as origens da adoração cristã

24

Upload: vida-nova

Post on 25-Mar-2016

229 views

Category:

Documents


9 download

DESCRIPTION

Esta obra presta uma contribuição valiosa ao debate em torno das origens e do desenvolvimento do cristianismo. Larry Hurtado defende que, para compreendermos a natureza do cristianismo no primeiro século, precisamos levar em consideração todas as práticas devocionais dos primeiros cristãos, uma vez que a adoração foi o contexto em que os títulos cristológicos e outras manifestações da fé receberam significado específico — fato que tem sido amplamente desprezado.

TRANSCRIPT

Page 1: As origens da adoração cristã
Page 2: As origens da adoração cristã
Page 3: As origens da adoração cristã

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hurtado, Larry W.

As origens da adoração cristã: o caráter da devoção no ambiente da igreja primitiva / Larry W. Hurtado; tradução A. G. Mendes. — São Paulo: Vida Nova, 2011.

Título original: At the origins of Christian worship: the context and character of earliest Christian devotion.Bibliografia.ISBN 978-85-275-0482-9

1. Cristianismo 2. Igreja - História 3. Igreja primitiva I. Título.

11-11183 CDD-270.1

Índices para catálogo sistemático:

1. Igreja cristã primitiva : História 270.1

Page 4: As origens da adoração cristã
Page 5: As origens da adoração cristã

Copyright ©1999, de Larry W. HurtadoTítulo original: At the origins of Christian worship:the context and character of earliest Christian devotion.Traduzido da edição publicada pelaW. B. Eerdmans Publishing Company,Grand Rapids, Michigan, eua.

1.a edição: 2011

Publicado no Brasil com a devida autorizaçãoe com todos os direitos reservados porSociedade Religiosa Edições Vida Nova,Caixa Postal 21266, São Paulo, SP, 04602-970www.vidanova.com.br / e-mail: [email protected]

Proibida a reprodução por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos,xerográficos, fotográficos, gravação, estocagem em banco dedados etc.), a não ser em citações breves com indicação de fonte.

ISBN 978-85-275-0482-9

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Supervisão editorialMarisa K. A. de Siqueira Lopes

Coordenação editorialFabiano Silveira Medeiros

RevisãoJosemar de Souza Pinto

Coordenação de produçãoSérgio Siqueira Moura

Revisão de provasUbevaldo G. Sampaio

DiagramaçãoLuciana Di Iorio

CapaOM Designers Gráficos

Page 6: As origens da adoração cristã

Para

Shannon.

Page 7: As origens da adoração cristã
Page 8: As origens da adoração cristã

Sumário

Prefácio 9Abreviações 13Introdução 15

1. O ambiente religioso 212. Características da adoração cristã primitiva 553. O formato binitário da adoração cristã primitiva 814. Reflexões sobre a adoração cristã hoje 119

Bibliografia 141

Page 9: As origens da adoração cristã

Prefácio

Em 1999, tive a honra de ser convidado para proferir as Prele ções Didsbury, no British Isles Nazarene College de Manchester.

Este livro contém as quatro preleções feitas na ocasião, ligeiramen-te editadas para publicação, além de introdução, notas e uma lista das obras citadas. Os primeiros três capítulos se debruçam sobre as questões históricas que cercam o culto cristão primitivo com ênfase no contexto romano do cristianismo primitivo e no caráter do culto celebrado nesse entorno religioso. Nesses capítulos, sigo algumas linhas de investigação que venho explorando há vários anos. Tentei tornar o debate acessível ao leitor interessado, seja ele quem for; mas espero também que esse debate contribua de algum modo para a compreensão histórica da devoção cristã em seus primórdios.

No último capítulo, reflito um pouco sobre o culto cristão con-temporâneo. Hoje em dia, há uma tolerância maior que no passado em relação aos estudiosos que se expõem com franqueza, mas ha-verá talvez alguém que ainda se sinta incomodado. Em um campo como o cristianismo primitivo, tem mais credibilidade o estudioso que se apresentar sem nenhum interesse pessoal no assunto. Pode-mos, entretanto, nos esforçar para apresentar os dados com a maior exatidão possível, mais ainda quando nos referirmos às opiniões

Page 10: As origens da adoração cristã

10 aS origenS da adoração criStã

daqueles que discordam de nós. Além disso, podemos simplesmen-te procurar compreender, com paciência e empatia. Talvez alguns leitores para quem a fé religiosa não combina com o academicismo crítico vejam em mim um indivíduo mal-intencionado só pelo fato de admitir a expectativa de que um júri composto por cidadãos de mente imparcial me condene sob a acusação de que sou cristão. (Contudo, admito também que há dias em que só mesmo um bom advogado de defesa pode me livrar da acusação que pesa sobre meu comportamento!) Todavia, seja qual for a opinião de meus leitores, espero que o tratamento dado às questões históricas nos capítulos de 1 a 3 seja de algum valor para os interessados nas origens do cristianismo. O capítulo 4, embora preocupado com a prática con-temporânea do culto cristão, poderá ser de algum interesse para o observador não-cristão, bem como para os adeptos do cristianismo.

É somente minha a responsabilidade pelas páginas que se seguem; entretanto, não posso deixar de citar aqui também Troy Miller, meu aluno do doutorado, que leu o capítulo 1 e fez ob-servações úteis. Algumas ideias apresentadas nas preleções foram também debatidas com colegas da Faculdade de Teologia, parti-cularmente Nick Wyatt (antecedentes “pagãos” greco-romanos) e Peter Hayman (antecedentes judaicos). Desde que me mudei para Edimburgo, em 1996, tive o privilégio de fazer parte de um sólido grupo de estudiosos que constituem o corpo docente da Faculdade de Teologia (atualmente chamada de New College), a quem agra-deço a acolhida e o companheirismo demonstrado. Isso foi muito significativo para mim, em se tratando de um grupo de colegas de inclinações acadêmicas as mais variadas, os quais representam, sem dúvida, uma diversidade de posicionamentos em torno de questões relativas à fé religiosa.

O capítulo 3 é uma versão adaptada de uma comunicação so-bre “As origens históricas do culto a Jesus” que apresentei a convite do Congresso Internacional realizado na St. Andrews University de 13 a 17 de junho de 1998. A comunicação foi também publicada nos anais do congresso. Agradeço aos editores do referido volume,

Page 11: As origens da adoração cristã

Prefácio 11

dr. James Davila e dr. Carey Newman, e também à editora, E. J. Brill, a permissão para que eu usasse a comunicação aqui também.

Em dezembro de 1998, minha esposa, Shannon, e eu, come-moramos nosso vigésimo aniversário de casamento. Foram vinte anos de companheirismo cordial e amoroso, sobretudo porque não nos faltou consolo em meio às demandas e dificuldades desses anos. Minha esposa, embora intensamente envolvida com sua pesquisa — história da arte e da cultura britânicas no século xix —, sempre demonstrou interesse por meus temas de estudo, além de muita pa-ciência. A ela dedico este livro com gratidão e amor.

New College,Edimburgo

Page 12: As origens da adoração cristã
Page 13: As origens da adoração cristã

abreviaçõeS

A s abreviações dos livros da Bíblia seguem as utilizadas na versão Almeida século 21, de Edições Vida Nova. As abre-

viações dos apócrifos, de Filo, de Josefo e dos escritos cristãos deutero canônicos primitivos seguem o padrão do Journal of Biblical Literature.

a21 Almeida século 21anf The ante-Nicene Fathers, organizado por Roberts e Donaldsonat Antigo Testamentobj A Bíblia de Jerusalémcev Contemporary English versioncrint compendia Rerum Judaicarum ad Norem Testamentumhe História eclesiástica, de Eusébiojts Journal of Theological Studieslxx Septuagintamm The vocabulary of the Greek Testament illustrated from the papyri and other non-literary sources, de Moulton e Milligannab New American Bibleneb New English Bibleniv New international version

Page 14: As origens da adoração cristã

14 aS origenS da adoração criStã

nrsv New revised standard versionnt Novo Testamentonts New Testament studiesnvi Nova versão internacionalrgg Die Religion in Geschichte und Gegenwart, organizado por K. Galling

Page 15: As origens da adoração cristã

introdução

A história do culto cristão é longa e complexa. Esta pequena obra trata dos estágios mais antigos acessíveis à observação.

Dediquei-me nas últimas duas décadas à pesquisa dos dois primei-ros séculos do movimento cristão, com atenção especial às origens e ao desenvolvimento inicial da devoção a Cristo. Debrucei-me prin-cipalmente sobre como essa devoção se expressava no ambiente do culto. Sou, porém, especialista em Novo Testamento e origens cristãs, não um historiador da liturgia. Ainda assim, dediquei considerável atenção ao culto cristão antigo por sua importância para o entendi-mento do cristianismo primitivo. Sob pena de incorrer em grave reducionismo, creio que uma das principais atividades dos cristãos primitivos era a celebração do culto. O cristianismo primitivo era, afi-nal de contas, um movimento religioso que se esforçava por orientar seus adeptos sobre os propósitos divinos proclamados em sua mensa-gem evangélica. Portanto, se quisermos analisar os grandes fenôme-nos do cristianismo primitivo, as práticas devocionais dos cristãos são, sem dúvida, elementos essenciais que merecem atenção. Contudo, o culto dos primeiros cristãos também lança luz sobre outros aspec-tos do movimento cristão. Nos capítulos que se seguem, examino o culto cristão primitivo, situando-o no contexto do mundo romano (com ênfase especial na tradição judaica) em que ele emergiu.

Page 16: As origens da adoração cristã

16 aS origenS da adoração criStã

Estudiosos do nt e das origens cristãs dedicaram especial atenção às crenças religiosas dos primeiros cristãos, e os dados que colheram em seus estudos sempre foram, na grande maioria, expressões verbais das crenças encontradas em textos cristãos antigos, bem como o vo-cabulário dessas expressões. As expressões verbais das crenças cristãs primitivas, por exemplo, sua “cristologia”, são naturalmente impor-tantes. Contudo, nas pesquisas e nos debates acadêmicos mais acalo-rados, as grandes questões têm girado em torno do significado dessas expressões de fé. O que, por exemplo, os cristãos primitivos queriam dizer quando chamavam Cristo de “senhor”? Os termos grego e ara-maico traduzidos por “senhor” podem ter diversos significados, co-meçando por uma forma polida de tratamento usada para se dirigir a um superior na hierarquia social (p. ex., “sr.”, “patrão”) e mesmo a uma divindade. Defendo que a prática devocional dos cristãos primi-tivos constitui o contexto por excelência para a avaliação do signifi-cado de suas expressões verbais de crenças sobre Cristo. A linguística moderna tem nos ajudado a entender que as palavras, de sentidos tan-tas vezes complexos e diversos, adquirem um significado específico no contexto em que são usadas. Sustento que a conotação específica dos títulos cristológicos primitivos e das práticas devocionais pode ser mais bem avaliada levando-se em conta a totalidade do contexto em que foram usados. Por exemplo, ao se dirigir a Jesus como “senhor” no contexto do culto, utilizando o termo para invocar Jesus e ape-lar a ele, conferia-se ao termo uma conotação muito mais precisa e contundente do que outras possibilidades semânticas mais genéricas. Significava dirigir-se a ele no contexto e da forma que os antigos se dirigiam às divindades que adoravam em suas celebrações. Referir-se a Jesus como “senhor” em outros cenários podia ter uma conotação totalmente distinta, como, por exemplo, o reconhecimento de que ele era mestre ou líder de seus devotos. Contudo, dirigir-se a ele como “senhor” no culto coletivo dos grupos cristãos primitivos dá ao termo uma conotação muito mais precisa e elevada.1

1V. o verbete “Lord” [“Senhor”] (L. W. Hurtado, in: Hawthorne & Martin, orgs., Dictionary of Paul and his letters, p. 560-9), no qual faço uma análise de como Paulo emprega o título Kyrios, mostrando suas inúmeras cono-tações, dependendo do contexto em que é usado.

Page 17: As origens da adoração cristã

introdução 17

É igualmente importante avaliar o culto dos cristãos primitivos em razão de sua relevância no período romano como parte e manifestação que era da religião. Sobretudo no mundo antigo, a religião da pessoa era entendida e avaliada pelos critérios de como, quando e o que o indivíduo adorava. O culto era uma expressão característica e vital da orientação e do compromisso religioso da pessoa. Por isso, custa-me entender por que tantos estudiosos que professam um compromisso com a interpretação histórica do cristianismo primitivo em seu contexto original nem sempre atentam para a importância das práticas e dos modelos devocionais dos pri-meiros cristãos. Para dar um exemplo, entre as queixas feitas contra os cristãos nos três primeiros séculos, nota-se a acusação recorrente de que desprezavam o culto dos deuses tradicionais. Não há dú-vida de que os antigos críticos dos cristãos viam na expressão de seu culto um traço essencial e definidor. Quando os cristãos eram levados aos tribunais (como se vê, por exemplo, na famosa carta de Plínio a Trajano e também em O martírio de Policarpo), eram obri-gados a certas práticas cultuais, como invocar os deuses, oferecer in-censo à imagem do imperador e blasfemar contra Jesus durante esse cerimonial.2 Em todo relato do cristianismo antigo que procura le-var em conta o contexto histórico, portanto, as práticas devocionais e o escrúpulo dos cristãos têm importância fundamental.

No antigo contexto romano, duas características em particular marcavam e distinguiam o culto cristão primitivo. Em primeiro lugar, ele era exclusivista, isto é, desprezava o culto das inúme-ras divindades do entorno romano; em segundo lugar, sua devo-ção era dirigida exclusivamente ao Deus da Bíblia e a Cristo. Essas duas características constituem, de fato, indicadores eloquentes da impor tância do tema abordado por este livro e servem de arcabou-ço lógico para seu conteúdo e para as preleções em que tiveram origem. Portanto, os primeiros dois capítulos partem da premissa

2Plínio, Epistles 10.96 (texto e comentário em The letters of Pliny, de Sherwin-White [p. 691-710]). Martyrdom of Polycarp 8-9 (texto e tradução em The Apostolic Fathers: Greek texts and English translations of their writings, de Lightfoot, Harmer e Holmes [p. 232-5]).

Page 18: As origens da adoração cristã

18 aS origenS da adoração criStã

da exclusividade do culto cristão primitivo no contexto do mundo romano, ao passo que o capítulo 3 trata do que chamei de “modelo binitário” do culto cristão primitivo, em que Deus e Cristo eram alvo exclusivo do culto dos crentes que se consideravam verdadeiros monoteístas devotos.

No capítulo 1, delineio o ambiente religioso romano em que os cristãos se encontravam, sobretudo os cristãos gentios do pri-meiro século que viviam em cidades fora da Palestina romana. Meu objetivo não é esgotar o assunto, tampouco catalogar as divindades e os movimentos religiosos. Em vez disso, apresento um panorama geral no intuito de comunicar algo do lugar e do papel da religião na vida das pessoas. Quero enfatizar quanto a prática da religião era diversificada, proeminente e generalizada, provavelmente para um grande número de pessoas. No caso dos cristãos gentios, renunciar às práticas religiosas que cultivavam antes de se converterem e des-denhá-las significava dar as costas a costumes cultuais exuberantes e envolventes que tinham muito a oferecer aos devotos. Significava também abandonar uma característica fundamental do dia a dia das cidades romanas, algo que era um componente básico do conjunto de coisas que unia famílias e pessoas. Não entenderemos o culto cristão primitivo se não mantivermos diante dos olhos o fato de que, para o cristão gentio, o cristianismo era um culto substituto. Ele era, ao mesmo tempo, uma renúncia, um posicionamento devocio-nal firme e exigente com profundas repercussões.

No capítulo 2, procuro apresentar algumas características ge-rais do culto cristão primitivo. Nesse sentido, minha preocupação consiste em compreender o que os fiéis parecem ter inferido de sua prática devocional coletiva. Esperava-se que renunciassem ao rico cardápio religioso “pagão”3 à disposição no mundo romano.

3O termo “pagão” tem inúmeras conotações em vários círculos, dentre elas, uma conotação depreciativa em certos usos populares (p. ex., “depravado” etc.). Não é essa minha intenção aqui. Alguns estudiosos do Novo Testamento prefe-rem evitar completamente o termo, mas não conheço nenhum substituto mais prático. Além disso, o termo era usado por classicistas e historiadores antigos simplesmente para designar as religiões não-cristãs, ou pré-cristãs e não-judaicas. É desse modo que pretendo usar o termo neste livro.

Page 19: As origens da adoração cristã

introdução 19

O que foi que inferiram do culto cristão que, a propósito, deveria ser o único culto legítimo que deveriam celebrar? Nesse contex-to, analisamos o cenário e as práticas do culto cristão do primeiro século, bem como os meios pelos quais os cristãos atribuíam um significado profundo e poderoso ao seu culto. Veremos que, para os cristãos primitivos, os encontros de adoração constituíam uma nova oportunidade para o compartilhamento de experiências religiosas e para a prática da identidade comunitária que antes desfrutavam em seus rituais religiosos pagãos. Além disso, veremos também como o culto cristão primitivo era dotado de um rico significado, de uma importância transcendente, embora exteriormente parecesse inex-pressivo em comparação com as cerimônias quase sempre muito elaboradas e vibrantes do entorno romano.

Em seguida, no capítulo 3, faço uma análise pormenorizada do lugar de Cristo no culto monoteísta dos cristãos primitivos. Re-tomo aqui e amplio uma análise mais detalhada das ações cultuais dirigidas a Cristo e o modo pelo qual Cristo aparece na vida devo-cional pública e coletiva dos cristãos.4 Tanto em um livro anterior quanto neste capítulo, minha intenção foi mostrar que Cristo foi alvo do tipo de devoção que podemos chamar de adoração plena-mente cultual, e que podemos com total justiça descrever o culto cristão das primeiras décadas como genuinamente “binitário”. Em outros termos, defendo que nessa etapa remotíssima o culto cristão tinha dois focos, Deus e Cristo, e mesmo assim os cristãos primi-tivos se consideravam monoteístas, de tal forma que a inclusão de Cristo em sua vida devocional de modo algum comprometia a ex-clusividade do Deus único a quem se haviam convertido por meio do evangelho. Este tópico já foi objeto de muita pesquisa e debate em anos recentes; por isso, convoco vários outros estudiosos neste capítulo, principalmente nas numerosas notas.

Esses três capítulos de pesquisa histórica são seguidos por um capí-tulo final que trata de questões relativas ao culto cristão contemporâneo.

4Hurtado, One God, one Lord: early Christian devotion and ancient Jewish monotheism.

Page 20: As origens da adoração cristã

20 aS origenS da adoração criStã

A discussão e os pontos de vista dos primeiros três capítulos não pres-supõem nenhuma postura específica de fé e serão, assim espero, de alguma valia para quem se interesse pelo cristianismo histórico. Nesse último capítulo, escrevo na condição de cristão e de adorador, recor-rendo à pesquisa acadêmica para oferecer algumas reflexões com o propósito de ajudar a dar forma ao culto cristão atual. Naturalmente, aqueles leitores que não tiverem nenhum interesse na prática con-temporânea da fé cristã estão livres para desconsiderar esse último ca-pítulo. Todavia, convido aqueles que, por um motivo qualquer, não compartilham da fé cristã, mas talvez achem interessante “ouvir” o que um cristão tem a dizer sobre o assunto a outros cristãos que levem em conta a discussão de caráter histórico dos três primeiros capítulos. Não tenho a competência e não disponho de espaço neste livro para outra coisa senão refletir sobre uns poucos pontos escolhidos que tra-tam da maneira que os cristãos devem celebrar hoje seu culto, procu-rando modelá-lo em conformidade com a ênfase e o caráter do culto cristão em seu período fundacional.

Page 21: As origens da adoração cristã

Capítulo 1o ambiente religioso

O culto cristão primitivo não se deu no vácuo religioso. O mundo romano fervia em sua religiosidade, havendo

um número estonteante de grupos, movimentos e costumes reli-giosos com toda a parafernália correspondente. A fé cristã dos pri-mórdios não representava uma religiosidade em oposição a uma cultura ímpia; pelo contrário, ela teve de entrar no “tráfego” intenso e por demais familiar da atividade religiosa na condição de movi-mento novato. Esse ambiente religioso vibrante e diversificado do mundo romano é extremamente importante para a compreensão desse mundo e para a avaliação precisa do culto cristão primitivo.

Partindo-se do pressuposto de que todo método histórico sóli-do procura, tanto quanto possível, avaliar o objeto de sua investiga-ção em seu contexto histórico, segue-se que o culto cristão e a vida devocional dos primeiros tempos do cristianismo devem ser inter-pretados no contexto das variáveis religiosas do mundo romano, sobretudo os fenômenos relativos à vida devocional desse período. Os limites deste capítulo não nos permitem discutir nem sequer mencionar toda a vasta temática do entorno religioso da época. Por isso, selecionaremos uma série de características da religiosidade da Era Romana que nos ajudará, assim esperamos, a nos familia-rizar com os antecedentes nos quais o culto cristão apareceu pela

Page 22: As origens da adoração cristã

22 as origens da adoração cristã

primeira vez.1 Nos capítulos seguintes, examinaremos mais detida-mente os fenômenos do culto cristão primitivo, o que os primeiros cristãos aparentemente quiseram dizer com suas práticas devocio-nais e o que foi que inferiram dela. Aqui, porém, nosso objetivo é nos prepararmos para ver de que modo as práticas devocionais cristãs refletiam a época e o contexto em que ocorreram e de que modo eram também, talvez, incomuns ou deliberadamente contrá-rias à religiosidade dominante.

Nas linhas que se seguem, devo muito aos estudos mais detalha-dos sobre o contexto religioso romano escritos por outros estudiosos.2 Minha contribuição específica para este capítulo limita-se a chamar a atenção para algumas características desse ambiente especialmente selecionadas por sua grande importância para a avaliação histórica da vida e da prática devocional cristãs em seus primórdios.

Embora a vida religiosa dos judeus nessa era deva, sem dúvida, ser considerada parte do panorama romano mais abrangente, os ju-deus piedosos viam suas tradições e compromissos religiosos como coisa distinta e mantinham-se em geral distantes de boa parte da vida religiosa do mundo romano. Portanto, trataremos da vida reli-giosa dos judeus separadamente, depois de analisar os traços típicos do entorno “pagão” ou religioso em geral.

1Quanto a descrições breves dos termos grego e latino correspondentes a “religiosidade”, “piedade” etc., v. “Religion, terms relating to” (in: Hammond & Scullard, The Oxford classical dictionary, p. 917).

2Ferguson (Backgrounds of early Christianity, p. 112-253 [sobre o contexto religioso de “pagão”]; p. 315-463 [sobre o ambiente religioso judeu]), p. ex., apresenta uma ampla discussão introdutória e vasta referência bibliográfica. Finegan (Myth & mystery: an introduction to the pagan religions of the bibli-cal world) analisa inúmeras tradições religiosas contemporâneas do Antigo e do Novo Testamentos. V. tb., de MacMullen, Paganism in the Roman Empire; de Teixidor, The pagan God; de L. H. Martin, Hellenistic religions: an introduction; de R. M. Grant, Gods and the one God; de Armstrong (org.), Classical Mediter-ranean spirituality: Egyptian, Greek, Roman; de Klauck, Die Religiöse Umwelt. Em relação à vida religiosa da mulher, quase sempre desprezada quando se estuda a religião na Era Romana da religião, v., de Kraemer, Maenads, martyrs, matrons, monastics: a sourcebook on women’s religions in the Greco-Roman world.

Page 23: As origens da adoração cristã

o ambiente religioso 23

UbiquidadeTalvez a primeira coisa a ressaltar seja a penetração da religião no mundo romano. Na verdade, é difícil apontar algum aspecto da vida naquele tempo que não fosse explicitamente relacionado à religião. Nascimento, morte, casamento, a esfera doméstica, ci-vil, a vida política em geral, o segmento militar, a vida social, o entretenimento, as artes, a música — tudo estava carregado de significado e de associações religiosas. Os ofícios civis e públicos tinham também conotações religiosas e quase sempre estavam re-lacionados ex officio a deveres religiosos, tais como a condução pública de cerimônias periódicas em honra aos deuses das cidades. Toda associação comercial tinha seu padroeiro. Nas reuniões, ha-via práticas rituais em honra à divindade. Em praticamente todas as refeições, e certamente em todo jantar formal, havia o reco-nhecimento ritual das divindades, e podiam, não raro, ser servidos em salas que faziam parte do templo desta ou daquela divindade. Toda unidade militar tinha seu padroeiro e realizava regularmente cerimônias religiosas em honra a eles. As divindades da cozinha eram homenageadas no decorrer das tarefas cotidianas do lar e no preparo das refeições. Portanto, em situações solenes e impo-nentes, e na rotina dos lares, e no cotidiano das pessoas, a religião estava presente, e os deuses eram reverenciados conforme se exigia nas várias cerimônias devocionais.

É claro que, assim como hoje, também existiam na época cé-ticos em relação à religião, alguns dos quais pertenciam à elite cultural, os literati, cujas obras sobrevivem e cujos autores cos-tumam estar entre os escritores antigos estudados nos departa-mentos de antiguidade clássica das universidades. É possível até que entre esses indivíduos que se consideravam sofisticados, tanto naquela época quanto agora, o ceticismo em relação à validade e à eficácia da religião não fosse algo raro. No entanto, tudo indica que a maioria esmagadora de pessoas do período romano apro-vava as manifestações religiosas onde quer que as encontrasse e

Page 24: As origens da adoração cristã