uma ordem que o conduziu de uma razão para outra, ele preparou o terreno, afastando tudo o que não era idéia, ou seja, representações, bem como tudo o que era estranho àquela idéia no que tange ao seu conteúdo ou “realidade objetiva”. Desse modo, pode-se determinar os graus de perfeição ou da realidade desse conteúdo. A partir de então, o grau das razões são governados pelos graus de perfeição dos conteúdos e “não mais pela relação de subordinação das diferentes condições internas de minha consciência”. (Ibid., p. 222).

. Isso é equivalente ao modo como a noção de infinito é gerada na

matemática, seja na geometria, ou na aritmética.

A capacidade da mente em realizar uma progressão, por exemplo, em uma contagem

por números, é desenvolvida principiando com um número baixo e acrescentando um a ele.

Contudo, a mente reconhece que tem uma habilidade indefinida de repetir o processo; ou seja,

no processo de construir números cada vez mais elevados, formamos a idéia de infinitude.

Outro modo de ilustrar isso é afirmar que, desde o princípio, a mente exerce sua habilidade

apenas dentro do universo de um número infinito ou em função daquilo que poderia ser

chamada a idéia de uma infinitude aritmética.

Segundo Descartes, essa habilidade que possuímos de partir de um determinado

número e acrescentar a ele indefinidamente nos proporciona uma prova de que não somos

autores de nossa própria existência, mas dependemos de um ente que nos transcende:

“(...) este poder que tenho de compreender que há sempre alguma coisa a mais a conceber no maior dos números, que eu jamais posso conceber, não provém de mim mesmo, e que eu o recebi de algum outro ser que é mais perfeito do que sou”. (Segundas Objeções, 2010, p. 223)

Beyssade afirma, entretanto, que essa habilidade isoladamente, isto é, a habilidade da

adição aritmética não nos proporciona o conhecimento da natureza do ente que se quer

demonstrar. Tão logo tenhamos determinado que Deus existe, será possível aplicar a Ele,

como sendo a causa da capacidade que vivenciamos no universo dos números; a capacidade

que existe formalmente em nós será reconhecida existindo eminentemente em Deus. Contudo,

mesmo na etapa em que não sabemos ainda se Deus existe ou não, podemos admitir que

existe alguma causa externa, fora do pensamento, para a capacidade de adição indefinida que

temos: caso essa causa não seja um Deus verdadeiro, ela pode ser, por exemplo, um número

infinito legítimo que existe fora da nossa mente. No vocabulário técnico que Descartes utiliza,

nesse número há “formalmente” toda a perfeição numérica que há “objetivamente” em nossa

idéia, quando pensamos nela, ao passo que, caso Deus exista realmente, logo a perfeição

existe “eminentemente” nele.

Com base nisso, deveria ficar evidente como a idéia de Deus está relacionada à idéia

de infinito; a analogia é pertinente, mas não devemos exagerar. Em primeiro lugar, o número

infinito diz respeito a um único domínio, ou seja, o dos números, e, desse modo, deve ser

entendido como sendo simplesmente indefinido, mas Deus, por outro lado, é verdadeiramente

infinito, uma vez que abarca o conjunto total das perfeições, e a unidade absoluta dessas,

representa Sua verdadeira essência, como afirma Descartes “a unidade, a simplicidade ou

inseparabilidade de todas as coisas que estão em Deus é uma das principais perfeições que

entendo estarem em Deus”. (Terceira Meditação, 2004, p. 101/39/). E, em segundo lugar, a

existência não pode ser inferida da idéia de um número infinito, porque esse número pode ou

não existir, ao passo que a existência deriva-se necessariamente da idéia de Deus, já que a

existência é uma de Suas perfeições, e “por eu não poder pensar Deus senão existente segue-

se que a existência é inseparável de Deus e que, por conseguinte, ele existe

verdadeiramente”. (Quinta Meditação, 2004, p. 141/8/)

7.7 A idéia de Deus – a relação entre a essência (quid) e a existência (quod)

Nessa altura da reflexão, Beyssade afirma ter lançado as bases que lhe dão condições

de inferir algumas conclusões sobre a relação entre a afirmação da existência (o quod) e a

determinação da essência (o quid). A metafísica cartesiana propõe três afirmações

existenciais, são elas: Eu sou, eu existo (o Cogito); Deus existe (a veracidade divina); as

coisas corpóreas existem (as bases da física). Segundo ele “se as leis da verdadeira lógica

ditam que a determinação da essência (o quid) deve sempre preceder o postulado da

existência (o quod), esta será uma regra difícil de aplicar, no que diz respeito à metafísica”.

(Cambridge Companion to Descartes, 2009, p. 225)

Apenas a terceira afirmação, ou seja, da existência das coisas corpóreas, é que a regra

é aplicada adequadamente e, nesse caso, estamos tratando com um campo que se encontra

quase fora do universo da metafísica propriamente dita, já que se refere à transição da

metafísica para a física. De fato, a essência das coisas corpóreas (“natureza corporal que é

objeto da Matemática pura” – Sexta Meditação, 2004, p. 161/5/) é determinada na Quinta

Meditação, antes de Descartes ter afirmado se elas existem ou não. A prova de sua existência,

tema fundamental da Sexta Meditação, assumirá o sentido da palavra “corpo” (corpus) como

já determinado. As coisas corpóreas cuja existência é determinada não são os objetos que

recaem sobre os sentidos, mas apenas coisas materiais, ou seja, aquelas que têm extensão.

Entretanto, a primeira verdade do sistema cartesiano é a determinação da existência

(“eu sou, eu existo”) que antecede e provoca a análise sobre a essência (“ora, eu, quem

sou’?”) (Meditações /7/ 47). Mas a “regra geral da verdadeira lógica” não pode ser

desrespeitada: para determinar minha existência, é fundamental que eu já conheça, pelo

menos tacitamente, o que sou. Sendo assim, o que resta é explicitar esse conhecimento.

Contudo, a determinação exata que se segue na Segunda Meditação (“sou, portanto,

precisamente, só coisa pensante” – sum igitur praecise tantùm res cogitans; Meditações

Metafísicas, 2004, p. 49/7/) é tanto uma restrição (“só coisa pensante”) como também, no

âmago desse reino restrito do pensamento, uma enumeração (“coisa pensante (...) coisa que

duvida, que entende, que afirma, que nega (...)” – Meditações Metafísicas, 2004, p. 51/9/). De

fato, os dois problemas, da existência (quod) e da essência (quid) são dirimidos em conjunto e

paralelamente, e esse paralelismo tem dois resultados. Segundo Beyssade, o primeiro deles é

o comprometimento do quod; se ocorresse de eu cometer um equívoco no que tange o quid,

ou seja, acerca da minha essência, logo o quod – o “eu” que existe – seria colocado em

dúvida, pois “ainda não entendo satisfatoriamente quem sou, esse eu que agora sou

necessariamente. E, de agora em diante, devo precaver-me para não tomar imprudentemente

outra coisa em meu lugar, errando assim, também no conhecimento que pretendo seja o mais

certo e o mais evidente (...)” (Meditações Metafísicas, 2004, p. 45/5/). O segundo é o

comprometimento do quid; não existe, em última instância, nenhuma definição prévia para as

palavras que Descartes está pronto para utilizar em significar sua essência, tais como

“espírito” ou “entendimento” ou “razão”, esses são “vocabulários cuja significação eu antes

ignorava” (Meditações Metafísicas, 2004, p. 49/07/). As palavras em questão retiram sua

definição apenas do processo pela qual determino tanto minha essência quanto minha

existência. Com efeito, a idéia com a qual represento a mim mesmo, os conceitos de

pensamento, ou de uma substância pensante finita são realmente idéias inatas; entretanto,

“seu conteúdo preciso é tornado determinado e atualizado somente na, e através da,

operação que, mediante um processo de dúvida sistemática, me separa de todos os outros

objetos e estabelece minha existência”. (Cambridge Companion to Descartes, 2009, p. 226)

O pensamento articula-se do mesmo modo quando alcançamos a prova de Deus e,

existe mais uma vez um contraste com a prova dos objetos corpóreos. No que tange a Deus, é

um e o mesmo caminho percorrido para determinar o quod, ou seja, a existência de Deus, e

também elucida o quid, que é sua natureza. Obviamente, devemos deter um saber implícito do

que Deus é, para obtermos a garantia de identificar sem equívoco o ente cuja existência

estamos provando. Contudo, impõe-se a tarefa de tornar exata a idéia inata de Deus, que é a

idéia de uma unidade que ultrapassa nossa compreensão. O labor de tornar exata essa idéia

implicará tanto uma restrição, através da eliminação de tudo aquilo cujo acréscimo modifique

o verdadeiro Deus em um falso deus e, assim, torne razoável negar sua existência, bem como

uma enumeração, que consiste na catalogação dos predicados divinos. Diante do que foi

exposto, Beyssade levanta a seguinte questão: “Ao passar a usar o termo ‘Deus’, será que o

meditador chega a uma ‘palavra cujo significado ele ignorou até então’”? (Cambridge

Companion to Descartes, 2009, p. 227). Ele reconhece que Descartes não coloca a pergunta

desse modo, pois fazê-lo seria grosseiro para um filósofo do século XVII; contudo, não há

dúvidas que é por meio do processo de reflexão metafísica que o teor da idéia de Deus é

definido e, também, concomitantemente, sua existência é provada. O elo do infinito com o

perfeito, que o meditador apresenta por intermédio do conceito de “positiva

incompreensibilidade” de Deus, é tão fundamental para a idéia de Deus que é, inclusive,

exigida até mesmo para a prova ontológica. A prova a priori da existência de Deus parte da

idéia que já está determinada e opera analisando essa idéia e tirando a existência como uma

conseqüência necessária. Entretanto, se eu tivesse de compreender Deus, não seria possível

provar sua existência, pois “meu pensamento não impõe nenhuma necessidade às coisas”

(Meditações Metafísicas, 2004, p. 139/8/). Mas ao contrário, é “a necessidade da própria

coisa, isto é, a existência de Deus que determina meu pensamento” (Meditações Metafísicas,

2004, 141/8/), e isso depende necessariamente da incompreensibilidade de Deus. O meditador

afirma explicitamente que existem “somente dois lugares” nas Meditações onde precisamos

refletir, ao mesmo tempo, tanto sobre incompreensibilidade quanto acerca da perfeita clareza

e distinção a serem percebidas na idéia de Deus. O primeiro trecho que Descartes apresenta

aparece após a prova de Deus a partir de seus efeitos, quando devemos de nos precaver, por

reflexão, de que não fundamentamos nosso raciocínio em uma idéia que possa ser

materialmente falsa. O segundo trecho mencionado é da prova a priori, na ocasião em que a

demonstração é desenvolvida.

7.8 A idéia de Deus e a conexão entre os atributos divinos

Beyssade ressalta que as muitas definições de Deus exercem uma função fundamental

na estrutura da metafísica cartesiana e, tais definições surgem como listas de propriedades ou

nomes aplicados a Deus. Diante disso, surgem duas questões: “Mas será que a conexão entre

os itens da lista é estabelecida de modo apropriado? Mais importante ainda, será que sua

união é mesmo logicamente possível?” (Cambridge Companion to Descartes, 2009, p. 228).

A noção de “incompreensibilidade” da natureza divina pode, como proposto no início dessa

sessão, ser utilizado como uma espécie de pretexto para encobrir as inconsistências e

contradições que parecem surgir na lista de propriedades divinas. Antes que a prova possa

alçar vôo, a consistência interna da idéia de Deus necessita ser definida.

Contemporaneamente, o mesmo assunto foi tratado com muitas variações. Beyssade nos faz

lembrar que Edwin Curley argumentou que as propriedades divinas podem ser absolutamente

incompatíveis ou incompossíveis e indicou o erro de Descartes em não fornecer qualquer

princípio que nos possibilite estabelecer como cada propriedade individual contribui para a

“perfeição suprema”. Ele apontou também, o aspecto muito indefinido da idéia de Deus, pois

substituímos a idéia de um ente que tem todas as perfeições pela idéia de um ente que tem

todas as perfeições compossíveis e, assim, comprometemos a eficácia do argumento. Para

Curley, a idéia de um ente que possui todas as perfeições compossíveis é inevitavelmente

indefinida.

Beyssade não está convencido de que o sistema cartesiano possa ser defendido de

forma satisfatória contra oposições dessa natureza. Contudo, é indubitável o fato de que

qualquer resposta razoável deve ser empreendida por meio de uma explicação do conceito

cartesiano da “positiva incompreensibilidade” de Deus. Com certeza, esse é o elemento

necessário para a união entre as duas propriedades divinas fundamentais, infinito e perfeito; e

é também o que nos possibilita passar do conceito de substância ou ente em geral para a

“idéia clara e distinta de uma substância não-criada que pensa e que é independente, isto é,

Deus”. (Princípios da Filosofia, 1997, Parte I, Artigo 54, p. 46)

Em primeiro lugar, deve ser esclarecido que a lista cartesiana de predicados divinos

nunca leva a uma definição unitária que sirva como fundamento de uma dedução rigorosa de

todas as propriedades divinas. Descartes define Deus, na Definição VIII, como a “substância

que entendemos ser soberanamente perfeita, e na qual não concebemos nada que encerre

qualquer falha, ou limitação de perfeição” (Definições VIII, 2010, p. 240). Segundo

Beyssade, essa definição não possibilita o entendimento humano formar a idéia de Deus; não

é uma matriz que produz um conjunto infinito de possíveis definições da natureza divina, cada

qual iniciando de uma dada perfeição que é elevada até o infinito. Mas ao contrário, “é um

tipo de crivo ou filtro que deixa passar qualquer coisa que pertença a nosso entendimento

(intelligere) da perfeição suprema e elimina qualquer coisa que seja concebida (concipere)

como um defeito ou limitação daquela perfeição”. (Cambridge Companion to Descartes,

2009, p. 229)

A inabilidade de ser concebido é o que Descartes entende por incompreensibilidade e,

é o traço específico do infinito. Caso fosse possível partir da unidade da essência divina e

alcançar um princípio de dedução para cada uma de suas propriedades, então Deus seria

compreensível e, portanto, não seria Deus. Na definição “sumamente perfeito” (summe

perfectum), o advérbio “sumamente” (summe) não expressa somente o superlativo, mas se

refere ao infinito incompreensível, igualmente como, quando Descartes contrapõe o “infinito

no sentido positivo” ao “indefinido”, é a totalidade das perfeições que Descartes considera, “é

impossível que tenhamos a idéia ou a imagem do que quer que seja se em nós e fora de nós

não houver um original que engloba todas as perfeições” (Princípios da Filosofia, 1997,

Parte I, Artigo 18, p. 34). Em todas as ocasiões em que Descartes trata da natureza divina, os

dois adjetivos, “infinito” e “perfeito” são encontrados juntos.

Entretanto, nas diversas provas da existência de Deus não existe um predicado único

surgindo como principal. Ele concorda com a opinião de Curley, que afirma existir uma

transição gradual, na Terceira Meditação, da elucidação da idéia de Deus por meio de uma

enumeração de suas perfeições à elucidação dessa idéia através de uma fórmula mais

genérica, mas nega a possibilidade da redução a um predicado único. Para Beyssade, nem

mesmo a onipotência ou a perfeição podem exercer essa função, pois “Deus não tem nenhum

“atributo principal”, precisamente porque a absoluta unidade de Seus atributos acarreta que

cada atributo, através de sua relação com todos os outros atributos, seja identicamente

infinito, a sua própria maneira” (Cambridge Companion to Descartes, 2009, p. 230). Caso

existisse uma legítima dedução dos atributos divinos, ela abarcaria nossa apreensão, na

intuição de uma natureza simples, da conexão lógica entre cada um dos predicados. Assim, a

distância incompreensível entre o finito e o infinito seria eliminada, e a idéia final seria uma

negação de Deus. A definição que Descartes fornece em sua apresentação “geométrica”

procede de modo totalmente diferente (Definições VIII, 2010, p. 240). A respectiva definição

parte de cada predicado individual que constatamos em nossa vivência finita e possibilita que

o predicado seja amplificado a ponto de tornar-se infinito e incompreensível, e ligado a todos

os demais predicados. E todas as ocasiões que constatamos uma limitação, uma imperfeição

ou uma contradição, nós eliminamos ou filtramos aquilo que concebemos como sendo

incompossível com Deus.

7.9 A indução – o movimento do pensamento de um atributo a outro

Segundo Beyssade, se considerarmos o procedimento que foi traçado acima e

questionarmos como ele escapa a absoluta incongruência sintetizada na objeção de Curley,

segundo a qual a idéia de Deus é indefinida, a solução está no que podemos denominar de um

raciocínio “lateral”, no qual existe um movimento que passa de uma propriedade divina a

outra.

Descartes estabelece uma minuciosa diferença entre o conhecimento intuitivo de Deus,

algo que jamais detemos, e o movimento do pensamento de uma propriedade a outra. Na

ocasião em que descreveu esse último processo em 1648 (movimento do pensamento de uma

propriedade a outra), Descartes resgatou um termo que havia aplicado anteriormente nas

Regulae, a saber, “indução” (carta a Newcastle ou Silhon, de março ou abril de 1648: AT V

138, linha 28: CSMK 332, apud Cambridge Companion to Descartes, 2009, p. 231). Nas

Regulae, ele havia realizado uma distinção entre dois tipos de processo dedutivo. Um implica

uma série linear de inferências, iniciando com uma natureza simples que podemos acessar e,

em que cada ligação da cadeia é intuída. Entretanto, há um segundo tipo, em que não é

possível a redução a uma série de intuições, porque o processo estende-se ao longo de um

grupo de objetos que são heterogêneos irredutíveis; tal processo é denominado de “indução”

ou “enumeração” (Regra VII, 2010, p. 427).

Nesse momento, as mesmas metodologia e terminologia são utilizadas, sem restrição,

à metafísica posterior de Descartes e, em especial, a sua explicação de nosso conhecimento de

Deus. Na dedução das propriedades divinas, a incompreensibilidade nos impossibilita de

controlar uma natureza simples ou de reduzir a dedução a uma intuição. Não existe nenhuma

dificuldade quanto ao tipo de noção apropriado que nos possibilitaria apreender uma essência

divina cujo princípio de composição tivéssemos absolutamente dominado:

Vedes claramente que conhecer Deus através Dele próprio, quer dizer, por um poder iluminador imediato da natureza divina em nossa mente, o que é entendido por conhecimento intuitivo, é bem diferente de fazer uso do próprio Deus para fazer uma indução de um atributo a outro ou, para colocar mais adequadamente a questão, fazer uso de nosso conhecimento (...) natural de um dos atributos de Deus, de modo a construir um argumento que nos permita inferir outro de seus atributos (carta a Newcastle ou Silhon, de março ou abril de 1648: AT V 138, linha 28: CSMK 332, apud Cambridge Companion to Descartes, 2009, p. 231)

Com o objetivo de elucidar essa “indução” de uma propriedade a outra, Beyssade

propõe que iniciemos com a propriedade particular de Deus que se relaciona ao

conhecimento. Para desenvolver o conceito de onisciência de Deus, ampliamos a propriedade

do conhecimento até que se torne um supremo cogitatio ou pensamento que se equipare a seu

poder supremo, já que Deus é não somente o mais elevado objeto de pensamento, que é “de

todas (ideais) que estão em mim, ao máximo verdadeira e ao máximo clara e distinta”.

(Meditações Metafísicas, 2004, p. 93/30/), mas inclusive o pensador supremo – substantia

cogitans, no sentido pleno e primeiro que envolve o não-criado e independente (Princípios da

Filosofia, 1997, Parte I, Artigo 54, p. 46). Como já foi observado, existe um duplo movimento

do pensamento, através do qual a idéia de Deus é produzida a partir de nossa própria

experiência. Em primeiro lugar, existe o movimento em uma categoria, no caso do exemplo

acima, o conhecimento ou intellectus, do finito em direção ao infinito ou indefinido (cognitio

indefinita sive infinita: Segundas Meditações, 2004, p. 223); e, em segundo lugar, existe um

movimento complementar iniciando dessa categoria para as demais. O interesse de Beyssade

é o segundo desses desenvolvimentos.

Vivenciamos esse derradeiro processo em nosso patamar humano, no patamar do

finito. A segunda prova de Deus por seus efeitos nos conduz ao âmago da questão: não,

certamente, à natureza interior do próprio Deus, cuja grandiosa unidade é incompreensível

para nós, mas à estrutura da idéia de Deus, que é uma idéia veraz, na medida em que a

disparidade entre o infinito e o finito nos possibilita. Segundo Descartes, a partir do Discurso,

é que a obtenção do conhecimento possibilita adquirir “pelo mesmo meio... todos os outros

bens (...)” (Discurso do Método, 2010, p. 83). Nossa maneira humana de adquirir todos os

outros bens através do conhecimento nos dá, considerando a irredutível disparidade entre o

finito e o infinito, uma leal imagem do que é para Deus ter todos eles reunidos. “Pois já

experimento agora que meu conhecimento aumenta paulatinamente e não vejo o que poderia

impedir que cresça mais e mais nem também que... não possa adquirir (adipisci), com sua

ajuda todas as restantes perfeições de Deus” (Meditações Metafísicas, 2004, 95/31/).

Beyssade afirma que, o destaque na passagem acima é relevante. Descartes persistiu em

conservá-lo, apesar das contestações de Mersenne, que procurava substituir “adquirir”

(adipisci) por “entender” (intelligere). Dispomos aqui, do padrão de indução, no sentido

técnico que Descartes aplica ao termo.

Beyssade conclui que: “os seres humanos não podem alcançar a natureza essencial

de Deus, mas vislumbramos esta unidade ausente quando descobrimos, em um movimento

lateral de pensamento, o elo causal entre termos que permanecem distintos, (embora

conectados) em nossa experiência humana ordinária”. (Cambridge Companion to Descartes,

2009, p. 233).

7.10 A unidade dos infinitos atributos divinos e a unidade da substância pensante finita

Beyssade afirma que as colocações anteriores nos revelam instantaneamente como

resolver o problema levantado por Curley sobre a compossibilidade das propriedades divinas.

Ele acrescenta que caso todas as categorias de ser desfrutassem de um estatuto igual, não seria

possível ter certeza de que não poderia aparecer alguma perfeição ulterior que fosse

incompatível com aquelas constatadas até então, comprometendo desse modo a estabilidade

lógica do conjunto. Contudo, as diversas categorias de ser não possuem o mesmo estatuto. A

extensão é eliminada da natureza divina em razão de sua divisibilidade (Segundas Respostas,

2010, p. 222 Princípios da Filosofia, 1997, Parte I, Artigo 23, p. 35); apenas a categoria do

pensamento é um lugar de moradia apropriado para a infinitude positiva ou perfeição

suprema. O ser ou a substância no sentido primitivo e pleno é uma natureza intelectual – a

“substância não-criada que pensa e que é independente, isto é, de um Deus”. (Princípios da

Filosofia, Parte I, Artigo 54, p. 46)

Afirmar que Deus é um pensamento ou um espírito não é de modo algum equivalente

a suprimir o abismo que existe entre o infinito incompreensível e eu mesmo91

91 A segunda prova a posteriori pelos efeitos coloca em plena atividade o axioma conhecido: “o efeito é semelhante à causa”. Todas as coisas criadas devem ser semelhantes ao seu criador, pois como Ele, todas elas são uma substância e se assemelham a Ele, tanto quanto possuírem de ser. Sendo dentre todas as criaturas, aquela que possui mais ser, eu devo então parecer com Deus ao máximo: “(...) o que faz precisamente com que eu seja de todos os seres criados, aquele que possui o máximo de realidade e, por consequência, o mais alto grau de semelhança com Deus, é que eu sou, enquanto homem, o único dentre aqueles seres, a ter a idéia de Deus, isto é, sou o único que tenho a idéia no meu entendimento finito, do infinito (...)” (Ibid., p. 264).

; nas palavras de

Beyssade, trata-se apenas de “(...) reconhecer que a substância pensante, substantia cogitans,

não é originalmente algo criado e dependente, mesmo embora o meditador comece por

encontrar, no Cogito, uma tal substância que é de fato uma coisa incompleta e dependente”

(Cambridge Companion to Descartes, 2009, p. 235). Não deveria causar espanto encontrar

esses assuntos desenvolvidos na extensa carta acerca do tema do amor que o meditador

escreveu a Chanut em 1647. O amor ocupa aqui e, antes mesmo, numa carta de Descartes

dirigida a Elizabete, uma posição vantajosa, uma vez que “o verdadeiro objeto do amor é a

perfeição” (Carta a Elizabete de 15 de setembro de 1645) e, ele pode suprimir inclusive a

imensa distância que afasta, por exemplo, os súditos e sua rainha, ultrapassando as emoções

palacianas de “respeito, veneração e admiração” (Carta a Chanut de 1º. de setembro de

1647, 2010, p. 632). A dificuldade acerca da incompreensibilidade é dirimida, não além do

universo do pensamento, mas no âmago desse, por intermédio da relação entre duas

substâncias pensantes (criada e incriada): “Ora, o caminho que julgo devermos seguir, para

chegar ao amor a Deus, é o de considerá-Lo um espírito, ou uma coisa pensante, donde,

como a natureza de nossa alma possui alguma semelhança com a Sua, acabamos

persuadindo-nos de que é uma emanação de sua soberana inteligência” (Carta a Chanut de

1º. de setembro de 1647, 2010, p. 630). Diante disso, Beyssade levanta a seguinte questão:

“Mas e se considerarmos a infinitude do poder de Deus?” (Cambridge Companion to

Descartes, 2009, p. 234). Ele adverte que, nesse caso, precisamos evitar o erro metafísico de

assumir predicado como unívoco quando aplicado a Deus e ao homem (Segundas Objeções

221), e o perigo moral da arrogância – a “extravagância de desejarmos ser deuses” (Carta a

Chanut de 1º. de setembro de 1647, 2010, p. 630).

A congruência e consistente unidade das propriedades divinas não são jamais, desse

modo, apresentadas na intuição simples, mas são chanceladas pela vivência de nossa natureza

finita como substâncias pensantes. A infinita perfeição de Deus é realmente um limite no qual

nosso labor indefinido em direção à perfeição vagamente deseja (Carta a Chanut de 1º. de

setembro de 1647, 2010, p. 630). Por haver um abismo infinito entre nós e Deus, a unidade

que vivenciamos em nosso interior é limitada e débil, ao passo que a unidade que

contemplamos em Deus e, na idéia que temos Dele, é absoluta e ultrapassa nossa

compreensão. Contudo, assim como existe uma similitude entre nossa mente e a mente divina,

da mesma forma, quando vivenciamos em nosso interior uma unidade entre diversas

faculdades, isto nos dá uma representação do que é, em Deus, a absoluta simplicidade de um

ato único e, desse modo temos garantia da plena consistência de nossa idéia de Deus.

Beyssade acrescenta que, “Exemplos ilustrativos desse tipo de unidade experienciada são a

unidade entre intelecto e vontade, quando afirmamos necessária mas livremente uma verdade

autoevidente, e a unidade entre a ciência ou verdadeira filosofia e a dominação técnica da

natureza” (Cambridge Companion to Descartes, 2009, p. 235). A unidade dos predicados

divinos é chancelada pela unidade do eu, embora não seja logicamente provado com base

nele.

7.11 A incompreensibilidade do infinito – intelligere versus comprehendere

Beyssade lembra que em Espinosa, o pensamento passa a ser uma das duas

propriedades que conhecemos acerca de Deus, ao lado da extensão, que Descartes nega,

obviamente, ser inerente a Ele. E baseado na seção anterior, pode ser notado que é realmente a

propriedade do pensamento, mais ainda que a independência (poder infinito manifestado por

um ente que é a causa sui, causa de si próprio), que determina que Deus pode ser conhecido, a

despeito de nossa incapacidade de compreendê-lo.

À luz disso, surge a seguinte questão: “será que uma coisa não-pensante poderia ser

independente?” (Cambridge Companion to Descartes, 2009, p. 236). Nesse ponto, Descartes

pode ter cometido um erro. Numa carta datada de 15 de novembro de 1638, Descartes sugere

a Mersenne que caso uma natureza intelectual fosse independente, não resultaria daí que ela é

Deus. Contudo, em 30 de setembro de 1.640, Descartes sustentou que não podemos conceber

distintamente que o Sol, ou qualquer coisa finita, seja independente, haja vista que a

independência, se distintamente concebida, implica infinitude. Beyssade nos assegura que,

ambas as passagens são reconciliáveis, se compreendemos que na verdade nada que seja

absolutamente material pode ser de fato independente, ou seja, causa de si mesmo no sentido

positivo.

O cerne da discussão é que, uma vez que alcançamos essa substância pensante (ou

intelectual) independente e não-criada, nossa incapacidade de compreendê-la

(comprehendere) não compromete nossa capacidade de entendê-la (intelligere)92

Não é possível, desse modo, que eu obtenha um conhecimento de Deus que faça com

que minha idéia Dele seja mais explícita e mais distinta. Mas, da mesma maneira que a

congruência da idéia de um triângulo não pode ser refutada pela descoberta confiável de

novas propriedades, também a congruência da idéia de Deus é garantida a partir do instante

em que eu tenha compreendido como as perfeições que amplio até a infinitude são todas

. É

reconhecidamente veraz que a incompreensibilidade faz irredutível a distância que existe

entre a minha mente finita e o infinito (ou Deus), e nos impossibilita controlar ou forjar a

idéia de Deus; isso porque somos impelidos a admitir um número infinito de outras

perfeições, desconhecidas, em acréscimo àquelas que conhecemos (Terceira Meditação,

2004, p. 93/30/). Na verdade, somos forçados a compreender inteiramente mesmo aquelas

perfeições que realmente concebemos (Terceira Meditação, 2004, p. 103/42/). Resumindo, a

incompreensibilidade exclui toda possibilidade de predicados serem aferidos univocamente a

Deus e aos humanos (Segundas Respostas, 2010, p. 221). Mas graças à semelhança entre o

homem e Deus, garantida pelo fato de que ambos somos entes pensantes, a ausência de

univocidade não equivale à mera equivocidade. A idéia do infinito me possibilita conhecer

não uma parcela do infinito, mas todo ele, mesmo que de um modo ajustado a uma mente

finita, como afirma Descartes “(...) a idéia que temos do infinito não representa somente uma

de suas partes, mas o infinito em sua totalidade, conforme deve ser representado por uma

idéia humana (...)” (Quintas Respostas, 2004, p. 265).

92 Graças à nossa inteligência, sabemos que Deus é infinito e que nós não podemos abraçá-lo ou compreendê-lo, mas que podemos muito bem entendê-lo, pois conhecemos clara e distintamente várias de suas propriedades: “Longe, portanto, de tornar Deus incognoscível, a incompreensibilidade, que envolve de qualquer modo uma certa limitação necessária do meu conhecimento (eu não poderia jamais esgotar o infinito, tendo um conhecimento “adequado”, isto é, completo) é ao mesmo tempo, como uma ratio formalis do infinito, o que me permite de o conhecer como tal”. (Ibid., p. 206).

combinadas na unidade da mente divina. Caso Deus não fosse uma “substância (...) que

pensa” (Princípios da Filosofia, 1997, Parte I, Artigo 54, p. 46) ou um “espírito”, ou uma

“coisa pensante” (Carta a Chanut de 1º. de setembro de 1647, 2010, p. 630), a noção de um

ente sumamente perfeito seria realmente indefinida. Contudo, uma vez que a natureza de Deus

como um ente pensante é admitida, o problema da “incompreensibilidade” perde terreno.

Caso Deus seja considerado como “carecendo de todos os limites”, então o saber que

possuímos Dele não pode ser “intuitivo”; a substância divina, na condição de ser não-criada e

independente, não é uma substância no mesmo significado que as substâncias criadas

(Princípios da Filosofia, 1997, Parte I, Artigo 54, p. 46); e por ser Deus “infinito” ele possui

“seu próprio lugar”, nos conservando no nosso. Conclui-se que, “nós conhecemos Deus por

analogia – mas a analogia é rigorosa, mantendo um equilíbrio entre os aspectos em que

somos semelhantes a Deus (embora sem univocidade), e aqueles aspectos nos quais (sem

equivocidade) diferimos” (Cambridge Companion to Descartes, 2009, p. 237).

CONCLUSÃO

Ao longo do primeiro capítulo, percorremos o caminho intelectual traçado por

Descartes na Terceira Meditação com o objetivo de descobrirmos as razões que o levaram a

desenvolver as provas a posteriori da existência de Deus.

O Cogito pode ser observado nessa obra a partir de dois pontos de vista. Por um lado,

como verdade indubitável que revela pela evidência, definida como clareza e distinção, o

critério de verdade, possibilitando assim, revestir do caráter de verdade todas as idéias que

satisfaçam esse critério. Por outro lado, o Cogito é a intuição do eu pensante que condiciona

tudo o mais, e por nada é condicionado e, que, assim, representa o primeiro anel da cadeia de

certezas. É esse o “ponto fixo e seguro” que permitirá sustentar o mundo.

Contudo, no que tange ao valor da evidência em termos de critério aplicável as

ciências, a certeza de fato do Cogito não aboliu de direito a hipótese do Gênio Maligno. Essa

hipótese não permite uma passagem legítima da total certeza do Cogito para a total certeza

das outras idéias claras e distintas, tanto em relação à verdade do sujeito em si, quanto do

objeto em si. Desde que me separo do Cogito atualizado para objetivá-lo em relação a mim,

colocando-o no conjunto de conhecimentos que meu entendimento impulsivamente sempre

considerou verdadeiro, eu o encontro, assim como esses, ameaçado pela hipótese válida do

Gênio Maligno. Essa dúvida universal o reprova em meio às outras idéias claras e distintas,

pois assim como elas, trata-se apenas de uma representação. Sendo assim, a dúvida deve

continuar atingindo o valor objetivo do Cogito, além das demais idéias. Será necessário

estabelecer a certeza da certeza, ou seja, uma certeza de terceira potência para fixar o Cogito

definitivamente. Deus será, para Descartes, aquele que extinguirá a dúvida universal que fazia

tropeçar minha certeza subjetiva de fato, fazendo com que a necessidade imanente às coisas

apareça como fundamento de minhas necessidades interiores, e as necessidades de meu

pensamento claro e distinto revelem-se, assim, como a expressão direta da necessidade das

coisas. Portanto, Deus é o anel superior da cadeia de certezas que será colocado como o único

fundamento da ciência, em lugar do Cogito que é colocado apenas como ponto de partida.

No segundo capítulo, a exemplo do primeiro, seguimos a ordem das razões propostas

por Descartes na Quinta Meditação até encontrarmos a prova a priori da existência de Deus.

Conhecido também como argumento ontológico, encontramos nele, um problema dos mais

difíceis. Trata-se da doutrina que consiste em negar que a existência seja uma perfeição. O

que diferencia a realidade objetiva da idéia de Deus e a realidade formal de Deus é a

existência da coisa, presente na segunda e ausente na primeira. A partir do que se deveria

concluir que na realidade objetiva a imperfeição da existência da coisa representada, na

medida em que é apenas representada, não retira nada da perfeição intrínseca ao conteúdo da

idéia. Isso nos leva a afirmar que a existência em si não é uma perfeição, mas uma posição sui

generis, sem relação com a perfeição ou imperfeição da coisa. Assim, compreender-se-ia que

uma idéia pode se distinguir da coisa e, porém, a representar identicamente na sua perfeição;

visto que essa distinção, que consiste no fato de que ela é um conceito sem existência, não

retira nada do que é inerente à perfeição da coisa. Se a existência fosse uma perfeição, ou seja,

um predicado da coisa, o conceito nunca poderia ser apropriado à coisa, visto que faltaria

sempre na definição do conceito um dos predicados pertencentes à coisa. Sendo assim,

existiria uma diferença lógica entre a coisa e o conceito. Tal diferença afastaria o conceito em

relação ao seu objeto; o que é contrário a natureza do conceito. O conceito deixaria de ser o

conceito dessa coisa.

Todavia, o fato da imagem (ou idéia) do objeto ser privada da existência, a qual está

presente no objeto, constitui uma falha de perfeição de uma impressão no conteúdo da idéia

em relação à coisa que ela reflete. As idéias são para Descartes como pinturas ou imagens que

podem decair da perfeição da qual foram extraídas. Para todos os efeitos, pode-se,

seguramente dizer, que a realidade objetiva da idéia, por mais imperfeita que seja, “não é um

puro nada”, em relação à realidade formal de seu objeto. O modo de ser pela qual uma coisa é

objetivamente ou por representação no entendimento através de sua idéia é imperfeita. À

primeira vista, a prova parece desmoronar diante disso. A realidade objetiva da idéia, sendo

imperfeita a esse ponto, como é possível tirar dessa mesma realidade objetiva a existência de

um ser perfeito, em nome de um princípio de causalidade que me autoriza a postular com toda

a certeza, uma realidade formal, pelo menos, equivalente, mas nunca superior em perfeição

em relação à realidade dos efeitos? A dificuldade parece insolúvel.

No terceiro capítulo, abordamos tomando como referência os Princípios da Filosofia,

todas as provas da existência de Deus de uma única vez. Para tanto, ao invés de trilhar passo a

passo, o itinerário intelectual percorrido por Descartes, tratamos de analisar as provas

diretamente, escolhendo os artigos mais relevantes para esse objetivo. Que Descartes tenha

invertido a ordem na apresentação das provas, não é algo que gostaria de me deter, contudo, o

título dessa obra pode-nos render uma discussão proveitosa. Na carta prefácio à tradução

francesa, Descartes afirma que o Cogito é o primeiro princípio donde se deduz a verdade das

outras coisas; em primeiro lugar deduz-se o conhecimento de Deus e, desses dois princípios, o

conhecimento dos corpos extensos. Vale frisar que, de acordo com esta exposição da carta

prefácio, somente o Cogito é propriamente princípio, já que Deus é deduzido do próprio

Cogito.

Todavia, o Cogito, longe de ser a natureza simples absoluta, só pode ser pensado de

modo claro e distinto por intermédio do perfeito como única razão absoluta. Eu não posso

pensar-me sem a idéia de perfeição, pois a consciência que tenho de mim é de um ser

imperfeito. Essa consciência é impossível sem o conhecimento prévio da idéia de perfeito.

Sendo assim, a idéia de perfeito é condição do Cogito; o ser perfeito é a razão absoluta do

meu ser pensante, que por sua vez, é de natureza relativa. A intuição atual que permite saber

que eu sou faz-me saber rapidamente que eu sou, não apenas um eu pensante em geral, mas

um eu pensante finito em geral; não apenas um pensamento consciente de sua existência, mas

um pensamento consciente, inclusive, da imperfeição do seu ser. Sendo assim, consciência de

mim mesmo e consciência do perfeito são unidas numa intuição única e indivisível. O

conhecimento separado do Cogito como simples consciência de si é, por conseguinte, um

conhecimento incompleto, visto que ele não pode ser pensado claro e distintamente a não ser

que se reporte à natureza simples absoluta que lhe condiciona. Ele é nele mesmo menos claro

e distinto que o conhecimento do verdadeiro Deus. Sendo primeira razão, Deus é conhecido

antes do Cogito, pois uma ciência rigorosa envolve clareza e distinção. Ora, mesmo que

encontremos, no decorrer da análise, o Cogito antes de Deus, é ainda um conhecimento

imperfeito, que apenas o conhecimento de Deus possibilita transformar em conhecimento

completo. Por essa razão, a certeza de toda ciência depende do conhecimento de Deus, de

sorte que antes que o conhecesse, não poderia conhecer coisa alguma. Não se poderia a partir

disso, supor, não apenas que Deus me antecede ontologicamente, por ser eu criado por Ele,

mas também epistemologicamente, por conhecê-lo antes de mim mesmo?

No quarto capítulo, abordamos o artigo denominado de O Conceito de Realidade

Objetiva na Terceira Meditação de Descartes, escrito por Ethel Menezes Rocha. O artigo em

pauta teve como objetivo problematizar a tese de que a intencionalidade da representação na

teoria cartesiana das idéias impõe a aceitação de um tipo de existência de uma realidade que

se difere e não depende da substância pensante e da substância pensada, de tal maneira que

consistiria no objeto da percepção. Para tanto, foi necessário demonstrar que a realidade

objetiva da idéia e a realidade formal da idéia são aspectos de uma única entidade e que a

realidade objetiva é, em relação à realidade formal, consequência de sua função essencial. A

função essencial da realidade formal, como foi visto, é a de determinar uma unidade diferente

do espírito e possível de existir (a função de dirigir a idéia para algo possível fora dela). Disso

resulta, então, que esse conteúdo é intrínseco ao ato representativo e não tem existência

ontológica própria, mas é imanente a esse ato, que consiste em ser um modo do pensamento

caracterizado por essa função essencial (determinar um conteúdo da idéia possível de existir).

Contudo, a realidade objetiva da idéia de Deus não pode ser elucidada por essa

realidade formal da substância pensante finita, em razão do princípio de causalidade (sendo a

idéia de Deus, uma idéia do infinito, sua realidade objetiva não pode ser elucidada pela

realidade formal do pensamento finito). Se realidade objetiva e realidade formal da idéia são

aspectos diferentes de um mesmo ato do pensamento, ambos devem possuir o mesmo

princípio elucidativo e esse não precisa ser necessariamente a realidade formal da substância

pensante finita. No caso da idéia de Deus, por ser um caso limite, seu conteúdo só pode ser

elucidado pela realidade formal da própria coisa. Como vimos, a realidade objetiva de uma

idéia consiste na determinação de um objeto externo possível através de sua distinção com

relação à substância pensante. Sendo assim, uma realidade objetiva com o máximo de

atributos separados da substância pensante finita é aquela que se diferencia de modo máximo

dessa substância pensante. Se a idéia de Deus tem o máximo de realidade objetiva porque tem

suas propriedades infinitas distintas de modo mais completo da substância pensante, tendo em

vista que as propriedades dessa são finitas, então essa realidade objetiva não resulta numa

possibilidade de algo externo, mas numa necessidade de algo externo. A questão é se a

passagem da possibilidade a necessidade é legítima nesse caso.

Uma questão importante tratada no quinto capítulo versa sobre a noção de “naturezas

verdadeiras e imutáveis”. Essa noção, fundamental para o Argumento Ontológico, foi

desenvolvido por Descartes principalmente na Quinta Meditação. As naturezas verdadeiras e

imutáveis consistem nos conteúdos de algumas das “idéias” que o sujeito descobre nele

próprio; e procura demonstrar que são bem distintos de outros conteúdos de pensamento que

possa ter inventado. Descartes, a principio, apresenta essa noção como exemplificada por

conceitos geométricos, conceitos esses que fornecem os princípios básicos da física.

Contudo, na Quinta Meditação, ele passa para uma exposição de uma versão do

Argumento Ontológico em que a distinção entre naturezas verdadeiras e imutáveis e idéias

factícias tem uma função primordial. Muitos críticos contemporâneos de Descartes e

interpretações filosóficas atuais discutem a noção de naturezas verdadeiras e imutáveis como

aparece no Argumento Ontológico. Em particular, nas Primeiras Respostas, Descartes retoma

a distinção entre naturezas verdadeiras e imutáveis e idéias factícias com o intuito de

neutralizar a objeção de Caterus à sua prova da existência de Deus na Quinta Meditação. Um

assunto relevante nessa discussão é a de que, em conjunto, essas naturezas constituem o único

conteúdo de idéias que Descartes considera inata.

Ocorre que Descartes parece não conseguir estabelecer uma distinção clara entre

naturezas verdadeiras e imutáveis e conteúdos inventados. Em primeiro lugar, Descartes

fornece critérios diferentes para a distinção na Quinta Meditação e na argumentação

apresentada nas Primeiras Respostas. Em segundo lugar, os dois critérios de distinção são

vulneráveis a contra-exemplos. Na Quinta Meditação, Descartes sustenta que a distinção entre

naturezas verdadeiras e imutáveis e idéias factícias implicam que apenas as primeiras, mas

não as últimas, possuem “consequências imprevistas e indesejadas”. No artigo denominado

“Naturezas Verdadeiras e Imutáveis”, Margaret D. Wilson oferece um contra-exemplo

bastante plausível que coloca em questão a eficácia do critério de “consequências imprevistas

e indesejadas”. Trata-se da idéia de Onk, definido como “a primeira forma de vida

extraterrestre a ser descoberta pelo homem”. Embora seja uma idéia claramente factícia,

pode-se tirar dela consequências a princípio não previstas, mas inegáveis quando há reflexão.

O inventor da idéia de Onk, por exemplo, pode conceber por uma simples reflexão que, algo

para ser uma forma de vida, deve possuir a capacidade de assimilar alimento e deve ter

potencial reprodutivo. Sendo assim, “Onk assimila alimento” e “Onk tem potencial

reprodutivo” serão consequências necessárias não previstas. Nas Primeiras Respostas,

Descartes oferece um critério muito diferente para naturezas verdadeiras e imutáveis, a saber,

o fato de não serem analisáveis em componentes “por uma operação mental clara e distinta.

Esse critério daria conta do Onk, contudo, eliminaria triângulos, já que a noção de ângulos(s)

pode ser distinguida claramente da noção de três. Contudo, a idéia de triângulo é um dos

exemplos que servem de modelo para Descartes de uma idéia cujo conteúdo é uma natureza

verdadeira e imutável. Não havendo um critério eficaz na distinção entre as naturezas

verdadeiras e imutáveis das idéias factícias, qual seria a razão para afirmar que a idéia de

Deus é inata, não inventada pelo pensamento?

O objetivo do sexto capítulo foi analisar o artigo De volta ao Argumento Ontológico,

de Edwin Curley. Segundo esse autor, o Argumento Ontológico fracassa porque nele se

assume uma compreensão da natureza de Deus que é inconsistente. A definição de Deus

apresentada por Descartes é de um ser sumamente perfeito. Mas é possível que um ser reúna

todas as perfeições? Existem alguns problemas em conciliar alguns dos atributos de Deus com

outros. A primeira lista dos atributos divinos de Descartes, por exemplo, incluem as

propriedades de onipotência, criação do meu ser, sumamente bom e fonte de verdade. Se Deus

é todas essas coisas, como é possível que eu, sua criatura, cometa erro? Descartes parece

resolver o conflito a partir do conhecimento da liberdade humana, e sua função nos nossos

juízos sobre verdade e falsidade. Assim, ele pode reconciliar a criação por Deus de mim como

sou com sua bondade e verdade. A solução para essa dúvida implica que Deus nos criou não

como seres que inevitavelmente cometem erros, mas como seres cujo uso da liberdade

invariavelmente conduz a erros. Contudo, como podemos reconciliar a liberdade com a

onipotência de Deus? Sendo Deus onipotente, nunca poderíamos realizar algo que Deus não

tivesse preordenado. Se for assim, então não somos livres. Em última análise, a solução de

Descartes para esse enigma é que não deveríamos abandonar algo que apreendemos com

máxima evidência, ou seja, nossa liberdade, pois isso se choca com algo que sabemos não

compreender, a saber, o poder infinito de Deus. Nesse caso, poderíamos levantar a seguinte

questão: o discurso acerca da “incompreensibilidade” não teria a função de ocultar problemas

acerca da inconsistência dos atributos divinos?

O sétimo e último capítulo foi dirigido à análise do artigo A idéia de Deus e as provas

de sua existência, de Beyssade. Um dos assuntos abordados nesse artigo versa sobre a

distância entre o infinito incompreensível e eu mesmo. Ora, sendo algo causa eminente, é

evidente que ele pode não ser semelhante ao seu efeito. Não é precisamente esse o caso de

Deus? Deus não é a causa eminente da idéia que o representa? Não é a idéia, na sua realidade

objetiva, um modo de ser menos perfeito que o modo de ser da realidade formal e, sendo

assim, uma decadência dessa? Ora, sendo Deus pressuposto como uma vontade absolutamente

livre e onipotente, Ele não poderia ser servo das exigências da idéia que encontro no meu

entendimento. Tendo colocado em mim sua idéia livremente, permanecendo acima dela, não

se poderia afirmar que a idéia de Deus não nos pode fazer conhecer quem Ele é (quid), mas no

máximo, que Ele é (quod)? Sua vontade não é, para nós, um abismo imperscrutável? Não são

inalcançáveis os seus fins? Levado ao extremo nessa direção introduzir-se-ia um agnosticismo

sem esperança.

Contudo, não seria pelo menos evidente que o Deus a que alcança a prova cartesiana

não é de modo algum um ser imóvel, modelo eterno de sua idéia em nós, mas uma

onipotência infinita, vontade livremente criadora que não tem nenhum outro limite à sua

onipotência a não ser a própria noção de onipotência. Esse Deus, definido unicamente pela

causa eficiente e que se coloca além da margem da idéia, não seria inconciliável com a noção

de um arquétipo impassível, privado de vida, simplesmente refletido na sua idéia em nós

como um espelho? Assim, nas provas da existência de Deus somos desafiados a estabelecer

uma justa posição entre a incompreensibilidade do infinito, que enfatiza a distância

insuperável que existe entre eu mesmo e o ser sumamente perfeito, e a analogia entre ambas

as substâncias, que nos aproxima Dele indistintamente.

REFERÊNCIAS

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