as políticas de atenção à criança e ao adolescente do município...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA INSTITUCIONAL
DENISE CARLA GOLDNER COELHO
As Políticas de Atenção à Criança e ao Adolescente
do Município de Serra: Desconstruindo Vilões e Mocinhos
Vitória 2010
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DENISE CARLA GOLDNER COELHO
As Políticas de Atenção à Criança e ao Adolescente do Município de Serra:
Desconstruindo Vilões e Mocinhos
Dissertação apresentada à apreciação do Programa de Pós-graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Gilead Marchezi Tavares.
Vitória 2010
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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Coelho, Denise Carla Goldner, 1974- C672p As políticas de atenção à criança e ao adolescente do
município de Serra : desconstruindo vilões e mocinhos / Denise Carla Goldner Coelho. – 2010.
93 f. : il. Orientador: Gilead Marchezi Tavares Dissertação (Mestrado em Psicologia Institucional) –
Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais.
1. Políticas públicas. 2. Crianças. 3. Adolescentes. 4. Abrigos
para jovens. 5. Menores - Estatuto legal, leis, etc. 6. Assistência social I. Tavares, Gilead Marchezi. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Ciências Humanas e Naturais. III. Título.
CDU: 159.9
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À Política de Atenção à Criança e ao Adolescente do Município de Serra
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AGRADECIMENTOS
“Exaltar-te-ei, ó Deus meu e Rei; Bendirei o teu nome para todo o sempre.”
Salmo 145, 1 À Gilead pelo carinho, apoio, compreensão e sabedoria. Foi quem sempre apostou
na possibilidade deste trabalho, independente dos desafios vividos pelo caminho...
foram todos atravessados.
Gilead, você foi muito mais que uma orientadora. Cada página deste trabalho
não existiria se não fosse seu investimento afetivo e afirmativo em minha
formação.
À Ana Lúcia pelo acolhimento, zelo e disponibilidade para orientação, sempre com
muito carinho e respeito.
Aninha, seu acolhimento e apoio foram importantíssimos para mim durante
este mestrado.
À Professora Maria Lívia do Nascimento por ter aceito o convite, participando de
nossa banca.
Prezada Professora, tenho encontrado em suas produções grandes parcerias
e conexões. A partir delas tenho encontrado novas formas de produzir
políticas públicas de atenção à criança e ao adolescente em meu município.
À Sônia Pinto de Oliveira, minha orientadora no trabalho de conclusão do curso de
“Especialização em Transdisciplinaridade e Clínica” entitulado: “Lobo em pele de
cordeiro – manicômios do contemporâneo”:
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Soninha, indiscutivelmente este trabalho é atravessado pelo “Lobo” – Você
lançou sementes, frutos estão por toda parte, este aqui é um deles.
À Janice, grande colaboradora, guerreira nos encontros e desencontros desta
pesquisa:
Janice, sua companhia e suas questões foram importantíssimas para a
construção deste trabalho. Delicada e sensível, mesmo sem saber por onde
deveria caminhar, construiu o caminho.
Ao Sistema de Garantia de Direitos, destacando o Conselho Municipal dos Direitos
da Criança e do Adolescente pelo voto de confiança, os Serviços de Acolhimento
Institucional que abriram suas portas para a possibilidade de discutir suas práticas e
a Secretaria de Promoção Social do Município de Serra:
Queridos atores da política, gostaria muito de ter produzido mais “bons
encontros” entre nós. Acredito que poderemos construir muito ainda unindo
nossas forças.
Aos colegas mestrandos, aos professores e à Soninha pelo acolhimento dialogado,
por tudo o que construímos juntos na nossa rede:
Caros amigos, não tenho palavras para descrever a falta que eu senti dos
nossos encontros neste último ano – a participação de vocês neste trabalho e
na minha vida foi valorosa.
À minha família – pais, irmãos, cunhados, sobrinhos – que muitas vezes foram
privados de minha companhia:
À vocês, que nem sempre compreenderam minha distância, obrigada por
estarem por perto.
Ao Francisco Felipe, pelo apoio e incentivo, por acreditar e apostar neste projeto, por
tantas barreiras transformadas em pó:
Meu Amor, alimentei-me do seu companheirismo neste tempo todo. Muitas e
muitas vezes foram seus braços que me sustentaram nessa longa jornada.
Ao Luiz Felipe que fez parte comigo de cada um destes momentos, que entrou na
minha vida junto com o mestrado, me compondo, tornando-me outra e construindo
em mim formas de ser mãe.
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Meu filho, como pensar neste mestrado sem você? Se desde minhas
primeiras aulas você já me acompanhava no ventre; se em seus primeiros
dias de vida já sugava leite produzido em meio a Lourau, Guattari, Deleuze,
Nascimento; se nem três meses tinha e já estava fazendo abertura do
Encontro de Subjetividade e Questões Contemporâneas; se aos 7 meses
permitia que sua mãe depois das 11 horas de trabalho por dia ainda ficasse
presa ao computador e aos textos; se em todas as viagens para congressos
se fez presente; se até hoje, provoca-me a pensar na política de atenção à
infância e à juventude... você, para mim, foi a intensidade deste mestrado.
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“...todo trabalho acadêmico
é uma ferramenta de luta.”
Estela Scheinvar
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Listas de Abreviaturas e Siglas
ABRAPIA _ Associação Brasileira de Proteção à Infância e à Adolescência
CBIA _ Centro Brasileiro para a Infância e adolescência
CDCA _ Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente
CF _ Constituição Federal
CIVIT _ Centro Industrial de Vitória
CNAS _ Conselho Nacional de Assistência Social
CNBB _ Confederação Nacional dos Bispos do Brasil
COHAB _ Companhia Habitacional
CONANDA _ Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
DCA _ Departamento da Criança e do Adolescente
DOU _ Diário Oficial da União
Ecriad _ Estatuto da Criança e do Adolescente
ES _ Estado do Espírito Santo
EUA _ Estados Unidos da América
Febem _ Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor
FONACRID _ Fórum Nacional de Dirigentes Estaduais de Políticas Públicas para a Criança e o Adolescente
FUNABEM _ Fundação Nacional do Bem-estar do Menor
IBGE _ Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INOCOOP _ Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais
IPEA _ Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
LOAS _ Lei de Organização da Assistência Social
MJ _ Ministério de Justiça
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MPAS _ Ministério da Previdência e Assistência Social
NOB/SUAS _ Normas Operacionais Básicas do Sistema Único de Assistência Social
ONU _ Organização das Nações Unidas
PNAS _ Política Nacional de Assistência Social
PNCFC _ Plano Nacional de Proteção, Promoção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária
Rede-SAC _ Rede de Serviços de Ação Continuada
SAM _ Serviço de Assistência ao Menor
SEAS _ Secretaria de Estado de Assistência Social
SUAS _ Sistema Único da Assistência Social
UNICEF _ Fundo das Nações Unidas para Infância
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SUMÁRIO
1. APRESENTAÇÃO ........................................................................ 13
2. LUTAS, CLAMORES, RUÍDOS, ENFRENTAMENTOS:
DIFERENTES ENCRUZILHADAS HISTÓRICAS NA
ATENÇÃO À INFÂNCIA E À JUVENTUDE .........................
16
2.1. Composições Internacionais ......................................................... 17
2.2. A movimentação no Brasil pelos Direitos da Criança e do
Adolescente ......................................................................................
19
2.3. A Doutrina de Proteção Integral compondo o Ecriad ................... 22
2.4. A regulamentação das políticas de Atendimento, Promoção e
Defesa da Criança e do Adolescente .............................................
24
2.5. As Políticas de Assistência Social ................................................. 26
2.6. As regulamentações do CONANDA ............................................... 28
2.7. O Acolhimento Institucional ........................................................... 31
2.8. Como podem normas tão parecidas dizerem algo totalmente
diferente? ..........................................................................................
32
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3. SERRA ADORADA: A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS VOLTADAS PARA A ATENÇÃO À
CRIANÇA E AO ADOLESCENTE ...........................................
35
3.1. Mapeando o espaço: Município da Serra/ES ................................. 35
3.2. A Exclusão, o Risco Social: Propostas de Políticas Públicas...... 37
3.3. Os Serviços de Acolhimento Institucional .................................... 41
4. CAMINHOS PERCORRIDOS PARA A
DESCONSTRUÇÃO DE VILÕES E MOCINHOS .................
44
4.1. Vilões e Mocinhos? O que se quer dizer com isso? .................... 44
4.2. Quando as políticas entram na história da pesquisa ................... 47
4.3. A Pesquisa-intervenção e os passos cartográficos ..................... 49
4.4. A primeira orientação do percurso: a participação na
Conferência Municipal dos Direitos da Criança e do
Adolescente do Município de Serra/ES .........................................
51
4.5. A segunda orientação do percurso: O estar nos “abrigos” ........ 53
4.6. A terceira orientação do percurso: os encontros ......................... 55
4.6.1. Primeiro encontro: esfacelando expectativas..................................... 57
4.6.2. Segundo encontro: risco de que?....................................................... 58
4.6.3. Terceiro encontro: abrigos-disfarces .................................................. 59
4.7. A quarta orientação do percurso: A restituição ............................ 60
4.8. Algumas ferramentas ...................................................................... 63
4.8.1. Estar na rede: alguns pontos de pertencimento ................................ 64
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5. AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO À CRIANÇA
E AO ADOLESCENTE DO MUNICÍPIO DE SERRA –
EXPERIÊNCIA NA PESQUISA ................................................
72
5.1. A capacitação e o esvaziamento do público ................................. 76
5.2. Encontros e desencontros com a legislação ................................ 78
5.2.1. Existem marcas que diferenciam as crianças de abrigo das crianças
da comunidade? O que percebem os profissionais de abrigo? .........
78
5.2.2. O cuidado de si e algumas encruzilhadas vividas nos Serviços de
Acolhimento Institucional ...................................................................
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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................... 84
7. REFERÊNCIAS ............................................................................ 86
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1. APRESENTAÇÃO
“Aos rebeldes cotidianos e aos cotidianos rebeldes.
Este texto foi escrito a muitas mãos, mais do que se
possa contar ou imaginar. Com certeza você
encontrará a sua aqui: se não encontrar, aqui vai o
convite. Faça seu registro construindo-desconstruindo”
Heckert et al. (1999)
Este trabalho quer dar passagem aos ruídos de estranhamento que se insurgem no
Município de Serra no que tem se configurado como política de atenção à criança e
ao adolescente, e, em especial, aos abrigos. Estes últimos carregam em sua história
as marcas da assistência social, que, por muitos anos, impôs às famílias abandonar
seus filhos para que os mesmos fossem “assistidos nas “rodas de expostos”, nas
“FEBENs” e em tantas outras estruturas de modelo carcerário amplamente
discutidas no livro de minha autoria “Lobo em pele de cordeiro – manicômios do
contemporâneo: uma contribuição para se pensar abrigos de crianças” (COELHO,
2007). Com a emergência desse e de outros trabalhos que discutem a questão
“abrigo” para crianças e adolescentes, têm se (re)produzido discursos carregados de
culpabilização, de “vilanização” dos abrigos, ou seja, discursos que fazem emergir
posturas dicotômicas, binárias de se ver a questão. Segundo Nascimento e Coimbra
(2001), cada conceito que se opõe a outro - como, teoria e prática, saber e poder,
vilão e mocinho – encerra uma delimitação e uma identidade, pressupondo que seria
possível distingui-los, separá-los e identificar suas naturezas. Todavia, as autoras
afirmam que
A potência do pensamento de Foucault em nossas práticas diz respeito à desconstrução de todas essas crenças ao apontá-las enquanto produções histórico-sociais, indicando a multiplicidade presente nos diferentes objetos que estão no mundo, negando com isso a possibilidade de apreendê-los de forma objetiva e neutra e colocando em questão nosso conhecimento baseado em verdades (COIMBRA; NASCIMENTO, 2001, p. 247).
Também aqui, buscamos romper com a lógica binária da perseguição ao lobo e
glorificação do cordeiro, evidenciando práticas sociais cotidianas que apontam ora
para produções de formas rígidas, mortificadoras, ora para a expansão da vida,
invenção de novos modos de ser dentro dos abrigos. Este trabalho teve como
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proposta catalizar o sentido das políticas públicas de atenção à criança e ao
adolescente, utilizando os abrigos como analisadores. A tentativa fez-se no sentido
de investigar as tramas desta política que mantêm e atualizam a proposta abrigo no
município de Serra/ES, procurando conhecer seus discursos/práticas, seus
desdobramentos e as possibilidades de escape a estes processos. Assim, não cabe,
neste espaço, julgamentos acerca do trabalho desenvolvido pelos Serviços de
Acolhimento Institucional1 do município
[...] pois não acreditamos que os discursos se mantenham isolados ou que se deem a partir de simples relações causa/efeito, mas que se produzem a partir de múltiplas relações de saber/poder que perpassam e vão dar cor ao funcionamento daquilo que se toma por verdade (HADLER; GUARESCHI, 2010, p. 21).
O primeiro capítulo, “Lutas, clamores, ruídos, enfrentamentos: diferentes
encruzilhadas históricas na atenção à infância e à juventude”, realiza uma análise da
constituição dos parâmetros legais na atenção à criança e ao adolescente, em
especial aqueles que regulamentam os Serviços de Acolhimento Institucional. Traz
elementos para pensar as composições internacionais e a movimentação nacional
que se fizeram presentes na elaboração das legislações pertinentes ao Direito da
Criança e do Adolescente no Brasil; e no desenho do Estatuto da Criança e do
Adolescente, a presença da Proteção integral, da participação da sociedade civil na
elaboração das políticas públicas e na regulamentação do atendimento, promoção e
defesa infanto-juvenil. Considerando que neste trabalho o discurso/prática do
Serviço de Acolhimento Institucional compõe os dados para a análise da política de
atenção à criança e ao adolescente. Este capítulo ainda trata da constituição da
Assistência Social, das regulamentações do Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente - CONANDA - e do acolhimento institucional.
Em “Serra adorada: a construção de Políticas Públicas voltadas para a atenção à
criança e ao adolescente” há o mapeamento do município de Serra, localidade na
qual se construíram os dados para a pesquisa: constituição do município, da
população, da assistência. Para a discussão das políticas públicas voltadas para a
1 Trata-se da medida de proteção à criança e ao adolescente em situação de risco pessoal e social, cujas famílias ou responsáveis encontrem-se temporariamente impossibilitados de cumprir sua função de cuidado e proteção. A nomenclatura foi introduzida no Estatuto da Criança e do Adolescente através da Lei Federal n° 12.010/2009, em substituição à terminologia “abrigo em entidade”.
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atenção à criança e ao adolescente, problematiza o conceito de exclusão e risco
social, mostrando o quanto estes têm sido relacionados à pobreza, ao perigo e à
necessidade de “esterilização” da população pobre brasileira como forma de
minimizar os males sociais. Estas propostas, muitas vezes, estão presentes nas
propostas de projetos, programas e serviços dirigidos à pobreza, entre elas estão os
Serviços de Acolhimento Institucional.
“Caminhos percorridos para a desconstrução de vilões e mocinhos” relata o
processo de construção da pesquisa. Simula movimento. Deixa à mostra o que
encontrou passagem, o que mudou de rumo, as questões, os encontros, a história.
Um capítulo heterogêneo, composto por várias linhas. Relata o nascer de uma
pesquisa: uma emersão das questões suscitadas na prática profissional. Seu
desenvolvimento mostra produções de saberes/modos de trabalhar as políticas
públicas. Analisa o título da pesquisa, anuncia o objetivo, qualifica a metodologia,
relata as orientações do percurso, cita algumas ferramentas e, enfim, realiza a
análise de alguns pontos de pertencimento.
Por fim, “As Políticas Públicas de Atenção à Criança e ao Adolescente do Município
de Serra – experiência na pesquisa” faz algumas costuras, algumas observações e
análise do vivido neste estudo.
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2. LUTAS, CLAMORES, RUÍDOS, ENFRENTAMENTOS:
DIFERENTES ENCRUZILHADAS HISTÓRICAS NA ATENÇÃO À
INFÂNCIA E À JUVENTUDE
A democracia não é um produto da razão
humana, a democracia é uma obra de
arte, é um produto de nosso emocionar,
uma maneira de viver de acordo com o
desejo de uma coexistência dignificada na
estética do respeito mútuo.”
Maturana e Verden-Zöller
A história que pulsa nestas páginas retrata um agonismo das diversas forças no
campo da “atenção” à infância. Nesse sentido, este trabalho não procura por uma
origem, uma identidade, sequer uma causa, no que se refere às práticas envolvidas
no atendimento e no acolhimento institucional de crianças. Não, não é isso. A
história pensada aqui é processual, é mutante,
“[...] é resultado de jogos múltiplos, de inúmeros afrontamentos entre forças e saberes, é fruto da emergência de uma dispersão de acontecimentos que são conseqüência de embates, que emergem em meio a forças litigantes” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2004, p. 82).
Os relatos de prontuários – vidas cinzas e sem brios de centenas de crianças e de
adolescentes –, de entidades, de heróis invisíveis, de outros tantos incertos
compõem os eventos que se unem nesta narrativa para buscar “[...] desconstruir a
idéia de que são suas biografias, seus locais de moradia, seus modos de vida não
hegemônicos que os levam, por exemplo, [...] ao recolhimento deles pelo Estado”
(NASCIMENTO; CUNHA; VICENTE, 2008, p. 03). Sabendo que a história não tem
linearidade, previsibilidade, regularidades, racionalidade, trazemos fragmentos que
procuram dilacerar identidades menoristas, perigosas, desestruturadas,
incompetentes.
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2.1. Composições Internacionais
A legislação vigente no país em matéria de criança e adolescente foi fruto de
movimentos dentro e fora do Brasil. Em 1948, já se proclamava pela Assembléia
Geral das Nações Unidas a “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, a qual
reconheceu como direitos fundamentais de todas as pessoas tanto os direitos civis e
políticos como os direitos econômicos, sociais e culturais. Tal Declaração, fruto de
intensos embates, introduziu na pauta do direito contemporâneo a concepção de
universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. Em seu
artigo 25, parágrafo segundo, já estabelecia que: “A maternidade e a infância têm
direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora
do matrimônio gozarão da mesma proteção social.” Porém, para a promoção e
defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes num sistema estratégico foi
necessária a criação de outros instrumentos e mecanismos de promoção e proteção
de tais direitos.
Essa proteção especial atribuída aos direitos humanos de crianças e adolescentes
encontra-se consagrada em alguns documentos internacionais específicos, como a
“Declaração Universal dos Direitos da Criança”, de 1959, que baseada em 10
princípios, considera que todas as crianças2 possuem direito à igualdade, sem
distinção de raça, religião ou nacionalidade; à especial proteção para o seu
desenvolvimento físico, mental e social; a um nome e a uma nacionalidade; à
alimentação, moradia e assistência médica adequadas para a criança e a mãe; à
educação e a cuidados especiais para a criança física ou mentalmente deficiente; ao
amor e à compreensão por parte dos pais e da sociedade; à educação gratuita e ao
lazer infantil; a ser socorrido em primeiro lugar, em caso de catástrofes; a ser
protegido contra o abandono e a exploração no trabalho e a crescer dentro de um
espírito de solidariedade, compreensão, amizade e justiça entre os povos.
2 A “Declaração Universal dos Direitos da Criança” considera criança toda pessoa com até 18 anos.
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Segundo Lemos (2008), a ONU (Organização das Nações Unidas), através do
Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF3), interveio em nome da produção
da segurança e dos direitos humanos em países considerados atrasados e pobres,
como o Brasil, com vistas a promover ajustamento social, minimizando qualquer tipo
de ameaça à ordem social através de políticas compensatórias que assegurassem o
controle social com a participação acrítica da população na “proteção” das crianças
e dos jovens. Proteger, neste sentido, é, antes de tudo, segundo a referida autora,
prevenir futuros gastos com políticas assistenciais e de segurança, garantindo o
desenvolvimento capitalista proposto pela ONU.
Com vistas a promoção destes interesses e conscientizar os políticos de
investimentos na área de proteção à criança, em 1976, a Assembléia Geral das
Nações Unidas proclamou o ano de 1979 como o “Ano Internacional da Criança”.
Por consequência deste e de outros movimentos internacionais, a Comissão dos
Direitos do Homem criou um Grupo de Trabalho, com vistas a redigir uma
Convenção sobre os Direitos da Criança. Dez anos depois, em 1989, a “Convenção
Internacional dos Direitos da Criança” foi aprovada pela ONU. Trata-se de um
importante tratado de direitos humanos, sendo ratificado por todos os países
membros da ONU com exceção dos EUA (Estados Unidos da América) e da
Somália. Diferentemente da Declaração dos Direitos da Criança, a Convenção exige
dos Estados e países, que firmaram o acordo, a responsabilidade jurídica pelo seu
cumprimento, ou seja, ela concede força jurídica internacional aos direitos da
criança, enquanto a Declaração de 1959 impunha apenas obrigações de caráter
moral. Universalista, a Convenção promove rupturas com processos culturais e
modos de vida dos países a ela sujeitos, enquadrando-os em uma racionalidade
utilitarista, visando, acima de tudo a lógica do capital.
Os enlaces internacionais na busca pela garantia dos Direitos da Criança
continuaram se realizando, como o “Encontro Mundial de Cúpula pela Criança”,
realizado nas Nações Unidas, em Nova Iorque, no dia 30 de setembro de 1990, com
o objetivo de assumir um compromisso conjunto de implementação de um projeto 3 O Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF está presente no Brasil desde 1950. Têm apoiado algumas transformações na área da infância e da adolescência no País, como as campanhas de imunização e aleitamento, a aprovação do artigo 227 da Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, o movimento pelo acesso universal à educação, os programas de combate ao trabalho infantil, as ações por uma vida melhor para crianças e adolescentes no Semi-árido brasileiro (Fonte: Unicef Brazil - http://www.unicef.org/brazil/pt/overview.html)
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interventivo pela proteção às crianças e aos adolescentes forjando adultos dóceis e
produtivos.
2.2. A movimentação no Brasil pelos Direitos da Criança e do Adolescente
Os movimentos sociais em defesa dos direitos da Criança e do Adolescente na
década de 80 no Brasil foram diversos, entre eles destacam-se: a Pastoral da
Criança (criada em 1983); o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (de
1985), a Pastoral do Menor da CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil),
a Frente Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, a Articulação Nacional
dos Centros de Defesa dos Direitos, a Associação Brasileira de Proteção à Infância
e à Adolescência (ABRAPIA), os dirigentes e técnicos ligados à articulação “Criança
e Constituinte” e o FONACRID (Fórum Nacional de Dirigentes Estaduais de Políticas
Públicas para a Criança e o Adolescente).
Em outubro de 1986, com a “Carta Aberta à Nação” (Documento elaborado a partir
das discussões levantadas durante o IV Congresso “O Menor na Realidade
Nacional”, promovido pela Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança)
começa a se desenhar nova proposta de Lei para a proteção à Criança e ao
Adolescente.
Tais movimentos eram representados por diversos segmentos da sociedade, de
diferentes convicções filosóficas, políticas, religiosas e profissionais, mas que
acreditavam no novo momento do país: a democracia. Participantes ativos na
construção do respeito aos direitos humanos, declararam vários princípios para a
nova lei de proteção às crianças e aos adolescentes, dentre os quais podemos citar:
1) estabelecer em lei os princípios da Declaração Universal dos Direitos da Criança
(ONU, 1959); 2) reconhecer as crianças e os adolescentes como cidadãos; 3)
basear-se nos princípios da equidade e da justiça social; 4) garantir, em todas as
esferas de governo, os direitos básicos da criança e do adolescente; 5) garantir a
participação dos movimentos e entidades da sociedade civil nas discussões e
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definições da política de atendimento à criança; 6) a desinstitucionalização infantil;
entre outros.
Como um novo momento estava nascendo no Brasil com a eclosão dos movimentos
sociais e com a elaboração da nova Carta Magna, a Assembléia Nacional
Constituinte, numa proposta democrática, participativa e de respeito aos direitos
humanos, incluiu, no texto final da Constituição Federal/88, artigos que definiam os
direitos amplos de todas as crianças e adolescentes do Brasil, entre eles o artigo
227, que foi a base para a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente
(Ecriad4):
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (CF/88, Art. 227 - Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010).
E para regulamentar o artigo 227 da Constituição, elaborou-se, com grande
mobilização nacional, a Lei 8.069, de 13 de Julho de 1990, denominada Estatuto da
Criança e do Adolescente. O Ecriad é considerado um documento exemplar de
direitos humanos, concebido a partir do debate de ideias e da participação de vários
segmentos sociais envolvidos com a causa da infância e da juventude no Brasil,
constituindo-se como instrumento jurídico de plena legitimidade histórica, propondo
uma nova forma de ver a criança e o adolescente de modo a por fim a longos anos
de discriminação e opressão, em especial à infância pobre.
Faz-se necessário afirmar, no entanto, que não basta dispor deste instrumento
jurídico para que a proteção a crianças e adolescentes se efetive. A concretização
de seus ideais depende da formulação de políticas públicas que promovam práticas
de respeito aos direitos do outro, construídas no reconhecimento das diferenças, na
experiência e na vida pública. 4 Assim como Rosa e Tassara (2007), adotamos a abreviatura Ecriad para referirmo-nos ao Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal 8069/90), em vez da sigla ECA. A adoção da abreviatura Ecriad diz respeito a uma decisão ético-política em busca de rompimento com práticas perversas presentes no Estado do Espírito Santo que associam a sigla “ECA” a seu homônimo: interjeição de espanto referente a algo nojento, insurpotável. É preciso ressaltar que a abreviatura Ecriad tem sido amplamente utilizada no referido estado pelos movimentos sociais, pelo poder público e pela academia.
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A aplicação do Estatuto nestes 20 anos de história tem se deparado com grandes
muralhas institucionais, desde o próprio conceito de criança e de proteção, às
relações que se produziram com o código de menores e seus efeitos nas relações
contemporâneas. Rastreando os caminhos e descaminhos do Ecriad, deparamo-nos
com diversos encontros, produções e impasses.
Formulado sobre 4 pilares básicos - Convenção Internacional das Nações Unidas
sobre os Direitos da Criança, Regras Mínimas das Nações Unidas para a
Administração da Justiça de Menores (Regras de Beijing), Diretrizes das Nações
Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil e Regras Mínimas das Nações
Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade -, o Ecriad evidencia
consonância com um contexto internacional de ruptura com a repressão, com o
assistencialismo e com a institucionalização.
As inovações da legislação referem-se principalmente a uma nova postura Política
na Atenção à criança e ao adolescente, dentre as quais estão: o conceito de criança
cidadã (Doutrina da Proteção Integral), a municipalização do atendimento, a
eliminação da situação irregular, a extinção da perda do Poder Familiar por
condições socioeconômicas dos pais, a participação popular paritária com o governo
na elaboração e fiscalização da atenção à criança e ao adolescente em todos os
níveis de governo (Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente) e a criação
dos Conselhos Tutelares. Estas propostas nasceram no embate com os antigos
códigos de menores, que os tratavam como objetos que necessitassem da tutela do
Estado (VERONESE, 1999).
Embora entendamos o caráter de luta social e de rompimento com velhas práticas
dos Códigos de Menores que o Ecriad encerra, acreditamos, em conjunto com
Scheinvar (2009), que ainda é preciso e urgente ler o Ecriad por meio de seus
efeitos, vendo-o como um espaço de guerra, de poder; lê-lo como “[...] um
dispositivo produtor de discursos, de verdades, de dominação, de possibilidades –
virtualidades instituintes de novas formas de subjetividades” (SCHEINVAR, 2009, p.
73).
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2.3. A Doutrina de Proteção Integral compondo o Ecriad
A Doutrina da Proteção Integral foi formulada na Convenção Internacional dos
Direitos da Criança aprovada pelas Nações Unidas em 20/11/1989. Ela promoveu
uma nova concepção para os direitos da criança e do adolescente: de meros objetos
da intervenção estatal passaram à condição de sujeitos de direitos.
Os Códigos de Menores, considerados por alguns autores como um “código penal
de menores” disfarçado de proteção, tratava crianças e adolescentes vítimas de
abandono, violência doméstica, pobreza, orfandadade, “vadiagem”, autores de atos
infracionais como meros objetos de intervenção estatal. Eram mantidos sob a tutela
do Estato, pois tais situações eram justificativas suficientes para que o Estado
atuasse determinando o abrigamento compulsório com o afastamento da família e a
internação sem tempo determinado. Seu sistema tutelar não diferenciava proteção e
sanção, todos eram privados de seus direitos e sua família não recebia qualquer
apoio.
Após o ingresso no abrigo, a “situação irregular” era resolvida, segundo os
parâmetros do Estado. Independentemente da idade que entrou, a criança só sairia
quando chegasse à vida adulta. Seres simplesmente ignorados, enclausurados,
esquecidos. Esta era a “proteção” Estatal.
Ter direitos garantidos, segundo a Doutrina da Proteção Integral, significa que
independentemente da origem socioeconômica, da idade, da raça/etnia, do gênero,
da estrutura familiar, da religião ou de qualquer outro critério, as crianças e os
adolescentes serão respeitados como seres humanos. Nesse parâmetro, o Estado
tem o dever de assegurar a efetivação de todos os direitos concedidos às crianças e
adolescentes: saúde, alimentação, educação, esporte, lazer, profissionalização,
cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária (Art. 4º do
Ecriad); não permitindo que sejam objeto de qualquer forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (Art. 5º do Ecriad).
Vale ressaltar, ainda, que todos esses direitos conferidos a crianças e adolescentes
são alcançados pelo princípio da prioridade absoluta, o qual prevê que devem ser
garantidos antes de quaisquer outros, ou seja, dentre os direitos fundamentais
24
reconhecidos a todas as pessoas, expressão de sua inerente dignidade, aqueles
relativos a crianças e adolescentes deverão estar em primeiro lugar. O Princípio da
Prioridade Absoluta assegura às crianças e aos adolescentes a primazia na
proteção e socorro, a precedência de atendimento, a preferência na formulação e
execução de políticas públicas e o privilégio na destinação dos recursos públicos.
Para garantir a formulação e controle de Políticas Públicas prioritárias para as
crianças e adolescentes, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a
participação dos segmentos sociais organizados nos conselhos dos Direitos. O
Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente (CDCA) é um órgão colegiado,
criado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Ecriad), com a função de
deliberar sobre a Política de Atenção à Criança e ao Adolescente em todos os
níveis: Federal, Estadual e Municipal de acordo com legislação específica para cada
localidade. O CDCA deve constituir-se paritariamente de representantes da
Sociedade Civil organizada e do Poder Público, procurando garantir o princípio
democrático das decisões. Além de deliberar, o CDCA deve também controlar as
ações da Política da Atenção à Criança e ao Adolescente (Art. 88, inciso II do
Ecriad).
Mesmo com a abertura para a sociedade civil participar da definição das políticas
públicas de atenção à criança e ao adolescente, Sheinvar (2006) argumenta que
para se falar em participação, mobilização e democracia não bastam as rotinas
formais dos conselhos (propostas, estratégias, alianças, mobilizações, reuniões). A
referida autora denuncia que os Conselhos dos Direitos da Criança e do
Adolescente podem se transformar numa forma de legitimar o “[...] poder instituído,
de fortalecer as estruturas privadas e, inclusive, a tradição clientelista”
(SCHEINVAR, 2006, p. 53).
Dagnino (2004) afirma que as estratégias neoliberais têm utilizado a sociedade civil
para produzir os resultados esperados, fragmentando e despotencializando suas
ações: “[...] setores da sociedade civil chamados a participar em nome da
‘construção da cidadania’ com freqüência subordinam sua visão universalista de
direitos e se rendem à possibilidade concreta e imediata de atender um punhado de
desvalidos” (DAGNINO, 2004, p. 158). Dessa forma, é importante observar que não
basta estar assegurado em lei a participação da sociedade civil na elaboração da
política pública para que se possa falar em democracia no Brasil.
25
2.4. A regulamentação das políticas de Atendimento, Promoção e Defesa da
Criança e do Adolescente
Quanto às políticas de atendimento, promoção e de defesa da infância e da
juventude no Estatuto da Criança e do Adolescente, observam-se três grandes
grupos (BRASIL, 1991): 1) Políticas Sociais Básicas (direito de todos e dever do
Estado e da sociedade); 2) Políticas Assistenciais ou Compensatórias (bens ou
serviços destinados às pessoas em situação de vulnerabilidade temporária ou
permanente em razão de qualquer tipo de privação) e 3) Políticas de Proteção
Especial (esquemas especiais de abordagem e encaminhamento para crianças e
adolescentes em situação de risco pessoal e social, com o objetivo de lhes garantir
respeito a sua integridade física, moral, psicológica e a salvo de qualquer forma de
crueldade).
Os Direitos Fundamentais estão minuciosamente descritos na primeira parte do
Ecriad, chamada Livro I, Parte Geral. Este Livro, além dos Direitos Fundamentais,
trata também das Disposições Preliminares e da Prevenção, que, segundo o Centro
Brasileiro para a Infância e adolescência – CBIA (1991) seriam as Políticas
Assistenciais ou Compensatórias.
O Livro II é a Parte Especial, nela encontra-se a Política de Atendimento, as
Medidas de Proteção, a Prática de Ato Infracional, as Medidas pertinentes aos Pais
ou Responsáveis, o Conselho Tutelar, o acesso à Justiça e os Crimes e Infrações
Administrativas. Quanto à atuação do Juiz, o Ecriad limita sua ação, garantindo à
criança e ao adolescente o direito à ampla defesa com todos os recursos a ele
inerentes. Enquanto nos Códigos de Menores não se exigiam, nem ao menos,
fundamentação das decisões relativas à apreensão e abrigamento dos menores,
permitindo ao juiz tomar decisões totalmente arbitrárias sem qualquer defesa das
crianças, dos adolescentes e de suas famílias, o Ecriad inaugura o direito ao devido
processo legal, com necessidade de representação do Ministério Público e da
observância do princípio do contraditório.
26
A Política Pública de atendimento à criança e ao adolescente se realiza através de
um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, tendo como linhas de ação as
políticas sociais básicas, programas de assistência social, serviços especiais de
atendimento às vítimas de negligência, exploração, abuso, crueldade e opressão,
entre outros. Esta política deve ter como diretrizes a municipalização, a integração
dos órgãos de atendimento, a criação dos fundos e dos conselhos dos direitos da
criança e do adolescente.
As Políticas Sociais Básicas são apresentadas em 62 (sessenta e dois) artigos sob o
título Direitos Fundamentais. Está assegurado o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária de todas as
crianças e adolescentes deste país, sem distinção de qualquer natureza: origem
socioeconômica, idade, raça/etnia, gênero, estrutura familiar, religião ou qualquer
outro critério que se queira manifestar.
Tal indistinção na aplicabilidade do diploma legal é o que justifica a universalização
dos direitos, que no caso de crianças e adolescentes passa necessariamente por
diretrizes que promovam a “inclusão” de segmentos historicamente desprovidos de
todos os direitos. Trabalhar, portanto, na perspectiva dos direitos humanos de
crianças e adolescentes é enfrentar, no âmbito das políticas públicas, o ciclo de
iniquidades as quais se encontram submetidos milhares de brasileiros e brasileiras
nessa faixa etária – os “desiguais”. A Lei é apenas mais uma força que circula
destruindo e construindo novas formas de miséria – universalista, fere processos
culturais e modos de vida, dando o “direito à...” promove, muitas vezes, múltiplas
formas de violência e discriminação.
A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, em seu artigo 6°, já
afirmava que a lei “deve ser a mesma para todos seja quando protege, seja quando
pune”, e acresce: “sendo os cidadãos iguais a seus olhos, têm eles igualmente
acesso a todas as dignidades, lugares e empregos públicos segundo sua
capacidade e sem outra distinção que a de suas virtudes e de seus talentos”.
Para que a universalização seja aplicada é importante distinguir diferenciação de
discriminação. Esta última é arbitrária. A diferenciação, por sua vez, constitui meio
27
para que a igualdade seja alcançada, pois a partir dela é possível oferecer serviços
compensatórios que tentam igualar a todos. Sendo assim, a lei parte do pressuposto
de que sendo ela aplicada haverá igualdade para todos.
Scheinvar (2009) aponta que a partir da década de 70, os movimentos sociais no
Brasil buscaram a possibilidade de convivência entre os desiguais e a denúncia do
“igualitarismo” fundamentado a partir de decretos do Estado de bem-estar social que
anulavam as desigualdades (econômica, cultural, local) declarando-as superadas.
Para a referida autora, o Estatuto, por ser uma legislação, também produz “[...]
parâmetros de verdade e coerções regulamentadoras que expressam a produção de
subjetividades hegemônicas em determinado contexto histórico” (SCHEINVAR,
2009, p. 72).
2.5. As Políticas de Assistência Social
As Políticas de Assistência Social, que compõem grande parte da assistência à
criança e ao adolescente, até 1988 eram concebidas inclusive perante a Lei como
ações isoladas de doação e caridade. No entanto, com a nova Constituição Federal
passam a vigorar como “Política Pública”, e enquanto tal passam a figurar no campo
dos direitos, da “universalização” dos acessos e da responsabilização estatal. A Lei
de Organização da Assistência Social, Lei Federal 8742/93 – LOAS, regulamenta os
artigos 203 e 204 da Constituição Federal de 88, inserindo a assistência social na
Política de Seguridade Social não contributiva. A Assistência Social, juntamente com
a saúde e a previdência social, tem como proposta a promoção do bem-estar social
do brasileiro. Dessa forma, a assistência social é um dever do Estado e um direito
de toda pessoa, como membro da sociedade, quando dela necessitar (CF-88, Art.
203). Está, entre as Diretrizes da LOAS a participação da população, por meio de
organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações
em todos os níveis através da criação dos Conselhos de Assistência Social; e a
primazia da condução do Estado na condução da política de assistência social.
28
Após ter sido declarada uma “Política Pública”, muito ainda se caminhou até que o
Conselho Nacional de Assistência Social aprovasse em 23 de Setembro de 2004
(DOU 28/10/2004) a Política Nacional de Assistência Social - PNAS. Amplamente
discutida em encontros, seminários, reuniões, oficinas e palestras em todo território
brasileiro. A PNAS constitui-se um trabalho democrático e descentralizado. Esta
política é tardia visto que, enquanto a LOAS é de 93, a construção da política se deu
apenas nove anos depois com a participação de todos e com a consolidação dos
Conselhos de Assistência Social no Brasil, no intuito de estabelecer um documento
público.
Nesse documento, a Assistência Social define seu público alvo: os cidadãos e os
grupos que se encontram em situações de vulnerabilidade e riscos. Segundo as
Normas Operacionais Básicas do Sistema Único de Assistência Social – NOB/SUAS
(BRASIL, 2005), a vulnerabilidade social é decorrente da pobreza, da privação
(entendida como ausência de renda, precário ou nulo acesso aos serviços públicos,
dentre outros) e/ou fragilização de vínculos afetivos, sejam eles relacionais ou de
pertencimento social, sendo considerada a combinação de diversas características
da população (infra-estrutura de moradia, renda per capita, anos de escolaridade,
presença de crianças, idosos e/ou deficientes) para compor a Taxa de
Vulnerabilidade de determinado território. Os riscos, por sua vez, dizem respeito à
dimensão da precarização.
“A proteção social de assistência social se ocupa das vitimizações, fragilidades, contingências, vulnerabilidades e riscos que o cidadão, a cidadã e suas famílias enfrentam na trajetória de seu ciclo de vida por decorrência de imposições sociais, econômicas, políticas e de ofensas à dignidade humana.” (NOB/SUAS, p.15)
A Política Nacional de Assistência Social/2004 visa o enfrentamento às
desigualdades socioterritoriais, garantindo os mínimos sociais, provendo condições
para atender contingências sociais e promovendo a universalização dos direitos
sociais, sobretudo com o objetivo de contribuir com a inclusão e a equidade dos
usuários e de assegurar a centralidade de suas ações na família, como forma de
garantir a convivência familiar e comunitária.
A PNAS tem como funções: proteção social (básica e especial); defesas dos direitos
socioassistenciais e a vigilância social (BRASIL, 2004). Esta última em especial
29
consiste em desenvolver meios de gestão para conhecer a presença das formas de
vulnerabilidade social e riscos da população e território, para se reordenar as
políticas sociais.
Em 2005, o Governo Federal, após aprovação do Conselho Nacional de Assistência
Social, edita a Norma Operacional Básica – NOB/SUAS, que disciplina a forma de
gestão da política pública de assistência social, voltada para a proteção à vida,
redução de danos, monitoramento das populações em risco e prevenção a
incidência de agravos à vida face às situações de vulnerabilidade. Reafirma a
matricialidade sociofamiliar, por acreditar que a família é o núcleo social básico de
acolhida, convívio, autonomia, sustentabilidade e protagonismo social (PNAS).
A nova proposta de Gestão da Assistência Social – SUAS (Sistema Único da
Assistência Social), está pautada no atendimento às famílias e estruturada por níveis
de Proteção Social: Básica e Especial (Média e Alta Complexidade). A proteção
social básica visa prevenir situações de risco. Segundo a PNAS, este nível de
proteção é destinado à população que vive em situação de vulnerabilidade social
decorrente, entre outras coisas, da pobreza. Pretende prevenir as situações de risco
desenvolvendo potencialidades e aquisições e fortalecendo os vínculos familiares e
comunitários.
A Proteção Social Especial está voltada para casos de violação de direitos,
destinada às famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e
social, podendo ser de Média (quando apresentam vínculos familiares e
comunitários) e de Alta Complexidade (quando estão sem referência e/ou em
situação de ameaça, necessitando ser retirados de seu núcleo familiar e/ou
comunitário, como nos casos dos Serviços de Acolhimento Institucional).
2.6. As regulamentações do CONANDA
Com o advento do Ecriad, do SUAS e de outras regulamentações observa-se uma
preocupação constante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (CONANDA) em conhecer, formular propostas e transformar o que até
30
então era oferecido para crianças e adolescentes como alternativa para casos
extremos de violação dos seus direitos dentro do seu próprio lar. A urgência era
superar o assistencialismo, os mega estabelecimentos formulados pelos Códigos de
Menores, a violação ao direito que crianças e adolescentes possuem de convivência
familiar e comunitária, em direção a ações que promovessem a emancipação de sua
clientela e o respeito à nova legislação vigente.
Sendo assim, aconteceu em agosto/2002 o “Colóquio Técnico sobre Rede Nacional
de Abrigos”, que contou com a participação do Departamento da Criança e do
Adolescente (DCA) do Ministério de Justiça (MJ), da Secretaria de Estado de
Assistência Social (SEAS) do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS),
do UNICEF, das Secretarias Estaduais de Assistência Social, de entidades não-
governamentais de todo o país, com vistas a ampliar e qualificar o debate, definindo
as prioridades de ação para a “situação-problema abrigo”.
Os abrigos, a partir das conclusões desse colóquio, foram alvo de uma pesquisa
realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2003-04, com o
objetivo de conhecer a situação do atendimento, as características, a estrutura de
funcionamento e os serviços prestados pelos abrigos, para assim contribuir na
organização e melhoria das políticas sociais de promoção, proteção e defesa do
direito à convivência familiar e comunitária. O IPEA levantou dados de 589 abrigos
em todo país que participavam da Rede-SAC (serviços que recebiam recursos do
Governo Federal por meio da Rede de Serviços de Ação Continuada), envolvendo
19.373 crianças e adolescentes.
Este levantamento examina a situação de instituições que têm a responsabilidade de cuidar de uma parte das crianças e dos adolescentes do Brasil. São os abrigos, ou outra denominação que se dê: orfanatos, educandários e casas-lares. Essas instituições são responsáveis por zelar pela integridade física e emocional de crianças e adolescentes que, temporariamente, necessitam viver afastados da convivência com suas famílias, seja por uma situação de abandono social, seja por negligência de seus responsáveis que os coloque em risco pessoal (SILVA, 2004, p.17)
Constatou-se na pesquisa que a maioria das crianças e adolescentes abrigados é do
sexo masculino (58,5%), afro-descendente (63%) e têm entre 7 e 15 anos (61,3%); e
está há pelo menos dois anos no abrigo (52,6%), sendo 8,2% destes abrigados por
um período superior a dez anos (SILVA, 2004). A pesquisa mostrou também que
86,7% dos abrigados possuíam família, sendo a principal motivação para o
31
abrigamento a situação de pobreza vivida pelas famílias, constituindo-se este o
mesmo motivo que dificultava a reinserção familiar (SILVA, 2004). “[...] Os
indicadores sociais que refletem a realidade da infância e da adolescência
brasileiras também são fartos e mostram que as crianças e os adolescentes são a
parcela mais exposta às conseqüências nefastas da exclusão social” (SILVA, 2004,
p.17).
Frente aos dados da pesquisa, constituiu-se um documento denominado “Plano
Nacional de Proteção, Promoção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à
Convivência Familiar e Comunitária” (PNCFC), que é aprovado pelo Conselho
Nacional dos Direitos a Criança e do Adolescente (CONANDA) e pelo Conselho
Nacional de Assistência Social (CNAS), em 2006. Trata-se do resultado de uma
ação conjunta de todos os poderes e esferas de governo, das organizações não-
governamentais, de organismos internacionais (como a UNICEF), dos atores sociais
da área e de famílias que vivenciaram a questão, com vistas a definir estratégias,
objetivos e diretrizes para a Política de atenção à criança e ao adolescente,
fundamentados primordialmente na prevenção ao rompimento dos vínculos
(PNCFC, 2006). O PNCF reafirma para a política de atenção as seguintes diretrizes:
1º. O reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos; 2º. O
respeito aos Direitos Humanos das Crianças e dos Adolescentes assegurados nas
Normas Nacionais e Internacionais existentes; 3º. A igualdade e respeito à
diversidade; 4º. A universalidade dos direitos e das políticas; 5º. A equidade e justiça
social; 6º. A garantia de prioridade absoluta; 7º. A descentralização político-
administrativa e a municipalização; 8º. A participação e controle social; 9º. A
articulação das várias esferas do poder e entre governo e sociedade civil; e 10º. A
articulação, integração e intersetorialidade das políticas, programas e serviços.
Para que a igualdade e a justiça social se efetivem, segundo o PNCFC, o Estado
deve desenvolver programas e ações específicas voltadas a grupos sociais
historicamente discriminados. O reconhecimento dos direitos específicos dos
diferentes grupos de crianças e adolescentes requer foco nos “desiguais” para se
alcançar justiça social.
Este Plano é considerado um marco nas políticas públicas no Brasil, pois se propõe
a romper com a cultura da institucionalização de crianças e adolescentes,
32
fortalecendo os princípios da Doutrina da Proteção Integral, buscando preservar os
vínculos familiares e comunitários, preconizados pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (PNCFC, 2006).
2.7. O Acolhimento Institucional
Foi com o PNCFC que ganhou força o termo Acolhimento Institucional, que pela Lei
Federal nº 12.010/2009, passa a substituir a medida de Abrigo em entidade (Ecriad,
Art. 101, inciso VII). Segundo o PNCFC, o termo Acolhimento Institucional abrange
diversas modalidades de serviços de proteção social especial de alta complexidade
oferecidos a crianças e adolescentes que necessitam permanecer afastados de suas
famílias até que as condições adequadas de convivência sejam garantidas: abrigo
institucional5 e casas lares6.
Com a finalidade de subsidiar a regulamentação dos serviços de acolhimento para
crianças e adolescentes no Brasil, o Conanda e CNAS aprovaram, em Junho de
2009, as “Orientações Técnicas: Serviço de Acolhimento para Crianças e
Adolescentes”.
Enquanto integrantes dos Serviços de Alta Complexidade do Sistema Único de
Assistência Social, os serviços de acolhimento para crianças e adolescentes devem
pautar-se no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Plano Nacional de
Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e de Adolescentes à
Convivência Familiar e Comunitária, Política Nacional de Assistência Social e
5 Residência que desenvolve programa específico de abrigo de curtíssima duração, onde se realiza diagnóstico eficiente com vistas à reintegração familiar (de origem ou substituta). Atende, em regime integral, grupos de até 20 crianças e adolescentes afastados do convívio familiar em função de abandono ou cujas famílias e responsáveis encontrem-se temporariamente impedidos de cumprir sua função de cuidado e proteção. O abrigo institucional também é reconhecido pela nomenclatura Casa de Passagem. 6 Assim como o abrigo instituicional, a casa lar também é uma modalidade de Acolhimento Institucional oferecido em unidades residenciais, com trabalho de diagnóstico com vistas a reintegração familiar (de origem ou substituta). As casas-lares, por sua vez, têm a estrutura de residências privadas, podendo estar distribuídas tanto em um terreno comum, quanto inseridas, separadamente, em bairros residenciais, com pelo menos uma pessoa ou casal trabalhando como cuidador residente – em uma casa que não é a sua – prestando cuidados a um grupo de no máximo 10 crianças e/ou adolescentes.
33
Projeto de Diretrizes das Nações Unidas sobre Emprego e Condições Adequadas de
Cuidados Alternativos com Crianças7.
O documento preliminar do Projeto de Diretrizes das Nações Unidas sobre Emprego
e Condições Adequadas de Cuidados Alternativos com Crianças, encaminhado para
a consulta pública em 2008, chegou a fazer a constrangedora afirmação: “[...] ainda
está profundamente enraizada em nosso País a idéia de que a institucionalização de
longo prazo protegeria essas crianças das más influências do seu meio, além de
proteger a sociedade de sua presença incômoda” (p. 4).
Os serviços de acolhimento para crianças e adolescentes, segundo as orientações
técnicas, deverão estruturar seu atendimento de acordo com os seguintes princípios:
1º. Excepcionalidade do afastamento do convívio familiar; 2º. Provisoriedade do
afastamento do convívio familiar; 3º. Preservação e Fortalecimento dos Vínculos
Familiares e comunitários; 4º. Garantia de Acesso e Respeito à diversidade e não
discriminação; 5º. Oferta de Atendimento Personalizado e Individualizado; 6º.
Garantia de Liberdade de Crença e Religião; 7º. Respeito à autonomia da criança,
do adolescente e do jovem.
Para o projeto político-pedagógico, as normas técnicas orientam que o espaço físico
do serviço de acolhimento deve ser aconchegante e seguro, assemelhar-se
arquitetonicamente e estar em áreas residenciais, ser organizado (favorecendo a
privacidade, com espaços para a acomodação de pertences pessoais) e promover a
interação das crianças/adolescentes, não desmembrando os grupos de irmãos.
2.8. Como podem normas tão parecidas dizerem algo totalmente diferente?
A Organização das Nações Unidas (ONU), por sua vez, com o objetivo de orientar
seus Estados Membros, elaborou as “Diretrizes das Nações Unidas sobre o Uso e
Condições Apropriadas para Cuidados Alternativos com Crianças”. Vários
organismos internacionais participaram desta formulação, entre eles o Comitê dos
7 Documento disponível em: http://www.mds.gov.br/noticias/diretrizes-vao-orientar-estados-membros-da-onu-sobre-atendimento-a-criancas-que-nao-estao-sob-cuidados-dos-pais acesso em: 12/07/2010.
34
Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU), o Serviço Social
Internacional (ISS), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e entidades
governamentais e não-governamentais, encerrando os trabalhos em 2006, num
encontro em Brasília com a participação de mais de 40 países8.
Diferente dos documentos produzidos apenas no Brasil, as “Diretrizes das Nações
Unidas” possui como foco o cuidado com a criança. Todo o documento gira em torno
dela, tudo o que se propõe é para seu melhor interesse, para a prioridade absoluta
de seu atendimento. Sendo assim, todos os capítulos falam desse cuidado e não
dos estabelecimentos. “As orientações técnicas para serviço de acolhimento”, por
exemplo, regulamenta o serviço, seu enfoque é a estrutura do abrigo e como ela
deve ser, as Diretrizes, por sua vez, dizem como se tem que cuidar da criança. O
equipamento - seja a família acolhedora, o acolhimento institucional, a família
extensa - é considerado apenas uma forma de proteção. É profundamente diferente
tê-lo como sendo o caminho e apenas regulamentá-lo, como é feito em nossa
legislação. Considerando as “Diretrizes”, as crianças, de acordo com sua história,
sua rede de relações, poderá ter uma proposta de proteção diferenciada. O
documento está a procura de alternativas para o bem-estar da criança e faz todo
esforço no sentido da manutenção da criança no seio familiar, em sua comunidade
de origem, no lugar onde tem construído sua história, seus laços afetivos. O
documento propõe conhecer os vieses da violação dos direitos das crianças
envolvidas para investir em Políticas Públicas que dêem condições às famílias para
permanecerem com os seus filhos, principalmente, facilitando a interação desta com
a comunidade.
Interessante também pontuar que o documento enumera diversas características
das famílias particularmente vulneráveis, incluindo em tal denominação diversas
situações:
[...] às crianças e famílias particularmente vulneráveis, inclusive crianças com deficiência, crianças vítimas de abuso e exploração, crianças em situação de uso ou dependência de álcool e outras drogas, crianças de rua, crianças nascidas fora do casamento, crianças indígenas e crianças pertencentes a minorias, crianças desacompanhadas ou separadas da família, crianças que vivem em regiões de conflito ou sob ocupação
8 Informações disponíveis em http://www.mds.gov.br/noticias/diretrizes-vao-orientar-estados-membros-da-onu-sobre-atendimento-a-criancas-que-nao-estao-sob-cuidados-dototalmentediferentes-pais - Acesso em 12/07/2010.
35
estrangeira, filhos de trabalhadores migrantes ou em busca de asilo, e crianças soropositivas, com Aids ou outras enfermidades graves (ONU, 2007, p. 6).
A pobreza só é citada quando orienta os países a não medirem esforços para
combater a discriminação desta e outras situações que podem levar à renúncia, ao
abandono ou à retirada de uma criança de sua família.
Mesmo sendo tão normativa, permite mais possibilidades, procura menos culpados
que as normatizações brasileiras. A ênfase não é na falta, na pobreza, mas nos
cuidados que devem ser realizados baseados em alguns critérios.
As medidas são até muito parecidas. Como é já afirmado anteriormente, o Brasil
possui uma discussão e legislações avançadas na área de proteção à infância e
juventude e, conquanto, possui grande influência na produção deste documento. O
“Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e
Adolescente à Convivência Familiar e Comunitária” é de 2006, já possui grande
parte destas orientações: apoio e fortalecimento da família; preservação dos
vínculos familiares...
Muito se produziu em discussões, em tensionamentos, em documentos legais na
área de defesa e proteção à criança e ao adolescente no Brasil. Todos estes
documentos fazem parte do rol de orientações para o Poder Público e os Conselhos
Municipais dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes planejarem a Política de
Atenção à Criança e ao Adolescente de sua localidade. No Município de Serra/ES,
grandes embates têm se formado em torno da questão abrigos. O próximo capítulo
trará elementos para a análise desta situação.
36
3. SERRA ADORADA: A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
VOLTADAS PARA A ATENÇÃO À CRIANÇA E AO
ADOLESCENTE
“‘Serra’ adorada
Entre outras mil,
És tu, Brasil,
Ó Pátria amada!
Dos filhos deste solo és mãe gentil,
Pátria amada,
Brasil!”
“Serra adorada”: era assim cantado o hino nacional numa escola de periferia do
Município de Serra. Rostinhos radiantes, compenetrados e felizes no ato cívico de
toda manhã de quinta-feira. “Serra adorada”... Que lugar é este que ganha espaço
no nobre símbolo nacional?
3.1. Mapeando o espaço: Município da Serra/ES
Serra é um município de 553 km2, que compõe a Região Metropolitana de Vitória/ES
e que, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2000,
contava com uma população de 330.874 habitantes. Foi fundada em 08/12/1556,
sendo sua população formada por portugueses, índios e negros (BORGES, 1998).
Estes últimos marcaram a história do município, quando, em 1849, promoveram a
“Insurreição de Queimado”. Movimento na luta pela liberdade. A história que é viva,
narrada de geração em geração em Serra, destaca heróis negros que desafiaram a
Igreja e seus senhores a cumprirem a promessa de alforria para aqueles que
trabalhassem duramente na construção da Igreja de São José do Queimado. A
rebelião iniciou-se no dia da inauguração da igreja, 19 de março de 1849, quando
diversos escravos se reuniram em torno do templo aguardando a leitura da carta de
alforria. Os gritos exigindo liberdade fizeram estremecer a população livre que se
37
escondeu em suas casas, fizeram o então Presidente da Província convocar força
policial de vinte praças da Companhia Fixa de Caçadores; fizeram cerrar-se as
portas da igreja. Sem a declaração da almejada alforria, o movimento cresceu e
buscou com suas próprias forças a conquista da liberdade. Após dias de lutas, seus
líderes foram presos, torturados e mortos (BORGES, 1998). A Vila de Queimado,
aos poucos, desapareceu, ficaram lá apenas as ruínas do templo; na praça de Serra
Sede, o busto do grande expoente do movimento; na história da cidade a autonomia
e participação dos movimentos populares declarada por diversos pesquisadores
(SERPA, MEDEIROS, 1990; CARLOS, 2006).
A sede do município está aos pés do Morro Mestre Álvaro que, entre outros, é o seu
símbolo. Com 833 metros de altitude, destaca-se por sua magnitude, sendo
considerado o pico costeiro mais alto do Brasil. Segundo contos da localidade, o
nome Mestre Álvaro refere-se ao Capitão e Mestre Álvaro da Costa, filho do
segundo Governador Geral do Brasil, D. Duarte da Costa (BORGES, 1998). Rico por
seus encantos naturais, as trilhas que levam ao seu topo são um convite ao contato
com um ecossistema de preservação natural: mata, nascentes, animais dos mais
variados tipos que fazem uma verdadeira sinfonia de percurso. Do alto, avistam-se
as belezas do município e seus entornos, avistam-se também a desigualdade social
e os principais focos de emissão de poluentes. Entre as belezas naturais, destacam-
se os 23 quilômetros de praias de Carapebus à Nova Almeida, com suas areias
brancas, reluzentes, banhadas pelo oceano Atlântico; as áreas verdes de
preservação, pequenos pontos de mata nativa; as lagoas Juara (com 16km de
extensão) e Jacuném (com 5,5km); grupos de montanhas, planícies, planaltos,
vales, contornos irregulares, ocupações... (SERRA/ES, 2006).
De lá também se percebe o vai e vem de automóveis, as diferentes construções:
grandes indústrias, conjuntos habitacionais, arquitetura antiga, casebres. É um mapa
vivo sob os olhos, uma trama social onde não há inclusão e exclusão, onde não se
vê um fora e um dentro, pois tudo está entrelaçado, entrecortado, vivido e vívido.
Segundo estimativas do IBGE são atualmente mais de 404 mil pessoas que habitam
este lugar (IBGE, 2009).
404 mil. O Município de Serra tem uma história populacional marcada por explosões
demográficas, como observadas no gráfico:
38
Gráfico 1: Evolução demográfica da cidade da Serra
Fonte: IBGE
A partir de 1960, começaram os investimentos no município, principalmente por
conjuntos habitacionais construídos pela Companhia Habitacional (COHAB) e
Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais (INOCOOP), do Porto de
Tubarão e do CIVIT I (Centro Industrial de Vitória), o que dobrou a população do
Município de Serra, em apenas 10 anos. Os anos seguintes foram marcados pela
construção da Companhia Siderúrgica de Tubarão – hoje denominada Arcelor Mittal
– e a chegada de um grande número de pessoas, em sua imensa maioria provinda
de Minas Gerais e do sul da Bahia, a procura de melhores condições de vida, que se
instalou em áreas de encostas e fundos dos vales, contribuindo para elevar o índice
populacional em cinco vezes mais em 1980. Estas áreas deram novos contornos à
urbanização do município (SERRA/ES, 2006). Constituídas em áreas frágeis,
desprotegidas e de difícil urbanização devido à necessidade de elevados
investimentos, tornaram-se grandes focos de pobreza.
3.2. A Exclusão, o Risco Social: Propostas de Políticas Públicas
39
Os espaços geográficos, onde não há apenas ausência de renda, mas também
precário acesso a serviços públicos, configuram o que Wandeley (2001) designa de
exclusão social, estando, ainda, os “excluídos” sem poder de ação e representação,
vendo, muitas vezes, os poucos serviços fornecidos pelo Estado como um “favor”.
Scheinvar (2009) aponta que o conceito de “exclusão” é referenciado a um modelo
social, não baseado numa relação pétrea, mas pautado na globalização econômica
e cultural.
Véras (2001) defende a idéia de que a exclusão é um problema de 500 anos no
Brasil e acredita que mesmo que as novas tecnologias possam oferecer empregos
para os excluídos do mercado de trabalho, as precárias condições de vida e
sociabilidade impõem sobre eles estigmas apontando-os como seres perigosos e
ameaçadores, passíveis de serem eliminados.
A “exclusão social” – relacionada ao modelo socioeconômico e às condições de vida
– traz à pauta a pobreza também relacionada ao perigo e à necessidade de
esterilização. Rizzini e Pilotti (2009), por exemplo, ao analisar as políticas dirigidas
às crianças no Brasil, relatam que sua organização denunciava a necessidade de
controlar a população pobre, visto que a mesma era considerada perigosa. O
capitalismo produz ao mesmo tempo a riqueza e a miséria, e para Coimbra e
Nascimento (2005) a miséria, a partir de alguns efeitos forjados hoje em nosso
mundo globalizado, passa a ser percebida cada vez mais como perigo social,
tomada como classe criminosa. Afirmam ainda que as teorias racistas, eugênicas e
da degenerescência de Morel concebem a pobreza como ociosidade, indolência e
vício. Segundo Coimbra e Nascimento (2005)
Todas essas teorias estabelecem/fortalecem a relação entre vadiagem/ociosidade/indolência e pobreza, bem como entre pobreza e periculosidade/violência/criminalidade. Mesmo autores mais críticos, ao longo dos anos, têm caído nesta armadilha de mecanicamente vincular pobreza e violência, a partir de estudos baseados nas condições estruturais da divisão da sociedade em classes sociais e no antagonismo e na violência resultantes dessa divisão (COIMBRA; NASCIMENTO, 2005, p. 344).
A constituição da cidade, segundo Oliveira (1997), retrata a postura ética e política
frente à questão inclusão/exclusão. À medida que a população em meio a precárias
condições de vida foi crescendo em Serra, cresceu também a necessidade de
40
Políticas Públicas9 que pudessem garantir a esse grande contingente populacional o
acesso aos direitos constitucionais: saúde, educação, habitação, etc. Até 1996, na
área de atenção à criança e ao adolescente, não existia nenhuma política pública
definida pelo município. Apesar do Estatuto da Criança e do Adolescente na ocasião
já contar com 6 anos, o Município de Serra contava apenas com a Educação Infantil
Básica e um programa de encaminhamento de jovens adolescentes para vagas de
estágio em grandes empresas. Existia também um orfanato mantido por entidade
filantrópica que acolhia crianças e adolescentes em “situação de risco”. Aberta
desde 1960, funcionava como uma fazenda onde as crianças aprendiam a lavrar,
cuidar dos animais e a executar serviços de mecânica. O Orfanato, como era
chamado, por vezes abrigava mais de 60 crianças, atendendo suas necessidades
básicas de alimentação, teto e vestuário, com acompanhamento médico e
odontológico dentro da própria dependência do serviço. As crianças só saíam dela
para frequentar a escola. Proposta que, a partir de 1990, com a aprovação do
Estatuto da Criança e do Adolescente, sofreu várias alterações.
Serra criou em 1992 o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
e logo em seguida o Conselho Tutelar, que juntos, a partir de 96, começaram a
desenhar uma nova proposta de atenção à infância e à juventude no município.
A preocupação inicial foi de regularizar os projetos existentes segundo as normas
estabelecidas pela legislação vigente e implantar programas de “prevenção”. A
prevenção baseava-se na ideia de que a rua é um lugar de perigo, e que estando
nela, as crianças e os adolescentes estariam em “situação de risco”. Conceito que,
segundo Costa (1990), circunscreve aqueles em condição de subcidadãos ou
cidadãos de segunda classe a quem se destina a ação assistencial do Estado.
Segundo França, Dimenstein e Zamora (2002), o conceito de risco está comumente
relacionado ao perigo ou à possibilidade de dano. Acrescentam as autoras, que se
trata de uma prática discursiva e, como tal, constituiu-se histórica e culturalmente.
Em seus estudos, observaram que os cientistas sociais, em geral, situam os “fatores
de risco” na pobreza e no status econômico, no entanto, apontam esta visão como
preconceituosa, concluindo que “[...] risco é sempre risco de acontecer algum
9 O conceito de Políticas Públicas será tratado no próximo capítulo.
41
agravo: não há, portanto, crianças, famílias e populações de risco per si” (FRANÇA;
DIMENSTEIN; ZAMORA, 2002, p. 39).
Cruz e Hilleshein (2008) apontam para a emergência da palavra risco, pontuando
que esta se referia à noção de probabilidade de ocorrência tanto de eventos
positivos quanto negativos, revestindo-se de incerteza, imprevisibilidade. Afirmam,
pautando-se em vasta literatura, que houve um deslocamento de sentidos, passando
a tratar o risco como relação de causa e efeito, em que é possível se controlar as
variáveis da vida para se alcançar determinados resultados, fabricando-se um futuro:
“a infância (hoje) de risco deve ser transformada no adulto produtivo (de amanhã)”
(CRUZ; HILLESHEIN, 2008, p. 197). Segundo estas autoras, as estratégias de
governamentalidade, igualando infância pobre, infância perigosa e infância de risco,
propõem políticas públicas de prevenção, em que “prevenir é, antes de tudo, vigiar,
ou seja, antecipar o surgimento de acontecimentos indesejáveis naquelas
populações definidas como portadoras de risco” (CRUZ; HILLESHEIN, 2008, p.
195).
O que do alto do Mestre Álvaro é localizado num mesmo plano, passa a ser
delimitado, pois não é qualquer criança, qualquer bairro, em qualquer rua que se
localiza o perigo. São os bairros de periferia que ganham estigma de serem
violentos, dominados pelo narcotráfico e extremamente perigosos, criando a
percepção de que seus moradores são os agentes dos grandes males sociais
(MELLO, 1999). Para tirar as crianças deste meio social, tirá-las da rua, foram
criados programas de jornada ampliada, nos quais a criança frequenta a escola num
turno e noutro frequenta um espaço que deve lhe oferecer atividades diversas e
alimentação. Segundo Tassara (2004), os projetos sociais visam a “igualdade entre
os homens”, porém, uma igualdade baseada na idealização do homem burguês,
classe média, ocidental, contemporâneo, que exclui o outro por diversas razões,
sejam elas de valores, raça, cultura, preferências sexuais. Adverte, ainda, que estes
projetos influenciam as políticas públicas e a transformação social, sendo assim
necessário se questionar o que se pretende transformar e qual o objeto e objetivo da
transformação.
Tal conjunto de questões, quando aplicado às políticas de assistência à criança e ao
adolescente em “situação de risco social” gerou, muitas vezes, propostas
42
preocupadas em afastar a infância da rua, do convívio social malvisto na
comunidade, promovendo muitas vezes o isolamento. Assim se constituem os
abrigos, os projetos de abordagem de rua, as jornadas ampliadas e tantos outros
projetos e programas, que, se embarcarem na proposta de limpeza social e tutela
infantil, não passarão de “lobos em pele de cordeiro”, permitindo-se a perpetuação
de estabelecimentos e programas “depósito”, como “medida de proteção”,
acentuando-se a falta de oportunidades para a construção de novas e diferentes
perspectivas de vida (COELHO, 2007).
3.3. Os Serviços de Acolhimento Institucional
O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Serra, desde sua
implantação, buscou localizar e regularizar os Serviços de Acolhimento Institucionais
existentes no município. Desta forma, a característica de Serra no que se refere a
abrigos é um elevado número de abrigos e casas lares (estima-se que seja o maior
do estado) e um histórico assistencialista. No início desta pesquisa o município
contava com uma rede regularmente constituída de 4 abrigos temporários e 9 casas
lares (SERRA/ES, 2006). Hoje, duas destas encontram-se fechadas; além de 2
casas lares, que, apesar de não estarem regularmente registradas no Conselho
Municipal dos Direitos, recebiam crianças e adolescentes encaminhados pelo
Juizado da Infância e Juventude do Município.
Os abrigos temporários, também chamados de Casas de Passagem, atendem
crianças e adolescentes em “situação de risco pessoal e social” quando
encaminhados pelos conselhos tutelares e/ou pelo juizado da Infância e Juventude,
até se determinar o encaminhamento do caso, podendo ser retorno à família de
origem, encaminhamento à família substituta ou casa lar.
No Município de Serra existem: um abrigo temporário para crianças (0 a 12 anos de
ambos os sexos), um abrigo temporário para adolescentes do sexo masculino, outro
para o sexo feminino e um específico para adolescentes em situação de extremo
43
risco pessoal e social (em geral adolescentes com vínculo com a rua e uso abusivo
de drogas). Os abrigos do município somam 61 vagas.
Durante a estada em abrigos temporários, alguns “casos”, por tratarem-se de grave
ameaça à integridade física e/ou psicológica à criança ou ao adolescente, são
encaminhados para a destituição do Poder Familiar10 mediante proposição do
Ministério Público. Nesses casos, quando não há a possibilidade de família
substituta, os infantes são encaminhados a abrigos de caráter mais permanente: são
as chamadas casas lares.
Em Serra, hoje, existem 7 casas lares regularmente constituídas: o Lar Batista
Albertine Meador, que possui 2 casas para acolher meninas; a Associação Lar
Semente do Amor, que possui, num mesmo espaço, 2 casas para atender meninos
e, em outro bairro, 1 para atender meninas; a Pastoral do Menor, que possui a Casa
Lar Pe. Rafael Dinicolli para atender adolescentes do sexo masculino e o Lar S.
João Batista possui uma casa que atende ambos os sexos. As Casas Lares que
recebem crianças sem estarem regularmente constituídas pertencem à Igreja Batista
de Vitória, sendo uma casa para atender crianças e adolescentes do sexo masculino
e outra para o sexo feminino. Juntas possuem mais de 108 vagas, o que, somadas
às vagas de abrigo, ter no Município de Serra o maior número de Serviços de
Acolhimento Institucional disponíveis no Estado do Espírito Santo: 169 vagas –
todas quase que permanentemente preenchidas.
A movimentação da cidade que é perceptível lá do alto do Mestre Álvaro, para este
grupo de crianças é muito restrita. Muito já se modificou desde a implantação do
Estatuto da Criança e do Adolescente. Os Serviços de Acolhimento Institucional já
não podem ser instituições totais a exemplo da FUNABEM (Fundação Nacional do
Bem-estar do Menor) e das propostas do SAM (Serviço de Assistência ao Menor),
no entanto, muitas herdaram toda a lógica assistencialista, “preventiva” e coercitiva
destes estabelecimentos. Segundo Rizzini e Pilotti (2009), a partir da prática de se
recolher crianças em asilos constituiu-se uma “cultura institucional” enraizada no
Brasil, que se faz presente até a atualidade na forma de assistir crianças e
adolescentes.
10
O “Pátrio Poder” é substituído pelo “Poder Familiar” no Novo Código Civil Brasileiro – Lei n° 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Ambos dizem respeito ao Poder que os pais possuem de decidir e tutelar as decisões de seus filhos menores de 18 anos.
44
O recolhimento, ou a institucionalização, pressupõe, em primeiro lugar, a segregação do meio social a que pertence o “menor”; o confinameno e a contenção espacial; o controle do tempo; a submissão à autoridade – formas de disciplinamento do interno, sob o manto da prevenção de desvios ou da reeducação dos regenerados (RIZZINI; PILOTTI, 2009, p. 20).
Em uma das visitas aos serviços, uma educadora social11, em suas reflexões acerca
da permanência das crianças no abrigo e da forma de funcionamento dos mesmos,
afirma que há uma “institucionalização” da criança: “em casa, com a família, existem
regras, mas elas são maleáveis, os pais avaliam cada situação, as rotinas são mais
diversificadas. No abrigo, as regras são mais numerosas e inflexíveis, tirando a
liberdade e a espontaneidade, é tudo muito monitorado para não se perder o
controle sobre eles”. Trata-se, segundo Foucault (1996), da necessidade de
enquadrar e controlar os chamados perigosos, utilizando-se as instituições de
seqüestro. Os perigosos são tratados não por aquilo que fizeram, mas pela
virtualidade de seus comportamentos.
Hoje, mais de 80% dos projetos que possuem registro no Conselho Municipal dos
Direitos da Criança e do Adolescente para compor as Políticas Públicas de Atenção
à Infância e à Juventude são Serviços de Acolhimento Institucional ou jornadas
ampliadas12. Segundo Cruz, Hilleshein e Guareschi (2005), essas propostas
constroem certas formas de ser e de se relacionar com as crianças.
Esta pesquisa aposta na possibilidade de transformar essas práticas, reafirmando
em conjunto com Coimbra (2001):
São formas de pensar, perceber, sentir e agir produzidas pelas diferentes práticas dos homens que podem ser mudadas, transformadas em subjetividades voltadas para a vida, para potencializar determinadas formas de existir neste mundo que, de um modo geral, têm sido desqualificadas, estigmatizadas, negadas e mesmo exterminadas (COIMBRA, 2001, p. 78).
11 O Educador social possui a função de acompanhar e atender todas as necessidades das crianças no abrigo. 12 As Jornadas ampliadas são muito comuns no município, geralmente implantadas em bairros com alto índice de pobreza e criminalidade. Enquanto projetos da área de assistência social, atendem crianças e adolescentes desenvolvendo atividades socioculturais e de reforço escolar em horário complementar à escola, de forma que seu usuário seja atendido institucionalmente o dia inteiro: num período na escola e no outro em projeto de jornada ampliada.
45
4. CAMINHOS PERCORRIDOS PARA A DESCONSTRUÇÃO DE VILÕES E MOCINHOS
“[...] reconhecemos que a atividade de
investigação envolve sempre, em certa medida, o
redesenho do campo problemático.”
Passos, Kastrup e Escóssia
4.1. Vilões e Mocinhos? O que se quer dizer com isso?
Em 2007, esta pesquisa começou a se constituir. Inicialmente tinha por objetivo dar
passagem aos ruídos de estranhamento que se insurgiam no Município de Serra/ES
no tocante, principalmente, à questão dos abrigos de crianças e adolescentes, que,
muitas vezes eram culpabilizados pela despotencialização da política de
atendimento. Apresentava, então, como proposta investigar, junto aos trabalhadores
sociais da área, os aspectos institucionais que mantinham essa produção mecânica
de exclusão, dor e sofrimento, propondo transformar o lugar policialesco e
normatizador que ocupavam em construtor de cidadania. Propunha, ainda,
desenvolver uma análise-intervenção na situação-abrigo do município em seus
diversos atravessamentos, de forma a provocar novos regimes de existência e
novas políticas de assistência à criança e ao adolescente que escapassem à
avaliação dicotômica do vilão/mocinho; do certo/errado; da proteção/desproteção.
Era uma possibilidade de criar dispositivos capazes de inventar uma nova práxis.
O cenário do Município de Serra provocava posicionamentos dicotômicos em
relação aos abrigos, hoje chamados de Serviços de Acolhimento Institucional: ao
mesmo tempo em que crescia continuamente o número de abrigos, apontados como
a prioridade de investimento no município, havia uma queixa explícita de que eles
não resolviam a questão da “situação de risco pessoal e social” da infância e
adolescência. A discussão não ampliava, promovia retorno ao mesmo: na definição
de ser o abrigo bom ou ruim, de ser instrumento de acolhida a crianças e
adolescentes em “situações de risco extremo”, protegendo-os, garantindo-lhes o
direito a dignidade – “pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento,
46
aterrorizante, vexatório ou constrangedor” Ecriad Art. 18 – ou de ser um imenso
gasto para os cofres públicos sem uma mudança efetiva na sociedade.
Os abrigos, criados em determinado momento histórico e contexto geográfico, são
estabelecidos, muitas vezes, como naturais, universais e perenes. São consideradas
“respostas perfeitas”, que parecem não depender do momento histórico que as
engendraram, constituindo-se como barreira a outras formas instituintes. Segundo
Fuganti (2009), estas produções, consideradas verdades em si, bloqueiam a
atividade criadora.
Expressos por discursos que pretendem representar e justificar os chamados "bons costumes", autoqualificados de científicos, cultuados como verdades em si ou formas puras do saber, esses valores bloqueiam e separam o indivíduo de sua capacidade imanente de pensar e agir por ordem própria, desqualificando seus saberes locais e singulares como meras crenças ou opiniões e destituído-os de suas potências autônomas que criam seus próprios modos de efetuação. (FUGANTI, 2009, p. 2)
De certo modo, aos abrigos só restava a culpa de engessarem as ações de atenção
à infância e à juventude estando na contramão de todos os diplomas legais em
vigência, que determinam assegurar às crianças e aos adolescentes o direito à
Convivência Familiar e Comunitária. Com a proposta incessante de novas vagas em
abrigos, a rede de política de atendimento se vê desmobilizada e despotencializada:
ora o serviço de acolhimento institucional é visto como mocinho – aquele que vai
solucionar o problema das crianças que necessitam ser acolhidas – ora como vilão –
que monopoliza os recursos e a atenção da rede de atenção à criança e ao
adolescente.
Segundo Fuganti (2009), Espinosa lança mão de um exemplo alimentar para
explicar a natureza do mal: assim como o veneno que, ao ser ingerido, decompõe ou
destrói nossa potência de existir, o mal é sempre um mau encontro. O bem, por sua
vez, é como o alimento que, ao ser consumido, promove um bom encontro com o
corpo, na medida em que aumenta nossa potência de agir. Alerta, ainda, que estes
elementos podem variar sua ação no encontro, podendo, vez ou outra promoverem
encontros diversos, como o alimento envenenar e o veneno, alimentar. Para Fuganti
(2009), o mal não está apenas no que seria este veneno. Ao citar o exercício do
tirano, que reina sobre a impotência alheia, fala da tríade que sustenta esta forma de
funcionar: além do tirano, o escravo e o sacerdote – todos fazem parte desta relação
de poder.
47
Dessa forma, os Serviços de Acolhimento Institucional também não se fazem bons
ou maus, vilões ou mocinhos em si mesmos. Não são as paredes do abrigo que
definem suas práticas/discursos. Ao contrário, são as práticas e os discursos que
constituem o abrigo: suas paredes, suas formas, suas aberturas e seus cadeados.
Compõem também suas crianças e seus trabalhadores sociais. Os Serviços de
Acolhimento Institucional estão emaranhados nas marcas dos manicômios13, das
rodas de expostos, das FEBENs e de uma política que “resolvia” os incômodos
sociais através de atitudes policialescas e normatizadoras, que cerceava a vida,
enclausurando-a, produzindo dor e sofrimento.
Para intervir nas formas-abrigos, os trabalhadores sociais da área foram os
parceiros convidados: pais e mães sociais, educadores, assistentes sociais,
psicólogos, berçaristas, professores, vigias, comissários, conselhieros. Guattari e
Rolnik (1999) chamam os trabalhadores sociais em geral de “tiras”, por ocuparem a
posição de reforço dos sistemas de produção de massa, em que a subjetividade é
fabricada e modelada, levando a uma produção ininterrupta de culpabilização,
segregação e infantilização. Essa construção se percebe, em especial, na área de
assistência à criança e ao adolescente. O discurso aponta diversos “vilões”: é o
abrigo-lobo, a família desestruturada, o judiciário lento, o conselho tutelar omisso.
Convidar esses atores a discutirem a forma abrigo era a oportunidade de provocar
estranhamentos em sua prática, desnaturalizando as formas dicotômicas de
conceber não só o abrigo, como também a criança, a família, o trabalho, a política
de atenção.
Desnudar a instituição “abrigo” de seu formato vilão ou mocinho não seria
transformá-la em algo mais. Desnudá-la seria dar visibilidade às diversas formas-
abrigos. Seria provocar inquietude, estranhamento, para não se conformar com a
existência de uma suposta “essência” boa ou má em si mesma.
Construir o projeto de pesquisa foi outro grande desafio, pois os abrigos,
configurados como respostas da política de atenção à criança e ao adolescente ao
“público”, não se esgotavam em si mesmos. A produção das formas-abrigos se dava
13 Referência ao livro “Lobo em Pele de Cordeiro – manicômios do contemporâneo: uma contribuição para se pensar abrigos de crianças” de minha autoria. O referido trabalho nos convida a refletir o papel das práticas asilares e seu contínuo retorno em forma de diferentes propostas de atuação, chamando-nos a atenção para o perigo de se transformar lutas por atenção e proteção à criança e ao adolescente em manicômios do contemporâneo.
48
na sala de audiências da Vara da Infância e juventude, nas reuniões do Conselho
Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, nas medidas adotadas pelo
Conselho Tutelar, na Política executada pela Secretaria de Promoção Social do
município, nas formas criança, adolescente e família. Onde efetivamente a pesquisa
construirá seus dados?
4.2. Quando as políticas entram na história da pesquisa
Nasce uma nova abordagem para o problema. Como estratégia, guiada pela aposta
ético-política desse trabalho, construímos um novo objetivo para a investigação:
catalizar o sentido das políticas públicas de atenção à criança e ao adolescente,
utilizando os abrigos como analisadores. A tentativa fez-se no sentido de investigar
as tramas desta política que mantêm e atualizam a proposta abrigo no município de
Serra/ES, buscando evidenciar seus discursos/práticas, seus desdobramentos e as
possibilidades de escape a estes processos. Segundo Kastrup e Barros (2009), os
analisadores realizam a análise, não no sentido de explicar, mas de “(...) extrair as
variações que não cessam de passar” (p. 78).
A Política entra em cena, na medida em que passamos a compreender que ela –
configurada como rede de relações de força – diz respeito à produção e à
manutenção de uma forma-abrigo hegemônica. As Políticas Públicas passam, então,
a ser analisadas, assim como nos ensina Foucault (1995), a partir das relações de
poder travadas no tecido social.
Rua (2009) considera a Política parte construtiva e essencial da vida social,
encontrando soluções pacíficas para os conflitos relacionados a decisões públicas,
através de um conjunto de procedimentos formais e informais. Para a referida autira,
as Políticas Públicas são resultantes da atividade política dos agentes
governamentais, com base no poder imperativo do Estado, uma vez que a finalidade
do Estado é realizar a segurança, a justiça e o bem-estar econômico e social
(promoção de condições de vida dos indivíduos, garantindo acesso aos bens,
serviços, dentre outros). Segundo Rua (2009), as Políticas Públicas referem-se “[...]
à formulação de propostas, tomada de decisões e sua implementação por
49
organizações públicas, tendo como foco temas que afetam a coletividade,
mobilizando interesses e conflitos” (RUA, 2009, p. 19). Tal concepção envolve ações
de Estado a fim de efetivarem os direitos fundamentais e/ou consolidar o Estado
Democrático de Direito. Essa concepção traz o Estado soberano na elaboração e
execução de uma política que se faz no singular, autoritária e hierárquica.
Formando alianças com Benevides e Passos (2005), concebemos a política pública
como aquela que se constrói no coletivo das forças, resistindo à máquina do Estado
que continuamente tenta interiorizar, capturar as políticas. Em outras palavras,
embora a máquina de Estado tente absorver os movimentos instituintes, a busca de
consensos, as políticas públicas se constroem no plano do fora, nas alterações da
experiência coletiva, pois é este embate que garante à política seu sentido público.
Cruz (2006) salienta que “[...] o termo “público”, associado à política, não é uma
referência exclusiva ao Estado, mas sim à coisa pública, ou seja, de todos, com o
amparo de uma mesma lei, porém vinculados a uma comunidade de interesses” (p.
139).
As Políticas Públicas para crianças e adolescentes, nesse sentido, foram
construídas a partir da década de 1970, na efervescência da luta pelos direitos
humanos e políticos no Brasil, ganhando mais força com a luta pela democratização
e pela garantia de direitos nos anos 80, conquistando espaço na Constituição
Federal de 88 como sujeitos de direitos e, posteriormente, com a força dos
movimentos de defesa dos direitos da criança e do adolescente, nascidos nas
sarjetas, nas situações de desumanização da infância e da adolescência, nasce o
Estatuto da Criança e do Adolescente. Esta legislação garantiu a participação da
sociedade na formulação das políticas e no controle das ações através do Conselho
dos Direitos da Criança e do Adolescente e do Conselho Tutelar.
Scheinvar (2006) considera que alguns pontos fragilizam esta participação da
sociedade civil nos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, como a
presença do pensamento higienista, a falta de autonomia, o desconhecimento da
forma de encaminhamento de reivindicações, a filantropia como abordagem
despolitizante, a cultura clientelista e submissa de boa parte das entidades. Sendo
assim, por onde passam as linhas definidoras desta política?
50
Considerando que o Estatuto da Criança e do Adolescente e suas alterações, o
Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e
Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, as Orientações Técnicas para
os Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes, são documentos legais
que procuram minimizar a acolhida de crianças em serviços de acolhimento, como
são engendrados os processos de subjetivação presentes nos discursos e práticas
das Políticas de Atenção à Criança e ao Adolescente do Município de Serra que
atravessam os abrigos? Qual a função dos abrigos nesta política? Quais seus
efeitos, seus desdobramentos? Quais as possibilidades de escape a este processo?
4.3. A Pesquisa-intervenção e os passos cartográficos
“[...] o corpo a corpo com o campo da pesquisa
comporta sempre uma dose de
imprevisibilidade e mesmo de aventura.”
Passos, Kastrup e Escóssia
Partindo da história dos movimentos e da processualidade da política pública de
atenção à criança e ao adolescente do Município de Serra, a pesquisa-intervenção
acompanhou o cotidiano dos abrigos infanto-juvenis desse município, buscando
decompor as práticas e discursos instituídos.
Segundo Rocha e Aguiar (2003), a pesquisa-intervenção coloca em análise os
efeitos das práticas que ocorrem no cotidiano dos serviços, abrindo possibilidades
para a desconstrução de territórios e para a criação de novas práticas.
Sujeito e objeto se dissolvem para se apresentarem como experiência coletiva. É
preciso saber morrer. Experimentar a finitude. Pesquisa e pesquisador nascem
neste encontro. Encontro que promove deslocamentos dos lugares habituais, que
produz novos sujeitos e novos mundos. Visitar abrigos de crianças e de
adolescentes, circular por eles, intrigar-se com eles, deparar-se com as propostas de
políticas públicas voltadas para a infância e para a juventude produz verberações
51
que instigam a mergulhar nestas construções e a produzir nelas e com elas
estranhamentos, novos modos de existência. O pesquisador, ao colocar em análise
a sua implicação política no campo de intervenção14, entende que produzir
conhecimentos acerca dos processos sociais é ser capaz de colocar seus próprios
afetos no “jogo de dados”. É fazer aliança com o invisível, com o devir, é permitir se
surpreender, é construir dados, é procurar efetivamente o que escapa. A busca faz-
se no sentido de conhecer o universo de investigação a partir de seus processos e
não apenas pelas suas formas (SIMONDON, 1964, citado por KASTRUP, 1999).
Longe de buscar a neutralidade do positivismo científico, nesta pesquisa busca-se a
possibilidade de ser afetado, de ser parte deste processo de pesquisa em que se
constituem novos modos de saber-fazer políticas públicas, abrigos, crianças, pais e
educadores sociais, pesquisa e construção de um saber que se pretende coletivo. A
aposta é no método cartográfico, que tenta capturar intensidades e convoca para o
jogo de dados a implicação do sujeito percebedor do mundo cartografado (KIRST et
all, 2003). O caminho, o percurso, é o principal nesta pesquisa. Não estamos a
procura de uma verdade. O que não é admitido, no método cartográfico, é direcionar
o caminho para determinado resultado, constrangê-lo ou exercer uma prática de
poder de assujeitamento sobre ele. Segundo Passos e Benevides (2009) esse
processo se realiza sempre:
[...] por um mergulho na experiência que agencia sujeito e objeto, teoria e prática, num mesmo plano de produção ou de coemergência – o que podemos designar como plano da experiência. A cartografia como método de pesquisa é traçado desse plano da experiência, acompanhando os efeitos (sobre o objeto, o pesquisador e a produção de conhecimento) do próprio percurso da investigação (PASSOS; BENEVIDES, 2009, p. 17-18).
O problema exige outro tipo de atitude: afirmar o primado do caminhar – hodosmeta
– o conhecimento só pode se dar no plano da experiência. O caminho só se efetiva
no caminhar, sem, no entanto, abrir mão da orientação do percurso.
A pesquisa compôs-se de quatro momentos: o primeiro passo foi a participação na
Conferência Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente do Município de
Serra/ES; em seguida ocorreram as visitas aos 15 (quinze) estabelecimentos que
desenvolviam serviço de Acolhimento Institucional no município – esse segundo
passo foi denominado “estar nos abrigos”, pois não se restringia a “ver por interesse
14 Segundo Lourau (2004), campo de intervenção é o espaço onde o trabalho de análise ocorre.
52
ou inspecionar, vistoriar15”, desejava compor, fazer parte desses territórios,
enganjar-se neles; em sequência foram realizados três encontros com os atores da
política de atenção à infância e à juventude e, por fim, um encontro de restituição.
4.4. A primeira orientação do percurso: a participação na Conferência
Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente do Município de Serra/ES
A Constituição Federal de 1988, também conhecida como “Constituição Cidadã”, por
ter sido fruto dos movimentos sociais da década de 80, trouxe em seu bojo avanços
na área social e um novo modelo de gestão das políticas sociais com a participação
da população através dos conselhos deliberativos e consultivos.
Na área da Infância e Juventude, o órgão com a missão de deliberar acerca da
política de promoção dos direitos da criança e do adolescente, de controlar as ações
em todos os níveis de implementação desta mesma política e de fixar critérios de
utilização dos recursos do Fundo da Infância e da Adolescência é o Conselho dos
Direitos da Criança e do Adolescente, podendo ser municipal, estadual ou Federal.
O Conselho, formado paritariamente por membros do poder público e da sociedade
civil organizada, tem a missão de organizar a cada dois anos a Conferência dos
Direitos da Criança e do Adolescente que ocorre primeiro no âmbito municipal,
sendo nesta, escolhidos os representantes para a Estadual, que de igual forma terá
seus representantes na Conferência Nacional. A Conferência convoca todos os
interessados a discutir a política de atenção à criança e ao adolescente de forma a
ampliar a participação e o controle social na efetivação da política, bem como
oportunizar a participação da sociedade em geral na elaboração do plano municipal,
estadual e federal.
A 6ª Conferência Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente do Município
de Serra/ES ocorreu em 2009, com a participação de mais de 150 pessoas de
15 Visitar: “1. Ir ver (alguém) em casa ou noutro lugar onde esteja, por cortesia, dever, afeição, etc. 2. Ir ver (regiões, monumentos, etc.) por interesse ou curiosidade. 3. Inspecionar, vistoriar” - Dicionário Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.
53
entidades de atendimento, do poder público, do conselho tutelar, famílias,
adolescentes, pesquisadores, interessados e curiosos em geral. Os grupos de
trabalhos foram focados em cinco eixos: Promoção e Universalização de Direitos em
um Contexto de Desigualdades; Proteção e Defesa no Enfrentamento das Violações
de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes; Fortalecimento do Sistema de
Garantia de Direitos; Participação de Crianças e Adolescente em Espaços de
Construção da Cidadania e Gestão da Política.
A palestra que introduziu o tema “promoção e universalização de direitos em um
contexto de desigualdade e proteção” promoveu um desassossego geral – pessoas
se remexendo nas cadeiras, olhares desconcertados, silêncio – descortinavam-se
pelos slides cenas de desrespeito à dignidade humana, a desigualdade nua e crua
marcada nos corpos. A fala cortante do palestrante, um militante na área de defesa
dos direitos da criança e do adolescente, exigia uma nova postura.
O palestrante pontuou desde o início de sua palestra a diferença de tratamento em
nossa sociedade entre ricos e pobres. Para os primeiros, seus filhos são crianças e
adolescentes, se usam drogas ilícitas são dependentes químicos, se flagrados em
conflito com a lei são encaminhados com dignidade, enquanto para os pobres, seus
filhos são, ainda hoje, chamados menores, maconheiros e tratados como animais.
Utilizando fotos marcantes (crianças trabalhando em situações insalubres e
precárias e, em outras, sendo abordadas pela polícia), ilustrou situações que
considera de vulnerabilidade social e/ou de situação de risco.
O palestrante acredita que para que haja respeito à Doutrina da Proteção Integral, a
criança não pode ser tratada como objeto dos pais, como objeto de caridade, como
objeto de assistência, como objeto de correção policial. Concluiu dizendo que
criança deve ser tratada como gente, com prioridade absoluta, como cidadã e
convoca a todos para o cuidado com a vida.
No dia seguinte, contudo, o grupo de trabalho, responsável pelo referido eixo,
discutiu e elaborou documento para o Plano Decenal de Atenção à Criança e ao
Adolescente com as seguintes propostas: promoção da acessibilidade das pessoas
portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida nos programas e projetos do
município; incentivo à reorganização de grêmios estudantis; e fortalecimento das
escolas, tornando-as auto-suficientes e de tempo integral na atenção ao educando.
54
O ardor esvaiu-se, as desigualdades sociais ficaram restritas ao descumprimento
das normas estabelecidas na “Lei da Acessibilidade” (Decreto Federal n° 5.296 de
02/12/2004); à precária participação discente na elaboração das diretrizes escolares
e à falta de espaços de “semi-internação” de crianças e adolescentes pobres, que
não possuem onde ficar enquanto seus pais trabalham. É a proposta de aplicação
da Lei para se promover igualdade. Enquanto estas questões são priorizadas dentro
de um Plano Decenal de Atenção à Criança e ao Adolescente no eixo “promoção e
universalização de direitos em um contexto de desigualdade e proteção”, dezenas
de crianças e adolescentes (pobres) aguardavam alguma decisão para suas vidas
dentro dos serviços de acolhimento institucional do município.
4.5. A segunda orientação do percurso: O estar nos “abrigos”
Os 15 Serviços de Acolhimento Institucional localizados no Município de Serra/ES
foram visitados. Entre eles 13 estavam regularmente inscritos no Conselho Municipal
dos Direitos da Criança e do Adolescente, conforme determina a lei16. O restante,
apesar de não estar regularmente constituído, recebia crianças e adolescentes
encaminhados pela Vara da Infância e Juventude do Município. A visita foi um
momento de estar nos abrigos: possibilitar composições, fazer parte, vivenciar
alguns momentos do seu cotidiano, participar de suas atividades, de suas
conversas, de suas brincadeiras, do seu silêncio. Produzir dados para a pesquisa,
detectando signos e forças circulantes, pontas do processo em curso, utilizando-se
do método cartográfico. Segundo Kastrup (2007), no método cartográfico, o
pesquisador trabalha com a atenção flutuante e com os fragmentos desconexos,
num gesto de “deixar vir”. Utilizando-se das quatro variedades de funcionamento
atencional – rastreio, toque, pouso e reconhecimento atento –, buscou-se encontrar
o que não se conhecia, o que já está ali como virtualidade (KASTRUP, 2007).
16 Ecriad, artigo 90, § 1°
55
Nesta proposta o pesquisador tem que se surpreender, sustentar a questão do não
saber. O “estar nos abrigos” não estava à procura de representações, queria o
escoamento, a processualidade.
O contato com a maioria dos Serviços de Acolhimento Institucional foi muito
tranqüilo, com muita receptividade. Isso ocorreu por diversos motivos, entre eles
destacamos a apresentação e aprovação do projeto de pesquisa no Conselho
Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, que conta com representação
de entidades que executam três quartos dos serviços de acolhimento institucional do
município.
Se por um lado a vinculação de anos na área possibilitou um acesso facilitado, até
mesmo calorosamente acolhido, por outro se tornou um entrave para a análise do
material, pois por ora era muito mais fácil ver o que se repetia... difícil era perceber o
que havia de processo temporal, de acontecimentos. Era um olhar viciado, um olhar
banalizado, como dizia Otto Lara Resende, sujo pelo hábito (RESENDE, 1992).
Desfazer-se das amarras, tentar ver pela primeira vez o que de tão visto já não se
conseguia ver mais foi um grande desafio.
O agendamento das visitas se deu através de contato telefônico e a acolhida
realizada por um profissional de referência do abrigo. Mesmo já sendo do
conhecimento dos serviços de acolhimento, a proposta do trabalho era apresentada
a cada visita e, na oportunidade, era também apresentada outra pesquisadora17. A
visita a dois foi uma possibilidade de descoberta, pois os olhos despidos de vivência
na área da aluna de iniciação científica, com suas dúvidas, desmascaravam
situações vividas no abrigo até então como naturais.
As visitas foram registradas em diário de campo, constituindo um rico material de
análise. Lourau (1993) pontua a importância dos diários, os quais denomina de “fora
do texto”, pois revelam as implicações do pesquisador, a vivência cotidiana no
campo de pesquisa e o “como se faz pesquisa”. Segundo Benevides e Passos
(2009) o registro deve ir para além do que é pesquisado, deve contemplar o
processo e se completar no ato da restituição.
17 Aluna da graduação que desenvolvia um projeto de pesquisa vinculado à Iniciação Científica.
56
As visitas não apresentaram nenhuma homogeneidade: em cada casa uma
dinâmica diferenciada. Houve abrigos em que ficamos em espaços reservados, em
outros na área onde estavam as crianças e os adolescentes a brincar, a trabalhar, a
se alimentar e/ou a estudar. Ao mesmo tempo em que assistíamos ao movimento
incessante dos abrigados, conversávamos com alguém do abrigo: ora uma criança,
ora um adolescente, ora o pai social, ora a mãe social, ora a coordenadora, ora a
presidente da entidade, ora a assistente social, ora a estagiária. Cada abrigo tinha
uma composição, uma organização funcional. Sentiam, na maioria das vezes, uma
grande necessidade de falar dos casos do abrigo, da realidade de vida das crianças,
das dificuldades enfrentadas, das vitórias do serviço. A conversa rolava no sentido
de discutir política, assistência, organização comunitária. São os afectos e
perceptos18 no jogo dos dados. Não é apenas uma pesquisadora, não são somente
Serviços de Acolhimento Institucional dentro de uma Política Pública. Algo mais
tocou estes encontros que já não participava nem das sensações e percepções de
cada um dos envolvidos, nem do planejado para a pesquisa. O encontro, a reflexão,
o incômodo, a denúncia.
A despedida, muitas vezes, era difícil de se fazer. Sempre postergando para dar um
pouco mais de tempo para produzir juntos o “conhecimento”. Quando enfim, a hora
chegava, era apresentado o convite aos trabalhadores sociais do serviço visitado
para participarem do segundo momento da pesquisa, todos demonstravam interesse
e diziam aguardar com ansiedade o momento.
4.6. A terceira orientação do percurso: os encontros
“Os homens precisam do encontro com o outro
para conservar e expandir sua potência”
Bader B. Sawaia
18 “[...] O que se conserva, a coisa ou a obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos. [...] Os perceptos não mais são percepções, são independentes do estado daqueles que os experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles. [...] As sensações, perceptos e afectos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido”(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.213) .
57
Após o “estar nos abrigos”, realizamos três encontros, um por mês. Foram
planejados para durarem de uma hora e meia a duas horas, no entanto, assim como
nas visitas, tínhamos dificuldades em nos despedirmos. Mesmo assim, o número de
participantes que no primeiro encontro já era bastante reduzido, foi a cada encontro
reduzindo ainda mais.
Todos os trabalhadores sociais envolvidos na execução dos Serviços de
Acolhimento Institucionais foram convidados: pais e mães sociais, psicólogos,
auxiliares de serviços gerais, assistentes sociais, cuidadores residentes, cozinheiras,
enfermeiros, educadores sociais, estagiárias, presidente da entidade, cozinheiras,
auxiliares administrativos, ou qualquer outra pessoa, ligada aos 15 Serviços, que
desejasse compartilhar os momentos de discussão acerca da função política do
abrigo. O que poderia chegar a cem pessoas em cada encontro, nunca passou de
dez participantes. A participação é uma questão aqui colocada. Não enquanto
necessidade para a pesquisa, pois cada um dos participantes é uma multidão, como
afirma Fuganti (2009) no “[...] mais profundo do nosso ser e na mais superficial das
nossas superfícies de ser, somos não uma unidade ou identidade formal como um
eu, mas multiplicidades singulares sem sujeito” (p. 7). A participação torna-se uma
questão aqui enquanto prática política.
Coimbra e Nascimento (2007), analisando as práticas de esvaziamento político,
apontam que a velocidade que domina o mundo atual tem produzido encontros
superficiais, apressados, de pouco acolhimento e solidariedade, em que o coletivo
tem se esvaziado. Os espaços coletivos vão perdendo o lugar nas agendas,
tornando-se cada dia mais difíceis de se sustentarem.
Os três encontros, contudo, foram realizados com a participação dos trabalhadores
sociais dos serviços de acolhimento do município. Dispositivos19 foram utilizados
como analisadores capazes de catalizar sentidos, desconstruindo-os,
desnaturalizando-os e possibilitando a análise (ROCHA; AGUIAR, 2003). O próprio
grupo, entendido aqui como dispositivo, é uma estratégia de produção coletiva de
19 Segundo Lourau (1993), o dispositivo “consiste em analisar coletivamente uma situação coletiva” (LOURAU, 1993, p. 30)
58
dados, que possibilita a emergência de acontecimentos, descristalizando papéis e
lugares (HECKERT et al., 1999).
4.6.1. Primeiro encontro: esfacelando expectativas
Para o primeiro encontro, planejamos uma apresentação da proposta da pesquisa e,
como disparadora de questões, a apresentação da história da política de atenção à
Criança e ao Adolescente no Brasil. Mas qual a surpresa? O que provocou o grupo a
indagar a sua ação não foi o conteúdo da apresentação, mas sim a técnica de
apresentação realizada. Nela os participantes falaram das relações que fazem entre
cor e abrigo, entre horário e abrigo, comida e abrigo, pessoa e abrigo... enfim, ao
pensar no local de seu trabalho, quais as cores, alimentos, horários que ficavam na
lembrança.
Falar do horário, principalmente, trouxe muito incômodo, pois foi lembrado o fim do
dia, a chegada da noite, quando todos vão embora (todas as outras pessoas que
circulam nos abrigos durante o horário comercial) e o serviço se sossega, como um
lugar vazio... Aparece no grupo a fala de uma criança que resume tudo: “vocês saem
e eu fico”. O que incomodou os participantes foi a percepção do aprisionamento da
vida, a falta de lugar para as crianças, pois o que eles entendem como lugar de
trabalho é exatamente onde aquelas crianças estão acolhidas, seu lar. Acolhidas e
abandonadas todo final de dia. A questão “acolhimento” entrou em cheque.
A multiplicidade de cores também esteve presente... O preto, o branco, o cinza, o
pardo, o verde e o azul...
O pardo, o preto e o branco eram citados com relação à cor de pele. Também se
falava – principalmente as pessoas que estão há menos tempo na área – em
enxergar inicialmente ‘um preto’ de falta de oportunidade, estigmatização, imagem
ruim do abrigo e depois foi indo numa direção do branco, estando “mais ou menos
hoje pro lado do cinza”. Outros associam o preto à falta de oportunidade, pois
associaram: “o preto é a ausência de cor, tendo em contrapartida o branco que é a
mistura de todas as cores”, ou seja, a própria multiplicidade...
Preto, ausência de cor? Ou cor menor, feia, negativa? Branco, multiplicidade,
composição de todas as cores? Ou belo porque burguês? As pessoas mais recentes
59
no trabalho referiam-se inicialmente a visão “preta”, mas que também, a partir do
contato, enxergaram o “branco”, daí chegam à mistura “cinza”.
As cores se misturam, misturam-se também os seus sentidos: ao mesmo tempo em
que falavam do feio, do bonito; do restrito, do múltiplo; falava-se também de azul, de
tranqüilidade, de serenidade, de calmaria; de verde... São composições possíveis no
abrigo? Convivem junto se aproximando, se tensionando...
As cores, os horários, as pessoas, os alimentos se misturaram às políticas de
atenção à criança e ao adolescente, até que a discussão começou a trilhar para o
rumo do “risco pessoal e social”20. Como não tínhamos como prorrogar mais,
agendamos novo encontro para continuar a discussão do tema.
4.6.2. Segundo encontro: risco de que?
O segundo encontro foi marcado por intensa discussão, pela revolta de perceber
que o “risco” é como um decalque que se coloca numa pessoa, nada tem a ver com
essência ou particularidade dela, mas ali colamos, vemos e encaminhamos a
situação como se o risco fosse uma essência da criança e como se todas as
situações de risco fossem iguais. Vemos e intervimos a partir deste decalque
considerado na e da criança. Para as crianças acolhidas institucionalmente, quanto
mais se fala delas, mais elas desaparecem.
A voz dos especialistas, as teorias do desenvolvimento e da educação enunciam
previsibilidade e miséria. Segundo Baptista (2001), as luzes da cidade e a voz dos
especialistas transformam os corpos em individualidades, despolitizadas do
cotidiano e da história, transformando vidas em previsibilidade, fixando retidão de
destino... “[...] Cárcere que aprisiona e protege por meio de sólidas fronteiras de
predestinação” (Baptista, 2001, p. 200). Ao discursarem sobre a vida da criança em
“situação de risco”, a única coisa que lhe resta é o acolhimento institucional. Pois,
em geral, o que se fala é da “falta”. Diferentemente do discurso presente nas visitas
aos abrigos, quando as pessoas falavam dos casos – naqueles em que a vida
circulava, se fazia rica, múltipla; os relatórios da Vara da Infância e da Juventude, os
relatos do Conselho Tutelar, os pareceres dos técnicos dos abrigos, todos falavam
20 O conceito de risco é discutido no capítulo 2.
60
da carência, da violência, ignorando os efeitos que tais discursos produzem na
criança, na família, na sociedade, nas Políticas de Atenção à Criança e ao
Adolescente. Análises que pretendem neutralidade e imparcialidade, que
desconhecem os restos de vida jogados fora, tratando-os como inexpressivos
refugos. No caso descrito por Baptista (2001), “A fábula do garoto que quanto mais
falava sumia sem deixar vestígios”, no laudo psicológico, converteu-se o mesmo em
aluno especial: dois anos de reprovação escolar, déficit de inteligência, miséria, sem
pai, sem comida, sem estimulação, lar desestruturado, apatia. O mesmo garoto, no
entanto, debaixo de sol escaldante, com destreza realiza cálculos matemáticos, que
passavam despercebidos. As práticas asilares, nas relações de poder que mantém,
sempre encontram critérios para desqualificar a pobreza e manter sua ação. O risco,
que abre possibilidades para o imprevisível, não cabe nos laudos e pareceres, não
cabe no abrigo. A pobreza transformada em “risco” revela-se múltipla no grupo de
discussão.
4.6.3. Terceiro encontro: abrigos-disfarces
No terceiro encontro, propusemos uma discussão disparada por frases que
expunham atitudes e situações dos serviços de acolhimento institucional, frases
usualmente ditas pelos participantes do grupo, pelo conselho tutelar, pelo conselho
dos direitos, pela Vara da Infância e Juventude; mas que ao serem escritas no papel
por pesquisadores tomam outra dimensão. Às vezes machucam, mas não deixam
calar.
Cada participante recebeu uma frase e comentou-a. Foram intensas discussões,
mas o que ficou mais marcado foi o disfarce do cotidiano.
Segundo os participantes, o cotidiano da criança abrigada é livre e múltiplo como o
de qualquer outra criança. No entanto, com muita frequência, ela vive momentos de
“disfarce” de cotidiano: limpo, arrumado, organizado, enquadrado, regrado,
higiênico, vitrine para uma imagem de abrigo exemplar e merecedora dos recursos
públicos (parece que só pode se investir nesta higienização, no “bonito”, no limpo,
no que tenta parecer com o padrão burguês, que esteja de acordo com as normas
61
higiênicas21...). Algumas situações de incômodo são criadas a partir do momento em
que o abrigo marca diferenças drásticas entre a forma de ser cotidiana e o momento
em que irá receber uma visita, principalmente quando esta envolve avaliação de
recursos empregados – de um cotidiano “livre, leve e solto” passa-se a cobrar dos
meninos certa aparência (cabelos penteados, roupas limpas, calçados nos pés),
certo comportamento (falar com educação, portar-se com “modos”, não se
agredirem, não correrem pelo pátio, não se sujarem, não se, não se...), produz-se
um espetáculo para ser visto: todos passam, olham e só percebem o que querem
ver, só vêem meninos limpos e “bem cuidados”.
A queixa no grupo se fazia no sentido de que era difícil ser diferente, pois para sair
da estrutura já montada, negar os caminhos impostos pelo sistema, há de se pagar
um preço muito alto. Sawaia (2004) aponta que, por conta do medo, se aceita o
cerceamento da liberdade, produzindo muitas vezes um discurso que legitima a
dominação e a servidão. Acrescenta, ainda Sawaia (2004), que os homens
expandem sua potência para a auto-preservação quando promovem o encontro com
o outro, na experiência ética, na possibilidade do movimento.
Algum tempo depois dos encontros, uma entidade que executava dois serviços de
acolhimento institucional do município foi fechada por determinação judicial, e as
crianças e adolescentes transferidos. Esta medida se deu a partir de encontros
promovidos no judiciário que discutiam as práticas dos abrigos e, nesta ocasião, veio
à tona a grave violação de direitos que se fazia dentro do espaço físico dos serviços
de acolhimento. Ao problematizar as práticas instituídas, aumenta-se a vida, o
movimento, supera-se o medo, ganha-se potência.
4.7. A quarta orientação do percurso: A restituição
21 As campanhas higienistas propunham controlar a vida da criança por uma instituição medicalizada, criando uma extensa e densa literatura tentando informar os pais acerca da melhor forma de se criar, educar e medicar as crianças, partindo do pressuposto que o Estado possuía maior conhecimento do que o próprio grupo familiar de suas relações (COSTA, 1979).
62
Algum tempo depois dos três primeiros encontros, agendamos um novo momento: o
encontro de restituição. Esta nova oportunidade visava discutir o que tinha sido
construído sobre eles. Segundo Lourau (1993), a restituição não se trata de simples
informação. Consiste em enunciar – ou denunciar – acontecimentos, sonhos por
banal que seja, por vezes é este material que vai funcionar como dispositivo
socioanalítico, causando fortes efeitos no grupo. Trata-se de procedimento
necessário, intrínseco ao ato de pesquisar, devendo ser realizado de forma pessoal
e implicada, entrando numa tarefa “[...] de análise coletiva da situação presente, no
presente em função das diversas implicações de cada um com e na situação”
(LOURAU, 1993, p. 64).
Nos encontros que precederam a restituição, o grupo demonstrava prazer em estar
junto discutindo a questão “abrigo”, a ponto de planejarem formar um grupo
permanente de discussão, com encontros mensais, revezando os espaços físicos
dos próprios serviços de acolhimento. Sendo assim, agendamos o encontro de
restituição para ser realizado em um dos abrigos do município.
A equipe de pesquisadoras foi recebida por uma profissional do serviço que não
havia participado de nenhum de nossos encontros, mas que, sendo representante
do Conselho Municipal dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes do município,
iniciou uma discussão acerca das políticas públicas para a área.
Muito tempo depois chegou uma das participantes dos outros encontros.
Demonstraram preocupação com a ausência das outras pessoas, acreditando que o
fato se dava por conta da localização do abrigo, de difícil acesso. Havia uma
preocupação em se desculpar por isso, como se elas fossem culpadas pelo pequeno
número de pessoas ali reunidas. Considerando o esvaziamento contínuo dos
grupos, é notório que o número de pessoas presentes não se devia ao local ou à
“culpa” do abrigo, nos fazendo pensar sobre a facilidade com que se procura
“culpados” para os acontecimentos o tempo inteiro.
Uma das técnicas desenvolvidas no dia provocou muitos risos e comentários cheios
de duplo sentido. Tratava-se da propositura de se construir um Serviço de
Acolhimento Institucional utilizando-se para isso de massa de modelar: “O problema
do abrigo é a base – tem que reconstruir, remontar”; “Olha! Ela acertou um educador
e ele caiu”; “Está destruído, é a foto do momento”; “Põe uma coluna no meio para
63
ver se sustenta, pois ele não quer ficar de pé!”. Em meio às brincadeiras, era visível
que não falavam apenas da massinha que ia ganhando contornos, mas sim das
formas-abrigo.
Hadler e Guareschi (2010), ao falar das “pedras” sobre as quais se ergueu a
institucionalização juvenil, afirmam que determinadas linhas atravessam e sustentam
sua existência, como o regime escravocrata no Brasil e a filantropia como resposta à
desigualdade social brasileira. Mesmo sobre essas “bases”, percebe-se que o abrigo
não é estático, que suas práticas/discursos se renovam, necessitam de
“reconstrução”, de “remontagem”. Muitas vezes, contudo, estas reconstruções não
rompem com as velhas práticas. Segundo Sawaia (2004) esse “processo
psicossocial é fertilizado em um corpo social decomposto pela desmesura do poder
e favorece a criação de um círculo auto-mantenedor, em que a causa permanece no
efeito” (p.31). Ao se deparar com o sofrimento, a morte, a passagem de um território
a outro, com frequência reproduzimos essas “bases” para o acolhimento
institucional, tornando-nos servis a elas; culpabilizando o outro, tornando-o causa
dos males vividos (pela falta de competência técnica, por exemplo) e sustentando o
poder do tirano (colocando mais pilares para sua sustentação); sabendo, contudo,
que outras produções também circulam, como o fortalecimento da potência coletiva,
promotora de vida, de movimento.
Tristeza? Potência de padecer? Esse encontro produziu muitas queixas. O discurso
da falta, das coisas que não estão como julgam que deveriam estar, reinava a todo
instante: que os educadores deveriam ser mais bem capacitados, que o programa
planejado para a reintegração das crianças não funciona como deveria, que o
trabalho com a família tem sido deixado para segundo plano, que há pouco diálogo
na rede de assistência, que a nova política (de governo) não é compreendida, entre
tantas outras queixas.
À restituição não coube apenas tristeza. Disparou uma tensão, alianças se fizeram
ali. Interessante pensá-la como dispositivo, onde o que o caracteriza “[...] é sua
capacidade de irrupção naquilo que se encontra bloqueado para a criação, é seu
teor de liberdade em se desfazer dos códigos, que dão a tudo o mesmo sentido”
(KASTRUP; BARROS, 2009, p. 90), mesmo que seus efeitos não tenham sido
perceptíveis naquele instante.
64
“[...] os afetos são éticos e políticos porque são o combustível da intensidade da
servidão ou da liberdade” (SAWAIA, 2004, p. 27).
4.8. Algumas ferramentas
“Uma teoria é como uma caixa de ferramentas.
Nada tem a ver com o significante...
É preciso que sirva, é preciso que funcione”.
Gilles Deleuze
Esta pesquisa-intervenção configura-se como transformação do campo em análise,
tendo como primado uma experiência caógena: permissão para dissolver e para
criar novas formas de vida. É a própria experiência de morte.
Não por acaso, a inquietação e o tensionamento estavam presentes nos grupos. Os
participantes convidados a registrarem, ao término das discussões, suas
impressões, incômodos e análises, tentavam perscrutar e entender suas afecções,
sem encontrar respostas. Desde o primeiro encontro estranharam a solicitação de
realizarem um diário de campo. Pareciam não se sentirem dignos de colaborarem
com algo escrito para a pesquisa. Escreveram. Indagavam-se em suas produções. A
inquietação estava presente em seus relatos.
Sem qualquer intenção de neutralidade ou objetividade do conhecimento, está posto
nesta pesquisa que a intervenção não estava restrita a identidades ou
individualidades, mas no cruzamento das várias forças desta rede de enunciação
das políticas de atenção. Segundo Passos e Eirado (2009),
A transversalidade como princípio metodológico dá direção a uma experiência de comunicação que faz variar os pontos de vista, mais do que aboli-los. [...] Ser atravessado pelas múltiplas vozes que perpassam o processo, sem adotar nenhuma como sendo a própria ou definitiva conjurando que em cada uma delas há de separatividade, historicidade e fechamento tanto ao coletivo quanto ao seu processo de constituição” (p. 116).
65
Não há uma criação de heróis, de ideal, de soluções padronizadas. A
transversalidade cria um centro vazio, porque não tem existência concreta, se
distancia dela, descentraliza, sai deste centripetismo, da lateralização dos desiguais.
Faz roda com os diferentes, rede, rizoma...
Compondo tal rede e atravessada pelos discursos/práticas das políticas de atenção
à infância e à juventude, como pesquisadora, fiz uso da ferramenta “análise das
implicações” e para tanto será necessário:
Colocar em análise o lugar que ocupamos, nossas práticas de saber-poder enquanto produtoras de verdades – consideradas absolutas, universais e eternas – seus efeitos, o que elas põem em funcionamento, com o que se agenciam é romper com a lógica racionalista presente no pensamento ociedental e , em especial, na academia (COIMBRA; NASCIMENTO, 2007, p. 29)
4.8.1. Estar na rede: alguns pontos de pertencimento
“Quando um campo de confiança se constituiu entre os
sujeitos, já podemos nos mostrar para o outro com todos
os traços de singularização que marcam nosso corpo e
nossa alma, sem medo de sermos rotulados como
loucos, fracos ou perdedores.”
Ricardo Rodrigues Teixeira
Realizar uma pesquisa tendo como foco as políticas de atenção à criança e ao
adolescente, para nós, é intervir neste meio provocando rupturas nas formas
instituídas de ver e dizer acerca de certas crianças e de seus cuidadores, nas quais
estão imersos os trabalhadores da área.
Enquanto trabalhadores da área, deparamo-nos (em mim, no outro, em nós,
atravessando nossas ações e dizeres) com posturas naturalizantes, rígidas e
preconceituosas de pensar a política de assistência e, em especial, o acolhimento
institucional. Trata-se de determinado lugar do saber, de uma colagem e não apenas
de sentimentalismos personificados.
Para Coimbra e Nascimento (2007), realizar a “análise da implicação” deste material
[...] supõe, dentre outras, as análises transferenciais daqueles que fazem parte da intervenção, a análise de todos os atravessamentos ali presentes (sexo, idade, raça, posição sócio-econômica, crenças, formação profissional, dentre outros) e a análise das produções sócio-culturais,
66
políticas e econômicas que atravessam esse mesmo estabelecimento e que também constituem os sujeitos que dele participam (p. 29).
Para Passos e Eirado (2009), estamos sempre implicados quando a questão é
produção de conhecimento e esta se faz no plano do coletivo. A implicação é aquilo
que nos torna cegos e surdos. Na análise da implicação não se trata de constatar
envolvimentos, mas analisar pertencimentos, relações institucionais, numa
propositura de não estar nem dentro, nem fora; nem pelo direito, nem pelo avesso...
mas sim de estar ampliando o índice de transversalidade.
Pertencer à área da política de atenção à criança e ao adolescente é confundir-se
com o que é produzido, singularizado, resistido, naturalizado na área. Há doze anos
iniciei meus contatos com as práticas de assistência à criança e ao adolescente e
vivi grandes interrogações. Naquela época, tinha a sensação de que as pessoas
falavam uma outra língua, que as questões que atravessavam o setor onde eu
trabalhava tinham uma “receita” pronta para encaminhamento, uma solução
predefinida, que ainda não estava programada em meu corpo, em meu agir. Pensei
até que pudesse ser um problema de formação (ou “formatação”), ou uma falha
curricular do curso de graduação. Tais dúvidas surgiram no embate com a
Secretaria de Promoção Social do Município de Serra.
Todos a minha volta falavam com muita naturalidade que a população atendida
estava em risco social, que as crianças que foram para o abrigo eram de risco
social, que o Conselheiro Tutelar precisava de um carro urgente para realizar uma
visita e averiguar uma denúncia de risco social. O que é afinal “risco social”? O
termo vivia pronunciado naquele espaço e todos pareciam entender a mensagem.
Ninguém, no entanto, soube me explicar muito bem o que viria a ser esse tal de
“risco social”. Parecia se tratar de algo relacionado a um perigo, algo que poderia
acontecer e que deveria ser evitado. Mas como evitar algo que não se sabe o que
é? Que não se sabe os efeitos que produz? Eu permaneci muito tempo sem
entender muito bem.
Com o tempo, no entanto, tive a sensação de que o “risco social” grudou em mim,
passou a fazer parte de mim, proporcionando-me a “competência” de olhar para uma
situação e avaliar se é de risco ou não. Contudo, continuava com dificuldades de
conceituá-la, sabia apenas pelo olhar. Entendia que risco social está para a
67
assistência assim como a “atitude suspeita” está para a polícia: o policial é treinado
para detectar as atitudes suspeitas, reconhecê-las, mas não sabe descrever o que é,
caso tente estabelecer padrões vai logo perceber que os limites são muito tênues.
Ainda hoje, percebo-me vendo e falando do risco social. Ao ir à praia, ao
supermercado, ao shopping, à rua, ao lazer noturno... Eu vejo situações de risco.
Em meio à inquietação, organizamos grupos de discussão entre os técnicos do
departamento responsável pela política de assistência à criança para falarmos
destes incômodos que não eram só meus. Os primeiros encontros produziram
entusiasmo, inquietação, dúvidas, portas e possibilidades, no entanto, pouco a
pouco, foi tomando conta dos encontros o pessimismo, as respostas prontas, o
descrédito, principalmente ao considerar a criança em situação de acolhimento
institucional. Veio o esvaziamento.
Uma das grandes preocupações que parecia rondar o grupo, sem encontrar
passagem, era: como construir espaços de proteção sem ser mais um agente de
violência? O grupo tinha noção de que a pobreza era criminalizada e desqualificada,
levando famílias pobres a serem tidas por incompetentes para o cuidado com os
filhos e estes, por sua vez, necessitados da intervenção do Estado. A pobreza
parecia se confundir com o risco. Recentemente ouvi uma conselheira dos direitos
da criança e do adolescente contestando uma reintegração, pois a família que
recebeu a criança de volta “morava num morro de Vitória22, sem estrutura financeira,
com indícios de trafico de drogas no nas imediações de sua residência...” O que a
conselheira não se dava conta é de que sua contestação se baseava em fatores
socioeconômicos, de moradia e de uma questão social muito mais ampla que a
família não tem como ser responsabilizada. A família criminalizada, desqualificada
por ser pobre.
A motivação para o acolhimento ou permanência no serviço, em geral, desqualifica a
família pobre. Por que abrigos para os pobres? Por que abrigo para os moradores
do morro? Costa (1979) ressalta algumas observações que sinalizam os pontos de
contradição de nosso sistema. Segundo o autor, o movimento higienista foi dirigido
às famílias da elite. Para os pobres continuou a correção punitiva, dessa forma,
escravos, mendigos, loucos, vagabundos, ciganos, capoeiras, etc. serviram de anti-
22 Vitória, Capital do Estado do Espírito Santo.
68
norma, de casos limites de infração higiênica, sendo alvo da polícia, prisões e asilos.
Segundo Nascimento, Cunha e Vicente (2008), essa linha de ação, mesmo que sem
se perceber, retorna hoje em forma de abrigos para crianças: punição para as
famílias, disciplina para seus filhos, proteção para a sociedade.
Outras posturas naturalizantes, rígidas e preconceituosas de pensar a política de
assistência e o acolhimento institucional foram narradas, com riqueza de detalhes,
no livro “Lobo em pele de cordeiro – manicômios do contemporâneo: uma
contribuição para se pensar abrigos de crianças” de minha autoria. Estas
experiências vividas no período de 2001 a 2005 na Casa de Passagem Mirim23
foram cruciais para minha imersão – e às vezes “perdição”24 – nesta área.
Naquela ocasião já me incomodava o tempo de permanência das crianças em
serviços de acolhimento institucional. Mesmo com o Estatuto da Criança e do
Adolescente determinando a excepcionalidade e provisoriedade da medida, a
experiência no abrigo denunciava que, ao serem abrigadas, as crianças eram
esquecidas, elas passavam a não incomodar mais. Este incômodo é algo muito
recente em nossa história. A escola moderna, por exemplo, foi forjada para docilizar
os corpos e a prepará-los para o trabalho. Segundo Enguita (1989), a escolarização,
no séc. XVIII, consistia em levar crianças de 4 anos para casas de trabalho rural:
tinham duas horas de aula por dia e mais dez horas de serviço para que não
ficassem desocupadas. Acreditava-se que a ocupação constante lhes garantiria
meios de existência e uma vida adulta habituada ao trabalho. O incômodo vivido
com a institucionalização das crianças hoje está presente nos abrigos, na legislação,
nas propostas de políticas públicas, mesmo assim, sabe-se que, repete-se
continuamente, na primeira denúncia e à primeira visita, sem qualquer outro tipo de
providência, o encaminhamento para um abrigo provisório. As experiências mostram
que os Códigos de Menores não acabaram. Continuam existindo no modo de
pensar, de segregar crianças e adolescentes, mesmo que para isso sejam utilizados
“bonitos” discursos de proteção.
23 Serviço de acolhimento institucional do Município de Serra/ES 24 A palavra “perdição” foi acrescentada no intuito de marcar uma diferença com imersão. A imersão diz respeito ao mergulho na experiência caógena, permitindo-se dissolver para se criar novas formas de vida, novas práticas. A perdição refere-se aqui à reprodução e à legitimação de práticas de exclusão e à produção de formas rígidas de ser abrigo, criança, risco.
69
Essas experiências-abrigo trazem vários elementos para se pensar a função política
do sistema de acolhimento institucional. As práticas, que ali se efetuaram, são,
assim como Cardoso Júnior (2005) conceitua, aquilo que efetivamente é feito pelos
homens, distinguindo-se daquilo que pensam acerca do que fazem. Segundo o
referido autor, Veyne entende a prática em Foucault como “[...] aquilo que imanta
todo um conjunto de acontecimentos, aquilo que permite, no plano discursivo,
costurar a dobra narrativo-teórica, isto é, entre a diferença temporal de um
acontecimento e uma operação conceitual que lhe seja feita” (CARDOSO JÚNIOR,
2005, p. 108).
Nossas práticas têm produzido crianças desqualificadas: aquelas que destroem
tudo, agressivas, teimosas, mal educadas... são consideradas uma raça inferior,
perigosa, desacreditada, despotencializada (COIMBRA; NASCIMENTO, 2005;
NASCIMENTO; CUNHA; VICENTE, 2008; LUNA, 2001; CRUZ; HILLESHEIN;
GUARESCHI, 2005). Percorrer os espaços em que operam as políticas de
assistência à infância sem se capturar por essa produção de infância requer a
atenção do cartógrafo, que possibilita dar passagem a fluxos outros que se
produzem naquele espaço. As crianças abrigadas produzem muitas coisas que não
são registradas nos prontuários: inventam brincadeiras e brinquedos, são
autônomas25, etc. Crianças em abrigo não podem ser reduzidas a um feixe de
tristeza, incapacidade e agressividade. São crianças que também amam, sorriem e
podem construir seu próprio futuro. Suas famílias igualmente não podem ser
denegridas e culpadas pelos problemas dos filhos, pois muitos outros relatos não
constam em seus prontuários. Segundo Rizzini e Pilotti (2009), são raríssimos os
casos que são reconhecidos e documentados em que a família tenha ultrapassado
todos os obstáculos para criar seus filhos, a despeito dos inúmeros casos que
ocorrem. O discursos dos prontuários cria uma criança que lhe falta tudo e uma
família que é incapaz de cuidar de seus filhos.
A experiência, por sua vez, nos faz encontrar com o novo, que nos provoca
sentimentos de estranhamento, espanto, pois confronta nossos conceitos e imagens
de vida, dor, criança, família desestruturada, louco, presidiário e velho. Sentimos
dificuldade de visualizar potência em serviços de acolhimento, manicômios, asilos e
25 Ver exemplos em COELHO (2007).
70
prisões. Até mesmo nas escolas, vez ou outra, as pessoas se espantam com a
expressão do desejo, da liberdade de criação, com a diferença... São os lugares da
disciplinarização, onde, com freqüência, a produção é a reprodução do mesmo, do
esperado.
Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar espaços-tempos, mesmo de superfície e de volume reduzidos. É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo (DELEUZE, 1992, p. 218).
Na experiência é possível o acontecimento. Segundo Cardoso Júnior (2005), o
acontecimento – fato que não se repete, singularidade – é contrário à continuidade
ou repetição, às regras e saberes, à evidência. Remete ao imprevisível, ininteligível,
indizível, irrepresentável, à novidade absoluta, à excepcionalidade, ao plano de
imanência. Não possui regularidade, não tem uma única direção seja ela boa, ou de
bom senso, seja ela apontando para um futuro. Ele é sempre passado e sempre
porvir, sem produto e nem produtor, sem sujeito ou objeto; trata-se de uma relação
de forças, que se abre à possibilidade anteriormente impensável, é um corte na
realidade, uma descontinuidade, uma ruptura na e da situação, provocando e
produzindo desacomodação, pensamento. E nele novas práticas são produzidas.
Práticas que escapam à produção do discurso de falta - tantas vezes encontrados
nos diários da Casa26 -, que enrijece a vida, que possibilita pouca passagem. Criar
espaços que se abrem a propostas que “escapem ao controle” possibilita o
nascimento de algo novo, que, muitas vezes, se evita por não se acreditar que
abrigos de crianças possam ser diferentes.
Quando o educador se percebe agente, se incomoda, por exemplo, com o
analfabetismo e produz, a partir de então, um espaço de produção que mais que
alfabetizar, constrói cidadania. A partir de tal prática, crianças mostram-se agentes
de transformação – começam a realizar discussões sobre a vida no abrigo,
construindo coletivamente novas estratégias, novas práticas de se estar no abrigo –
e questionam o “adestramento” a que estavam submetidas no atendimento
26
O Diário da Casa consiste num relato escrito pelos educadores sociais, ao final de cada turno, expondo as atividades executadas durante sua jornada de trabalho da Casa de Passagem Mirim – abrigo temporário de crianças no município de Serra/ES. Neste espaço, devem apresentar também suas queixas, agradecimentos e pedidos.
71
psicológico (GUARESCHI, 2007) e a forma de se evitar contradições e conflitos no
abrigo.
Para ser “possível” o trabalho na Casa, os funcionários procuram criar barreiras ao
relacionamento com as crianças e, assim, aquele coração “mole” que se envolvia,
sentia, ria e sofria, procura ser “duro”, distante, frio e insensível, pois acreditam que
assim sofrerão menos. As situações das crianças que chocam e fazem sofrer,
também são naturalizadas, quase banalizadas, para que possam se “acostumar”
com elas e assim dormir em paz. Por fim, estar com a criança é uma batalha consigo
mesmo: com suas concepções de família, amor materno, perigo, criança...
No final de 2009 e em 2010, pude experimentar outros lugares, outros ângulos de se
ver e participar da política de atenção à criança e ao adolescente. Um destes
lugares foi a gerência da política municipal de assistência à infância e à juventude.
Confesso que grandes expectativas levantei, tanto no que diz respeito aos desenhos
para a política municipal quanto para a própria produção da dissertação.
Questões fervilhavam: Como construir espaços de construção coletiva? Como
produzir práticas de liberdade? Quais ferramentas poderíamos utilizar para
desmontar a desqualificação da família pobre, a tutela estatal, a vigilância enquanto
assistência, entre outras práticas presentes na política do município?
Muito cedo, no entanto, foi possível perceber, assim como Monteiro et alii (2006),
que
[...] um lugar de poder instituído, como o aparelho de Estado, funciona segundo certas lógicas, e que “ocupá-lo” é, na maior parte das vezes, servi-lo na condição de operador de seus dispositivos e, nesta condição, o operador não muda a máquina, ele a faz funcionar. Experimentando a impossibilidade de transformar o funcionamento das máquinas estatais capitalisticas, mantém-se a crença na possibilidade de reformas através de intervenções nas formulações e implementações de políticas públicas vinculadas ao Estado (MONTEIRO, COIMBRA, MENDONÇA FILHO, 2006, p.11).
Fazer funcionar esta máquina é como carregar sobre o nosso corpo o peso de toda
a política. Como afirmam Tavares e Menandro (2008), encontros como estes,
enquanto afecções passivas, “[...] tendem à atualização na medida em que o ser
humano, parte de uma totalidade infinita que o determina a todo o momento, tem
necessariamente paixões que nada mais exprimem que o peso do todo sobre as
72
partes” (p. 347). A máquina estatal não começava nem terminava em mim, eu
atualizava a idéia de governo.
Segundo Scheinvar (2009)
O “corpo técnico” ou “corpo especializado”, que vai ao campo de batalha enfrentar realidades como representante do poder público, sofre dificuldades e é até impedido de opinar e intervir nas decisões relativas à sua rotina, tendo de se submeter a decisões superiores inadequadas, que chegam a ser contraditórias com as práticas também induzidas ou impostas pelo Executivo (SCHEINVAR, 2009, p. 67-68).
Tudo isso gerou um grande sofrimento, gerou impotência para agir, decomposição,
tristeza. A falta de autonomia, a servidão, a culpabilização estavam presentes por
todos os lados.
A produção da dissertação também foi atingida por essa impotência. Parecia-me
impossível escrever. Não conseguia realizar análises do material produzido nas
visitas e nos grupos sem construir vilões e mocinhos. Assim como a relação de
dominação e servidão estavam presentes em cada ato, as reflexões produzidas na
dissertação acompanhavam o movimento. Movimento em torno de si mesmo. Com
todo o material estudado, inúmeras vezes, via-me reproduzindo e legitimando
práticas de exclusão e de produção de formas rígidas e de corpos dóceis – emoção
– atravessada por forças maiores do que eu, na maior parte das vezes, não reagia.
Outro lugar de experiência neste período foi a composição do Conselho Municipal
dos Direitos da Criança e do Adolescente da Serra. Outro espaço definidor da
Política Pública para a infância e juventude. O conselho, que devia ser espaço de
construção coletiva, estava carregado de egoísmo, de interesses individuais e de
abuso do poder. Conselho tirânico que definia regras em favor de si mesmo. Como
diz Foucault (2004) o “[...] sujeito ético é alguma coisa que não tem muito espaço no
pensamento político contemporâneo” (p. 279).
A construção da dissertação é uma aposta. Mesmo que, por vezes, nossos olhos,
posturas e condutas pareçam encurralados em formas fechadas, em espaços que
parecem nos engolir, é possível construir outros discursos/práticas de liberdade. Um
gestor, conselheiro, ator da política que possa construir o caminho a cada dia...
problematizando, produzindo outras formas de intervenção – esse gestor não é
interessante.... – contudo, afirma a vida.
73
5. AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE
DO MUNICÍPIO DE SERRA – EXPERIÊNCIA NA PESQUISA
“A Política Social Brasileira tem sido historicamente uma
prática autoritária, apresentando o Estado como um
‘inventor’ do social e um doador que define
hierarquicamente a organização do espaço público sob
concepções de favor, e não de direito.”
Estela Scheinvar
As Políticas Públicas direcionadas à infância no Brasil têm sido constituídas e têm
constituído a própria cidade. Qualquer um de nós já deve ter parado num semáforo e
sentido algum tipo de emoção ao ver meninos e meninas esmolando: compaixão,
raiva, tristeza, indignação ou mesmo indiferença. Muitas vezes estes sentimentos se
misturam e remodelam propostas de atenção à criança nas famosas situações de
risco. Muitas outras situações não estão estampadas sob os nossos olhos: às vezes
estão nos jornais, nas estatísticas, nos relatos de conhecidos; referimo-nos a
espaços que não adentramos, que não mais margeiam a metrópole, mas que a
habitam nos recônditos, nos buracos, nos becos sem saída... Estes espaços são
vistos como lugar de gente menor, “de risco”, subcidadãos, sem direito a atenção do
Estado, ou melhor, com certa atenção do Estado. Para lá vão projetos e programas
responsáveis em vigiar, em adequar o comportamento da infância e da juventude à
subserviência: não fique à toa, não forme grupos, estude (coisas menores), torne-se
“gente” – gente menor. São os programas assistenciais ou compensatórios.
Percebemos que muitas concepções e práticas são ancoradas nos antigos “Códigos
de Menores”, fundamentando-se na regulação e no controle, na limpeza social... Por
exemplo, quando se pensa em programa de abordagem de rua, tem-se a idéia de
que havendo crianças na rua (poluindo e incomodando a paisagem da cidade),
basta acionar o programa que ele vai ao encontro daquelas e faz a limpeza
necessária, retirando-as da rua – acredito que pouquíssimas pessoas se incomodam
em pensar para onde aquelas crianças vão – e restaura-se a “paz pública”.
Parafraseando Tavares e Menandro (2008), podemos afirmar que a sociedade
espera que as autoridades responsáveis ponham em funcionamento um conjunto de
74
estabelecimentos com dispositivos físicos, materiais e recursos humanos suficientes
para calar ou tornar invisível as “anomalias” sociais. “Secretaria de Segurança
Pública”, “Secretarias de Assistência Social” são convocadas a minimizar, esconder,
separar ou isolar o perigo, o risco. Teixeira (2005) pontua que vivemos numa
sociedade de desconfiança, onde somos alertados por diversos meios para o
cuidado com os riscos: a biomedicina, ancorada no saber epidemiológico, instrui a
desconfiar de tudo o que nos cerca; os tiranos de toda sorte que espalham a
desconfiança no outro; os economistas, que criam o risco-país, mensuram a
desconfiança financeira; a mídia, que irradia discursos de desconfiança. Onde há a
maximização da desconfiança e do medo, tenta-se identificar e conter de alguma
forma essas fontes.
Foi assim que nasceu, desde o início do século passado, o orgulhoso 1º Código de
Menores da América Latina: Código Mello Mattos. Essa resposta legal ao perigo, ao
risco, preocupava-se com o aumento acentuado de crianças nos centros urbanos:
crianças, frutos de uma liberdade sem condição, frutos de uma nova classe social
que já nasce desprovida de tudo, marcada pela cor e pela escravidão; crianças,
também, frutos daqueles que atravessaram o oceano à procura de melhores
condições de vida, encontrando apenas a semi-escravidão e o desamparo social. A
esta população infanto-juvenil o Código de Menores só tinha uma resposta: o
asilamento. Em entrevista ao programa Jô Soares27, Roberto Carlos Ramos, hoje,
pedagogo e autor do livro “O contador de histórias”, relata que foi para a Febem
(Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor) porque seus pais eram pobres e
acreditavam que na tutela do Estado, Roberto Carlos teria um futuro melhor.
Para Hadler e Guareschi (2010), o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de
Organização da Assistência Social, ao promoverem a atenção à criança e ao
adolescente em “situação de risco” pessoal e social, rotulam e definem modos de
ser sujeito, onde aos que estão fora da escola, aos que estão na rua, aos infratores,
aos que não possuem registro de nascimento resta apenas o estigma de estarem
fora do que se considera normalidade. Os serviços, programas e projetos, desta
forma, longe de promoverem “igualdade”, produzem um ideal de infância e
27 Entrevista disponível no endereço: <http://www.youtube.com/watch?v=BMlfGjyHSBQ&feature=PlayList&p=54F3904E4DAF378D&playnext_from=PL&index=0&playnext=1> acesso em: 14/07/2010.
75
juventude. Coimbra e Nascimento (2005) analisam que o Ecriad ao tentar “igualar
juventudes desiguais” (marcadas por diferenças socioeconômicas, culturais e
históricas), assume princípios e modelos neoliberais, que tentam “[...] igualar em
cima de valores burgueses modos de vida que continuam desiguais e que tendem,
no neoliberalismo, a se tornar cada vez mais distantes entre si” (COIMBRA;
NASCIMENTO, 2005, p. 352 – tradução livre).
Além da tentativa de igualar o que é desigual, segundo Hadler e Guareschi (2010), o
que têm se constituído enquanto políticas públicas para crianças e adolescentes é a
legitimação de uma racionalidade excludente e a docilização de determinados
segmentos sociais.
Nesse sentido, vamos enxergando uma malha que absorve a vida do sujeito jovem. Uma trama que coloca as políticas públicas produzindo e sendo produzidas por práticas de institucionalização, por concepções que se tem sobre a juventude pobre e, inclusive, pelos sujeitos jovens que se tornam seus objetos de investimento e intervenção (HADLER; GUARESCHI, 2010, p. 36).
O 1° Código de Menores, de 1927, que se propôs a recolher os “menores” em anos
de história no Brasil, foi composto e compôs uma forma, uma cor, uma situação
socioeconômica para se asilar. Em recente palestra28, um juiz de Vara Especializada
de Infância e Juventude declarou que no Brasil se abrigam muitas crianças por conta
da desigualdade social que é a terceira maior da América Latina. O que a
desigualdade social brasileira tem a ver com a necessidade de acolhimento seja ele
institucional ou familiar?
Segundo as “Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e
Adolescentes” (CONANDA; CNAS, 2009), a criança e o adolescente só poderão ser
afastados da família de origem para a proteção de sua integridade física e
psicológica, recorrendo ao acolhimento, seja ele familiar ou institucional, quando
esgotados todos os recursos para manutenção dos mesmos em sua família. Sendo
assim, as “orientações técnicas” não fazem qualquer menção ao acolhimento
infanto-juvenil por condições socioeconômicas. A PNAS, por sua vez, define que o
Serviço de Acolhimento Institucional será acessado apenas quando houver violação
dos direitos das crianças ou dos adolescentes, estando estes em situação de
28 Palestra proferida pelo Dr. Richard Pae Kim, Juiz da Vara da Infância e Juventude de Campinas/SP, PhD em Políticas Públicas pela UNICAMP no III Seminário Municipal de Convivência Familiar e Comunitária – Vitória/ES, 08/10/2010.
76
ameaça, urgindo sua retirada do núcleo familiar e/ou comunitário. Vale lembrar que
o Ecriad ressalta, em seu artigo 23, que a falta ou a carência de recursos materiais
não se constitui motivo suficiente para o afastamento da criança ou adolescente de
sua família.
Segundo Nascimento, Cunha e Vicente (2008), não sendo a carência, outro motivo é
novamente identificado nas famílias pobres, pois estas são decretadas negligentes.
Pontuam as autoras que a negligência tem sido tratada como desrespeito aos
direitos fundamentais dos filhos, expressos na forma de violência intrafamiliar,
exposição à “situação de risco” entre outras. Assinalam ainda, que esta forma de
avaliar a situação descarta a estruturação do capitalismo neoliberal, as péssimas
condições de sobrevivência de muitas famílias e as relações de poder
contemporâneas para “demonizar, culpar, criminalizar a família, individualizando a
violência” (NASCIMENTO; CUNHA; VICENTE, 2008, p. 10).
Algumas situações nos mostram que a pobreza continua sendo abrigada a despeito
das orientações legais. O IPEA, numa pesquisa nos abrigos brasileiros em 2004
(com o Ecriad em vigor há 14 anos), constatou que a maioria das crianças em abrigo
é pobre e negra, levando à hipótese de que
[...] as instituições de abrigo representam um locus de concentração de crianças e adolescentes pobres e que crianças de famílias de renda mais elevada estão menos sujeitas a medidas de abrigamento. Em outras palavras, as condições socioeconômicas de uma determinada criança e/ou adolescente exercem importante influência na aplicação da medida de abrigo (SILVA, 2004, p. 53).
Durante as visitas aos Serviços de Acolhimento Institucional do Município de Serra
foi muito raro encontrarmos crianças brancas, muito raro ainda encontrarmos
crianças economicamente abastadas. Nos abrigos encontramos o negro, o pobre, o
abandonado pelas políticas públicas, os habitantes do “escanteio”, os frutos da
desigualdade social29. Em uma das visitas aos abrigos, nos deparamos com uma
29 Segundo informações publicadas no site da UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization): “Em 2003, 13,7% da população brasileira viviam em situação de indigência, enquanto 35% eram considerados pobres. Os altos índices de pobreza prevaleciam, sobretudo, entre a população negra – do 1% mais rico do Brasil, 86% eram brancos, ao passo que dos 10% mais pobres, 65% eram afrodescendentes. Em 2005, a distribuição da renda mostrava-se ainda mais desfavorável à população negra, que passou a representar 73,5% dos 10% mais pobres, ao mesmo tempo em que o percentual de brancos entre o 1% mais rico se elevou a 88,4%” Informações
77
menina abrigada muito bonita e branca, mesmo sem querer nos espantamos, nos
sentimos incomodadas, até mesmo sentimentos tais como pena e compaixão
emergiram; mas vale ressaltar que os mesmos sentimentos não brotaram pelas
outras tantas crianças abrigadas, tanto ali como nos outros abrigos visitados.
Parecia natural encontrá-los ali, naquele ambiente. Sejam profissionais,
pesquisadores, famílias, crianças... nenhum de nós está imune a estas capturas.
Os abrigos reproduzem, remodelam e reconstituem suas funções políticas postas no
Código de Menores. Nas visitas, nos encontros, nas conversas... Mesmo que a
grande maioria dos participantes dos diálogos não tenha trabalhado na área da
criança e do adolescente há mais de 19 anos (quando o código de menores ainda
estava em vigor) parece que todos falam dele, que ele ainda está presente nas
Políticas Públicas de Atenção a Criança e ao Adolescente. Onde estariam as forças
coletivas para produzir novas formas de expressão?
5.1. A capacitação e o esvaziamento do público
“A rapidez, a velocidade e a aceleração
dominam o mundo atual.
Não nos permitem e
não nos permitimos perder tempo”
Coimbra e Nascimento, 2007
As equipes que trabalham na área de atenção à criança e ao adolescente da
Serra/ES estão ligadas no mundo contemporâneo que procura desenfreadamente
por capacitação, formação e informação. Todos os seminários, encontros,
conferências estão lotados de participantes da área. Trata-se de um grupo assíduo,
presente e receptivo.
dispoíveis no endereço eletrônico: http://www.unesco.org/pt/brasilia/social-and-human-sciences-in-brazil/poverty-reduction-in-brazil/, acesso em 17/08/2010.
78
O primeiro encontro da terceira orientação de percurso da pesquisa teve o maior
número de participantes. No início do mesmo, apresentamos a proposta e os
objetivos desse momento da pesquisa. Muitos, que se referiam ao mesmo como
uma “capacitação”, tiveram dificuldade de entender a dinâmica proposta. Com o
passar dos encontros o número de participantes foi diminuindo. A busca por uma
informação que “lhe falta”, que lhe é externa, reveste-se de maior importância. Os
espaços de discussão das práticas, os espaços que exigem implicar-se
coletivamente na construção de novos saberes/fazeres dos Serviços de Acolhimento
Institucional ou da Política de Atenção à Criança e ao Adolescente não possuem a
mesma importância ou prioridade. Os encontros pareciam um momento menor,
menos importante, para quem não tinha muitos compromissos no dia a dia do
abrigo. Ao apresentar a proposta dos encontros, em determinado serviço de
acolhimento, a coordenadora falou que iria liberar um técnico que ainda não tinha
muita experiência e que poderia assim aprender mais. Segundo Coimbra e
Nascimento (2007), a lógica do mercado hoje exige dos sujeitos um ritmo acelerado
no trabalho e, nas atividades especializadas, este trabalho é entendido como um
exercício de verdade. Este sujeito entende-se como privilegiado e mais avançado
que os outros e paradoxalmente “(...) esta prática de onipotência caminha junto com
as outras, de fragilização e de desqualificação do profissional” (COIMBRA;
NASCIMENTO, 2007, p. 33). Sobrecarregado de afazeres na entidade, os
profissionais se culpam por não encontrar as respostas individualmente e não
participam de momentos coletivos que colocam em análise suas práticas,
concedendo aos menos “ocupados” esta possibilidade.
Na 6ª Conferência Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, durante as
palestras, o auditório contava com mais de 150 pessoas, durante a realização dos
cinco grupos de trabalho, no entanto, cada eixo de discussão não contou com mais
de 10 participantes cada.
Os trabalhadores sociais, assim como desqualificam as famílias pobres, são eles
mesmos alvo de desqualificação. Seu saber, seu posicionamento é desqualificado
frente ao outro que “capacita”, que possui um saber a ser transmitido e acolhido,
como verdadeiro, qualificado e “bom”. O discurso que impera é o da falta de saber...
estava presente na conferência, nas visitas, nos encontros... como se houvesse uma
79
fórmula a ser aplicada nos serviços e na política municipal que daria respostas
prontas e acabadas aos problemas vividos.
Assistimos, em alguns momentos, movimentos sociais, engolidos pela lógica do
capital, defenderem o patrimônio da entidade, os interesses pessoais, a “verdade”
privada, um homem idealizado, longe da experiência coletiva, da composição de
forças, do público. Para Scheinvar (2009), com o discurso neoliberal, os conceitos
de solidariedade e democratização estão desaparecendo, emergindo a
individualização como sinal de competência técnica, e a eficiência e a motivação
como bases da política social. Esses discursos
[...] são usados como armas para despolitizar o debate sobre o Estado, quando o que ocorre é que o tipo de gestão demandada ao Estado pelo pensamento neoliberal distancia-se de suas atribuições anteriores, razão pela qual é construída sua ineficiência (SCHEINVAR, 2009, p. 67).
5.2. Encontros e desencontros com a legislação
Segundo Scheinvar (2009),
As legislações são projetos políticos que se tornam hegemônicos conjunturalmente, em um debate com muitos outros, num jogo em que a legalidade expressa uma forma de soberania que pode ser transformada de acordo com os interesses em disputa, por ser o espaço da legalidade um espaço de guerra (p. 71).
5.2.1. Existem marcas que diferenciam as crianças de abrigo das crianças da
comunidade? O que percebem os profissionais de abrigo?
Durante a produção de dados para a pesquisa, num determinado grupo, uma
pergunta fez eclodir grande angústia entre os participantes: Quando pensamos,
planejamos, executamos as políticas públicas para crianças e adolescentes,
pensamo-la para nossos filhos? Para as crianças e adolescentes da comunidade,
para os nossos filhos, sobrinhos, permite-se passear, brincar, ficar à toa. Para as
crianças e adolescentes de abrigo – talvez ainda na condição de menores – o que
se permite é a produção de algo: devem ter uma agenda cheia de atividades, não
80
podem “vadiar”. Paradoxalmente, parece que está taxado que eles nunca vão
produzir algo, que eles são “menos gente” (gente menor) e precisam, por isso
mesmo, fazer uma prova de que serão produtivos o tempo inteiro, mas que tipo de
produto espera-se? As propostas de trabalho e/ou atividades para os meninos –
produção contínua –, segundo os educadores é uma proposta para o “bem” dos
mesmos, para garantir um “futuro melhor” – este mesmo “futuro melhor” não é
necessário, por outro lado, para a juventude de fora do abrigo. Parece que o futuro
melhor para a criança de abrigo não é o futuro melhor para esta juventude de fora.
Quando o Ecriad fala em crianças e adolescentes iguais... Que “iguais” são estes?
Seriam iguais em algum momento? Existe uma produção de desqualificação da
criança de abrigo.
Nos grupos também surgiu um grande incômodo quando são direcionados
estereótipos às famílias dessas crianças e adolescentes. O tratamento dirigido às
famílias mais abastadas (não só em função dos recursos financeiros, mas de uma
série de outras produções sociais que fazem delas diferentes das famílias
historicamente excluídas) também é bem diferente. Para aquelas há um
afrouxamento de vigilância, de cobrança, parece uma cegueira (vê e finge que não
vê) os cuidados dispensados às crianças. A vigilância e o olhar sobre a pobreza é
diferente, é mais exigente... Os olhares dirigidos às outras classes deixam de
enxergar o que se faz (e o que se deixa de fazer) com as crianças. Estas vivências
parecem encapsuladas por certo modo de ser, por uma cor de pele, por um visual
estético, por uma formação, por um trabalho, por um status, que refinam, que
nublam o olhar de quem avalia a situação da criança. Esta cápsula nubla a tal ponto
que as situações parecem não necessitarem de avaliação – estão acima de
qualquer suspeita. Contudo, como diria Bauman (1999), “não há mais “fronteiras
naturais” nem lugares óbvios a ocupar. Onde quer que estejamos em determinado
momento, não podemos evitar de saber que poderíamos estar em outra parte”
(BAUMAN, 1999, p. 85). Este autor continua discorrendo sobre os limites que
determinam aqueles que seriam os vagabundos ou os turistas: os vagabundos são
necessários aos turistas, pois são eles que sustentam os consumos e os deleites de
uma vida em que se é possível a mobilidade, dignificada aos turistas. Criam-se, pois,
estratégias, prisões para limpar a sociedade dos vagabundos, que poderíamos
transpor aqui para estas tantas crianças que vimos, marcadas por um olhar nublado
81
talvez um tanto quanto turista, vindo de fora, sem conhecer suas vidas e suas
marcas, sem potencializar suas famílias, que as classifica como os vagabundas.
E o grupo volta a questionar por que ninguém se incomoda de que façamos uso de
bebidas alcoólicas na frente de nossos filhos, que os deixemos sozinhos para ir à
padaria na esquina, que durmam a tarde inteira depois de um dia de aula, que
fiquem sem fazer “nada” (“de papo pro ar”)? Voltando a questão inicial: de que
igualdade estamos falando?
5.2.2. O cuidado de si e algumas encruzilhadas vividas nos Serviços de Acolhimento
Institucional
Em alguns abrigos visitados, a movimentação nas ruas se dá de forma diferencial,
sendo corriqueiro encontrar crianças brincando, correndo livremente pelos espaços
públicos, sejam eles ruas, praças ou calçadas. Em uma visita, o inusitado aflorou
intenso e gritante: o filho da presidente da entidade estava na rua, brincando à tarde,
de chinelo, livre na comunidade. O portal do abrigo trancado. As crianças e
adolescentes abrigados sem autonomia para decidirem os espaço onde poderiam
brincar. Talvez aí entre em cena a difícil decisão do que dá e do que não dá para
permitir uma criança em situação de abrigo fazer.
Por exemplo, a forma com se faz educação-horário-obediência no que se refere aos
horários de estada e saída de casa. Esta questão causa muitos incômodos, tanto
nos moradores, quanto na equipe técnica e demais profissionais envolvidos. Os
abrigados, por exemplo, não podem sair sozinhos e o horário é sempre marcado de
ida e volta. Quando – uma vez ou outra – eles saem sozinhos, a mãe social fica
ligando: saber onde estão, se estão bem, se está tudo sob controle para voltar no
horário... Bem, qualquer pai “zeloso” faria isso: também marca horário de retorno,
liga buscando informações (controlando) e então qual é o incômodo?
O incômodo vem a partir do momento em que, havendo uma situação extraordinária,
basta uma conversa entre pais e filhos para se redelimitar a ação: mudar o horário,
definir o grupo de convivência, renegociar o investimento naquele desejo. Para os
adolescentes abrigados isso não se coloca. Independente do que está acontecendo,
seus limites são bem determinados. Entra em jogo aqui não somente os
82
estabelecimentos fechados, muros, cadeados, mas todo um conjunto de regras e
discursos que definem regimes de verdade, legitimam condutas, formatam modos de
ser (FOUCAULT, 1996). Muito mais que o cuidado com o outro, está o medo de ser
responsabilizado pelo que acontece ao outro.
Segundo o Ecriad, Art. 92, § 1°, “os dirigentes de entidades que desenvolvem
programas de acolhimento institucional é equiparado ao guardião para todos os
efeitos de direito”, em decorrência desse fato, muitos dirigentes cerceiam a vida das
crianças e adolescentes abrigados com vistas a proteger-se. Dessa forma, o abrigo
mostra o tempo todo, às vezes a vida inteira, o que o menino deve fazer, a hora em
que deve fazer, do jeito que deve fazer, com quem deve fazer e depois queixa-se de
que “seus filhos” não sonham com o futuro, não planejam a vida, não se empenham
nas oportunidades oferecidas.... Alguns participantes do grupo de discussão se
angustiavam quando a questão era sonhos de futuro. Relatam que os meninos
inicialmente apresentam uma demanda, parecem motivados, sonhadores, mas logo
que a proposta é oferecida, “dada de bandeja” para eles, “desistem”, não se
empenham, parece que perdem a graça.
A autonomia lhes é negada a vida inteira, em todos os atos, são sempre
persuadidos a abrirem mão de suas opiniões, de suas posições, de suas vontades.
Numa visita em um dos abrigos, a mãe social disse que quando a pessoa foge, se
ela quiser voltar, ela conversa com os outros abrigados para saber se eles o aceitam
de volta. Se a mãe social percebe que os abrigados mostram resistência em o
aceitar de volta ela pega a bíblia e, segundo ela, faz um drama, de forma que sua
vontade sempre é atendida pelo grupo.
Numa confissão indignada, uma mãe social queixa-se de ser criticada por fazer a
vontade das crianças, que seus meninos seriam cheios das “vontades”. Diz que,
quando suas crianças dizem, independente de ser hora de refeição ou não, que têm
fome, elas têm liberdade de escolher algo para comer, mesmo que seja comer um
macarrão instantâneo antes de dormir. No entanto, teve a experiência de ter uma
criança transferida e no outro abrigo, recebeu a crítica de ter criado maus hábitos
nas crianças.
Com todas as disparidades de ação, as políticas de governo ainda apostam que o
bem cuidar seja apenas no abrigo, mesmo que haja denúncias de maus tratos, de
83
abuso sexual, de evasões, de tortura psicológica... Os serviços de acolhimento
também parecem estar acima de qualquer suspeita. Só porque o PETI (programa de
educação em tempo integral) oferece atividades interessantes (teatro, passeios em
escola da ciência, praças...) não quer dizer que isso seja o melhor para a criança.
Situações de punição (não fez o dever não vai para o passeio), de revolta pela
indignação de ter que fazer algo que não deseja... são freqüentes, mesmo assim diz-
se que é o “melhor”. Em uma das visitas, assistimos uma cena em que uma criança
teve, segundo os técnicos do abrigo, uma “crise nervosa” (jogou pedras para
machucar pessoas, jogou a chave fora, esmurrou o portão, gritou
descontroladamente) por conta de uma tentativa de compra, de chantagem por um
“bom” comportamento. A criança tinha que se comportar tal qual o desejo dos
adultos para que fosse “favorecida”. Como será viver desta forma? Como será morar
numa casa (que é chamada de sua) assim? O carinho, a atenção, o respeito são
pesados na balança de comportamentos aceitos e comportamentos reprováveis.
O Cuidado não cabe nem na vigilância, nem nessa dita “proteção” ou tutela. Cuidar
não é sujeitar o outro. O cuidado deve ser em primeiro lugar de si mesmo, de
conhecer-se e não se tornar escravo de seus desejos, desta forma,
[...] se sabe ontologicamente o que você é, se também sabe do que é capaz, se sabe o que é para você ser cidadão em uma cidade, ser dono da casa em um oikos, se sabe quais são as coisas das quais deve duvidar e aquelas das quais não deve duvidar, se sabe o que é conveniente esperar e quais são as coisas, pelo contrário, que devem ser para você completamente indiferentes, se sabe, enfim, que não deve ter medo da morte, pois bem, você não pode a partir deste momento abusar do seu poder sobre os outros (FOUCAULT, 2004, p. 272).
O cuidado de si assumirá, assim, segundo Foucault (2004), a renúncia de si mesmo,
e uma prática de liberdade, com a qual é possível ser ético. Como dizia uma
trabalhadora social no último encontro de construção de dados: “Para trabalhar
nessa área tem que gostar de gente [do ser humano]; para lutar por alguém você
precisa se conhecer, precisa conhecer esse alguém. Tem que visitar as famílias, tem
que tocá-las, senti-las, possibilitar o contato sem nojo, discriminação, pré-conceito”.
O discurso sobre o risco é, antes de tudo, um discurso geral sobre os corpos que não nos convêm (e apenas indiretamente, por contragolpe, um discurso sobre os corpos que podem eventualmente nos convir) e, portanto, um discurso que comunica tristeza, promovendo afetos de diminuição da potência, tanto mais totalitário quanto nos damos conta de que várias destas condições de risco dizem respeito a aspectos de nossa vida “normal”
84
[...] deixando-nos surdos e incapazes de perceber os canais de circulação de solidariedade, de confiança (no outro e na vida) e de alegria consistente (TEIXEIRA, 2005, p. 595).
85
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Trata-se de um exercício cotidiano de reflexão e crítica sobre os valores e
pré-conceitos estabelecidos como naturais ou verdadeiros, que
apequenham a vida e reproduzem a sociedade excludente na qual estamos
inseridos. Uma discussão permanente que deve estar presente, alicerçando
as diversas propostas de políticas e práticas em saúde pública”
Ângela Nobre de Andrade
Confundiam-se os dados de Serra, do Mestre Álvaro, dos conselhos, das famílias e
crianças, do Estatuto, da Vara da Infância e Juventude, de produção bibliográfica e
de seus autores. Os dados não são classificáveis, são heterogêneos e mutantes.
Apontam para produções de abrigos que não cabem na Lei – Estatuto da Criança e
do Adolescente. Nesse sentido, propusemos aqui problematizar alguns sentidos que
habitam os discursos de profissionais, de cidadãos, de todos nós e que evidenciam
práticas cotidianas que reforçam certo modo de ser família, de ser criança, de
classificar o risco remetido a uma classe. À essa classe “dos em risco” um conjunto
de estratégias é lançado a mão, afim de se efetivar o que Castel (1987) chama de
gestão dos riscos, ou seja, o cálculo, o controle e a prevenção dos riscos.
Para compor estratégias públicas, para que tantas políticas ditas públicas possam
alcançar suas proposições, desfazer outras, reconstituir outras, faz-se necessário
“meter o dedo no bolo” e conhecer os ingredientes que constituem a massa. Faz-se
necessário nos percebermos nas construções sociais e perceber que nada é um a
priori. É necessário abandonar binarismos – como mocinhos e bandidos – e se ter
clareza da proposta de atuação, como uma forma de questionar o cotidiano, formas
aparentemente naturais de se trabalhar e de enxergar o outro. Pois a forma de ser e
de estar atravessam o espaço da ação, seja pela palavra, pelo olhar, pelo tocar.
Risco pessoal existe? Quando uma criança é espancada e admite-se que esta
sofreu um risco pessoal, identifica-se sua família como a violenta, a despreparada, a
desqualificada, a incapaz de criar filhos, a..., a..., a..., identificando o “mal”,
localizando o perigo, possibilitando o isolamento. Há um fechamento sobre a família,
86
culpabilizando-a, privatizando sua prática, como se ela fosse desvinculada de tudo o
que se produz na sociedade. Enquanto isso nada se discute da questão que produz
esta violência: a produção de uma imagem na qual a criança não pode “aprontar”,
não pode falar, não pode se expressar, não pode questionar, não pode aparecer...;
na qual é o adulto (branco, estudado, homem e rico) quem manda e quem sabe o
que é melhor para a criança; na qual a melhor forma de se educar é oferecendo
correções físicas, na qual é a família a responsável pelo que a criança será no
futuro, na qual é “de pequeno que se torce o pepino”, entre outras concepções e
práticas que estão presentes na história de cada criança e de cada adolescente
abrigados. Faz-se ver violência doméstica e produzem-se ações sobre a situação,
sem contudo questionar os seus processos de produção e os seus efeitos. Resume-
se a violência vivida ao que se relaciona com a família, como se esta por sua vez
estivesse totalmente isolada da sociedade que a produz. Ou seja, são justificativas
que perpassam todo o tecido social, e portanto não acontece somente na casa A ou
B, não é pessoal, nem identificatório, é trans-social. As políticas públicas, por sua
vez, com seus inúmeros serviços, projetos e programas, pouco – ou nada –
trabalham o coletivo das forças das famílias. Estão esvaídas – políticas, famílias,
crianças, adolescentes, conselhos – do cuidado ético.
[...] afinal de contas, eram pistas para seguir, pouco importava para onde
iam; importava mesmo que não levassem a parte alguma, em todo caso não
numa direção determinada de antemão; eram como que pontilhados.
Compete a vocês continuá-las ou mudar a direção delas; a mim,
eventualmente, prossegui-las ou dar-lhes uma outra configuração.
Michel Foucault
87
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