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AS PANDORGAS DE VALDIR AGOSTINHO: VISUALIDADE E HISTORICIDADE EM FONTES AUDIOVISUAIS (FLORIANÓPOLIS/SC, 1980-2010) Luciano Py de Oliveira Professor de Educação Musical do Colégio de Aplicação (UFSC) Doutorando em História (UDESC) [email protected] Resumo: Esta comunicação pretende apresentar parte do universo documental utilizado no desenvolvimento da tese sobre o artista (ou multiartista) catarinense Valdir Agostinho. Considerando as características que distinguem sua produção, destacam-se as pandorgas. A pesquisa está sendo realizada no acervo reunido pelo artista ao longo de sua carreira. Suas peças alcançaram a dimensão de objetos de arte, contendo referências às tradições locais, utilizando materiais recicláveis para a confecção de esculturas, fantasias e adereços; paralelamente, atua como compositor e cantor. É possível perceber, por meio da análise das fontes, seu trabalho nas áreas das artes visuais e do carnaval; a sua inserção no meio musical local, a partir da década de 1990; sua performance enquanto cidadão oferecendo oficinas de pandorga e reciclagem em escolas de ensino fundamental. Palavras-chave: Valdir Agostinho; Arquivos pessoais; Pandorgas. É inegável a importância da mídia para a carreira de artistas e músicos pois, além de divulgar seus trabalhos, produz documentos acerca de suas trajetórias. É de se esperar, portanto, que artistas constituam seus próprios acervos pessoais de documentação. Esse processo de arquivamento de objetos para posteridade não é exclusivo de artistas, pois perpassa a vida de todos os que habitam o mundo moderno. Ou seja, arquivamos nossa vida porque a sociedade nos impõe essa prática, que se realiza de muitas maneiras: diários pessoais, cadernos, livros, ou a conservação de papeis que julgamos importantes, como documentos de identidade e fotografias. Numa autobiografia, a prática mais acabada desse arquivamento, não só escolhemos alguns acontecimentos, como os ordenamos numa narrativa; a escolha e a classificação dos acontecimentos determinam o sentido que desejamos dar às nossas vidas. (ARTIÈRES, 1998, p. 11). “Ação da mão sobre papéis, sobre telas, sobre pedras e onde mais for possível deixar traços, a escrita registra, inventa e conserva sempre mais ou menos ao contar,

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AS PANDORGAS DE VALDIR AGOSTINHO: VISUALIDADE E HISTORICIDADE

EM FONTES AUDIOVISUAIS (FLORIANÓPOLIS/SC, 1980-2010)

Luciano Py de Oliveira

Professor de Educação Musical do Colégio de Aplicação (UFSC)

Doutorando em História (UDESC)

[email protected]

Resumo:

Esta comunicação pretende apresentar parte do universo documental utilizado no

desenvolvimento da tese sobre o artista (ou multiartista) catarinense Valdir Agostinho.

Considerando as características que distinguem sua produção, destacam-se as pandorgas.

A pesquisa está sendo realizada no acervo reunido pelo artista ao longo de sua carreira.

Suas peças alcançaram a dimensão de objetos de arte, contendo referências às tradições

locais, utilizando materiais recicláveis para a confecção de esculturas, fantasias e

adereços; paralelamente, atua como compositor e cantor. É possível perceber, por meio

da análise das fontes, seu trabalho nas áreas das artes visuais e do carnaval; a sua inserção

no meio musical local, a partir da década de 1990; sua performance enquanto cidadão

oferecendo oficinas de pandorga e reciclagem em escolas de ensino fundamental.

Palavras-chave: Valdir Agostinho; Arquivos pessoais; Pandorgas.

É inegável a importância da mídia para a carreira de artistas e músicos pois, além

de divulgar seus trabalhos, produz documentos acerca de suas trajetórias. É de se esperar,

portanto, que artistas constituam seus próprios acervos pessoais de documentação. Esse

processo de arquivamento de objetos para posteridade não é exclusivo de artistas, pois

perpassa a vida de todos os que habitam o mundo moderno. Ou seja, arquivamos nossa

vida porque a sociedade nos impõe essa prática, que se realiza de muitas maneiras: diários

pessoais, cadernos, livros, ou a conservação de papeis que julgamos importantes, como

documentos de identidade e fotografias.

Numa autobiografia, a prática mais acabada desse arquivamento, não só

escolhemos alguns acontecimentos, como os ordenamos numa narrativa; a

escolha e a classificação dos acontecimentos determinam o sentido que

desejamos dar às nossas vidas. (ARTIÈRES, 1998, p. 11).

“Ação da mão sobre papéis, sobre telas, sobre pedras e onde mais for possível

deixar traços, a escrita registra, inventa e conserva sempre mais ou menos ao contar,

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muitos atos da experiência humana” (CUNHA, 2015, p. 251). Guardamos papeis que

escrevemos sobre nós mesmos, ou que outros, talvez ‘gente mais importante que a gente’,

o fizeram. No caso dos artistas, podem ser as matérias, notas e críticas publicadas em

jornais.

Com base no exposto, a presente comunicação pretende apresentar parte do

universo documental utilizado no desenvolvimento da tese sobre o artista (ou multiartista)

catarinense Valdir Agostinho. Considerando as características que distinguem sua

produção, destacam-se as pandorgas1. A pesquisa está sendo realizada no acervo reunido

pelo próprio artista ao longo de sua carreira, que ficou bastante conhecido quando passou

a confeccionar pandorgas e apresentá-las em festivais. Suas peças alcançaram a dimensão

de objetos de arte (BORTOLIN, 2010, p. 18-20; LIMA, B.; LIMA; V., 2008, p. 427),

repletas de referências às tradições de sua localidade, a Barra da Lagoa2; além disso,

utiliza materiais recicláveis para a confecção de objetos tridimensionais, como esculturas,

fantasias e adereços carnavalescos, um outro diferencial em sua produção3.

Paralelamente, desenvolve um trabalho musical como compositor e cantor.

Minha relação com Valdir Agostinho começou em 2006, como músico, quando

fui convidado para participar como tecladista de uma nova banda. Já o conhecia

anteriormente, pois, enquanto frequentava a Festa da Tainha de 1995, assisti a sua

apresentação, uma das atrações culturais da festa, cantando acompanhado de seu violão e

de um tecladista. Naquela ocasião, lembro-me de ter ficado impressionado com sua

performance, tendo como figurino calças feitas de caixas de leite longa-vida, uma camisa

de jornal e um colete feito de retalhos de embalagens de salgadinhos, com um jeito de

cantar muito peculiar, marcado pelo sotaque rápido típico da região.

A minha participação como músico duraria cerca de dois anos. Em 2010, quando

retorno a outro grupo musical liderado por ele, surge o interesse por uma pesquisa sobre

1 O mesmo que pipa ou papagaio. A palavra tem sua etimologia na língua espanhola, também grafada como

“pandorca” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, edição em português do Brasil para Kindle, 2011).

Segundo o Diccionario de la lengua española da Real Academia Española (edição para Kindle), “Cometa

que se sube al aire”. Por sua vez, “cometa”, em espanhol, é o mesmo que pipa ou papagaio. 2 PANDORGUEIRO amplia a sua arte. Jornal da Lagoa, p. 10, out. 1994. 3 BRILHO E CHARME NO CLUBE DOZE. Diário Catarinense, Florianópolis, p. 40. 22 fev. 1998.

CANAN, Adriane. A hora do mané. Diário Catarinense, Florianópolis, 12 jan. 1999.

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sua trajetória artística, repleta de referências temporais. Inicialmente, a motivação surgiu

pela sua música, que apresenta uma mistura peculiar de tradições orais e música popular.

Logo fui descobrindo a sua importância no mundo das Artes Visuais e do Carnaval,

indissociáveis de sua produção musical. Ainda, contribuiu o fato do artista possuir um

grande acervo de jornais e audiovisuais sobre sua produção e obra, bem como de eventos

relacionados a estes. A partir de então, desde 2015 estou conduzindo uma pesquisa sobre

a trajetória artística de Valdir Agostinho, situando-a no campo da História do Tempo

Presente, no Doutorado em História do Programa de Pós-Graduação da UDESC,

orientada pela professora Dra. Márcia Ramos de Oliveira.

O universo documental do artista encontra-se em um ampliado acervo, constituído

ao longo de sua trajetória, contendo artigos de jornais recortados e organizados em pastas

tipo portfólio e, além destas matérias, muitos jornais guardados na íntegra, pois, segundo

ele, era uma forma de assegurar seu acervo (uma espécie de back-up), além de ter acesso

aos fatos do dia, contextualizando seu documento no tempo. No portfólio constam

algumas fotografias, muitas delas não identificadas. Além dos jornais, alguns livros,

revistas e muitos objetos de arte: praticamente toda sua obra que não foi comercializada,

como pandorgas, esculturas e adereços. Também pode se encontrar no seu acervo, de uma

forma menos organizada, fitas de VHS, CD’s de áudio e DVD’s com entrevistas, shows

e outros eventos.

Além do acervo físico que se encontra em propriedade do artista, muito pode se

encontrar na internet, em especial vídeos no YouTube. Um desses vídeos, por exemplo,

é o clipe do “Reggae da Tainha (Sereia Manezinha)”. Será possível contar também com

itens do acervo de Caio Cezar, fotógrafo e colaborador desta pesquisa, que vem

acompanhando a trajetória de Valdir Agostinho desde os anos 2000; seu acervo está

catalogado e indexado, facilitando a pesquisa com as fontes.

A maior parte das fotografias encontradas estão nas notícias de jornais. A utilização

dessas imagens para a pesquisa levanta uma questão delicada sobre direitos autorais, pois,

mesmo que se obtenha autorização do autor da fotografia e do sujeito fotografado, ainda

se tem o direito das empresas de comunicação que produzem os jornais. Nesse trabalho,

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teve-se o cuidado de utilizar unicamente documentos que foram autorizados por seus

autores.

Desde o surgimento da fotografia, a possibilidade de retratar a si mesmo e

familiares foi cada vez mais popularizada. Esse hábito, que era um “privilégio antes

restrito à nobreza e aos comerciantes ricos, tornou-se possível com a fotografia, que

barateou os custos da sua produção” (LIMA, S; CARVALHO, 2015, p. 31). No caso da

pesquisa em questão, as fotografias não foram encontradas em álbuns, mas em meio aos

recortes de jornais, nas pastas classificatórias. Até então não se percebeu álbuns de

fotografias no acervo de Valdir Agostinho; se existem, não foram disponibilizados.

Algumas hipóteses podem ser levantadas: as fotografias de jornais e revistas geralmente

acompanham um texto escrito, em veículos de ampla circulação. Estas seriam mais

importantes do que fotografias guardadas em álbuns, pois foram utilizadas para fins de

publicação ou divulgação, como jornais, revistas e cartazes. Fora desse contexto, a

fotografa ganha uma conotação mais pessoal e, consequentemente, privada.

As fontes audiovisuais estão divididas entre DVD’s do acervo de Valdir Agostinho

e vídeos postados na internet, especialmente na rede do YouTube. Um dos DVDs é uma

compilação de 12 vídeos, feitos por um de seus produtores, com vídeos que não possuem

informações sobre datas, dificultando o trabalho de análise. É possível supor que a

maioria dos vídeos se concentra nos anos 1990, período em que o artista obteve maior

espaço na mídia, com premiações em desfiles de carnaval e para a produção de seu CD,

intitulado “A Hora do Mané”, finalizado em 1999. Alguns dos vídeos contidos nessa

compilação são entrevistas concedidas a programas locais de TV; um deles é a

documentação de um evento do qual participou com frequência, a Festa da Tainha; outro

é um vídeo pessoal feito durante uma estadia em Nova Iorque. Destacam-se a entrevista

concedida a Marília Gabriela, programa produzido pela TV Bandeirantes; e o quadro do

Vídeo Show, programa da TV Globo, sobre a diversidade da cultura popular brasileira.

Outro DVD que se teve acesso contém o show de sua banda em 2003 durante a Festa

Nacional da Ostra, a Fenaostra.

O músico Luiz Maia, baixista, produtor musical e proprietário de um estúdio de

gravação em Florianópolis, o Jardim Elétriko, acompanha o artista desde 2006. Com ele,

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obteve-se alguns registros de apresentações de Valdir Agostinho e sua Banda: um show

na Casa das Máquinas, um espaço cultural que no passado foi um posto dos Correios,

localizado na Lagoa da Conceição, bairro de Florianópolis, em 2011; show no Auditório

Garapuvu, no Centro de Eventos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),

também em 2011; outro show realizado no Teatro Álvaro de Carvalho, no centro da

capital catarinense, ocorrido em 2012. Também no acervo da banda encontra-se uma

matéria de um telejornal local que apresenta canções compostas especialmente para

incentivar a Seleção Brasileira de Futebol durante a Copa do Mundo de 2006; a canção

foi gravada previamente em estúdio e editada junto com as imagens realizadas durante a

matéria.

Do material obtido na internet, destacam-se o videoclipe da música Reggae da

Tainha, produzido pelo cineasta catarinense Zeca Pires e o making-off do mesmo. De

acordo com as informações que constam no YouTube, o vídeo foi postado em 27 de

agosto de 2010, contando com a atriz Simone Moraes. A música foi produzida por Gazu

e gravada por Luiz Maia.

A primeira imagem que selecionei para apresentar aqui faz parte da matéria mais

antiga encontrada no acervo. Interessante observar a forma de arquivamento, com a

matéria recortada e colada em uma folha de papel cartão tamanho A4, para facilitar seu

arquivamento em pastas classificatórias, demonstrando também a intervenção do sujeito

em torno da reconstrução do documento. Trata-se de um informativo de uma emissora de

televisão local, a TV Barriga Verde. A matéria divulga o 9º Festival da Pandorga, que

aconteceu nos dias 24 e 25 de setembro de 1983 (figura 1).

As próximas imagens são duas fotografias do acervo pessoal de Valdir: sem a

indicação da autoria, apresentam o artista caracterizado e sua pandorga. Na primeira

fotografia (figura 2) é possível perceber seu figurino, próprio da performance de seu

personagem pandorgueiro, não datada. A foto seguinte apresenta outra edição do festival,

dessa vez do ano de 1988. A foto também não está datada, mas é possível perceber o ano,

pelo menos, por conta do cartaz ao fundo, com o texto “Festival [da Pan]dorga 88” (figura

3). Desta vez, uma outra televisão local, a RCE TV, é a promotora do evento, juntamente

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com a Secretaria Municipal de Cultura, a Fundação Franklin Cascaes, também municipal

e a Prefeitura de Florianópolis.

Valdir Agostinho participou de outros festivais de pandorga nos anos seguintes,

intensificando sua atuação profissional no campo das artes visuais, mas, na década de

1990, o artista partiu para o trabalho musical de uma forma mais profissional.

Simultaneamente passa a aprimorar seu trabalho de confecção de roupas feitas de material

reciclado. A técnica de costura é aplicada a materiais como jornal, embalagens de

salgadinhos, canudinhos e outros materiais de plástico. Aqui, uma particularidade: todos

esses materiais são recolhidos dos lixos, das ruas e das praias de Florianópolis.

A capa e contracapa do CD A Hora do Mané (1999)4 demonstram com bastante

expressividade o trabalho de costura e confecção de adereços, como a máscara da

contracapa ou o chapéu estilo kufi5 com a mini pandorga que se tornaria uma marca

característica do visual do artista, como se pode perceber em outros registros fotográficos

(figura 4). O CD foi produzido por Nani Lobo, também responsável pelo baixo elétrico

da banda; o álbum obteve financiamento por meio de um edital da Fundação Catarinense

de Cultura6. A banda que gravou com Agostinho chegou a realizar algumas

apresentações, mas não houve continuidade desse trabalho.

Foi também nesse período que o artista passa a realizar oficinas de arte envolvendo

pandorgas e reciclagem, para alunos da educação básica de escolas públicas e

particulares. Em 15 de fevereiro de 1998, o jornal Diário Catarinense publicou uma

matéria dando destaque às suas pandorgas. Já nessa época Valdir estaria produzindo

oficinas de arte envolvendo crianças em idade escolar. A matéria foi capa do suplemento

Revista, com foto que ocupa praticamente toda a página, na qual ele aparece numa praia

empinando uma pandorga, com a manchete “Eternamente Criança”. Segundo a autora,

Valdir “fez da pandorga uma história de vida”7.

4 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hlDtf7xB2EQ . 5 Um kufi ou kufi cap é um boné sem aba, curto e arredondado usado por homens em muitas populações no

Norte da África, África Oriental, África Ocidental e Sul da Ásia. Fora do continente africano, é utilizado

por homens nos países da diáspora africana (cf. https://en.wikipedia.org/wiki/Hat#Styles;

https://en.wikipedia.org/wiki/Kufi). 6 DEFINIDOS VENCEDORES DO EDITAL DE INCENTIVO ÀS ARTES. O Estado, 16 jul. 1997. 7 BALDISSARELLI, Adriana. Rumo ao infinito. Diário Catarinense, Florianópolis, 15 fev. 1998. Revista

DC, p. 8-9.

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Quase mais uma década havia se passado, e o trabalho musical, que havia entrado

num certo ostracismo logo após o afã causado pelo CD, emerge novamente, desta vez

com uma renovação na banda. Em 2006, em uma entrevista concedida ao Jornal do

Almoço, da RBS TV de Santa Catarina, Valdir se apresenta com os músicos numa forma

de videoclipe8. A entrevista é parte de uma série de matérias que apresentam canções de

compositores catarinenses com a temática da Copa do Mundo de 2006. A canção teria

sido inspirada pela seleção brasileira de futebol, que havia obtido o pentacampeonato em

2002. Os músicos também utilizam acessórios produzidos por Valdir, como os coletes

que, segundo ele, foram produzidos para as suas primeiras performances musicais em

grupo, em fins da década de 1980. À performance dos músicos é acrescentada a trilha

sonora que foi gravada no estúdio Jardim Elétriko, produzida por Ulysses Dutra,

guitarrista da banda naquela ocasião.

Dois documentos encontrados no YouTube apresentam o clipe9 e o making off10 da

canção “Reggae da Tainha”, produzindo em 2010 com direção do cineasta Zeca Pires. A

música, composta por Júlio Cruz, contém uma letra construída por trocadilhos feitos com

os nomes de peixes ou de outros tipos de frutos do mar – uma marca da culinária e,

consequentemente, da identidade local. Valdir foi chamado pelo compositor para ser o

intérprete, juntamente com suas produções visuais tão características de seu trabalho. Em

depoimento durante um de seus ensaios, Valdir conta que a música inicialmente chamava-

se “Rock da Tainha”, e o arranjo que foi lhe apresentado, na época, não o agradou, pois

achava que tinha muito mais a ver com um Reggae. Logo, o compositor aceitaria a

sugestão e a música seria definitivamente intitulada como “Reggae da Tainha”. Essa fala

é reafirmada por Sandro Costa, o Gazu, produtor musical da canção11.

8 Documento obtido no acervo da banda. 9 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=OTQZziwE0Cg . 10 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yVDjd9YdWvQ . 11 Ex-vocalista Dazaranha, uma das bandas de Florianópolis mais conhecidas no cenário regional/nacional,

em entrevista cedida para a pesquisa de doutorado.

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Figura 1: Documento mais antigo encontrado no acervo com uma fotografia de Valdir (1983).

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Figura 2.

Figura 3: Valdir Agostinho, caracterizado com a mesma temática de sua pandorga no Festival de 1988.

O cenário escolhido para a filmagem foi a Costa da Lagoa, uma comunidade que

tem o seu acesso feito somente a pé ou de barco. A comunidade dispõe de um serviço de

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transporte hidroviário público, com a possibilidade de se deslocar em dois sentidos: até a

Freguesia da Lagoa (o centro do bairro, no caso), ao sul, ou até o Rio Vermelho, bairro

localizado no outro extremo, ao norte. Fora o transporte hidroviário, a outra forma de

acesso à Costa é por meio de trilhas, a pé, em meio à natureza, morros e cachoeiras. Uma

locação emblemática para a gravação do videoclipe, uma vez que é a comunidade que

recebe a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes, durante a procissão em fevereiro,

por exemplo. É referenciado em numa estrofe da composição de Valdir Agostinho

intitulada Martim Balaieiro, registrada no álbum A Hora do Mané:

É só chegar na Freguesia [da Lagoa]

Pronto para embarcar

Tira o jet-ski daí

Deixa a santa no altar

Que hoje vai ter a procissão

E salve a nossa tradição

Caio Cezar é fotógrafo profissional e começou cedo na profissão, aos 16 anos de

idade, como assistente de seu pai, Marco Cezar, que já havia fotografado a banda Fênix

com Valdir Agostinho no final dos anos 1980.

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Figura 4: Valdir Agostinho em 2012, retratado por Caio Cezar.

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Figura 5: Anjo feito de cacos em mosaicos. Foto de Caio Cezar.

Caio Cezar fotografou o artista em diversos momentos, e ao concordar em colaborar

com a pesquisa, selecionou alguns arquivos para nos ceder. Mais uma intervenção do

indivíduo no ato de arquivar o passado: o artista agora deixa de ser Valdir para ser Caio,

que vai optar por um determinado grupo de imagens em detrimento de outro. A figura 4

é um retrato de Valdir durante um show realizado no Teatro Álvaro de Carvalho (TAC),

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em 2012. O evento estava inserido na programação do “TAC pm 7:30:

música/teatro/dança”, promovido pela Fundação Catarinense de Cultura. É possível

perceber o chapéu kufi com a mini pandorga. O show contou com uma rica ornamentação,

todos materiais produzidos por Agostinho, desde flores de garrafas PET, estandartes

pintados, pandorgas, máscaras, redes de pesca...

Agostinho, cuja preferência pelos materiais mais orgânicos, como bambu, papel, ou

sintéticos, como o plástico reciclado, possui ainda uma outra matéria prima para suas

obras: os cacos que vem recolhendo, ao longo de sua vida, nas praias de Florianópolis.

São cacos de louças de todo o tipo, que o mar vem a depositar nas areias. Esses fragmentos

do passado são recolhidos e ressignificados em mosaicos, como se observa no registro

fotográfico realizado por Caio Cezar, durante a realização do presépio construído na

Lagoa da Conceição, em 2014. O fotógrafo foi o responsável pela documentação de

algumas etapas da produção das obras, que foram financiadas por meio de captação de

verbas com auxílio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura.

Na obra visual de Valdir Agostinho entrecruzam-se narrativas sobre tempos

passados, como mitos e lendas locais, fragmentos de um passado lúdico – os cacos das

louças dos navios – com narrativas sobre tempos futuros, como a modernidade e a

tecnologia, desde que em consonância com a ecologia e a natureza, tendo a reciclagem

como pensamento central. Um trabalho análogo pode ser visto na obra da artista visual

Rosângela Rennó, que faz a reciclagem de uma outra forma, utilizando fotos e imagens

antigas, descartadas ou comercializadas em feiras de antiguidades. No seu trabalho, a

relação entre memória e imagem constitui um percurso “de uma trama temporal

complexa” (MAUAD, 2016, p. 88).

Se a imagem vem sendo utilizada ao longo dos anos como uma forma de

visualização do passado, ela é também um objeto de discussão da história. Ao buscar um

posicionamento e um conceito-chave para aproximar artes visuais e história, Ana Maria

Mauad argumenta que

a posição de que toda a arte é histórica e, portanto, toda imagem possui uma

historicidade fundamentada numa prática cultural e social; e é o conceito de

cultura visual que viabiliza a centralidade da noção de visualidade como

fenômeno social. A visualidade se fundamenta em imagens, é claro, mas

também em um conjunto de textos não visuais que apoiam a criação de

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imagens por sujeitos históricos num circuito social ampliado. (MAUAD, 2016,

p. 91).

Se a visualidade é uma característica própria de Valdir Agostinho enquanto

indivíduo, uma vez que ninguém na sua família havia demonstrado uma inclinação para

as artes visuais, a música participou de sua vida desde os anos da primeira infância, a

começar pelo seu pai, que cantava e tocava cavaquinho em festas na sua comunidade. A

música, naquele tempo, estava entranhada na esfera social e cotidiana. A musicalidade

dos habitantes da Ilha de Santa Catarina se fazia presente nos hábitos cotidianos das

pessoas; nas manifestações religiosas, como o Terno de Reis, o Divino Espírito Santo, a

Procissão dos Navegantes; na Ratoeira, uma brincadeira cantada e improvisada feita por

moças e rapazes, num ritual de socialização e iniciação ao namoro; o Boi-de-Mamão,

folguedo que representa a morte e o renascimento; por fim, Valdir conta que antigamente

era normal as pessoas conversarem e brincarem uns com os outros por meio de trovas

rimadas e improvisadas. De todas essas manifestações, uma das poucas que ainda

persistem nas comunidades da capital catarinense é o Boi-de-Mamão.

Sua arte visual, entretanto, emerge a partir do encontro com outras redes de

sociabilidade, pois seus desenhos, pandorgas e figurinos começaram a tomar forma

depois de sua mudança para o centro da cidade, quando deixa de trabalhar na pesca, como

seu pai e seus irmãos, para ser o office-boy do Studio A2, uma galeria de arte dirigida por

Beto Stodieck (1946-1990), ao qual Valdir ainda se refere carinhosamente como “o meu

patrão”. A galeria reunia artistas que buscavam produzir uma arte inovadora e, ao mesmo

tempo, identitária, que logo reconheceram a originalidade de seu trabalho, incentivando-

o a desenvolver sua arte.

É possível perceber também que a necessidade de patrocínio para seus trabalhos

quase sempre foi suprida por meio de ações públicas, sejam elas editais com premiações,

leis de incentivo ou eventos promovidos pelo município de Florianópolis ou pelo estado

de Santa Catarina. Sua obra não deixa de ser interessante para o poder público,

especialmente no que diz respeito ao turismo, enquanto fonte de renda, e, no final das

contas, uma cidade sem memória, sem figuras típicas, sem ‘uma história para contar’, fica

para trás nessa corrida para conquistar o turista. Se não houvesse essa temática histórica

e identitária presente em sua obra, provavelmente não obteria tal prestígio com o

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financiamento público de arte e cultura – que já não é mais o mesmo, dadas as críticas

recentes feitas pelo artista12. Até mesmo porque falar ‘somente’ de ecologia, de

reciclagem e de especulação imobiliária pode não ser tão interessante para o tipo de

projeto de cidade que as elites econômicas e o poder público têm em mente para

Florianópolis.

Referências bibliográficas:

ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Revista Estudos Históricos, Rio de

Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, jul. 1998. ISSN 2178-1494. Disponível em:

<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2061>. Acesso em: 04 jul.

2018.

BORTOLIN, Nancy Therezinha. Indicador Catarinense das Artes Plásticas: Verbetes

de referência curricular. Florianópolis: Museu de Arte de Santa Catarina, 2010, p. 18-20.

CUNHA, Maria Teresa. Diários pessoais: Territórios abertos para a História. In: LUCA,

Tânica Regina; PINSKY, Carla Bassanezi. O historiador e suas fontes. São Paulo:

Contexto, 2015, p. 251-280.

LIMA, Beth; LIMA; Valfredo. Em nome do autor: Artistas artesãos do Brasil. São

Paulo: Proposta Editorial, 2008, p. 427.

LIMA, Solange Ferras de; CARVALHO, Vânia Carneiro de. Fotografias: Usos sociais e

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