as novas formas de alteração do/no espaço: o turismo e as
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UNIVERSIDADE FEDERAL DOS VALES DO JEQUITINHONHA E MUCURI
Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Rurais
Wellington Aguilar de Santana
As novas formas de alteração do/no espaço: O turismo e as alterações no modo de vida dos moradores de Tabuleiro do Mato Dentro distrito de
Conceição do Mato Dentro -MG
Diamantina 2019
Wellington Aguilar De Santana
As novas formas de alteração do/no espaço: O turismo e as alterações no modo de vida dos moradores de Tabuleiro do Mato Dentro distrito de Conceição do Mato Dentro -MG
Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Estudos Rurais Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, como requisito para obtenção do título de Mestre.
Orientadora: Profa. Dra. Aline Weber Sulzbacher
Coorientador: Prof. Dr. Alan Faber do Nascimento
Diamantina
2019
Elaborado com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).
S232n
Santana, Wellington Aguilar de
As novas formas de alteração do/no espaço: o turismo e as alterações no modo de vida dos moradores de Tabuleiro do Mato Dentro distrito de Conceição do Mato Dentro-MG / Wellington Aguilar de Santana, 2019.
90 p. : il.
Orientadora: Aline Weber Sulzbacher Coorientador: Alan Faber do Nasciemnto
Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Estudos
Rurais) - Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Diamantina, 2019.
1. Modo de vida camponês. 2. Espaço. 3. Turismo. I. Weber, Aline.
II. Faber, Alan. III. Título. IV. Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri.
CDD 338.479 1
Ficha Catalográfica – Serviço de Bibliotecas/UFVJM
Bibliotecária Nádia Santos Barbosa – CRB6/3468
Wellington Aguilar de Santana
As novas formas de alteração do/no espaço: O turismo e as alterações no modo de vida dos moradores de Tabuleiro do Mato Dentro distrito de
Conceição do Mato Dentro -MG
Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Estudos Rurais da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, como parte dos requisitos para obtenção do título de MESTRE EM ESTUDOS RURAIS.
Orientadora: Prof.a Dr. Aline Weber Sulzbacher
Co-orientador: Prof. Dr. Alan Faber do Nascimento
Data da aprovação: 06 de setembro de 2019.
Profa. Dra. Aline Weber Sulzbacher (UFVJM) Orientador
Prof. Dr. Alan Faber do Nascimento (UFVJM) Co-Orientador
Profa. Dra. Ivana Cristina Lovo (UFVJM) Membro interno
Prof. Dr. Hebert Canela Salgador (UFVJM) Membro externo
“A Geografia é o que Deus cria e o Diabo atrapaia. O que nois ajunta e o vento espaia”
Professor Wiliam Rosa. Presente!
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Resumo A pesquisa apresentada é uma dissertação de mestrado produzida no programa de pós-graduação em Estudos Rurais ofertado pela UFVJM (Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri). O trabalho contribui para uma elaboração teórica sobre as transformações ocorridas em uma comunidade rural com o advento do turismo. O contexto empírico da pesquisa acontece em Tabuleiro do Mato Dentro (distrito rural de Conceição do Mato Dentro- MG). Nossa proposição geral é que o turismo, estabelece novos nexos constitutivos nas relações sociais locais e que geram mais uma exclusão do pequeno produtor. Porém, embora as transformações venham a segregar muitos moradores, as possibilidades do homem do campo não se esvaem, e as atitudes de resistência oferecem um contorno de protagonismo destes sujeitos. Chamamos as práticas cotidianas dos produtores de modo de vida camponês. Entender esta relação do produtor com a terra, é perceber que as transformações ocorridas com o avanço do turismo geram transformações no modo de vida, porém, estas transformações não impedem sua reprodução enquanto sujeito do campo visto as artimanhas de resistência. Grosso modo, entender as características das relações camponesas é entender sua flexibilidade frente às intempéries colocada pelo atual modelo de produção. Daí sua capacidade de resiliência as transformações engendradas pelo capital. Para compreender o modo de vida camponês, as transformações ocorridas em função do avanço do turismo, as possibilidades e resistências a este processo, ocorreram trabalhos de campo com entrevistas abertas e observações participantes. Através da metodologia proposta percebemos as atitudes camponesas que dão fundamentos ao protagonismo quando conseguem, mesmo com as transformações colocadas pelo modo de vida urbano, sobreviver e reproduzir-se enquanto sujeitos, explorados pelo modelo vigente, mas com possibilidades criadoras para permanência de sua cultura. As discussões sobre a produção do espaço estão nos fundamentos da pesquisa, uma vez que entendemos que as contradições ocorrem no espaço e são do espaço. Ou melhor, o espaço é produto e produtor das relações sociais. Estudar a produção do espaço no local, foi necessário para compreender as diferentes territorialidades que estão em disputa. Por um lado, o modo de vida camponês que organiza a família a terra e o trabalho de forma entrelaçada e dialética e por outro, a fluidez necessária ao capitalismo que se expressa no fenômeno do turismo, que necessita fragmentar os espaços em forma de especulação de terras, de propriedade privada e de exploração da mão de obra.
Palavras chave: Modo de vida camponês; Espaço; Turismo
Abstract The research is a master's dissertation in a graduation program in Rural Studies offered by UFVJM. The work for a historical application about the transformations occurred in a rural community with the advent of tourism. The empirical context of the research takes place in Tabuleiro do Mato Dentro (rural district of Conceição do Mato Dentro-MG). Our general proposition is that tourism, which establishes new constitutional nexus in social local relationships is also responsible for more exclusion of the local producer. However, even though these transformations segregates many residents, the countrymen`s possibilities are not fading, and as attitudes of resistance are an outline of protagonism for these people. We call it the daily practices of the country way of life. Understanding this relationship between the producer and land is to be aware of the transformations occurred with the increase of tourism brings changes in the peasant way of life, however, these transformations do not stop its reproduction as a person from rural area seen the ruses of resistances. Roughly speaking, understand the characteristics of the rural relationship is to understand its flexibility towards the conditions of the current production model. Therefrom its resilience capacity as transformations engendered by capital. The comprehension in the rural way of life, the transformations happened in regards to the increase of tourism, the possibilities, and resistances to this process, we made personal surveys and observations with the participants. Through this methodology proposed we were able to realize the attitudes that give foundation to survive and reproduce as individuals with creative possibilities to keep their culture, even when exploited by the current model and with all the transformations imposed by the urban way of life. The discussions about the production of space are the foundations of this research since we understand that contradictions occur in space and belongs to space. In other words, space is the product and producer of social relations. Studying the production of the local space was necessary to understand the different territorialities that are in dispute. In one side, the country way of life that organizes family, land, and work in an intertwined and dialectical way, and in the other, a necessary fluidity for capitalism, which needs to fragment the spaces in the form of land speculation, deprivation, and exploitation of labor.
Keywords: Country way of life; Espece; Tourism
Lista de Figuras
Figura 1: Mapa regionalizando o município............................................................................... 6
Figura 2: foto aérea da cachoeira do Tabuleiro. ......................................................................... 7
Figura 3: Placa de chegada em Conceição do Mato Dentro pela MG-10. ............................... 21
Figura 4: Mapa com imagem de satélite realçando a localização do Tabuleiro. ...................... 25
Figura 5: Foto da vista geral da vila do Tabuleiro. ................................................................... 26
Figura 6: foto da vista do Canyon do rio preto e parte da vila com a igreja do sagrado coração
de jesus. .................................................................................................................................... 27
Figura 8: Forno de torra farinha muito comum nas casas. ....................................................... 29
Figura 9: imagens de um processo erosivo na bacia do Rio Preto. .......................................... 31
Figura 10: foto de placa que proíbe a pesca e a caça. ............................................................... 32
Figura 11: foto de um bovino no cocho rustico. ....................................................................... 33
Figura 12: preparação para a festa de Reis, que ocorre em outubro as mulheres se reúnem para
a confecção dos doces............................................................................................................... 34
Figura 13: Foto de quintal. ....................................................................................................... 63
Figura 14: curral construído com matéria prima local (apenas pregos e telhas foram comprados)
e com técnicas tradicionais. ...................................................................................................... 64
Foto 15: plantações volteando as casas. ................................................................................... 65
Imagem 18: as lagoas são comuns nos quintais. ...................................................................... 66
Figura 17: Foto de senhora vendendo seus produtos na feira do Tabuleiro. ............................ 70
2
Lista de Tabelas
Tabela 1 – Documentos utilizados descritos na metodologia......................................................17
Tabela 2- Temas levantados nas reuniões ..................................................................................38
Tabela 3- Produções locais..........................................................................................................44
Tabela 4- Capacidade produtiva..................................................................................................69
Tabela 5- Materiais vendidos .....................................................................................................71
3
Sumário
Resumo ............................................................................................................................ 5
Abstract ........................................................................................................................... 1
Lista de Figuras .............................................................................................................. 1
Lista de Tabelas .............................................................................................................. 2
Apresentação ................................................................................................................... 4
Introdução ....................................................................................................................... 6
Movimentos da pesquisa e pesquisa em movimento: a metodologia proposta. ......... 12
CAPÍTULO I – Conceição do Mato Dentro: Capital Mineira do Ecoturismo .......... 20
1.1. Tabuleiro do Mato Dentro: Espaço e Vida ...................................................... 24
1.2. Modo de vida no Tabuleiro: o produtor rural como camponês ....................... 39
1.2.1. Ser camponês: modo de vida e construção social no campo .................... 40
CAPÍTULO II – A produção do espaço no séc. XXI uma leitura de Henri Lefebvre 45
2.1. Turismo em uma análise “processual” ................................................................. 49
CAPITULO III – A produção do espaço no Tabuleiro: caminhos para análise de uma
vida em Travessias. ....................................................................................................... 54
3.1 Resistência camponesa e territórios em disputa.................................................... 61
Questões finais e lacunas de pesquisa ......................................................................... 73
Referências Bibliográficas ........................................................................................... 76
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Apresentação
A pesquisa desenvolvida é fruto de um trabalho que se relaciona a partir de dois
momentos: o primeiro, quando estabeleço morada no distrito do Tabuleiro, região rural
de Conceição do Mato Dentro Minas Gerais. A partir do ano de 2013, fiz a migração da
capital mineira para o campo e resido desde então na localidade. Meu deslocamento se
deu em função de trabalho, quando encontrei uma vaga disponível para trabalhar com o
ensino de Geografia na rede pública estadual (vinculada a Secretaria Estadual de
Educação). O segundo momento tem relação com a trajetória de formação, pois trabalhei
como mote de minha monografia, no ano de 2010 para conclusão de curso em Geografia,
o fenômeno do turismo em áreas rurais, mais especificamente em Macacos (São Sebastião
das Águas Claras-Nova Lima- MG), uma região próxima a Belo Horizonte que vive
intensamente o Turismo. Desde então me dedico ao estudo do tema acompanhando as
publicações e literaturas que versam sobre este fenômeno.
Seguindo nos esforços individuais de pesquisa, para me fundamentar e poder
entender como ocorriam as transformações no Tabuleiro com o advento do turismo, me
dediquei em entrar no mestrado em Estudos Rurais ofertado pela UFVJM no ano de 2017
para ter uma orientação com um professor, que outrora me fizera falta. O período que
estava em estudo individual, ajudou na construção atual da pesquisa. Acredito que as
aventuras nas revisões bibliográficas, não foram suficientes, mas descortinaram algumas
questões que levanto, problematizo e discuto ao longo deste trabalho. Ainda é importante
ressaltar que embora minha mudança de Belo Horizonte para o Tabuleiro tenha ocorrido
há poucos anos, sou frequentador desde o fim da década de 1990 da região. Sempre, na
condição de turista, visitava o distrito. Embora com dificuldades de acesso, as visitas
esporádicas ofereceram subsidio para uma atual analise que indaga e anseia a pesquisa:
Como o turismo transforma o modo de vida e o espaço no Tabuleiro? Esta indagação
surge no momento em que chego na região e me relaciono com os moradores, seja para
alguma necessidade quando turista, como alugar casas, comprar galinhas ou alimentos da
horta e depois ao estabelecer minha morada. As constantes alterações no local, como o
aumento do número de casas, o grande número de lotes a venda, aumento no fluxo de
turistas, mostraram que nos anos que frequentei até o ano que mudei para o distrito as
transformações foram visualmente marcantes. Se os estudos na Geografia trouxeram
como questão central o estudo do espaço, sendo que acreditamos ser um engodo separar
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o espaço físico da vida cotidiana, também perguntamos, como o turismo transforma a
vida dos moradores locais?
A pesquisa foi desenvolvida com recursos próprios e a necessidade de ser
trabalhador e pesquisador minou muitas possibilidades da dissertação. Ser pesquisador,
estudante de mestrado e professor de escola pública se tornou uma tarefa árdua. Se por
um lado as dificuldades surjam como limites, por outro, temos excelentes profissionais
(professores do curso) que nos orientam e impulsionam dando folego aos nossos anseios
e esperança à capacidade criativa e revolucionária da pesquisa social.
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Introdução As discussões encaminhadas versam sobre as transformações ocorridas em um
espaço rural com o advento do turismo. Caminhamos para entender a relação criada entre
os moradores e o espaço, seu modo de vida. O interesse é compreender as transformações
ocorridas com o avanço do turismo, indagando as percepções, para compreender as
consequências, possibilidades e resistências a este fenômeno. Entender as relações que
ocorrem em um espaço rural, que vive o fenômeno do turismo, é tratar sobre as
implicações do capitalismo em áreas não urbanas e no modo de vida dos que nestes
espaços habitam. O contexto empírico da pesquisa ocorre em Tabuleiro do Mato Dentro,
distrito rural de Conceição do Mato Dentro, município localizado no estado de Minas
Gerais (conforme Figura 01).
Figura 1: Mapa regionalizando o município Fonte: Adaptado de IBGE (2007).
O distrito está localizado a cerca de vinte e cinco quilômetros da sede municipal,
é uma região muito acessada por turistas. “Sua natureza exuberante, e sua cultura
marcante” (PMCMD, 2003), são atrativos para os que pretendem se aventurar no
Ecoturismo. Com a cachoeira mais alta do Estado de Minas1, com 273 metros de queda
1 A prefeitura afirma a validade deste título em várias promoções municipais.
7
d’agua, o distrito é o mais visitado do município. Desde a criação do Parque Natural
Municipal Do Tabuleiro, no ano de 1998, e a abertura da estrada em 1995, as idas à
cachoeira se avolumaram e hoje chegam a picos de 250 pessoas no poço e mais 200 na
parte alta em feriados2. O movimento no distrito é alterado e o fluxo de pessoas é
acrescido significativamente. Para chegar ao atrativo máximo da região é preciso passar
pela comunidade. Embora a cachoeira do Tabuleiro seja a mais visada, existem outros
atrativos, como o poço do Vau, o poço Pari, o Canyon do Rio Preto, a Cachoeira Rabo de
Cavalo, o Canyon do Peixe Tolo, e outras trilhas, incluindo paredões naturais que são
utilizados para a prática da escalada esportiva. Na parte alta da cachoeira do Tabuleiro
besejumpers desafiam as leis naturais e se lançam com pequenos paraquedas em direção
ao poço. Outros esportes de aventura são comuns no distrito. O trekking, o Rapel o
Motortrail, as corridas de bicicletas e outros esportes de aventuras.
Figura 2: foto aérea da cachoeira do Tabuleiro. Disponível no Google Imagens.
O contato entre o turista e os moradores ocorrem em vários momentos e em várias
instancias. Tratamos aqui, o possível incremento de renda que a atividade pode oferecer
2 Dados fornecidos por funcionários do parque
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para os produtores locais, e também da venda e parcelamento do solo que ocorre neste
momento de acessão do turismo na localidade. Estudaremos como o fenômeno modifica
o espaço, e a vida dos moradores do distrito do Tabuleiro, para pensar quais as
consequências geradas.
Para fazer o estudo das transformações no/do espaço do Tabuleiro iniciamos as
pesquisas sobre um notável pensador do século XX: Henri Lefebvre. Este elaborou um
importante e denso trabalho a respeito da produção do espaço e ofereceu um vasto
referencial para a análise das transformações sociais nas relações capitalistas. Partindo do
pressuposto que o espaço é uma construção social, relacionado ao meio de produção,
percebemos a ordem do vivido, do cotidiano. Surge a necessidade de entender como as
pessoas se relacionam, para compreender como se dá a produção do espaço na escala do
local. Se é imperativo compreender as relações sociais de produção e ainda as relações
sociais que se dão na ordem do local, também é necessário entender o turismo, que está
presente no dia-a-dia e pauta muitas ações do poder público municipal3 e das pessoas no
distrito.
Karl Marx em sua obra “Para a crítica da economia política” de 1859 apresenta
sua proposta de analise para compreender a organização social onde as pessoas podem
sobreviver. Segundo este autor, só podemos entender a sociedade se entendermos como
que elas se organizam e se produzem, ou melhor: o seu modo de produção. O caráter
dialético do conceito de produção surge quando pensamos que ela não está apenas no
quesito material. Quando se produzem bens, também é produzido uma forma de
sociabilidade, de organização e de cotidiano. Sob esta ideia, trabalhamos que todo
pensamento humano é o pensamento de uma época, e que as verdades produzidas por um
status-quo devem ser questionadas. Neste período moderno ou pós-moderno, aparecem
determinações, que são naturalizadas e impulsionadas com ânsia de reprodução
capitalista. Sob este signo pretendemos buscar um caminho problematizador que
questione as verdades impostas socialmente para construir um pensamento autêntico e fiel
3 O município de Conceição do Mato Dentro vive desde de 2010 um boom minerário. No município existe o mais ambicioso projeto de mineração e transporte de minério de ferro do mundo: minério-duto que leva o material retirado na mina para o Porto de Açu, no Rio de Janeiro. Muitas são as críticas dos movimentos sociais e de parte do poder público municipal para com a mineração. A secretária municipal de Meio Ambiente frequentemente promove eventos no distrito com fundamentos no turismo com discursos de diversificação econômica frente a mineração. Exemplos destes eventos promovidos pela secretária é o ABAETE SMITH, os diversos festivais, como o de música, de comidas típicas, corridas de aventura, dentre outros. Adiante, mostraremos como o poder público municipal, vê em Tabuleiro suas possibilidades de fuga das amarras da mineração, com o avanço do Ecoturismo.
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a realidade. Desta forma pretendemos fazer uma crítica da sociabilidade moderna
escancarando suas contradições e refutando logicamente suas ideologias.
A pesquisa contou com trabalhos de campo foram feitas observações participantes
em espaços chaves do distrito, no intuito de aterrissarmos o conhecimento teórico
elaborado, para testá-los à realidade. Assim, buscamos compreender se, em Tabuleiro, o
turismo é assimilado por todos, de quais formas e ainda, quais as consequências deste
fenômeno para a vida dos moradores locais que vivem/viviam em maior ou menor escala
da produção agropecuária. Entender as consequências do turismo em Tabuleiro é, em
última instancia, (re) conhecer as (im) possibilidades da reprodução capitalista em áreas
rurais.
A dissertação está dividida em três capítulos. No primeiro apresentamos uma
caracterização da área de estudo bem como os primeiros aspectos para entender o
contexto. Conhecer o Tabuleiro e suas práticas auxiliará na compreensão do que
chamamos de modo vida. Neste capítulo apresentamos junto à bibliografia o que
chamamos de modo de vida camponês e suas características constituintes.
No segundo capitulo procuramos na teoria de Henri Lefebvre como ocorre a
produção do espaço e suas contradições, enveredando para as possibilidades que os
conflitos entre forças, muitas vezes antagônicas, exercem nesta produção. A discussão
está relacionada aos espaços de resistência criados a partir da constante exploração do
capital. Em seguida vamos junto a bibliografia crítica para entender o turismo de forma
“processual”, como um fenômeno carregado de interesses e objetivos, muitas vezes de
classe. Um estudo das contradições que o turismo acarreta é imperativo no local.
Analisamos este fenômeno em todas suas instâncias, colocando uma base para entender
as transformações decorrentes no espaço. Importante é a fundamentação conceitual para
pensar o turismo como mais uma forma de acumulação capitalista.
Atualmente existe a necessidade de consumir áreas “inóspitas” ou que não
apresentam completa aptidão para formas antigas ou “típicas” de exploração. O turismo
surge como um eficaz mecanismo de extrair mais valia doutros locais, principalmente em
Tabuleiro, que sobre as escarpas da serra do Intendente4 apresenta relevo impróprio para
4 A serra do Espinhaço é um dobramento geológico ocorrido no período proterozóico. A serra recebe este nome pela sua variação longitudinal. Indo de norte a sul, o Espinhaço liga o estado de Minas Gerais e a Bahia. Foi ao longo da serra que se desenvolveu grande parte da mineração no período colonial. Seus terrenos íngremes trazem jazidas de ouro, ferro, manganês e bauxita. Vários núcleos urbanos se formaram
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mecanização agrícola ou para monoculturas tradicionais. É neste cenário que surgem
derivações: Agro Turismo, Turismo rural, Ecoturismo, etc. Categorias que pretendem
amenizar as contradições que o turismo ‘tradicional’ ocasiona e envolver comunidades
rurais e o mundo moderno. Embora trataremos este fenômeno, assumimos que ele não é
nosso objeto de estudo. Grosso modo, tratamos de como o capitalismo está nos dias atuais,
e como é de sua reprodução adentrar em áreas rurais, seja como turismo sustentável, seja
como turismo tradicional. Estudamos quais as relações que são criadas e estabelecidas no
contato do pequeno produtor rural com o fenômeno do turismo. Nestes termos seguimos
uma análise que pretende muito mais conhecer do que propor. Assim acreditamos que um
manual prático de lazer para áreas rurais não foi o caminho aqui delineado.
No terceiro capitulo foi feito uma discussão que traz as interferências do turismo
na vida dos produtores locais. Pensando este fenômeno, como um indutor de relações
capitalistas, foi estudado, junto os camponeses do Tabuleiro, como isto alterou suas
práticas. Procuramos evidenciar como foram criados mecanismos de defesa, por parte das
famílias produtoras, para que possam aproveitar o máximo das contradições expostas, se
(re) criando em possibilidades. Dizemos das formas que aproveitam as brechas do sistema
capitalista para se perpetuarem enquanto camponeses, alicerçados em seus modos de
vidas.
Assim, o foco é a análise de como o turismo gera alterações na vida do morador
do Tabuleiro chamado aqui ora de camponeses ora de pequenos produtores uma vez que
entendemos que estes conceitos são equivalentes. Seguimos com análise das
possibilidades, das resistências e das contradições dos que ali residem frente este
fenômeno. Assim estudaremos a (im)possibilidade da alteração no modo de vida dos
moradores com a influência do turismo.
Nesta perspectiva a pesquisa vem contribuir para a análise crítica do fenômeno do
turismo em áreas rurais. O objetivo central é entender a relação estabelecida entre os
moradores destas áreas e o turismo. A proposição geral da pesquisa, ao modo de hipótese,
é que mesmo com as dificuldades estabelecidas por um processo de produção do espaço
pautada no turismo onde as desigualdades sobressaem, os moradores que ali residem,
geram suas possibilidades de resistência e sobrevivência que se afirmam no cotidiano, e
em função da atividade minerária no espinhaço. Temos como exemplo: São Joao Del Rei, Ouro Preto, Sabará, Serro, Diamantina dentre outros.
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que são, em grande parte, atitudes políticas que impedem a produção do espaço com
feições da classe dominante.
Com a crescente busca do poder público em avançar o turismo na região,
intitulando a de Reserva Nacional da Biosfera (2005), criando o parque Municipal-
PMNRC (1998), construindo a sede do parque municipal (2005), criando o parque
Estadual PESI (1998) e abrindo a estrada de acesso ao Tabuleiro (1995), percebemos os
esforços para alavancar o turismo como alternativa sustentável à mineração (TCE-MG,
2016), que está presente em grande escala no município. A atividade minerária, exerce
grande pressão sobre as comunidades direta e indiretamente atingidas. Existem esforços
para diversificar a economia e diminuir a dependência da mineração. O turismo aparece
no município como mecanismo de desenvolvimento menos agressivo.
Pretendemos entender como este altera o espaço na região e consequentemente a
vida dos que ali habitam, para verificar se o turismo é mais uma forma de acumulação
capitalista e produtora de desigualdades, como afirma Ouriques (2005), e se suas
consequências acabam por minimizar as possibilidades de reprodução de um modo de
vida próprio dos moradores. Assim objetivamos com a pesquisa analisar a produção do
espaço no distrito de Tabuleiro (município de Conceição do Mato Dentro – MG),
considerando o processo de implantação da atividade turística e sua relação (contradições,
impactos etc.) com o modo de vida dos moradores, analisando as transformações,
resistências e possibilidades.
Objetivos Específicos:
a) Estudar sobre o processo histórico-geográfico de constituição do distrito,
visando compreender o modo de vida dos moradores.
b) Entender na prática cotidiana de camponeses, quais os mecanismos criados
para oferecer continuidade ao seu modo de vida
c) Indicar os principais processos que implicam na produção do espaço no
distrito do Tabuleiro, e suas contradições e impactos na lógica comunitária;
As transformações ocorridas em decorrência do turismo em áreas rurais interferem
ativamente na vida das populações residentes. Carlos (2007), Ouriques (2005), Gomes
(2010), Anselmo (1999) são exemplos de autores que demonstraram estas transformações
engendradas pelo turismo ou pelas novas formas de acumulação capitalista que se
apresenta de forma flexível (HARVEY, 1992) e assimila bens que antes não era de seu
12
interesse (CARLOS, 2007). Neste sentido torna-se imperativo construir uma base de
pensamento que ultrapasse o limite do aparente e consiga chegar no conteúdo, indagando
se existe um caráter de classe por trás dos projetos turísticos. Ainda se faz necessário
desmistificar a atividade turística como uma ‘tabua de salvação’ nos termos de
(NASCIMENTO, SOARES, 2006). Assim esta pesquisa se releva, pois, vivemos um
momento em Conceição do Mato Dentro onde os esforços para avanço do turismo são
incrementados, e a atividade é vista como alternativa sustentável. Nestes termos a
pesquisa vem endossar a base argumentativa crítica sobre o turismo e ainda entender
como os moradores locais se relacionam com está prática.
Movimentos da pesquisa e pesquisa em movimento: a metodologia proposta.
Esta pesquisa se norteia nos fundamentos marxistas para metodologia. Aqui
levaremos a cabo as análises com bases no materialismo histórico dialético. O método
utilizado e elucidado por Lefebvre (1991) quanti-qualitativo revela que o mundo real,
material, a vida é composta por elementos quantitativos e qualitativos, do material e do
subjetivo, da forma e do conteúdo, das inter-relações do passado com o presente e do
singular ao universal (PRATES, 2012). Assim a investigação proposta deverá alcançar
estas conexões fundamentais para chegar na unidade dialética. Pretendeu-se conseguir,
através de uma análise histórica e crítica- perceber a unidade do presente enaltecendo as
categorias que se abrem para a realidade.
A perspectiva dialética baseia-se, antes de tudo, em perceber a vida como um
movimento que liga as conexões do passado e do presente da forma e do conteúdo.
Perceber estes ‘antagonismos’ como unidade é constituir o real com bases em análises da
lógica e de suas bases constitutivas (DAMIANI, 1999). Ao analisar as aparências, o
primeiro momento do raciocínio – a -lógica – devemos ir além e perceber seu conteúdo,
que retoma e lhe da forma. As categorias que dão origem ao real, são materiais e
construídas. O conteúdo das construções é analisado em função de suas formas, que se
apresentam para o real. Passar de uma análise formal para uma análise dialética permite
analisar o real como é, subsidiando parâmetros que possam:
(...) desvendar para dar visibilidade, para subsidiar estratégias ou políticas, para contribuir com o fortalecimento dos sujeitos, para desmistificar estigmas, processos alienadores, enfim, desvendar para subsidiar ou instigar aprimoramentos, mudanças, transformações, mesmo que provisórias. (PRATES, 2003, p. 22).
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Partir do estudo empírico, não implica em negar as contradições e nem sucumbir
a aparência ao conteúdo. Marx, em “O capital” (2014), trata de apanhar dados
quantitativos para sua análise do trabalho infantil. Coletando dados desta exploração, Karl
Marx, demonstra como os sujeitos são explorados se valendo de dados quanti-qualitativos
(PRATES, 2012). Neste sentido propomos um estudo onde dados quantitativos e
qualitativos se relacionem no que chamamos aqui de estudos “mistos, quanti-qualitativos,
ou multimetodológicos que se constituem na articulação de ambos os tipos de dados, que
partem de fundamentos e características distintas” (PRATES, 2012, p. 116). Nestes
termos o método proposto traz uma análise que não se prende em dualidades e que estuda
em conjunto a coleta e tratamento dos dados quantitativos e qualitativos. Lefebvre (1991,
p. 21) afirma:
(...) superando as oposições da forma e do conteúdo, do teórico e do prático, do subjetivo e do objetivo, do para si e do em si. O método não deve desdenhar da lógica formal, mas retomá-la. Portanto, o que é esse método? É a consciência da forma, do movimento interno do conteúdo. E é o próprio conteúdo, o movimento dialético que este tem em si, que o impele para a frente incluída a forma. A lógica dialética acrescenta a antiga lógica, a captação das transições, do desenvolvimento, da ligação interna e necessária das partes no todo.
A superação alertada pelo autor, se dá na não análise binária dos termos. Supera-
las é alcançar o movimento do real, elencando as possibilidades do “vir-a-ser”,
destacando as formas e os conteúdos que outrora ocorreram e que fazem parte do presente.
Com a coleta de dados em campo, a análise de dados secundários (IBGE), estudo de
documentos e análises bibliográficas almejamos compreender o problema de pesquisa e
colocar nossa hipótese à prova. Partindo do real, chegaremos no real. Não se trata de partir
dos conceitos para a vida. O pensamento ontológico precede o epistemológico. Para
estudar o mundo parte-se do mundo, e não dos conceitos sobre o mundo. A materialidade
das relações sociais se afirma e as categorias de análise se abrem a realidade
demonstrando seu caráter histórico.
A produção dos dados foi realizada através das técnicas de pesquisa trabalhados
por Thiollent (2009); Japiassu, (1978); Dobossan (2018), tal como descrevemos:
Observação
O processo de observação permite ao pesquisador analisar as múltiplas relações
que ocorrem na ordem do vivido e que auxiliam, sem muita intervenção, a aproximação
do objeto de estudo. A junção entre os dados produzidos e a observação (como um
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momento de produção de dados e informações) contribuiu, inicialmente, para uma
primeira elaboração e aproximação ao problema de pesquisa. A observação tem sido
prática constante, desde quando (2013) se inicia a morada do pesquisador no distrito e
envolve todo o território do Tabuleiro, incluindo algumas andanças pela região. Por meio
deste processo, de forma mais objetiva para a instrumentação da pesquisa, tentou-se
entender como as pessoas se relacionam com os espaços que convivem e como se
relacionam uma com as outras, além das transformações na produção do espaço. As
observações ocorreram em três âmbitos principais: 1) associação de moradores locais; 2)
organização da Feirinha do Tabuleiro; 3) na estrutura e organização do distrito.
Decidimos fazer observações e não outra intervenção ativa nestes estes espaços uma vez
avaliamos o risco de interferência na tomada de decisões das reuniões que, inclusive, são
cada vez menos numerosas. O risco alertado por Quaresma (2005) de coagir o outro por
ser pesquisador é iminente, e sabemos que podemos constranger, ou inibir mesmo não
tendo feito intervenções diretas no processo. Mais algumas limitações que tentamos
superar: o constrangimento, a possibilidade de ver a realidade com anseios próprios, pelo
tempo de observação incorrer no risco de não compreender a totalidade dos fenômenos e
ainda não ter delimitado o campo de análise (o recorte analítico) de forma adequada. Estes
limites são analisados e levados em consideração para que possamos ser rigorosos ao
método e não imputarmos nossas vontades à realidade.
A princípio, ficam dois eixos de observações estabelecidos: 1) analisar como as
pessoas das organizações se referem ao turismo e ao turista, e; 2) analisar como eles se
relacionam com a terra, levando em consideração os ciclos naturais, a comunidade, dentre
outras. Todas as vezes que estes temas aparecem nas reuniões anotamos as perspectivas
que surgem. Importante ressaltar que qualquer informação que pareça relevante nas
observações são anotadas em cadernetas de campo para análise.
Entrevista não dirigida
As entrevistas não dirigidas são as que o entrevistador sem um roteiro de
perguntas pré-estabelecido e sim temas ou categorias selecionadas, vai de encontro ao
que pretende elucidar, levando a ‘conversa’ para os caminhos previamente decididos.
Esta metodologia pretende-se mais livre e menos linear que um questionário comum,
Assim Debossan (2018, p. 28) define esta metodologia:
É o encontro entre duas ou mais pessoas, a fim de que uma delas obtenha informações a respeito de um determinado assunto. Na
15
entrevista não dirigida ocorre um diálogo com objetivos definidos, no entanto o pesquisador tem liberdade para desenvolver cada situação em qualquer direção. Permite explorar mais amplamente uma questão. Esse instrumento possibilita identificar valores e práticas de universos sociais específicos, em determinados graus de delimitações em que os conflitos e contradições não se apresentam de forma explicita. Ele permite que o entrevistador aprofunde em questões levantadas de forma a coletar informações que, dizem do modo como cada sujeito percebe a realidade descrita no recorte do objeto de pesquisa previamente determinado.
No processo de elaboração das entrevistas, definimos nosso ponto de chegada e
de partida. Iniciamos elaborando questões que pudessem perpassar pelo problema de
pesquisa. Por meio do estudo de observações foi elencado temas de análise que foram
essenciais para entender como o turismo está na vida dos moradores do distrito. As
observações que outrora se fizeram com um caráter explorativo e investigativo agora
segue um rigor acadêmico e caminhos delineados. Assim os temas foram:
1- Turismo e Moradores locais.
2- Transformação do espaço ocasionados pelo turismo
3- Terra, Rendimento e produção agropecuária
Turismo e moradores locais foi estabelecido para compreender quando e se o
turismo gerou alguma mudança na vida dos moradores. Escolhido pelo fato de perceber,
na observação, muitos moradores questionarem os turistas. Em vários ambientes
(reuniões informais, ou no dia-a-dia) os turistas são malvistos, principalmente pelas suas
práticas, como as de higiene (não utilização de banheiros em alguns casos), forma de
alimentação (animais de caça, como gambás, cobras e passarinhos), utilização de álcool,
forma de falar (não utilizar o padrão correto da língua portuguesa). Aqui teremos algumas
perguntas norteadoras: O que mudou com a abertura da estrada para o Tabuleiro? Você
percebe alguma alteração em suas práticas ocorridas após a chegada de turistas na região?
Você se relaciona com os turistas nos fins de semana e feriados?
Transformação do Espaço Ocasionados pelo Turismo foi um tema escolhido, uma
vez que foi percebido, nas observações, que a configuração espacial se modificou,
principalmente pela venda de terras, pelo aumento no número de hospedarias,
crescimento no número de mercearias, e retorno de alguns (que estavam na cidade) para
viver do turismo ou atividades relacionadas. Outro fato é a proliferação de residências,
tanto dos que retornam quanto dos que chegam (pessoas que vieram de outras regiões
para fazer sua morada ou veraneio no distrito). Existem as alterações feitas pelo poder
público que oferece manutenção nas vias que dão acesso ao parque além das festas e
16
eventos para os turistas (alteram o espaço momentaneamente). As perguntas norteadoras
são: Você percebe alguma alteração no distrito, com a chegada do turismo? Quando?
Quais? Como estas alterações podem modificar sua vida na comunidade?
Terra, Rendimento e Produção agropecuária estão em relação sendo que, a
comunidade, em sua grande parte, vive da produção agropecuária, e da terra dependem,
mesmo que em escalas distintas. A terra é pensada no sentido de propriedade, de área de
plantio ou pastagens. Rendimento está relacionado as possibilidades de ganhos
monetários com a agropecuária, ou com atividades pluriativas, como o turismo. As
perguntas norteadoras são: Você tem algum ganho monetário com o turismo? Nos últimos
anos houve alguma alteração no valor dos terrenos? Qual a sua dependência da roça?
Planta para vender? E sua alimentação, é completada ou vem de base do plantio e da
pecuária?
A escolha dos entrevistados seguiu um critério de amostragem onde os sujeitos
são valorizados por critérios qualitativos. A escolha dos que são entrevistados segue
alguns parâmetros. Segundo Thiollent (1947):
Na prática da pesquisa social, a representatividade dos grupos investigados se dá por critérios quantitativos (amostragem estatisticamente controlada) e por critérios qualitativos (interpretativa ou argumentalmente controlados). Mesmo em pesquisa convencional, ao planejarem amostras de pessoas a serem entrevistadas com alguma profundidade, os pesquisadores costumam recorrer as chamadas amostras intencionais.
A intenção aqui é dialogar com os gerenciadores das casas5 e que são nativos.
Procuramos os pais, para diminuir os riscos de constrangimento com a família. As casas
escolhidas foram sempre onde existia alguma relação com o pesquisador.
As entrevistas, sabemos, podem ter gerado pontos negativos, como a relação entre
pesquisador e objeto de pesquisa. Este problema apontado por Quaresma (2005), surge
quando gravamos, transcrevemos ou colocamos os termos de consentimento em jogo.
Esta relação pode apresentar limites, mas também possibilidades. As entrevistas serviram
de subsídios para testar a hipótese aqui elaborada, ou seja: a de que os moradores locais,
mesmo com as dificuldades colocadas pelo modo de produção capitalista, resistem, e se
reproduzem enquanto sujeitos do campo. Alguns riscos de pesquisa devem ser elencados,
5Importante retomar a divisão sexual do trabalho. Mesmo sabendo que as responsabilidades são divididas (ou na maioria dos casos, fica a cargo da mulher, inclusive, sobrecarregando-a!) as perguntas normalmente se direcionam aos homens por uma questão moral, existente principalmente nas casas mais afastadas do centro e com menos convívio com pessoas de ‘fora’.
17
na medida em que trabalharemos direto com os produtores rurais, com baixa escolaridade
ou muitas vezes, iletrado. Pretendemos amenizar estes complicadores com entrevistas que
não ultrapassem o limite da privacidade, e ainda seguiremos como sugere Bourdieu
(1999) que o método deve ser aplicado com rigor, porém não de forma rígida e engessada.
O mesmo autor, Bourdieu (1999) coloca algumas formas de se atenuar as contradições
inertes às entrevistas. Escolher o entrevistado, fazendo com pessoas já conhecidas, ou que
tenhamos uma boa familiaridade é um destes métodos que pretendemos seguir.
Análise de Documento
A análise documental veio clarear pontos da pesquisa que julgamos necessários.
Utilizamos documentos públicos para entendermos como as instituições se portam
perante o fenômeno do turismo. A ligação com o contexto destes documentos, é um
imperativo e só é possível quando se entende as circunstancias de criação ou efetivação
de determinada demanda contidas nos documentos. Ou seja, eles não existem por si e
devem ser analisados em toda sua complexidade social. Ressaltamos o baixo custo de
análise e a natureza fixa destes documentos um potencializador deste método.
Neste momento, organizamos e apuramos os dados de tal forma que possibilitaram
compreender e delimitar o problema de pesquisa, isto é: como o turismo altera o espaço
no Tabuleiro levando em consideração as transformações sociais. Os documentos
escolhidos, são: Plano Diretor Municipal (2003); O estatuto da Associação Comunitária
(2016), que pretende aludir os anseios dos associados; Parecer do Tribunal de Contas do
Estado de Minas Gerais6 (2016), que orienta e determina a diversificação econômica
frente a mineração; o plano de ações da RBSE (2005); dados do IBGE (Censos
Agropecuários, Pesquisa Municipal etc.).
Tabela1 – Locais, tipos e fonte dos documentos
Entidade Documento Fonte
Prefeitura Municipal
- Plano diretor Municipal 2003
Disponível em: http://cmd.mg.gov.br/pdf/LC0202003-PLANO-DIRETOR-DE-CONCEICAO-DO-MATO-DENTRO.pdf
6 Relatório Final de Auditoria Operacional As políticas públicas municipais para mitigação dos impactos ambientais e diversificação das atividades econômicas: Prefeitura Municipal de Conceição do Mato Dentro
18
Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais
- Relatório Final de Auditoria Operacional As políticas públicas municipais para mitigação dos impactos ambientais e diversificação das atividades econômicas: Prefeitura Municipal de Conceição do Mato Dentro
Disponível em: https://www.tce.mg.gov.br/IMG/2017/Conceicao%20do%20Mato%20Dentro-%20Final.pdf
ASCOTA – Associação comunitária do Tabuleiro
-Estatuto da associação
Disponível com a presidenta da Associação
RBSE -Reserva da Biosfera da Serra do espinhaço
-Documento de intitulação da reserva para a serra do Espinhaço.
Disponível em: http://www.biodiversitas.org.br/rbse/
IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
-Censo 2011 -Censo Agropecuário 2011
Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/conceicao-do-mato-dentro
Fonte: Elaborada pelo autor
Os dados coletados, a partir das fontes secundárias, foram analisados em suas
relações e interseções. Os temas elencados, para proposição das entrevistas e dos
caminhos investigativos, retomam centralidade nos capítulos seguintes para que
19
possamos depurar os dados e informações como pré-estabelecido na metodologia, ou seja,
colocando um caráter dialético, em que possamos superar as perspectivas puramente
técnicas e mecânicas. Deste modo teve-se a pretensão de chegar o mais próximo da
compreensão do real, da essência, sendo fiel as condições objetivas que o perpassam sem,
no entanto, negligenciar os riscos que o pesquisador ocorreu no processo, considerando a
aproximação com o contexto estudado e os valores implícitos em um ser social, que
podem estar expressos tanto no conteúdo quanto na forma desta dissertação.
20
CAPÍTULO I – Conceição do Mato Dentro: Capital Mineira do Ecoturismo
Autointitulada como capital mineira do Ecoturismo (figura 3), Conceição do Mato
Dentro abriga em seu território importantes atrativos naturais que fundamentam seu título.
Situada na porção setentrional do Estado de Minas Gerais, o município, no último censo
do IBGE (2011) somavam 17.908 mil habitantes. Destes, 12.269 estão na área urbana7 e
5.639 na área rural. O histórico da cidade está ligado aos bandeirantes paulistas, que
atravessavam o sertão em busca de novas áreas de exploração. Encontrando na região um
local fecundo para a exploração mineral, os bandeirantes, representando interesses de
Portugal e de um capitalismo mercantil, se apropriaram do espaço (séc. XVIII) . De forma
violenta expulsaram ou exploraram os índios-Botocudos8 e desenvolveram possibilidades
de fixação na borda da Serra do Espinhaço construindo vilas e explorando o sertão. A
necessária integração nacional para um fluxo internacional, como orienta a organização
mercantil, força a apropriação de espaços estratégicos, e criam conflitos nos locais que se
estabelecem. A introdução de novas relações sociais se faz presente e novas conexões
surgem nesta primeira fase de formação municipal.
Com o trabalho de negros que foram escravizados, os Bandeirantes transformaram
a região em um centro urbano, ao modo de um povoado, denominado Conceição Do
Serro, que se emancipa em 1851 do município do Serro. Em 1925, o nome da cidade é
modificado para Conceição. Apenas em 1943 o local recebe seu nome atual.
Com a decadência da mineração, a grande propulsora da localidade, a cidade viu
suas possibilidades esvaindo e o que imperou foi a agricultura “camponesa” nos termos
de (PLOEG, 2008)9 pequenos comércios e migrações.
A arte barroca esteve presente na cultura local e arquitetou várias construções da
cidade. Uma grande mistura de tradições e culturas, legado pelos portugueses, pelos
povos tradicionais (indígenas e suas miscigenações) e pelos negros, ofereceram uma
7 Sobre o problema de metodologia utilizada para classificar urbano e rural ver: Pera (2016). 8Alertamos para o caráter colonizador desta afirmativa. 9 O termo camponês utilizado pelo autor vem afirmar uma convicção inicial da pesquisa. As relações ocorridas no Tabuleiro são em sua maioria relações ‘camponesas”. Ploeg (2008) faz um apanhado do tema estudando quais as relações constitutivas que dão forma a vida camponesa. Este assunto será tratado adiante quando se faz uma análise das transformações no modo de vida dos moradores do Tabuleiro.
21
diversidade que foi explorada para atrair visitantes, como no caso do Instituto Estrada
Real10, a partir de 1999, que pretende desenvolver os locais através desta prática.
Figura 3: Placa de chegada em Conceição do Mato Dentro pela MG-10. Fonte: Arquivo do Autor verão de 2019
Pautando suas possibilidades de desenvolvimento pelo turismo, a partir de 1990 a
prefeitura municipal lança-se nos esforços de regulamentar e organizar a prática criando
mecanismos de proteção e conservação do patrimônio ambiental e cultural11, uma vez que
sofrera com as constantes pressões de usuários físicos e jurídicos por vezes visam o
parcelamento do solo, a supressão da vegetação, e podem, em alguns casos, intensificar
os conflitos. A construção de grandes hotéis, loteamentos, barragens, são exemplos de
conflitos que podem ser gerados pelo turismo. A criação da Política Municipal de
Turismo Responsável no ano de 2005 marcou uma primeira preocupação com o tema por
parte do município. Ainda existiram a criação de três unidades de conservação, todos no
fim da década de 1990 e meados dos anos 2000: o Parque Municipal Salão de Pedras; O
Parque Estadual serra do Intendente; Parque municipal Natural Ribeirão do Campo (Hoje
recebe o nome: Parque Natural Municipal Cachoeira do Tabuleiro). A Política Municipal
10 Criado em 1999 pelo governo do Estado de Minas, o instituto tem por objetivo desenvolver os distritos e municípios que estão no entorno ou no caminho- Caminho novo, caminho velho e caminho dos diamantes- que a coroa portuguesa utilizou para escoar seu minério para a metrópole no séc. XVII, XVIII, XIX. (Becker, 2009) 11 Aqui separamos ambiental de cultural para fins ilustrativos. Seguimos pensando com Santos (2000) que afirma que a natureza e sociedade não podem ser dissociados.
22
de Turismo Responsável não se tornou efetiva, e foi reformulada em 2013, sobre pressão
de diversificação econômica no município12. (TCE-MG, 2016).
Com a grande dependência do município pela arrecadação da CFEM
(compensação Financeira para Exploração de Recursos)13, e com as grandes
consequências geradas no processo minerário14 alguns esforços vieram para que a
economia dinamizasse, e a dependência criada pela mineradora diminuísse. O Tribunal
de Contas do Estado de Minas Gerais, em documento enviado à prefeitura municipal
cobra dois eixos para a diversificação econômica. No primeiro está o desenvolvimento da
atividade turística pelo o Plano Diretor de Turismo15 e pelo Plano de Gestão dos Atrativos
Turísticos16. O segundo foco está relacionado ao desenvolvimento rural17, que deveria ser
alavancado e apoiado pelo Conselho Municipal de Desenvolvimento da Atividade Rural
(COMUDAR), criado por lei municipal em 2001 (anterior ao plano diretor), porém,
segundo o TCE-MG (2016, p. 29):
(...) a legislação promulgada nos exercícios de 2001 e 2007 ainda não foi efetivamente implementada, sendo que a Prefeitura não apresentou as ações de promoção e incremento da atividade agropecuária em consonância com a referida normatização legal.
Embora exista um segundo foco para o desenvolvimento rural, percebemos em
alguns momentos como o foco do poder público está relacionado ao turismo. São várias
as promoções para os turistas, como os eventos gastronômicos, esportivos, e de
capacitação. (Comida da roça-anual, Competições como Rallys, escalada, corridas de
12 Hoje, existe no município uma gigante atividade minerária exercida por uma multinacional, a Anglo-American. A exploração do minério de ferro ocorre na comunidade de São Sebastiao do Bom Sucesso, mais conhecida como Sapo que está cerca de quinze quilômetros da sede administrativa. As atividades de licenciamento e exploração se iniciaram em meados de 2010, e as alterações oriundas desta atividade foram presentes em todos os aspectos. Muitos conflitos territoriais, ambientais, burocráticos (legislação), marcaram a chegada e a operação da mina. Existe uma grande dependência do município pela mineração que fundamenta suas perspectivas de investimentos no retorno financeira da extração de minério de ferro através dos Royalties. Neste ponto, afirma-se a dependência de arrecadação. 13“A atividade de mineração em decorrência da exploração ou extração de recursos minerais leva, obrigatoriamente, ao recolhimento da CFEM. A saída por venda do produto mineral das áreas da jazida, mina, salina ou outros depósitos minerais constitui-se fato gerador da contribuição”. (TCE-MG, 2016. P. 16) 14Sobre este processo ver Prates (2017) em GESTA-UFMG 15“ §5º O Plano Diretor de Turismo é o documento técnico que deverá conter as diretrizes e estratégias para o turismo do município para um período de 04 anos” (TCE-MG, 2016. P. 27) 16“ Art. 9º - Fica criado o Plano de Gestão dos Atrativos Turísticos – PGAT, instrumento que poderá ser implementado nos atrativos turísticos devidamente licenciados pela Secretaria Municipal de Turismo e que conterá um plano das atividades turísticas na propriedade, no intuito de aprimorar continuamente a qualidade da infraestrutura e da segurança dos produtos e serviços prestados oferecidos pelos atrativos, bem como sua sustentabilidade ambiental. ” (TCE-MG, 2016.p. 28) 17Em relação ao setor agropecuário, a adoção de políticas públicas de desenvolvimento rural constitui uma importante fonte de diversificação econômica do município, principalmente se considerados fatores como o aumento da arrecadação municipal decorrente da CFEM. (TCE-MG, 2016. p.28)
23
bicicleta e outros esportes radicais. Ainda existem os diversos cursos de primeiros
socorros, de guias e de outras assistências aos visitantes.). Enquanto estes eventos são
sempre muito divulgados pela prefeitura municipal, os endereçados ao produtor rural,
estão sempre em desvantagens, e não recebem o mesmo prestigio dos outros.
Doações de sementes (milho e feijão) que ocorre anualmente nos distritos, e
algumas ações que são mistas, como as que viabilizam as estradas, uma vez que auxilia
no escoamento da produção, mas também oferece passagem para o turista são as
atividades para o produtor. O empreendorismo, também está na pauta da prefeitura
municipal, que levou aos distritos (Tabuleiro e Tapera) um curso para capacitar
empreendedores nos locais turísticos no ano de 2018.
Em análise dos dados do IBGE (2010) demonstra que 1397 propriedades rurais
que existem no município, apenas 103 recebem assistência técnica18. Ainda, o sindicato
rural, segundo o presidente, (morador do Tabuleiro e presidente empossado desde de
2015), está com grandes problemas de arrecadação pois perde associados a cada ano.
No Tabuleiro, para arar uma terra, até 2016 era feito sem custo para os produtores,
oferecido pelo sindicato. Após este ano, com as baixas arrecadações, o serviço agora é
cobrado. Por cinquenta Reais a hora o produtor tem suas terras aradas para o plantio. Por
vezes 4 a 5 horas são utilizadas nas terras que devem ser aradas em curva de nível pela
sua topografia (quando existe possibilidade para tal). O curral de leiloes que existe em
Conceição está em desuso há 5 anos. Hoje existe uma tentativa por parte de moradores
para utilização do espaço. Entre acordos e negociatas, ele foi utilizado novamente em
2019.
Ao receber o diploma de Reserva da Biosfera à Serra do Espinhaço (RBSE), no
ano de 2005, por meio do programa man and biosphere, da Organização das Nações
Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), pelo patrimônio cultural e pela
biodiversidade que abriga, o município passa a fazer parte das onze áreas núcleo da
RBSE. A reserva tornou-se referência no país e criou expectativas de desenvolvimento
para a localidade (BECKER, 2012). Dentre os impactos que ocorreram contamos com a
venda e o parcelamento do solo, aumento no fluxo de pessoas, alterações na paisagem,
mudanças nos hábitos de vida no contato com outras culturas.
18 Sabemos que esta defasagem não é responsabilidade apenas do poder público municipal, e que isto faz parte de um cenário estadual e federal.
24
Através do turismo a Reserva da Biosfera vem impulsionar atividades que possam
gerar renda com um viés sustentável. Outro fator que impulsiona o turismo na região é a
entrada do município no circuito Serra do Cipó no início dos anos 2000. Este, também
foi criado para aumentar o fluxo de visitantes. Um fato importante demonstrado por
Gomes (2009) é que as atividades turísticas em Cardeal Mota (atual Serra do Cipó)
declinaram de seu boom inicial de meados da década de 1990, e as transformações ali
ocorridas em decorrência do turismo foram marcantes. Segundo a autora existe uma forte
presença da cultura urbana na localidade e os comércios cada vez mais diversificados, lan
hauses, lojas de aparelhos eletrônicos, sofisticados restaurantes, supermercados: “São
aparatos do modo de produção capitalista que impede a percepção de continuidades de
outra forma de produção do espaço” (GOMES, 2009, p. 20). Assim em um processo
dialético, o local deixa de agradar os que vão em busca de uma certa ‘qualidade” do
espaço, que são guiados pelo “exótico resguardado na natureza selvagem” e que vão em
busca de uma “simulação da vida natural” nos termos de (LEFEBVRE, 2007, p. 06).
Neste contexto existe uma procura para locais que ainda resguardem estas qualidades de
uma vida bucólica que consiga fazer os penosos dias metropolitanos valerem a pena
quando nas férias possam estar em locais tranquilos e com um movimento pacato. E é
neste contexto contraditório, que situa a análise das transformações deste espaço rural,
impulsionadas pelo turismo, pois ao mesmo tempo em que a paisagem é transformada em
capital natural, exige-se uma estrutura e condições que tendem a homogeneizar atendendo
aos interesses de turistas que exigem banhos quentes, formas de atendimento que sejam
adequadas a relação consumidor-cliente, utilização de cartões de debito e credito, estradas
em boas condições, e que possam rentabilizar o que era exótico: vender aspectos de
produção, como nas visitas aos engenhos, e o convívio com um “modo de vida local”
dos moradores que (sobre)vivem da roça e levam características de uma vida particular,
de laços comunitários e de uma vida “tradicional”.
1.1.Tabuleiro do Mato Dentro: Espaço e Vida
Tabuleiro do Mato Dentro é um dos doze distritos de Conceição do Mato Dentro
(foto 2- Visão geral da ‘Vila” do Tabuleiro). Distante cerca de vinte e cinco quilômetros
da sede urbana (vinte em estradas de ‘chão’), o local sempre desenvolveu suas atividades
ligadas a exploração agropecuária. Em alguns momentos, ímpetos de mineração e
25
garimpo sondaram a região, porém sem sucesso efetivo. Habitado por mil cento e
dezesseis pessoas (IBGE, 2010) o distrito foi delimitado pela lei Municipal 1.741/03.
Figura 4: Mapa com imagem de satélite realçando a localização do Tabuleiro.
Mesmo com o distanciamento da cidade ou de alguma metrópole (cento e oitenta
quilômetros de Belo Horizonte), os tabuleirenses mantiveram contato com a cultura
urbana. Muitos se movimentaram e saíram em buscas de possibilidades em São Paulo,
Belo Horizonte ou em cidades próximas, que ‘desenvolveram mais que Conceição’ – no
dizer dos locais. A entrada de empresas de garimpo, na década de 1950, oferecera mais
uma nova dinâmica (uma vez que não esteve alheio as transformações ocorridas
anteriormente) em alguns locais do Tabuleiro. Porém trabalharemos o recorte espaço-
temporal do turismo, evidenciando para as mudanças oriundas deste processo.
26
Figura 5: Foto da vista geral da vila do Tabuleiro. Podemos ver a igreja do Sagrado coração de Jesus, a escola Municipal, a rua principal do distrito que esta calçada, casas e comércios. Todos os moradores que são produtores desta área, mantem áreas de plantios em regiões mais afastadas. Porém mesmo no “centro” as atividades camponesas são constantes. Galinhas, porcos e plantas convivem em meio ao avanço da cultura “urbana” Arquivo do Autor. Inverno de 2018
Localizado sob a Serra do Espinhaço, o distrito tem influências de um relevo
cristalino modelado pelo intemperismo ao longo dos séculos. As alterações climáticas
associadas a litologia ofereceram ao lugar um relevo com características abruptas, onde a
inclinação é uma grande marca. As encostas íngremes geram desafios e também um
grande produto: ‘Uma natureza exuberante’19. A serra do Intendente (foto 3: Serra do
Intendente e Canyon do Rio Preto) limite a sudoeste (SO) do distrito abriga várias formas
de relevo atraídas pelo turismo: a cachoeira do Tabuleiro, o Cânion do Rio Preto, a
cachoeira Rabo de Cavalo dentre outras. Os mares de morro, que caracterizam o domínio
morfoclimático da região, fizeram os moradores locais transformar e organizarem sua
produção de acordo com as condições geográficas (condições hoje que estão ligadas ao
turismo e a venda de terras. Assunto tratado adiante).
19 Gomes (2009) e Ouriques (2005) demonstram como a natureza é um produto a ser vendido pelo turismo.
27
Figura 6: foto da vista do Canyon do rio preto e parte da vila com a igreja do sagrado coração de jesus. Arquivo do autor. Primavera de 2018
O modo de vida no distrito do Tabuleiro é marcado por duas estações: a cheia e a
seca. Muitas atividades estão ligadas a estes períodos. Na “entrada das águas” é época do
plantio de milho (setembro-outubro), do feijão ‘das águas’, cana, mandioca. Quando
inicia o período chuvoso planta-se amendoim, banana e outras plantas silvícolas ou
frutíferas, que necessitam de “mais água”, além do capim Brachiara, muito utilizada na
região para pastagens. Já no fim do período chuvoso tem a lavoura do “feijão da seca”
concomitante com a colheita e beneficiamento do milho e do feijão “das águas”20. Com
a chuva se acabando, em meados de março, as terras estão plantadas com feijão ou estão
em pousio. É neste período que as hortas nos quintais são empenhadas, e a colheita da
cana se inicia para a produção da cachaça ou rapadura. Em Tabuleiro existem seis
engenhos de cana que “produzem com intuito de vender” – conforme afirmam os
agricultores. Alguns, de forma esporádica recebem visitas de turistas, porém
espontaneamente, ou previamente combinada. Não existe um roteiro estabelecido e
20O beneficiamento envolve a limpeza e armazenamento do produto. Por vezes se faz a farinha de Milho.
28
comercialmente organizado para isto. Segundo os produtores os engenhos já produziram
em maior quantidade. Hoje falta mão de obra e as roças de cana já não são tão numerosas.
Também ressaltam que existem engenhos mais novos com melhores motores que moem
mais e a concorrência aumenta o preço da cana. A mandioca também compreende uma
importante fonte de renda para famílias do distrito. São raras as que não têm um forno de
torrar farinha em casa ou no núcleo familiar 21. São plantadas entre as famílias, em seus
terrenos. O plantio, capina, preparação do terreno, beneficiamento, está todo a cargo dos
familiares. Em alguns momentos, vizinhos ajudam em troca de serviço. Os mandiocais
são comuns na paisagem local.
Figura 7: foto de uma plantação de mandioca. Arquivo do autor, inverno de 2019
21 Chamamos de núcleo familiar as famílias que se organizam em proximidade. Os terrenos dos mais antigos, e consequentemente suas casas, são o centro das atividades onde existe o engenho e o forno de farinha. Os filhos e agregados da família se alojam ao redor construindo suas casas nas proximidades das casas antigas
29
Figura 8: Forno de torra farinha muito comum nas casas. Está prática é de grande importância para as famílias do Tabuleiro. A farinha serve como um incremento da renda e também está nas principais refeições das famílias do povoado. Arquivo do autor. Verão de 2019
Existe também muitos moradores que trabalham na “cidade”, e que não vivem
diretamente de plantios ou pecuária. A pluriatividade, que seria a compatibilização de
práticas agrícolas com as não agrícolas sempre esteve na região. Mesmo os que estão na
“cidade” a trabalho, mas voltam em feriados, fins de semana ou diariamente, exercem
práticas agrícolas. Existe também a relação com a família, uma vez que muitos elementos
que são produzidos na unidade produtiva da casa auxiliam no incremento da alimentação,
remédios, concerto de roupas, ferramentas, etc. Embora grande parte de suas rendas
estejam ligadas a outras atividades, não agrícolas, é notório que estabelecem relação com
a terra, seja com uso direto, seja com o pertencimento ao local, as famílias. Quando
ocorrem sepultamentos em Tabuleiro, o movimento no local é acrescido de parentes que
chegam da cidade para acompanhar o enterro. Mesmo afastados, sentem-se na obrigação
de darem seus pêsames. O pertencimento a família, é uma marca constitutiva. Muitos são
primos em algum grau. Distantes ou próximos as relações são estabelecidas como
familiares, sejam para os afetos ou desafetos.
30
A relação com as águas também é estabelecida na pesca. Durante a ‘vazia’ (época
da seca) é um excelente momento para apanhar os peixes que ficam presos em partes do
rio que está secando. Com abundância, eles ficam ilhados e são apanhados com panos. A
alimentação com peixes é muito comum, e a pesca uma prática antiga. Contradição
expressa nas novas assimilações é percebida quando uma prática antiga é proibida.
Colocar armadilhas e redes, nos rios não é permitido ‘agora’ e pode ser perigoso pois: “as
pessoas denunciam” reclamam moradores. A caça também sempre esteve ligada a dieta
alimentar dos moradores. Porém, todos sabem que hoje isto “dá cadeia”, nos termos
locais. Rotineiros são os disparos a noite nas matas. Foi possível perceber como, em
algumas famílias, esta é a garantia de uma refeição com boa carga de proteínas, sem
negligenciar, no entanto, que as vezes é praticado como lazer, que tradicionalmente
movimenta jovens a se aventurarem nas matas. Também existem os que caçam com
intuito da venda. A paca, animal cobiçado na região é vendido na cidade ou nas
“redondezas”. A renda obtida com os animais abatidos serve tanto para as despesas como
para manter o equipamento de caça: munição, chumbo e pólvora. Muitos acreditam que
um dos motivos da diminuição deste animal, além da supressão da vegetação nativa, são
os que abatem para a venda, pois não respeitam as fêmeas que estão criando, não
respeitam os que são muito pequenos. Abatem todas que passam na “ceva” (local onde
os animais são atraídos, com milho ou abacate). Outro motivo seria, segundo os
moradores, a diminuição das matas. Com o crescente parcelamento dos solos as matas
são retiradas para construção, tanto para matéria prima como para limpeza do terreno.
Estas práticas que podem ser individuais ou coletivas oferecem uma importante
manutenção das famílias. O alimento, a utilização do rio, o preparo da pesca produz
sociabilidades importantes, como no trabalho coletivo, no pertencimento e cuidado com
os recursos naturais. Hoje, a bacia do rio Preto sofre com assoreamentos, e com
diminuição drástica do número de peixes, segundo pescadores locais.
31
Figura 9: imagens de um processo erosivo na bacia do Rio Preto. Esta erosão, surgiu com a abertura da estrada do parque, segundo os moradores. As águas pluviais encontram caminhos com menores atritos na estrada e se avolumam, contribuindo com a força do intemperismo.
Existem também os proprietários de terras que pretendem dificultar o acesso a
áreas de pesca. Placas e ameaças são presentes nas redondezas de rios que se tornaram
particulares.
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Figura 10: foto de placa que proíbe a pesca e a caça. Neste local existe um rio com ótimo potencial para pesca. O proprietário, senhor que mora bem afastado do terreno faz constantes ameaças aos que se aventuram com as varas ou redes em sua propriedade.
A pecuária bovina também está de forma ativa no distrito. Visualmente, pode-se
perceber que os animais são cruzas locais e que não tem genéticas puras demonstrando o
baixo perfil socioeconômico dos produtores22. Moradores relatam que a pecuária leiteira
perde espaço para a criação de animais machos para o abate. Segundo eles: “o leite dá
muito trabalho e pouco retorno”. São poucas as famílias que tiram o leite para a venda.
Mudar o tipo de pecuária é também transformar práticas comum na região. A produção
de queijo, requeijão e doces. Outro fator que se transforma é a relação com os animais,
com a lida e com a família. O trabalho com fêmeas demanda mais tempo e maior
dedicação, consequentemente mais mão de obra. Embora exista mais tempo para outras
atividades, percebemos como o leite há alguns anos era presente na dieta alimentar da
maioria das famílias. O leite e seus derivados agora são comprados por algumas famílias.
Percebemos com em algumas ele nem está mais na dieta diária. A introdução de novos
22 Existe nas redondezas do Tabuleiro, alguns pecuaristas que investem em genéticas. Por vezes, animais são levados para a cruza. Porém a manutenção genética de uma espécie não é simples envolvendo custos e gerenciamento. As cruzas ‘caipiras’, como são chamadas na região, são mais resistentes embora menos produtiva.
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produtos se torna uma realidade. Hoje comprar o leite engarrafado é mais vantajoso para
alguns que a retirada na propriedade.
Figura 11: foto de um bovino no cocho rustico. Esta vaca, como a maioria das que são criadas no Tabuleiro são cruzas locais. Sem trazer raças puras para a criação, apostam no gado “caipira” pela resistência a doenças e as intempéries do clima e pela falta de possibilidades econômicas. Embora o gado caipira tenha desvantagens quanto a velocidade de engorda de potencial de crescimento, eles são animais mais resistentes, segundo criadores locais.
O trabalho de mutirão é comum na comunidade. Foram várias ocasiões em que
encontramos homens e mulheres, de famílias distintas, indo para a lavoura juntos. Depois
vão na lavoura do outro e assim por diante. Se ajudam nas tarefas de lavrar a terra, semear,
capinar ou colher. Também existe o mutirão para a construção civil. A ajuda para
construir casas, currais, ranchos, ou paiol é comum, mas sempre com uma contrapartida:
“eu te ajudo você me ajuda!”
34
Figura 12: preparação para a festa de Reis, que ocorre em outubro as mulheres se reúnem para a confecção dos doces. O trabalho que se inicia dias antes envolve a retirada da matéria prima: leite, mamoeiros, batatas, figos. Entre as atividades corriqueiras, encontram tempo para coletar as raízes do mamoeiro, leite excedente, batatas e figos. Picar, ralar, cozinhar, em grandes tachos, uma tarefa árdua. Empenhada sempre por mulheres, é uma forma de manutenção de uma tradição e da cultura camponesa.
Na década de 1990, com a abertura da estrada e a facilidade do acesso à cidade,
alguns moradores do distrito se mudaram para a sede municipal. Em Conceição existe um
bairro chamado Vila Caetano onde grande parte dos que da roça partiram, se alojaram.
Na cidade é rotineiro relatarem: “A vila Caetano é do Tabuleiro”. Procurando maiores
possibilidades de renda, educação com mais qualidade e de fácil acesso e saúde o êxodo
rural foi/é muito presente no distrito, fato que gera complicadores como a chegada em
Conceição sem assistência, ficando à mercê de sua possibilidade e sorte, para conseguir
emprego e moradia e o desfalque de pessoal nas atividades rurais. Sem negligenciar a
força da migração, inclusive para a permanência da família rural no campo, apenas
atentamos para as dificuldades encontradas na roça como acesso a educação, saúde, renda,
que forçou a busca por outros locais.
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A abertura da estrada que poderia ser uma possibilidade de incremento de renda
para os moradores, para escoarem sua produção com mais facilidade, foi uma porta de
escape para o “sofrimento que era a roça” nas palavras de uma senhora que mudou para
a cidade no ano de 1999. Importante pensar esta noção de sofrimento, uma vez que muitos
relatam como as coisas estão mudando: facilitando por um lado e dificultando por outro.
Hoje existem escolas, postos de saúde, remédios, médicos, que auxiliam os sujeitos do
campo. Porém muitos colocam como dificuldades a reprodução de uma sociabilidade
própria: o trabalho familiar (diminuição da mão de obra), a obtenção de alimento (áreas
privadas que impedem caça, pesca ou agricultura), os plantios ( parcelamento do solo e
diminuição da área agricultável), manutenção culturais(festas que não seguem linhas
tradicionais).
A dimensão religiosa da comunidade perpassa pelas festas e rituais católicos.
Existem também os que procuram por benzedeiros e benzedeiras, raizeiros e raizeiros
com a “fé” nas práticas tradicionais de cura. Estes trabalhos são procurados
principalmente pelos mais velhos. Os remédios do campo são utilizados por todos, desde
os mais novos até os mais velhos. “Algumas doenças apenas são curadas com uma boa
reza ou com um bom chá” nos lembra uma senhora em uma visita feita ao posto de saúde.
Isto demonstra pouca “fé” na medicina moderna e uma maior valorização das práticas
tradicionais.
As festas religiosas no Tabuleiro são sempre muito esperadas pelos moradores do
lugarejo e de outros dos arredores. A festa do Rosário, a festa do padroeiro do Tabuleiro,
a festa de Nossa Senhora, e as diversas festas “do Cruzeiro”, são antigas e muito
prestigiadas. A reverência ao catolicismo é uma marca do Tabuleiro, que conta com uma
igreja católica do Sagrado Coração de Jesus. As aulas de catecismo ocorrem desde o ano
de 2010 e participam, este ano, 14 adolescentes. A igreja, é uma marca constitutiva na
formação do que chamamos aqui de modo de vida, sendo que também é disseminadora
de valores ocidentais, morais e cívicos (GOMES, 2009).
O álcool, em forma de bebidas, está muito relacionado ao cotidiano dos moradores
do distrito. A produção e comercialização de cachaça é uma atividade antiga. Moradores
relatam que o Tabuleiro sempre vendeu cachaça para toda a região. O engenho mais velho
do Tabuleiro tem cerca de noventa anos, segundo trabalhadores do local. A venda da
bebida ainda é feita para as regiões limítrofes, não muito longe, uma vez que nenhuma
tem selo ou certificação nos órgãos fiscalizadores. Comum ver, nos finais de semana, os
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moradores em bares bebendo e jogando baralho – a bebida e o jogo são elementos da
socialização masculina, uma das poucas opções de lazer.
Uma marca importante, que temos que ressaltar, é a dificuldade que algumas
pessoas, principalmente citadinos, dizem encontrar, em conviver com os tabuleirenses. É
comum alguém relatar que “o povo do Tabuleiro é difícil, não gostam de trabalhar em
feriados ou fins de semana, não alugam suas casas, não fazem comida para vender, não
se especializam, ou melhor não gostam de dinheiro”. Esta reclamação veio de um senhor
de Belo Horizonte que pretendia contratar mão de obra local. Outros dois sitiantes23
entrevistados, disseram ter que contratar mão de obra da cidade pois as obras feitas pelos
‘nativos’ demoram muito: “eles param em todas as festas e feriados” afirmara um dos
senhores que estava construindo. Este é um ponto importante na medida em que
percebemos os valores conflitando. A lógica de acumulação capitalista empregada nos
centros urbanos deve ser assimilada pelos habitantes do distrito. O tempo, deve ser uma
medição de dinheiro, e ficar parado, ou aproveitando algum festejo é sinal de preguiça
nos moldes urbanos.
Vários são os conflitos no contato com o turista que chega nos finais de semana,
que ficam por temporadas, ou até mesmo os que decidem sua morada no distrito. O carro
em relação a carroça, a moto e o cavalo, o rustico e o atual, o moderno e o atrasado. Jovens
não querem parecer ‘atrasados’ em relação a cidade ou aos citadinos. Valorizar a cultura
rural, não mais um atrativo, sob signo do ‘matuto’. Certa vez uma família de turistas que
ao perceber um morador local embriagado, pediu para que ele “olhasse os modos” pois
estava à frente de crianças. Esta atitude marca a ânsia de homogeneizar as relações sociais
e colocar um parâmetro do “certo” a seguir, do aceitável, do ético e do moral, mesmo que
nos moldes capitalistas. É certo que todos reprovam a situação do morador que estava
embriagado (influência de uma moral colocada pela igreja, escola, etc), porém
percebemos que muitos da comunidade, em outros momentos ajudam os ‘bicudos’ (nas
palavras locais), e não colocam modos a seguir.
Estes conflitos são percebidos em várias instancias. A iniciar pelas reformas que
são feitas nas estradas que dão acesso à cachoeira. Os moradores expõem que somente
estas são “olhadas” pelo poder público e que o restante da comunidade fica com suas vias,
23Valido ressaltar que existem os que moram em Tabuleiro e que não são nativos. São os que vem de centros urbanos em busca de novas possibilidades de vida. O termo neo-rurais é apropriado para designar estas pessoas.
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principalmente em período chuvoso, interditadas. Os primeiros a sofrerem são os
escolares dos primeiros anos do ensino fundamental (primeira a quinta série) que estudam
na escola municipal do distrito e dependem do transporte escolar. Os escolares da sexta
ao terceiro ano do ensino médio precisam se deslocar para a “cidade” ou para o distrito
mais próximo: Itacolomi, que fica cerca de vinte quilômetros do Tabuleiro, e sedia uma
escola estadual. Lá os alunos fazem até o nono ano, e depois, inevitavelmente precisam
ir para à “cidade” cursar o ensino médio. Os alunos já andam para apanhar o transporte
que não chega a suas casas. Alguns, do ensino médio e do fundamental, andam quarenta
minutos (cerca de três quilômetros) para apanhar a van escolar. Isso na madrugada, sendo
que o transporte passa por volta das seis da manhã. Com as chuvas, o carro escolar não
circula, fazendo os alunos, irem a pé para a escola ou faltarem. Como o período chuvoso
ocorre no fim do ano, e muitos alunos precisam fazer suas provas e trabalhos para
completarem o currículo escolar, acabam por perderem trabalhos importantes como os de
recuperação, pela inviabilidade da estrada. Fato que deixa os moradores descontentes com
o poder público, pois a única estrada calçada do distrito é a que vai em direção ao parque.
Em outubro de 2018 iniciou-se uma obra para calçar mais partes das vias que vão a
cachoeira.
É claro que todas estas transformações também geram oportunidades.
Contraditoriamente, as mudanças ocorridas atrelam os modos de vida urbano e rural num
emaranhando onde são necessárias práticas que visam o escape e o impedimento de uma
produção do espaço apenas com feições da classe dominante, que visa o lucro e a
acumulação de capital. É quando percebemos atitudes comunitárias de resistência e
permanência. A feirinha do Tabuleiro, organização civil surge como mecanismo para
conquista de renda com o crescente movimento de turistas. Embora durante as reuniões
da organização, muito se discuta qual seria o público dos comerciantes, se turistas ou
moradores, todas as feiras no ano de 2018 e 2019 fora em datas que se esperava
movimento turístico. A atividade da feira é de grande importância para algumas famílias
que comercializam seus produtos. A venda na cidade envolve muitos custos,
principalmente com o deslocamento. Embora muitos produtores ainda levem seus
produtos para a sede administrativa para venderem para atravessadores, a oportunidade
de vender no distrito, se torna uma estratégia de permanecia dos produtores no local.
É neste contexto de crescimento do turismo, que a associação comunitária toma
folego e ressurge depois de quase 9 anos de inoperância. O principal motivo de
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movimentar a ASCOTA (associação comunitária do Tabuleiro) segundo a atual
presidência, foi o esquecimento por parte do poder público para com o distrito.
Questionamos se estes esquecimentos ocorrem em todos os âmbitos, uma vez que as
promoções municipais de eventos, para o turismo esteve a todo vapor nos anos de
pesquisa. A direção da ASCOTA alega que o Tabuleiro tem muitos problemas com falta
de luz, saneamento básico, falta de acesso a saúde pública, transporte e assistência social.
Isso foi o motor da mobilização dos moradores. Hoje a ASCOTA está atuante e conseguiu
trazer para o distrito, no ano de 2019, em parceria com a EMATER MG (empresa de
assistência técnica e extensão rural do estado de Minas Gerais) uma doação de sementes
de hortaliças para os produtores locais e a confecção do CAR (cadastro Ambiental Rural),
documento das terras necessário ao produtor que pretende participar de programas para
assistência produtiva, como o PRONAF (programa nacional de fortalecimento da
agricultura familiar). Ainda, para o ano de 2019, estão sendo firmados convênios com o
SENAR-MG (Serviço nacional de aprendizagem rural), para cursos de capacitação do
produtor e da produtora do Tabuleiro.
Tabela 2 –Temas levantados nas reuniões
02/02/2019 04/05/2019
Água X X
Luz X X
Esgoto X X
Evento
turístico X X
Saúde X X
Transporte X X
Temas que mais apareceram nas reuniões da ASCOTA no ano de 2019. Nas duas reuniões onde foram feitas observações estes temas surgiram com mais intensidade. Das reuniões da associação foram conquistados: uma audiência pública na câmara municipal convocada pelo vereador, representante do distrito, para tratar dos assuntos de fornecimento de energia elétrica com a empresa responsável (CEMIG) e um projeto de confecção de fossas ecológicas nas casas que não são atendidas pela coleta e tratamento de esgoto. Fonte: Produzida pelo autor
Estas estratégias surgem como contradição em um momento em que o turismo interioriza
as relações capitalistas. Os produtores rurais que entram em conflito com a constante
especulação de terras e parcelamento do solo, com as consequências do movimento
pendular (lixo, esgoto, estradas), com a supressão da natureza, encontram brechas para se
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perpetuarem e se estabelecerem enquanto sujeitos do campo. As estratégias para
perpetuar os modos de vida camponês serão tratados adiante.
Sendo o caminho proposto pela pesquisa entender a relação do morador local com
o turismo enveredando para as mudanças no modo de vida e na produção do espaço com
advento deste fenômeno, estas são algumas considerações iniciais, para compreender
alguns elementos do modo de vida e da paisagem do distrito (por conseguinte, dos
atrativos turísticos).
A introjeção de uma realidade urbana ou de um modo de vida urbano transforma
a vida dos moradores em aspectos que não cabe julgarmos se positiva ou negativa. Porém
analisando as informações sobre as transformações da vida comunitária percebemos
como o turismo é uma forma de introjeção de novas práticas, de novas realidades. As
mudanças nas relações sociais trazem a necessidade de adaptação e sobrevivência, frente
as constantes exploração do capital.
De modo geral, as práticas cotidianas serão apresentadas como particularidades
de uma unidade, e em seguida fazemos uma breve análise do que chamamos de modo de
vida camponês.
1.2. Modo de vida no Tabuleiro: o produtor rural como camponês
Durante a pesquisa pensamos moradores do Tabuleiro como sujeitos do campo e
acima de tudo como camponeses. Por entender que existe um modo de vida próprio e
organizado por constituintes de uma vida atrelada ao espaço rural, a natureza, a família e
as pessoas. Neste sentido seguimos delineando quem seriam estes sujeitos do campo bem
como o que entendemos por modo de vida camponês
A forma particular com a qual os camponeses se relacionam com a sociedade,
principalmente a partir de alguns elementos, permiti-nos atrelá-los a uma unidade que
chamaremos de modo de vida. É importante ressaltar que esta unidade nem sempre se
estabelece da mesma forma em diferentes espaços e tempos. As características elencadas
foram as que se apresentaram da realidade a partir dar observações participantes e das
entrevistas. Porém apresentamos alguns elementos constitutivos que permitem entender
o modo de vida em Tabuleiro como um modo de vida camponês.
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A lógica de reprodução social e cultural, baseado na ajuda mutua, nos núcleos
familiares, se tornam particularidades e demonstram uma relação social distintas das
modernas-capitalistas. Estas singularidades são uma condição social e concreta do que
chamamos aqui de modo de vida camponês. Entender o camponês e seu modo de vida
surge como um mecanismo para compreender as alterações existentes no distrito estudado
através da introjeção de relações modernas.
1.2.1. Ser camponês: modo de vida e construção social no campo
O termo camponês, ou o que vem a ser o camponês são assuntos que frutificam
nas universidades e por vários anos fora tema de inúmeras pesquisas e estudos. Com
objetivo de compreender e melhor explicar a relação dos sujeitos do campo com seu meio
e consigo mesmos pesquisadores do mundo se empenharam em discutir a questão.
Tratamos os camponeses como uma forma de existir, de se relacionar. Assim partimos
da ideia do camponês como um modo de vida uma forma de ser, mas nunca um tipo racial. São
os que através de suas técnicas e alternativas constroem seu meio e se constroem numa relação
dialética, com a interface da necessidade do ambiente.
Algumas categorias e elementos são centrais nas análises do campesinato.
Importante não tratar o camponês e seu modo de vida de forma destina, uma vez que
entendemos que o ser camponês somente o é por aspectos de seu cotidiano. Ou melhor,
as formas de sociabilidades explicitas e implícitas no cotidiano, (re) criam as (im)
possibilidades do ser social. Segundo Shanin, (2008, p. 37)
[...] uma definição derivada da antropologia clássica, produzida pelo antropólogo chinês Fei Hsiao – Tung: “campesinato é um modo de vida”. Daí, o quanto este “modo de vida” pode dar origem a uma classe, é uma questão que depende das condições históricas. Podemos definir isso ao analisarmos as circunstâncias e verificarmos se eles lutam ou não lutam por seus interesses, então, sabemos se é uma classe ou não. Mas, em todas as condições, quando luta ou não luta, o campesinato é um modo de vida, e isso é essencial para compreendermos a sua natureza.
Entendemos que o fazer, a forma como relaciona com a terra, com o trabalho e
com a família dão forma e conteúdo ao que chamamos de modo de vida camponês. Este
seria um dos elementos que dão existência ao campesinato. Mesmo tendo a priori esta
categoria, alertamos para que não se reduza o camponês apenas ao seu modo de vida. Ou
41
seja, existem outros elementos que contribuem para que suas particularidades de
existência sejam enaltecidas.
O campesinato está marcado pela capacidade de flexibilidade e adaptação as
condições sociais, para produzir, material e culturalmente o seu modo de vida. As culturas
trazem categorias que estabelecem relações entre uma unidade. Para os camponeses,
categorias centrais surgem como norteadoras. Terra, família e trabalho, estão no cerne
das relações e são estabelecidas entrelaçadas, diferente das culturas tipicamente
modernas- capitalistas que trabalham com estas categorias de forma separada
(WOORTMANN, 1990). Tratar a terra, como mercadoria, e sem relações com a família ou
com o trabalho se tornou importante para a acumulação do capital. A fluidez necessária
a este sistema, encontra barreiras na análise e na concretização dialética destas categorias,
uma vez que necessita do seu rompimento para sua adequada organização. Grosso modo,
separar trabalho família e terra, é um dos caminhos delineado para a venda da mão de
obra, da mercantilização da terra e da família, através da propriedade privada e da
exploração da mais valia. Enquanto a sociedades camponesas criam uma relação intima
entre as categorias, as aqui chamadas de modernas capitalistas criam modelos
fragmentados como afirma (WOORTMANN, 1990, p. 23, 24)
Neste último tipo de sociedade, as três categorias acima referidas existem, mas elas podem ser separadamente umas das outras: a terra não é pensada em função da família e do trabalho, mas em si mesma, como uma coisa ou uma mercadoria. A família é também pensada em si, sem relação com o trabalho ou a terra, o mesmo acontecendo com o trabalho, que pode mesmo ser pensado como uma abstração, como um “fator”. Temos, então, no primeiro caso um modelo relacional e, no segundo, um modelo individual, tanto no plano das categorias, como no plano das relações sociais e das pessoas: estas são, nas sociedades camponesas, seres relacionais constituídos pela totalidade e, nas sociedades modernas, seres individuais constituintes da totalidade, vista esta como agregado de indivíduos “em contrato”.
As produções de mercadorias nas culturas camponesas também são particulares.
A circulação de mercadorias, que na reprodução ampliada do capital, se estabelece com
dinheiro-mercadoria-dinheiro (D-M-D), na camponesa é diferente: mercadoria-dinheiro-
mercadoria (M-D-M). Aqui percebe-se que muitas vezes a produção camponesa está na
preocupação com a mercadoria. Em uma se produz dinheiro para se produzir mais
dinheiro. Em outro necessitasse do que é produzido uma vez que estará para alimentação
e para suprir as necessidades básicas. Só então é possível vender o excedente, para se
comprar mais mercadorias, o labor necessário a produção de elementos que sirvam
também a subsistência é uma característica camponesa. O trabalho é para estas
42
comunidades um dos alicerces de sua organização. É necessário pensar, que os que lidam
com a terra, dependem de um ciclo natural onde as dependências com o clima, o solo a família
(mão de obra) são condicionantes. O trabalho agrário se diferencia e muito do trabalho exercido
nos centros urbanos uma vez que este último, não necessita aguardar as condições naturais para
sua efetivação. Assim, seguindo (BRANDÃO,1999 p.17) :
O trabalho com a terra não é como o que se faz na cidade, na fábrica, por exemplo, ou na oficina. Ele não obedece apenas ao voleio da vontade dos homens, ou aos jogos das relações de mercado de bens e do trabalho, O labor da lavoura lida diretamente com os mistérios da vida que reproduz. Não depende, portanto, apenas das leis naturais do ciclo vital de cada tipo de planta com que lida, mas da dança anual do tempo e dos seus efeitos sobre todos os seres vegetais e animais com que o lavrador lida, Durante o ano, depende da variação regida pelos períodos opostos de tempos de “seca” e “das águas” (que alguns chamam “inverno”)
Sua relação com o trabalho está no devir de sua (re)produção. A vida cotidiana se
estabelece com vínculos de trabalho e vida, que estão atrelados ao calendário agrícola
como bem demonstram Candido (2010) e Brandão (1999). Os períodos de maior
atividade estão entre os meses quentes e chuvosos, que promovem desde o preparo dos
plantios a sua colheita e possível beneficiamento. Nos meses que estão na vaga são
desenvolvidas atividades de labor comunitários, estabelecidos principalmente pelas festas
religiosas - que não se restringem a este período24 - e ou plantio de entressafras. Fato é
que o trabalho estabelecido está, em certa instância, atrelado aos condicionantes naturais,
de uma geografia local.
Da lavoura à casa, percebemos uma grande variedade de unidades de produção.
São várias as atividades que seguem as principais faculdades individuais e coletivas, com
forte marca de uma cultura patriarcal. A importância da casa como unidade de produção
é crucial para a manutenção da cultura. Porém, Brandão (1999) atenta para a dificuldade
das famílias de se sustentarem como unidade de produtiva frente a grande e constante
marginalização e expropriação que o capital oferece, daí mais uma dificuldade da vida
camponesa. Importante pensar como as novas formas de sociabilidade e de trabalho
alteram as comunidades. Candido (2010) coloca como o labor se transforma com o
avanço de uma cultura mercantil. O tempo, que em outros momentos, poderia estar para
24 Brandão (1999, p.23) segue dizendo: “O calendário dos ciclos agrícolas entremeia outros: o das festas religiosas do campesinato e de sua vida social dentro e fora do âmbito de uma comunidade, de um bairro rural, por exemplo. Não apenas se relaciona com eles, de tal sorte que as grandes festas, romarias e visitas entre parentes ocorrem com mais frequência nos períodos de ”vagantes”, mas, de certo modo, determina a variação dos ciclos da vida social.”
43
os afazeres pessoais, agora está ligado ao tempo mercadoria, e a dependência monetária
(re)configura a sociabilidade do homem do campo. O tempo “livre” que também poderia
ser utilizado para caça ou para a pesca, que seriam formas de alimentação mais proteica,
ficam à mercê das atividades que projetam uma possível acumulação de capital. Aqui as
necessidades ficam de lado para uma arriscada vida nas dependências monetárias.25 É o
caso de lavradores que venderam suas terras para aquisição de veículos ou para a
modernização de suas casas e hoje arrendam pastos ou terras de plantio para obter parte
de suas necessidades.
As famílias camponesas são uma unidade produtiva “onde todos os integrantes
em idade e com condições de fazê-lo exercem algum tipo de trabalho”. (BRANDÃO,
1999, p. 37). As famílias criam uma “economia doméstica” ou uma “economia familiar”
onde trabalham de forma a suprir suas necessidades básicas.
A economia familiar tem seus próprios modelos, suas próprias estruturas e seu próprio significado primordial que não desaparece. Por isso, sob certas condições, a economia camponesa é mais eficiente do que economias não-camponesas. Os membros da família e o modelo familiar básico de bem-estar econômico estão envolvidos de forma particular num sistema de uso do trabalho que não é trabalho assalariado, mas trabalho familiar. Daí a sua capacidade para resolver problemas que outros tipos de economia não resolveriam de uma maneira tão eficaz e pouco dispendiosa. (SHANIN, 2008, p. 27).
O campesinato estabelece suas relações estruturados em grupos domésticos.
Muitas de suas necessidades básicas devem ser conquistadas pelos familiares, que
também irão consumir o que produzirem e conquistarem. A pesca, os festejos, os plantios,
que são feitos entre as famílias, são bases constitutivas do modo de vida camponês. É de
suma importância que tenham mecanismo de produção que fujam as explorações e as
completas sujeições do mercado. Embora muitos produtores rurais do Tabuleiro estejam
atrelados a outras formas de produção, é notória a intima relação com a terra estabelecida
pelas famílias do local (Ver tabela 2). O próprio “isolamento” no passado (dificuldade de
acesso com veículos automotores, inexistência de estrada ) que por décadas marcou o
distrito estudado, necessitou que as relações estabelecidas fossem de cooperação segundo
os próprios moradores. Sem negligenciar os conflitos que existem, percebemos a
25 Aqui não é colocado uma visão de isolamento dos povos tradicionais. Como já citado no texto, percebe-se uma constante relação cidade-campo, porém está, se acentua quando o capitalismo se interioriza mais intensamente e influência os sujeitos ali presentes.
44
capacidade produtiva de algumas casas no distrito. A tabela a seguir demonstra como as
famílias trabalham com várias frentes de produção.
Tabela 3: produções de alguns dos produtores do Tabuleiro
Produção Número de casas com determinada produção Mandioca 19 Horta 18 Café 15 Porco 10 Banana 15 Galinha 17 Pato 4 Feijao 10 Milho 10 Amendoim 8 Boi 10 Vacas leiteras 7 Frutíferas 16 Arroz 4 Queijo 4 Maquinas para lida no campo 3 Animais de montaria e tração 12
Esta tabela foi produzida durante visitas na casa de produtores da região. Foram visitadas um total de vinte casas no período de 20/1/2019 a 20/6/2019.
Algumas produções familiares dependem de mais mão de obra e também de
espaço. É o caso das criações de bovinos, machos e fêmeas, e dos animais de montaria ou
tração. O baixo investimento dos produtores caracterizado pela dificuldade de acesso ao
capital, é exemplificado na pequena presença de maquinários para a lida no campo. Na
maioria, os produtores contam apenas com o girico (trator com implemento agrícola
destinado a arar a terra) durante os meses da primavera. No restante do ano os trabalhos
são executados pela força manual, desde o preparo da terra a limpeza dos pastos. As
atividades que seguem uma rigorosa divisão sexual e desigual do trabalho são feitas nos
núcleos familiares ou nos grupos domésticos que de acordo com Brandao (1999, p. 43,
44) são:
[...] também, ao longo de seu ciclo de vida pequenas equipes corporadas cujo trabalho deve a cada ano produzir pelo menos para o consumo familiar e a cota de excedentes cuja comercialização complementa a sua própria subsistência.
Desta maneira as famílias são também uma base constitutiva do modo de vida
camponês. As atividades laborais estabelecidas dentro das casas, do terreno, do quintal,
trazem os alicerces para uma vida de constantes mudanças e adaptações.
45
CAPÍTULO II – A produção do espaço no séc. XXI uma leitura de Henri Lefebvre
O objetivo desta secção é pensar as consequências da implicação dos ´processos
de ‘modernização’ que ocorrem em Tabuleiro na produção do espaço. Assim, seguiremos
analisando Lefebvre (2007) pois este pensador elaborou uma vasta e densa contribuição
para a análise da produção do espaço. Seguindo Lefebvre (2007) e Seabra (2003)
percebemos que é neste ‘nível’, da produção, que ocorrem os conflitos. Entender a
produção do espaço no Tabuleiro, é pensar como as relações entre as formas de
acumulação ampliada do capital e a comunidade local se conflitam seja na necessidade
de terras para plantio que hoje são fragmentadas pela especulação imobiliária, seja nas
consequências de um turismo que traz problemas e possibilidades. Grosso modo, implica
em compreender e analisar as implicações de uma produção do espaço pautada na lógica
capitalista e as contradições vivenciadas por moradores de uma área rural.
Partindo do pressuposto legado por Lefebvre (2007) que as práticas sociais são
práticas espaciais, analisaremos um ‘momento’ histórico do distrito do Tabuleiro. Se trata
do ‘momento’ em que o fenômeno do turismo se torna presente na vida da comunidade.
Porém é importante ressaltar que este ‘momento’, remete a outros. Trata-se dos que já
ocorreram e dos que ainda ocorrerão. Nesta perspectiva, analisamos as (im)possibilidades
de concretização de um modo de vida urbano, que rompe os nexos constitutivos dos que
da terra dependem. Importante lembrar que alterações foram feitas anteriormente ao
fenômeno do turismo26, porém não com a intensidade que agora é percebido, segundo os
próprios moradores. Seabra (2003) diz que a produção do espaço se elucida pelas práticas
sociais. Uma prática social tem existência concreta. Neste nível, pensamos o Tabuleiro
como lugar apropriado para pensar as práticas que racionalizam e operam os espaços com
ânsia acumulativa e as “práticas constitutivas”, nos termos de (SEABRA, 2003) do modo
de vida dos moradores do distrito.
Nestes termos veremos as várias temporalidades se circunscreverem no espaço e
perceber a instituição de práticas modernas, e as condições preexistentes, que não foram
26 Muitos foram os homens que se aventuraram na migração para as cidades na década de 1970, 1980. Estes, frequentemente enviavam dinheiro para suas famílias (fato importante tendo em vista que o dinheiro pouco circulava na região nas décadas descritas). No capitulo dois trataremos das transformações que a circulação do dinheiro gerou na comunidade.
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aniquiladas pela primeira. Analisaremos de que forma os “processos de urbanização”27
ocorrem no Tabuleiro.
Acreditamos que este estudo oferece caminhos para elucidar a questão central da
pesquisa na medida em que nos aproxima das práticas espaciais dos moradores do
Tabuleiro e o embate de práticas diferenciadas. Ainda percebermos a complexidade dos
conflitos que (dês) articulam a vida dos moradores.
Segundo Lefebvre (2007) o espaço sempre esteve relacionado as elaborações
matemáticas, cartesianas, onde a linearidade era imperativa. As transformações que a
própria filosofia sofrera ofereceram bases para a sustentação de um espaço amorfo,
passível e receptáculo. Através de uma formulação ´própria’, de cada ciência os espaços
são classificados. Trazer uma perspectiva onde o espaço contem traços e reflexos da
organização social seria uma novidade:
O espaço! Há poucos anos esse termo não evocava nada a não ser um conceito geométrico, o de um meio vazio. Toda pessoa instruída logo o completava com um termo erudito, tal como “euclidiano”, ou “isotrópico”, ou “infinito”. O conceito de espaço dependia, geralmente se pensava, da matemática e tão somente dessa ciência. O espaço social? Essas palavras causavam surpresas. (LEFEBVRE, 2007,p. 19).
No estudo que Henri Lefebvre faz em seu renomado livro “The Productions of
Space” (2007) surgem noções que oferecem subsídios para analisar de como se organiza
a produção do espaço em tempos de acumulação capitalista. Recorrendo exaustivamente
a seu método progressivo regressivo em que a vida cotidiana no mundo moderno está
num constante movimento de ir e vir e se contrapões as determinações gerais, estabelece
as interfaces de conexões que dão existência ao espaço.
Chegar num entendimento das formas que se produzem o espaço é um caminho
para sua intervenção. A práxis social, que gera uma transformação, deve resgatar o valor
de uso dos espaços da intenção de transforma-los unicamente em um valor de troca. Os
espaços diferenciais, que surgem dos espaços abstratos em conflito com os espaços
sociais deve ser entendido e aprofundado.
27A expressão ‘processos de urbanização’ é utilizado por Seabra (2003) sendo a espacialização dos processos relacionados a modernidade ou a modernização. Isto não se limita ao urbanismo ou a arquitetura, mas vai até as práticas sociais, sendo que a reflexão e social, econômica e política.
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Os espaços abstratos, espaços de expropriação, trazem contradições do passado,
que, através da história se firmam no presente com novas contradições, oriundas do modo
de produção capitalista. Segundo Lefebvre (2007) o capitalismo somente conseguiu se
manter pela transformação da produção de coisas para a `produção do espaço. A
importante e extensa noção de espaço abstrato será apontada na pesquisa pois é
fundamental para entender o que chamamos aqui de resistência política das práticas
sociais que ocorrem no Tabuleiro.
A expansão espacial do trabalho é o próprio espaço. Se existe uma abstração pelo
próprio trabalho, dizer-se que o próprio espaço recebe conotações de abstrato. Este seria,
quantificado e formal. Coloca de forma simultânea a homogeneização, a fragmentação e
a hierarquização. Embora seja hegemônico e tende a eliminação das diferenças, não o é,
pois não a elimina por completo. A fragmentação vem pela propriedade privada que
tritura os espaços e a hierarquização é estabelecida entre centros e periferias, com escalas
de poder. Controlado e planejado para orientar a lógica de produção, estabelece uma
lógica burocrática que visa a repetição e o controle. Engendra a eliminação das diferenças
espaciais, as que são ligadas a natureza, aos corpos, das idades, das etnias etc. Mostrado
como estratégico e político, se torna um meio de controle para que existam
(re)formulações do capital e do estado. As contradições internas deste espaço geram
possibilidades e surgem com suas características mais peculiares. É neste contexto que
Lefebvre (2007, p. 6) traz o conceito de espaços diferencial.
No seio desse espaço, a reprodução das relações sociais de produção não se consuma sem um duplo movimento: dissolução de relações, nascimento de novas relações. De modo que o espaço abstrato, em que pese sua negatividade (ou melhor, em razão dessa negatividade), engendra um novo espaço, que terá o nome de espaço diferencial.
Embora o espaço abstrato seja marcado pelo controle, pela expansão do capital,
por vezes este escapa dos que dele se servem (o Capital e o Estado). Isto ocorre, porque
mesmo no espaço abstrato, contem contradições internas. O concebido e o vivido, o local
e o global a homogeneidade e diferença se conflitam gerando possibilidades de entender
como alguns grupos podem assimilar a lógica do espaço de forma alternativa, onde as
diferenças se somam, e que não se restrinja as demandas em torno do trabalho capitalista,
e não operam ou gerenciam o espaço com viés lucrativo, nos termos capitalistas.
(LEFEBVRE. 2007) chama atenção para os grupos que lutam dentro dos espaços por
novas formas de assimilação e produção do espaço. Perceber como alguns lugares operam
com o espaço sem subordina-lo ao econômico e subordinado ao valor de troca, nascem
48
as resistências deste espaço, que podem engendrar novas formas de assimilação. Quando
surge, em Lefebvre (2007) o espaço diferencial, percebemos que ele é produzido pelas
contradições do espaço abstrato:
O espaço diferencial teorizado por Lefebvre é o espaço engendrado pelas contradições do espaço abstrato, e, portanto, decorre da dissolução de relações sociais orientadas pela homogeneização, fragmentação e hierarquização de objetos e sujeitos abstratos, e que implica no nascimento de novas relações sociais, radicadas no uso dos espaços e nas suas qualidades múltiplas. (BASTOS, 2017, p. 254)
A vida cotidiana transformada em suas nuances e práticas “diferenciais’ do
espaço. O espaço social religa o que o espaço abstrato desconecta. Seria um contra
projeto, onde as resistências a hegemonização surgem em algumas instâncias. Uma forma
diferencial de produção do espaço, que contrapõe a racionalização coercitiva hierárquica
e moldada pelas forças do Capital e do Estado. Os desvios, ou (détour) termo utilizado
pelo autor, deve ser estudado na produção do espaço, sem negligenciá-lo, sob pena de
perder seu sentido. Os desvios seriam estas práticas (re) criadoras de relações com o
espaço. É necessário, segundo o autor, fazer um contraponto entre détour e apropriação.
O desvio, seria o momento em que as comunidades se pensam em relação a apropriação
do capital. É um momento criador, que estimula as diferentes aprendizagens.
Experiências e práticas que se inscrevem no espaço e que explicitam as tensões de uma
lógica de mercantilização. Entre os desvios e a apropriação do espaço, Lefebvre (2000)
segue se orientando com a premissa de “mudar de vida e de sociedade” levando a reflexão
para a construção de novos espaços possíveis. Assim leva a discussão para os acertos e
erros de comunidades, efêmeras ou duradouras, que já tentaram inventar uma “vida nova”
por meio de um “espaço novo”. Neste ponto, a análise do détour, é fecundo para a
concepção de um contraponto as formas de dominação já estabelecidas. Porém ele só será
estabelecido quando conseguir novas formas arquitetônicas, urbanísticas e territoriais.
As novas ideias e representações, bem como os valores e interesses novos, precisam vir inscritos com um processo criativo total, da criação de um espaço inteiro. O espaço diferencial requer a organização, a disposição dos elementos essenciais que compõem um corpo de outra maneira, tanto quanto necessita de outras estéticas. (BASTOS, 2017. P 255)
Os espaços rurais são locais privilegiados para a análise das resistências que
existem frente a mercantilização do espaço e da vida. O potencial criador dos moradores
de áreas rurais é um impulsionador de produção de espaços diferenciais. As práticas
cotidianas, embora emaranhadas na lógica de reprodução capitalista apreende momentos
49
de suspiro. Tais atitudes que se formam com caráter político de resistência são assimiladas
e (re) produzidas pelos moradores do Tabuleiro. Embora exista uma grande produção de
espaços abstratos que no distrito estudado, tem um peso do turismo, analisamos as
possibilidades (re)criadoras, enveredando para as contradições colocadas pelas forças
capitalistas e Estatais.
2.1. Turismo em uma análise “processual”
O turismo, enquanto produção científica, acompanhou um fenômeno mundial pós
década de 1970. A fundação do curso de turismo no Brasil é um marco deste início. As
produções acadêmicas após esta nova cadeira se avolumaram e o turismo, mesmo em uma
época onde a ciência é questionada em suas fragmentações, luta por um espaço na
academia (GOMES, 2009). As perspectivas que seguem são em sua grande parte
mercadológicas e com um viés economicista estabelecendo a economia do turismo
(GOMES, 2009). Porém, a autora também alerta para os que procuram fazer uma crítica
mais incisiva como no caso de Ouriques (2005). Este autor, defende que existe uma
predominância de modelos analíticos que não aprofundam na complexidade do fenômeno
turístico. Os discursos pró-turismo são absorvidos sem os devidos estudos acadêmicos,
que não devem negligenciar a complexidade do tema.
Não se trata de fazer um percurso de todos (dês) caminhos teóricos que as
ciências– e precisamente o turismo -passaram ou passam em relação as possibilidades de
lucro. Diz-se deste momento para pensar o utilitarismo das ciências em que existe uma
“crise da sociedade do trabalho” (ALFREDO, 1999, p. 02) e precisa eleger novos locais
para a exploração. O estudo do turismo deve fugir das amarras das ciências, que
pretendem mais propor do que entender, e este propor está intimamente relacionado aos
moldes de exploração capitalista. São os que através da descrição pretendem oferecer uma
maneira menos impactante para o turismo. Mesmo que em alguns momentos surjam
modalidades de turismo que pretendem ser mais amenas, sempre, nestes casos temos a
proposição de como deve ser praticado isto ou aquilo. Pretende-se com esta pesquisa
chegar em um nível onde as conexões estejam estabelecidas em sua profundidade, e que
possamos, através do conhecimento, romper com interesses de classe.
Trata-se, portanto, de uma luta titânica contra o imediatismo tão presente num momento em que a "guerra" quase declarada pela
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inserção num mercado de trabalho em crise se faz presente, exigindo, portanto, que todo conhecimento signifique imediatamente uma garantia de emprego. (ALFREDO, 1999, p. 40).
Esta luta contra o imediatismo, travamos quando alisamos o turismo como um
fenômeno contemporâneo, sendo assim é resultado de condições pré-existentes que
“podem estar além dele mesmo” (ALFREDO, 1999, p. 41) Nesta pesquisa trabalhamos o
turismo não com um fim em si mesmo, mas como um resultado de processos que levaram
o firmamento desta prática. As ações do passado se apresentam no presente, e as relações
capitalistas impõe a sociedade do consumo. Pensar a sociedade e quais os seus
mecanismos atuais para arrancar lucro dos que antes não se associavam a mais valia, é
um imperativo, e estudar como este sistema expande seus nexos, um trilho seguido aqui.
Portanto estudamos as questões de como o capitalismo se expande através do turismo.
Desta forma, acreditamos que pensar esta prática como um objeto de estudo, é recorrer
no imediatismo. Segundo Alfredo (1999, p. 40)
O que ocorre de fato, é que o turismo passa a ser encarado como objeto de análise e aí o pensar sobre o mesmo recai numa busca descritiva. Em outras palavras, o fato de ele não ser admitido como fenômeno impede que o conhecimento faça o seu profundo e necessário caminho para encontrar a essência, ou seja, o movimento do vir-a-ser existente no próprio presente. Somente uma perspectiva processual permite compreender o atual como momento de um percurso maior. Não se pode, do ponto de vista aqui expresso, portanto, eleger o turismo como objeto de estudo, mas sim como fenômeno através do qual caminha-se para um percurso de maior profundidade.
Nestes termos pretendemos chegar em uma forma de análise que tenha um
conteúdo dialético, que reconheça seu essência e aparência. Estima-se vencer as
contradições do pensamento aprofundando nos temas, dando suas condições históricas,
para não naturalizarmos processos que são de caráter de classes. O pensamento processual
deve fazer uma contraposição do pensamento ‘promotor’ pois:
(...) apesar de querer solver as questões ligadas à natureza e ao nível de renda social pode, conscientemente ou não, apesar de sua aparência crítica, estar repondo os pressupostos de uma forma social contra a qual ele mesmo se diz debater. O reformismo, portanto, recai na crítica da reprodução das relações sociais de produção e se insere na totalidade social como mediação que elude o aprofundamento do conhecimento em direção aos termos que compõem as contradições do mundo contemporâneo. (ALFREDO, 1999, p. 55- 56)
Percebemos esforços de promoção no caso da pesquisadora Dora Ruschmann
(1997) que busca colocar formas sustentáveis de organização do turismo. Mesmo
alocando, em alguns momentos críticas as questões mercadológicas, recorre no erro
reformista, que apenas ameniza as contradições, não sendo incisiva. Fazendo uma análise
51
com bases econômicas e de planejamento, a autora pretende fazer um manual de
utilização dos espaços pelo turismo de forma menos agressiva. Percebemos questões
teóricos quando analisamos alguns trechos. Segundo a autora:
O turismo passa a considerar os problemas do meio ambiente. A partir dos anos 70, a qualidade do meio ambiente começa a constituir elemento de destaque do produto turístico: a natureza e as comunidades receptoras ressurgem no setor dos empreendimentos turísticos (RUSCHMANN 1997 p. 21)
De forma recorrente encontramos o termo meio ambiente balizando pelo turismo.
As questões que envolvem certa harmonia entre esta prática e a natureza é expressa em
algumas modalidades como o Ecoturismo. Questionamos aqui está dualidade colocada
entre as chamadas “comunidades receptoras” e meio ambiente. Acreditamos que trabalhar
com conceitos genéricos como “meio ambiente” sem, no entanto, questionar como este
se apresenta nos dias atuais é um problema, uma vez que este conceito não é
autoexplicativo e seu significado não é dado a priori. A mesma autora completa: “O
produto turístico natural baseia-se na venda dos aspectos ambientais das localidades”
(RUSCHMAN, 1997, p. 25). Pensar estes aspectos ambientais é pensar a natureza em
dualidades, e este não é o caminho sugerido, uma vez que pensamos o ambiente de forma
dinâmica, que abarca as relações sociais, em contraposição à perspectiva da autora,
seguimos pelo caminho da problematização da perspectiva ambientalista na prática do
turismo, pois intensifica o caráter mercantil da natureza.
Partimos da compreensão de que o homem se relaciona e produz seu meio ao
mesmo tempo em que é produzido. Ressaltamos que as relações sócio espaciais que
formam e são formadas pelo turismo também fazem parte do meio ambiente, da maneira
que fica contraditório falar de um separado do outro. Tratar o meio ambiente como algo
estático é “preservá-lo” em prol da manutenção dos atrativos turísticos. Esta linha de
raciocínio denota a exclusão das comunidades, sobretudo quando trata-se de
“comunidades receptoras”. Pensa-las assim, nos indica uma forma de minimizar as
culturas não urbanas, transformando-as em apenas receptáculos de ações, e que não
resistiram a atividades turísticas. Desta forma questionamos: tratar estas comunidades
como receptoras não seria negligenciar sua incursão na história? Ou melhor, seria impedi-
los de um movimento, onde ficassem presos nas tradições? E ainda, a cultura urbana é
uma aniquiladora de culturas capaz de aculturar uma região como um todo? As
comunidades necessitam do turismo para existir? Estudar a complexidade abarcada pelo
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contato entre culturas que nem sempre são iguais se faz um imperativo pensando a cultura
como algo não estático. A mesma autora, pretendendo fazer uma crítica afirma:
As ações mercadológicas do turismo geralmente apresentam aos turistas dos países desenvolvidos cenas e manifestações culturais dos países em desenvolvimento de forma inexata e romantizada, contribuindo para a criação de uma imagem simplista e generalista. A fim de atender a essas expectativas, as cerimônias tradicionais, os festivais e costumes são apresentados como show especialmente preparado para atender à curiosidade e ao interesse dos visitantes (RUSCMANN, 1997, p. 53 - grifo nosso)
Porém seguimos indagando, o que seriam estas formas “inexatas” de
manifestações? Existe uma forma correta e exata? As culturas sempre tiveram suas
transformações e hoje muitos que produzem utilizando a terra e com uma cultura própria
assumem outras culturas, mas não como amorfos, mas com filtros que adquirem caráter
políticos e de resistências. A problematização de culturas e tradições será abordado nos
capítulos subsequentes para que possamos entender a assimilação de culturas urbanas no
Tabuleiro, e se existe uma imposição de tradições, onde as culturas devem estar em
harmonia com sua venda. Ainda nos posicionamos entendendo a cultura como algo
móvel, e que as culturas rurais não são passivas, assim sendo desprezível a noção de
“resgate cultural”.
Outro ponto identificado, a partir da literatura sobre turismo, é aquele em que
coloca o turismo como um caminho para as populações rurais a partir do discurso da
pluriatividade, com vistas à geração de emprego e renda. As questões levantadas no
decorrer da pesquisa pretendem analisar se a absorção da mão de obra local se faz efetiva
e se a produção do espaço nos moldes capitalistas é uma ‘alternativa’ para a comunidade,
assim como Gastal (2002) e Ruschmann (2000, 1997) defendem. Pensar o trabalho
abstrato e as formas típicas de acumulação capitalista passiveis de gerar mais valia num
momento de modernização em uma área rural é também estudar a absorção desta lógica
do capital pela população. Se outrora não poderíamos falar de mercado de trabalho,
levando em consideração as diversas formas que esta categoria assume, hoje os que não
assimilam a necessidade do assalariamento ou a lógica da exploração, são taxados de
preguiçosos ou improdutivos.
Ao pensar o turismo relacionado ao modo de produção capitalista do espaço,
Ouriques (2005) estabelece que, quando os pesquisadores dissociam o tempo de trabalho
do tempo livre não é possível compreender que o valor de uso está, via de regra,
subordinado ao valor de troca, e o lucro, manifestação da mais-valia, se torna o propulsor
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de qualquer atividade econômica. No turismo se predomina o “tempo de Capital”
(OURIQUES, 2005). Seria o tempo em que o sujeito que consome o produto turístico,
reproduz também a lógica do capital.
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CAPITULO III – A produção do espaço no Tabuleiro: caminhos para análise de uma vida em Travessias.
A elaboração e construção do espaço no Tabuleiro envereda para a criação de
espaços abstratos geridos pelo turismo auxiliado pela força do Estado e dos espaços
diferenciais criados pelas resistências dos que moram e produzem no local. Nestes termos
seguimos analisando as práticas que ocorrem no distrito para identificar estas novas
territorialidades que são criadas para compreender as possibilidades de resistência a um
sistema que vilipendia os trabalhadores. Em Tabuleiro, uma marca constitutiva das forças
capitalistas e urbanas é a introjeção do poder público na manutenção do espaço. Falamos
agora das determinações impostas pelo plano diretor. Uma primeira aproximação de
organização do território por parte do poder público municipal se inicia. Sendo que os
moradores sempre dizem que antes da prefeitura se preocupar com o Tabuleiro (isto se
inicia com a chegada da luz no início da década de 1990) , tudo era feito pelos próprios
moradores, como “consertar” a estrada ou dar manutenção nos espaços públicos. Aqui
alguns conflitos podem ser percebidos. É o caso das contas de luz. As contas nas áreas
urbanas, são mais caras que nas áreas rurais. A luz que chegara em meados da década de
1990 não chegou para todos e muitos elaboraram estratégias para não ficar sem energia.
É o caso dos padrões que são divididos. Em alguns casos, mais de uma casa utiliza o
padrão. Isto ocorre, pois para se conseguir uma rede própria, não é tarefa fácil, pelos
gastos e pela burocracia. Esta captação de luz em conjunto em um único padrão gera
problemas, principalmente para os empreendimentos da região. As pousadas sofrem com
a luz que é “fraca” e não consegue aquecer os chuveiros. O banho quente é um alento
para os turistas, que pretendem descansar com ‘conforto’ nas áreas de pousio da região.
Enquanto os problemas da luz não são resolvidos, os comerciantes de pousadas (que são
em sua maioria, todos de ‘fora’) ficam à mercê das alternativas dos tabuleirenses: dividir
padrão. Esta desordem causada pela distribuição de luz, é assimilada e denunciada
principalmente pelos proprietários que vem de centros urbanos, uma vez que os
moradores do Tabuleiro, por anos não tiveram banheiros, ou utilizam de serpentina para
aquecer seu banho. A convivência com os que trazem “territórios urbanas” para os
moradores da região, nem sempre ocorre de forma pacifica. Estas alternativas geradas
pelos moradores, como a divisão de padrões, vêm anteriormente ao fenômeno do turismo.
Hoje com esta prática percebemos a interação da vida moderna com artimanhas geradas
pelos moradores. É neste contexto que percebemos que as novas formas de atuação no
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espaço, vinculadas principalmente pelo turismo, não anula as formas precedentes, sendo
uma coexistência e uma simultaneidade destas interações.
As terras que agora são medidas para que não sejam vendidas com tamanhos
menores daqueles propostos pelo plano diretor, vem assegurar uma preocupação do poder
público: evitar o parcelamento do solo em pequenos terrenos e uma possível favelização.
As necessidades estéticas e de planejamento urbano, entrando em uma área rural.
Importante ressaltar que grande parte da região determinada como área urbana se encontra
com roças e com atividades agropecuárias. A proposta do novo plano diretor (2013), que
está (ainda) sendo confeccionado é crescer esta área em um raio de dois quilômetros do
“centro”. Hoje este raio é de um quilometro.
A recente reforma da praça vem afirmar esta convicção. Com uma nova
arquitetura, com iluminações feitas com led’s, novo gramado, novos jardins e um
anfiteatro, a reformulação da praça da igreja segue padrões arquitetônicos que primam a
estética em detrimento do convívio. Os jardins e a grama, não são mais locais apropriados
para as brincadeiras, e os espaços de convivência deste local se transformaram em
atrativos turísticos. A praça que não é apenas uma confluência de ruas é um espaço
importante de encontro. Os comércios que circundam a praça são gerenciados pelos
moradores e nativos do Tabuleiro.
A chegada de pessoas de “fora” é uma característica presente. Gerenciando os
espaços com limites distintos dos percebidos entre os nativos, em alguns casos restringem
passagens de servidão, colocando telas ou cães bravos, impedem acesso ao rio, ou ainda
fazem barragens nos córregos e cursos de água alteram o espaço com seus intuitos.
Chamamos estas práticas de “territórios urbanos”, que vem a diminuir as possibilidades,
ou melhor, a “perca de espaços” dos Tabuleirenses. Um festival de música que ocorre
desde o ano de 2016 em Tabuleiro, é um desabrochar destes territórios. As músicas que
embalam estes eventos (como o Festival de Jazz), nem sempre agrada os moradores que
se organizam em outros espaços para fazerem suas festas com carros de som. Esta divisão,
é uma contradição de culturas que se encontram no Tabuleiro.
Se fizermos uma análise das transformações engendradas pelo capital, temos o
dinheiro como marca constitutiva desta imersão moderna dos habitantes do distrito.
Muitos relatam, que antes da abertura da estrada o dinheiro quase não circulava na região.
Salvo em alguns casos onde pessoas vendiam farinha de mandioca para a cidade e alguns
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que migravam em busca de trabalho. Estes, também são agentes de modernização, que
levam a cultura urbana para o Tabuleiro. Porém é reconhecido que nem sempre estes são
modernos no modo de viver. A economia mercantil, alavancada com a entrada de turistas,
a facilidade de idas à cidade, geram uma nova paisagem e uma nova relação entre as
pessoas:
O advento de uma economia do dinheiro, alega Marx, dissolve os vínculos e relações que compõe as comunidades “tradicionais”, de modo que o “dinheiro se torna a verdadeira comunidade”. Passamos de uma condição social em que dependemos de maneira direta de pessoas a quem conhecemos pessoalmente para uma situação em que dependemos de relações impessoais e objetivas com outras pessoas. Com a proliferação das relações de troca, o dinheiro aparece cada vez mais como “um poder exterior aos produtores e independente deles”, razão pela qual o que “originalmente surge como meio de promoção da produção torna-se relação alheia” a eles. A preocupação com o dinheiro domina os produtores. (HARVEY, 1992, p. 98).
As vendas de terrenos se avolumaram pós abertura da estrada e a entrada do
dinheiro, fora, em algumas famílias uma novidade, que permitiu uma mudança nos meios
de vida. Alguns, utilizaram o dinheiro para reformar suas casas. A ideia de modernizar a
habitação foi/é muito comum. Casas que foram feitas de adobe (tijolos de barro) e de chão
simples (cimento queimado- ou terra batida) foram substituídos por azulejos, casas de
alvenaria. Janelas de madeira por janelas de ferro. O banheiro, que muitos ainda hoje,
principalmente os mais velhos, não o usam, foi uma busca de muitas famílias. Esta
contradição se apresenta como uma força das ideias urbanas. Mesmo sem ter o costume
de utilizar, banheiros foram construídos. Em uma visita a casa de um produtor de
amendoins, ao me deparar com o único banheiro da casa, percebi que este era um deposito
de abrigar sementes. Os azulejos e a laje protegem e dão condições climáticas para a
“dispensa”. A lógica urbana de utilização de banheiro fora adaptada necessidade do
camponês. Mesmo com a fluidez imposta pelas forças do capitalismo avançadas com o
turismo, os produtores conseguem artimanhas para concretização de suas práticas, ou
melhor, de sua vida.
A venda de terras ocorre com maior frequência nos dias atuais e se torna uma
importante fonte de arrecadação de famílias que pretendem conquistar seus objetivos
materiais: expandir a produção, migrar para a cidade, melhorar uma construção, adquirir
veículos, etc. Os lotes, com 500m2 chegam a custar vinte mil reais e são facilmente
encontrados. Muitos já foram comprados há anos, mas se encontram “parados”, apenas
com funções especulativas (os constantes boatos de calçamento total da estrada que
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oferece acesso ao distrito geram discussões e também anseios. De certo esta seria uma
grande mudança no local. Porém não existe nenhum plano municipal para o calçamento
ou asfaltamento completo da estrada).
Uma consequência das vendas de terrenos surge quando vemos os animais que
estão soltos nos “corredores” (estradas). Estes entram nos quintais ou nas plantações.
Muitas vezes sobrevivem de pastos que nascem nas bordas das estradas. Dois foram os
motivos identificados. O primeiro é de animais que pulam a cerca ou que conseguem
escapar de alguma forma. O segundo ocorre pela falta de pastos, decorrente da
comercialização de terras. Principalmente os mais jovens, em algumas famílias, ficam
sem possibilidades de heranças de terras pois os mais velhos as venderam. Com alto valor
dos terrenos muitos não conseguem comprá-las. Embora não tenham terrenos para o
pasto, não largam um antigo costume. A montaria. Criar animais, éguas, mulas, cavalos
ou burros, para transporte ou lazer é rotineiro.
A especulação das terras, mesmo por parte dos produtores é identificado como um
problema para as questões socioambientais. Os friáveis latossolos da região, são
susceptíveis a erosões, principalmente nos períodos chuvosos. Os pastos recebem animais
destinados ao abate. Via de regra, os animais são machos. As vacas, geram problemas de
manejo, pois precisam de uma atenção maior, uma vez que a não retirada do leite acarreta
em complicações como a Mastite (inflamação do úbere - “mamas”- pela acumulação de
leite). Os animais machos, não precisam de grandes manejos, e podem apenas ficar no
pasto. Recebem vacinas e sal em alguns casos. Os machos oferecem uma dupla vantagem.
A terra especula, e não está ‘parada’. Porém o pisoteamento (compactação do solo que
impede a infiltração, formando assim as enxurradas e o início do processo erosivo), aliado
as formações pedológicas, geram constantes erosões nas terras íngremes do Tabuleiro.
Diversos são os córregos assoreados da região. Estes córregos, que são/eram muito
utilizados para pescaria hoje são atravessados pelas pessoas com “água na canela” como
relatam moradores.
Estas influências que surgem, principalmente com advento do processo turístico
tem uma marca constitutiva dos interesses de modernização da região. Martins (2000)
discute as possibilidades de conscientização ou alienação do homem simples e também
de seu fazer histórico. Segundo o autor, na perspectiva da modernidade atual, as
incoerências, limites, paradoxos e anomalias, são evidentes, sendo necessário pensá-los
como meios da compreensão sociológica. O cotidiano e a cotidianidade estão inseridos
58
na lógica moderna, que segundo o autor não se deu de forma homogênea no Brasil. As
constituições da vida estão em um nível das relações sociais. Assim este momento é de
pensar os elementos da concretização da vida moderna, pensando como a vida cotidiana
no Tabuleiro é mediada pelas transformações da modernidade.
Dizendo sobre a “modernidade anômala” Martins (2008) traz a perspectiva de
tratar a vida social do homem simples e sua vida cotidiana, cuja existência perpassa por
mecanismos de alienação e dominação que distorcem seu destino e sua compreensão da
história. Todos nós somos esses seres, que não só lutam todos dias para sua sobrevivência,
mas que precisamos compreender nossa relação com o mundo moderno, que por vezes,
se “apresenta como absurdo, como um viver destituído de sentidos” (BERMAN, 1994, p.
63).
A “modernidade anômala”, ocorre, pois, os processos de produção e reprodução
da sociedade contemporânea ocorre em temporalidades diversas e não raro,
desencontradas. Os ritmos desiguais incrementam a modernidade, nas regiões chamadas
de periféricas. A transitoriedade não seria o signo que leva ao moderno, ou que se reduz
a este. Em outras palavras, a modernidade e o moderno não são sempre iguais. Se a
modernidade se apresenta nos países desenvolvidos (ricos) ela chega aos países
subdesenvolvidos de forma desigual. Uma forma de hibridismo cultural, confrontam
presente e passado. Porém não apenas na transitoriedade se afirma a modernidade nos
países da América Latina e principalmente no Brasil. Este caminho, ou melhor, esta
travessia - nos termos de Guimarães Rosa - entre um passado “primitivo” e um moderno
“novo”, com possibilidades pouco possíveis, marca este conflito. Assim é: “no atravessar
sem chegar, que está presente o nosso ser” (Martins, 2008, p. 22).
É neste contexto que percebemos os conflitos entre culturas decorrido no
Tabuleiro. As várias conexões temporais se concretizam de forma espacial - na forma e
no conteúdo. As relações estabelecidas dentro do/no espaço revelam as formas de
organização que por vezes se dão “às avessas”. São as atividades contrarias, que surgem
como resistência de um processo que se pretende homogeneizador. Embora não o seja,
atravessa as relações sociais como possibilidade vislumbrada por muitos. Sem
negligenciar os anseios de modernização questionamos o caráter desta transitoriedade
pensando o acesso das populações. Em outros termos, tratamos das desigualdades que
surgem com o processo do turismo e também da introjeção de novas práticas, valores e
intenções. Concordamos como Martins (2008), onde estabelece que a vida cotidiana não
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está nos limites dos costumes domésticos, rotineiros, que surgem as primeiras vistas. Este
sentido é generalista e diminui o cotidiano, ao banal ou ao senso comum. De forma mais
profunda, a vida cotidiana, segundo Martins (2008) apoiado em Lefebvre, não é o resíduo
da realidade ou o que vemos em primeira instância. Ela vem dos “porões da investigação
de uma história local”, que expressa as contradições históricas. Para este autor as grandes
construções históricas se edificam no cotidiano, assim produzindo também a
humanização. Decifrada em primeira instancia no cotidiano, a história é vivida. Através
do cotidiano e de sua historicidade o homem deve buscar o caminho para sua
emancipação. É nas lutas cotidianas, vividas na história que estão as brechas para suas
possibilidades.
A modernidade segundo Martins (2008), colocou no passado, no resíduo e no
marginal, toda as expressões culturais que fogem a noção civilizatória. Muitas vezes as
práticas que são ditas atrasadas não são aceitas ou devem ser superadas. Mesmo que em
pequenas escalas ou em menor grau. A pobreza, segundo o autor, foi renegada, colocada
nas periferias e favelas (MARTINS, 2008). A necessidade de modernizar a jovem nação
capitalista, de civilizá-la, tentou negar o passado escravista através da república
positivista. Para se construir enquanto nação, negar a história e suas expressões, se tornou
um mecanismo. Assim, escondeu-se a complexa história do período escravista,
marginalizando a cultura afrodescendentes, ao invés de reconhecer o passado, para
amenizar o déficit histórico com as populações que sofrem ainda hoje com as atrocidades
do período colonialista. Embora a ânsia civilizatória persista, as contradições expressas
são dialéticas e apresentam-se enquanto possibilidades. É neste contexto que surgem os
movimentos sociais, as organizações locais e as formas várias de organizações civis.
Deste modo, as expressões populares as questões sociais, que são históricas, persistem, e
continuam incomodando alas da sociedade.
As várias formas de exploração do capital, afirma Martins (2008), não estão
relacionadas como antes, no chão da fábrica. Hoje ela se pulveriza, se torna menos óbvia
e palpável, e a flexibilidade do capital, torna mais velada as explorações: a mais valia, o
juros, lucro, etc. Para chegar a uma conclusão é necessário saber como “a história irrompe
na vida de todo dia” (MARTINS, 2008. p.10). O cotidiano é a mediação histórica que
leva a humanização. A história é vivida e construída no cotidiano. A história, que vivida
no local é uma: “expressão particular e localizada das contradições históricas” (Martins.
2008. p. 117), deve ser analisada afora sua relação com as nuances privadas e ser
60
entendida em sua coletividade e várias temporalidades: “É no âmbito local que a história
é vivida e é onde, pois, tem sentido para o sujeito da História” (MARTINS, 2008. p. 117).
Embora a vida cotidiana esteja totalmente relacionada a vida moderna, onde ela se
reproduz, e alicerça suas ideias, como resultado de um sistema que precisa roteirizar os
movimentos, em um padrão de vida que chegue a todos, ela também oferece brechas para
as novas aspirações. Assim, mesmo que seja uma lógica intimamente relacionado ao
moderno, à reprodução, ele permite os desvios, como possibilidade as vezes não
capturada ou ainda como ponto cego. Mas no repetitivo, na reprodução, na lógica do
capital e do trabalho ainda existem ações e pensamentos criadores:
A oitenta milhas de distância contra o vento noroeste, atinge-se a cidade de Eufêmia, onde os mercadores de sete nações convergem em todos os solstícios e equinócios. O barco que ali atraca com uma carga de gengibre e algodão zarpará com a estiva cheia de pistaches e sementes de papoula, e a caravana que acabou de descarregar sacas de noz-moscada e uvas passas agora enfeixa as albardas para o retorno com rolos de musselina dourada. Mas o que leva a subir os rios e atravessar os desertos para vir até aqui não é apenas o comércio das mesmas mercadorias que se encontram em todos os bazares dentro e fora do império do Grande Khan, espalhadas pelo chão nas mesmas esteiras amarelas, à sombra dos mesmos mosquiteiros, oferecidas com os mesmos descontos enganosos. Não é apenas para comprar e vender que se vem a Eufêmia, mas também porque à noite, ao redor das fogueiras em torno do mercado, sentados em sacos ou em barris ou deitados em montes de tapetes, para cada palavra que se diz – como “lobo”, “irmã”, “tesouro escondido”, “batalha”, “sarna”, “amantes” – os outros contam uma história de lobos, de irmãs, de tesouros, de sarna, de amantes, de batalhas. E sabem que na longa viagem de retorno, quando, para permaneceram acordados cambaleando no camelo ou no junco, puseram-se a pensar nas próprias recordações, o lobo terá se transformado num outro lobo, a irmã numa irmã diferente, a batalha em outras batalhas, ao retornar de Eufêmia, a cidade em que se troca de memória em todos os solstícios e equinócios (CALVINO, 2006, p. 38/39).
Mesmo com os movimentos concretos da vida de reprodução capitalista, mesmo
com o cotidiano se revelando como um programa surgem possibilidades. O texto citado
demonstra pessoas em movimento, presas em um cotidiano de trabalho e exploração. São
nestes instantes que ações (re) criadores surgem e manifestam-se. Na vida cotidiana que
está a repetição e também esta as possibilidades de fuga, de alivio e de renovação:
A vida cotidiana é, em si, uma complexidade de elementos, ela revela muito mais do que o passo necessário para sobreviver, ela revela os sentidos da sobrevivência, anuncia e pressupõe os sentidos do espaço do consumo e do consumo do espaço. Reflexo do campo de luta presente no espaço de ação, a vida cotidiana se apresenta como caminho criativo, e no limite da sua definição, apresenta-se como lugar de resistência; como zona de materialização das táticas em resposta às estratégias impostas; a vida cotidiana só se enxerga de perto e de dentro, ela não supõe representação, ela é a síntese do vivido que emerge como consequência, como resposta involucrada, e indissociável, no/do percebido e concebido. (NOBREGA, 2017, p. 41)
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Perceber as contradições de uma vida de lutas para permanência ou saída do
campo, para alimentação de qualidade, para interação adequada com culturas distintas é
conhecer as alternativas criadoras que dão contorno a luta de classes que se transforma e
chega em lugares não usuais.
A necessidade de trazer mais condições para as populações de áreas rurais aparece
também nas organizações de cunho civil. É o caso da ASCOTA, associação comunitária
do Tabuleiro, que no ano de 2016 foi novamente colocada em prática após anos de
inoperância. A necessidade de participação da população fez da mobilização uma
necessidade. Embora as dificuldades de organização da associação, sejam de cunho
burocrático, seja de recursos humanos, surjam como empecilhos, ela aparece como um
importante mecanismo de participação nas decisões colocadas pelo poder público. Em
seu estatuto a associação reconhece a necessidade de trabalhar com as questões dos
pequenos produtores e de fortalecimento da agricultura familiar. A feirinha comunitária
também aparece como mecanismo de participação.
3.1 Resistência camponesa e territórios em disputa
Quando tratamos o modo de vida como um dos alicerces da existência camponesa
buscamos compreender quais técnicas e estratégias criadas pelas famílias para se
perpetuarem em quanto tais neste momento de avanço das forças produtivas capitalistas.
As possibilidades criadas no seio de uma produção contraditória são mecanismos de
defesa e criação, onde as conquistas são necessárias a existência. Dizemos da forma de
se produzir, da forma de se organizar, da forma de ajudar e até da forma que se divergem.
O modo de vida camponês por si é um modo de resistência frente as imposições
capitalistas.
Sabendo da capacidade de fluidez e adaptação dos camponeses frente as
explorações do capital, entendemos que sua forma e conteúdo variam ao longo do espaço
e tampo, ou melhor, os camponeses mudam suas atitudes, práticas e estratégias
constantemente, de acordo com suas necessidades momentâneas. Fato é, que existem em
sua capacidade de adaptação. Neste sentido seguiremos analisando algumas práticas de
camponeses do Tabuleiro para entender seus atuais mecanismos de resistência.
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Grande parte dos quintais no Tabuleiro são unidades produtivas de grande valor.
Os plantios e criações são uma marca das famílias que utilizam estes espaços para
incremento de sua dieta, venda ou troca. Nos quintais, os insumos agrícolas, adubo,
defensivos, são feitos organicamente. Já nas roças, são utilizados adubos químicos
(composição básica de N-P-K), sem medida ou analise previa do solo. Produzir com
insumos naturais, com produções orgânicas, utilizando sementes crioulas, utilizando a
policultura faz com que os camponeses produzam de forma defensiva e com uma maior
variedade de produtos. A utilização de técnicas tradicionais e conhecimento permite uma
menor dependência do mercado capitalista. Este fator auxilia na (re) produção do modo
de vida camponês e se traduz como um mecanismo de resistência.
As casas são rodeadas de plantações. As que não são utilizadas nem para venda
nem para o consumo humano servem para o trato de animais. Os de montaria, os suínos,
as aves, dependem dos quintais para sua criação. O trabalho com a pecuária demanda
muito tempo e os moradores relatam que os animais eram muito mais numerosos no
Tabuleiro. Cozinhar bananas, chuchu, quebrar o milho, picar o capim, são práticas
comuns ao pecuarista. Interessante ressaltar que os camponeses recebem traços de
pecuaristas e de agricultores, uma vez que estabelecem as culturas de forma
concomitante. Fugir das dependências das raçoes industrializadas é uma forma de
autonomia do pequeno produtor. Os animais são de grande importância para a dieta dos
camponeses, e ainda uma valiosa fonte de renda. No Tabuleiro, é fácil encontrar alguma
“senhora” ou Dona” que venda frangos para serem abatidos ou já limpos e picados.
63
Figura 13: Foto de quintal. Nas visitas procuramos identificar técnicas orgânicas de plantios. Também procuramos utilização de agrotóxicos ou insumos comprados. Não foi identificado o uso destas substancias nos quintais. Porém, nas áreas de plantio, que exigem mais espaço, percebemos o uso de herbicidas. Nos quintais encontramos uma grande variedade de produção. Importante ressaltar que este é um espaço, na grande maioria feminino. Dos quintais saem alimento, renda, remédios e matéria prima. Entender o espaço dos quintais como espaço feminino é compreender a produtividade que em alguns momentos é questionada, principalmente em culturas patriarcais que segregam a mulher e menosprezam seu trabalho dito como menos árduo. Ao fundo: galinheiro, canas de açúcar, bananeiras e pasto. Fonte: arquivo do autor. Inverno de 2019
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A matéria prima para concerto de ferramentas, currais, telhados, cercas, em grande
maioria, é originária da mata. Embora alguns produtores tenham acesso a madeiras
compradas em locais apropriados (madeiras tratadas e retilíneas) muitos ainda dependem
das arvores locais. Comum encontrar currais e telhados confeccionados com madeira do
campo. Algumas com muitos anos de existência (segundo os moradores), mostrando sua
durabilidade e a astúcia na hora de escolher a madeira para a construção.
Figura 14: curral construído com matéria prima local (apenas pregos e telhas foram comprados) e com técnicas tradicionais. É possível perceber ao fundo Bananeiras, Palmeiras que produzem açaí, Mangueiras e eucaliptos. Tudo fazendo parte da unidade produtiva aos arredores da casa. Fonte: arquivo do autor. Inverno de 2019
As produções se tornam orgânicas pela pouca necessidade de adubação ou
controle químico de doenças e “pragas” nos plantios dos quintais. Atribuímos isto a
policultura, que oferece uma maior sustentabilidade aos espaços. Com uma variedade de
plantações, um considerável deposito de material vegetal (folhas, restos culturais, palhas
e sabugos de milhos, vagens do feijão e amendoim), um solo propicio ao desenvolvimento
é formado. As plantas sadias e vistosas aproveitam o solo fresco e nutritivo.
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Foto 15: plantações volteando as casas. É possível identificar um pequeno telhado em meio as plantações. Nestes quintais o solo está repleto de matéria orgânica em decorrência de anos de atividade e de deposito de material vegetal. As produções tampam as casas e são de grande importância, tanto para a alimentação humana, animal ou para a venda. Também identificamos em oitenta por cento das casas visitadas existiam antenas para sinal de televisores. Fonte: Arquivo do autor. Inverno de 2019.
Outro elemento presente nos quintais visitados são os tanques de peixes. Podem
ser construídos em locais de inundação, em alagados, transpondo um córrego. As várias
técnicas para se construir um lago de peixe são utilizadas pelos produtores locais para
incrementar seu sustento. A vende de peixes é difícil uma vez que os tanques são
construídos na terra e dificultam a captura dos animas com redes. Eles são capturados
com varas e anzóis, fato que leva tempo e por vezes dedicação. Em algumas casas
visitadas existiam lagoas secas. É comum os agricultores comentarem a crescente
escassez de agua no distrito. Dizem de como a água era abundante e como hoje é
necessário racionar. Todos atribuem a falta de água as transformações no distrito, como
supressão da vegetação, construção de casas, e migração de retorno. A água, que é captada
em nascentes da região e dividia segundo as famílias que a controlam. Quem está com a
nascente é responsável por distribuir a água. Todos os reservatórios de distribuição do
distrito foram construídos com mutirão e material comprado pelos próprios moradores.
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Imagem 18: as lagoas são comuns nos quintais. Represando ou transpondo pequenos córregos elas oferecem mais um incremento na alimentação. Nenhuma das casas visitadas tem a lagoa para obtenção de renda.
Fonte: arquivo do autor. Outono de 2019
Existem conflitos em função do uso da água. Nos meses mais secos, quando os
reservatórios perdem sua capacidade, os conflitos se acirram. Grande parte das críticas
são direcionadas as pousadas ou casas de veraneio que tem piscinas nos quintais. As
grandes caixas de água que estes comércios utilizam são também alvo de julgamentos. A
questão da água, em todos invernos, se torna temas central das discussões, em diversos
âmbitos, sejam eles formais ou não. Embora exista muita capacidade hídrica no Tabuleiro,
existe uma má distribuição. Muitas famílias não querem dividir sua água com novos
moradores, e apenas o fazer para seus vizinhos mais antigos ou familiares. Este fato
contribuí para os novos moradores (que chegam de outras localidades e não tem laços de
parentesco) façam poços artesianos em suas casas. Percebemos nas observações
participante que os moradores que chegam de outras localidades para ter casas de veraneio
ou para a morada, dizem da necessidade de trazer a empresa responsável por distribuir
água no estado (COPASA- Companhia de Saneamento de Minas Gerais) . Esta é uma
discussão que permeia as conversas informais, mas que segundo a presidenta da
associação ainda não é pauta para a comunidade. Pensam em outras possibilidades, como
67
auxilio do poder público para o material e mão de obra, e aumento dos reservatórios. Os
próprios moradores fariam a gestão. Porém necessitam de material de construção para
crescer e instalar mais reservatórios e canos para captar água em locais distantes (já feito
para algumas casas pelos próprios moradores). A capacidade hídrica da região é inegável,
e segundo a presidenta da ASCOTA, faltam esforços do poder público municipal para
cooperação na distribuição igualitária deste recurso.
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Tabela 4-capacidade produtiva
HORTA CAFÉ PORCO BANANA GALINHAS FEIJAO MILHO AMENDOIM BOI GADO
LEITEIRO FRUTIFERAS ARROZ QUEIJO MAQUINARIO
ANIMAIS DE
MONTARIA E TRAÇAO
CASA 1
X X X X X X X X X X X X X
CASA 2
X X X X X
CASA 3
X X X X X X X X X X X
CASA 4
X X X X X X X X X X X X
CASA 5
X X X X X X X X X X
CASA 6
X X X X X X X X X X X X X
CASA 7
X X X X X X X X X X X X
CASA 8
X X X X X X X X X X X X X
CASA 9
X X X X X X X X X X X
CASA 10
X X X X X X X X X
CASA 11
X X X X X X X X X
CASA 12
X X
CASA 13
X X X
CASA 14
X X X X X X X X X
CASA 15
X X X X X X X X
CASA 16
X X X X XX X
CASA 17
X X X X X
CASA 18
X X X X X
CASA 19
X X X X X
CASA 20
X x X X X X
Capacidade produtiva das famílias. Fonte: produzida pelo autor. Outono inverno de 2019
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A tabela 3 reflete a capacidade produtiva de algumas famílias. Fato que o tamanho
do terreno, que mede de 2 hectares até 20 hectares também influencia na diversidade de
produtos. Porém identificamos uma grande variedade que garante parte do alimento.
Algumas casas comercializam o que é produzido, na cidade (sede administrativa), na feira
livre que ocorre aos sábados ou em comércios locais. Também existem os que vendem na
feirinha do Tabuleiro. Famílias que contém algum parentesco ou alguma proximidade
geográfica também costumam fazer trocas. Estas surgem como alternativa para ter o que
não conseguiu/optou plantar. As trocas não são necessariamente na mesma espécie. Pode-
se trocar dia de serviço por café (quando quantidade pode ser comercializado), dias de
pasto para criação por trabalho. Também percebemos a doação. Frutas, hortaliças,
leguminosas que produzem em abundancia são distribuídas entre os familiares ou entre
os vizinhos. Também existem os que vendem as frutas para os restaurantes da “cidade”.
A venda de mercadorias pelos produtores é de grande importância neste momento de
diminuição de terrenos agricultáveis em função do parcelamento do solo. Poder comprar
o que não se produz é um alento para as famílias que obtém maior renda com as vendas.
As produções, que como todos alertam, eram bem mais fecundas, hoje diminuem e dão
espaço ao arame farpado que fragmenta o solo em lotes para a venda ou especulação.
É neste contexto de necessidade de renda da produção que nasce a Feirinha do
Tabuleiro. Um excelente escape e fundamental mecanismo de diminuição do custo final
dos produtos (a venda na cidade dispende mais recursos). Esta é uma contradição expressa
também pelo avanço do turismo na região. A Feirinha é uma forma dos produtores
acessarem o turista que passa no distrito. Por ser uma organização dos produtores que
surgiu de forma espontânea, ela se torna também, uma possibilidade dos camponeses
permanecerem em seu local, se assim desejarem pois, a renda auxilia na conquista de
itens importantes nos dias de hoje.
70
Figura 17: Foto de senhora vendendo seus produtos na feira do Tabuleiro. Fonte: arquivo do autor. Primavera de 2018
A criação de gado também vem crescendo e este animal apresenta uma
oportunidade de fuga das armadilhas do mercado que os agricultores são submetidos. O
bovino serve tanto para satisfazer uma necessidade alimentar, quando é abatido em
família, quanto para a venda em um momento oportuno. Os camponeses não seguem um
cronograma para o abate, nem se são fêmeas em idade reprodutiva (que não deveriam ser
abatidas pois podem gerar prole). Se for necessário a venda, para pagar alguma dívida ou
para outros fins, assim é feito. O fazem na medida de suas necessidades. Ainda, as terras
podem especular-esperar o valor imobiliário ser acrescido em função de melhorias como
acesso, luz e água- com uma função: engordar de animais.
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Tabela 5- Materiais vendidos pelas famílias
Fonte: Produzida pelo autor durante trabalho de campo no inverno de 2019
HORTA CAFÉ PORCO BANANA GALINHAS FEIJAO MILHO AMENDOIM BOI GADO
LEITEIRO FRUTIFE
RAS ARROZ QUEIJO
CASA 1 X X X X X X X
CASA 2 X X
CASA 3 X X X X X
CASA 4 X X X X X X
CASA 5 X X X X X X
CASA 6 X X X X X X X X
CASA 7 X X X X
CASA 8 X X X X X X X X
CASA 9 X X X X X X :
CASA 10 X X
CASA 11 X X X X
CASA 12 X
CASA 13 X
CASA 14 X X X X X
CASA 15 X X X X X X
CASA 16 X X X
CASA 17 X X
CASA 18 X X X
CASA 19 X X X
CASA 20 X
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Muitas famílias produzem com o intuito de gerar excedente para venda ou troca.
Identificamos que todos os itens que estavam disponíveis também estavam à venda.
Dependendo da época, cada família trabalha com mais intensidade em uma frente
produtiva. No inverno a dedicação vai para a cana que será moída e tanto para a cachaça
quanto para a rapadura. No verão, são as roças de mandioca. E nos intervalos as produções
caseiras. Durante toda a pesquisa percebemos como as estratégias para se manter no
espaço são criadas e que atitudes que se parecem comuns, quando analisadas em sua
essência, apresentam seu cunho de resistência. Diminuir o custo de produções, os ciclos
curtos (venda sem atravessador, como na feirinha), utilização de técnicas tradicionais de
plantio, oferecer manutenção a sua cultura religiosa, trazem uma maior capacidade de se
(re) criarem frente as dificuldades. A fluidez necessária ao capitalismo, que surge no
Tabuleiro, como facilidades para o turista (privatização de áreas de caça e pesca,
parcelamento do solo, supressão da vegetação) encontra barreiras nas atitudes
camponesas. Mesmo que em um momento de modernização, onde proferiram o fim do
campesinato, percebemos como estes resistem frente as condições do capital.
73
Questões finais e lacunas de pesquisa
Esta pesquisa teve como objetivo entender as transformações ocorridas no modo
de vida camponês com o advento do turismo. A interiorização do capitalismo ocorre em
um momento em que ele se apresenta de forma flexível, e pretende adentrar em todas as
áreas, facilitando sua reprodução. O turismo, surge como um excelente mecanismo para
este fim. Neste contexto estudamos as implicações na vida de produtores rurais com o
avanço de relações capitalistas de produção estabelecidas com o avanço do turismo. Para
compreender como os pequenos produtores rurais lidam com as concretizações
necessárias ao capitalismo, trabalhamos com conceitos que permitiram entender as
práticas dos agricultores como práticas recriadoras, de sobrevivência e criação. Entender
o cotidiano dos camponeses, foi possível com uma metodologia exploratória,
investigativa e participativa. As observações participantes, a exploração ocorrida com seis
anos de morada do pesquisador no distrito, e as entrevistas abertas, foram essenciais para
entender as transformações ocorridas com o avanço do turismo na região.
Conceição do Mato Dentro vive um momento propicio para o avanço do turismo.
A necessidade de diversificação econômica frente a mineração é um motor para o
fenômeno. Tabuleiro com todo seu potencial cênico e social, é um excelente cartão postal
para os gestores que insistem no turismo como mecanismo de arrecadação menos
agressivo que a mineração. As transformações ocorridas no e do espaço em Tabuleiro,
são engendradas, por um lado pelas forças do capital, e por outra pela resistência dos
pequenos produtores. A necessária fluidez ao capitalismo, ao modo de vida urbano,
encontra barreiras nas atitudes camponesas que impedem a concretização hegemônica da
produção. Grosso modo, seriam as práticas que surgem como mecanismo para que não
sejam completamente explorados, proletarizados, ou que sucumbam frente a completa e
total urbanização da sociedade. Embora o capitalismo seja um obstáculo para a
reprodução da vida camponesa, percebemos que muitas vezes a flexibilidade acompanha
o pequeno produtor, que encontra brechas para que se perpetue, garantindo a continuidade
do seu modo de vida.
Entender o turismo de uma forma processual é compreender que este fenômeno
não deve ser tratado com um objeto de estudo. Trata-lo desta maneira recorreríamos no
erro dos aqui criticados manuais de utilização turística de áreas rurais. Ou melhor, dos
trabalhas acadêmicos que visam a caracterização das áreas para o melhor acesso do
74
turista. Entendemos que, para não estabelecer os caminhos delineados pelo sistema
capitalista, temos que trabalhar com o turismo de uma forma processual, e não
imediatista. Compreender as transformações decorrentes deste fenômeno, e não a melhor
forma de pratica-lo, foi o que nos propusemos. Assim, procuramos perceber as
decorrências do turismo na vida dos pequenos produtores, para que pudéssemos pensar,
não mais uma forma de ameniza-lo, mas sim, quais seus objetivos e implicações.
A superação de um sistema que explora os trabalhadores do campo e da cidade,
passa pelo reconhecimento da capacidade revolucionária, criativa e organizacional dos
camponeses. A importância da agricultura familiar, vai além do abastecimento de
alimentos, ou matéria prima para a cidade. A relação estabelecida com a terra, com a
propriedade e com a família, promove contornos distintos dos que usualmente são
construídos nos centros urbanos. A proteção dos ecossistemas é um imperativo para
manutenção do modo de vida camponês. Daí entender as práticas cotidianas de pequenos
produtores é entender que são sujeitos, que podem ter autonomia em suas decisões, e que
conseguem, muitas vezes, se perpetuarem enquanto classe. Se entendemos estes
parâmetros percebemos que o campo tem um grande potencial para auxiliar na superação
deste sistema.
Para terminar pretendemos identificar quais as dificuldades de elaboração da
pesquisa, tanto na forma quanto no conteúdo, para que possamos identificar algumas
lacunas do nosso pensamento, na intenção de dar início as aberturas de novas formulações
e novas perspectivas. Dizemos, grosso modo, das possibilidades e dos problemas de
pesquisa. Trata-se de algumas relações conceituais que não foram integralmente, ou
adequadamente estudadas. Sistematiza e compreender essas lacunas é oferecer caminhos
e abrir para as possibilidades de continuidade e de aprofundamento no tema. As
insuficiências tratadas aqui como possibilidades, vieram para que refletíssemos sobre os
problemas de análise, para a continuidade do pensamento produzido nesta dissertação.
Nesta pesquisa tratamos de questões referentes aos conceitos e das questões
históricas. Pensamos uma base conceitual para entender o modo de vida camponês, a
produção do espaço e o turismo. Em relação a segunda questão, tratamos das
transformações do modo de vida dos camponeses frente ao fenômeno do turismo. As
transformações históricas ocorridas no distrito (uso da água, uso do solo, alimentação,
relações sociais), encontram fundamentos para sua teorização nas bibliografias citadas.
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Neste sentido alertamos para a necessidade de aprofundar em conceitos e temas
que foram tratados de forma exploratória ou ineficiente na pesquisa. Entendemos ainda
que alguns não foram tratados aqui. O conceito de diferença é um importante caminho
para compreendermos os modos de vida dos camponeses. Tratar sobre as diferenças pode
auxiliar no estudo das transformações históricas. Outro tema que poderíamos ter dado
mais atenção seria da história agrária do nosso país. O processo de cerceamento das
propriedades, fragmentação do solo e da instituição de propriedades capitalista, tem raízes
nas transformações de nossa sociedade. Tratamos também das diferentes formas de
propriedade que existem, baseada nos costumes, e que se conflitam com as de cunho
privada. Existem mais oposições aos cerceamentos do que se supõe. A história fundiária
do Brasil, é complicada e cheia de meandros que explicitam o caráter desigual e
exploratório da formação do povo brasileiro. A constante violência que os povos
originários sofreram e sofrem com a invasão de estrangeiros foi negligenciada e
mascarada pela república. Para cada cidade chamada Vitória temos a derrota de povos
originários. O controle do território passa pelo controle fundiário. Mesmo quando os
povos lutaram contra as vitórias republicanas e reconquistaram sua autonomia não
tiveram o nome exaltado. Apenas quando foram derrotados em nova batalha é que foram
enaltecidos: Vitória da Conquista é o nome dado a cidade que foi reconquistada pelos
povos originários, mas que, em nova luta perderam para os então “brasileiros”. Entender
a luta dos que foram conquistados ou que sofreram com as imposições nos meandros da
história é valioso para compreender a capacidade de luta, resistência e de criação dos que
por muito tempo foram subjugados como indignos de algum direito social. Existe uma
raiz histórica para a má distribuição de terras. Em suma, pensamos da necessidade de se
pensar os longos processos materiais de mudanças na estrutura agrária do país que
culminaram nas transformações na vida de um modo geral, e na acessibilidade da terra ao
mercado.
Sabemos que muitos outros conceitos, temas, categorias poderiam ser citados,
explorados e aprofundados. Isto demonstra a possibilidade e a capacidade de variação que
a pesquisa apresenta. Contamos como ponto positivo, uma vez que discussões reabrem e
acendem para questões urgentes como as dos que vivem subjugados pelo sistema
capitalista. Sabemos que não é tarefa fácil. Mas como dizem no Tabuleiro: “ só não pode
esmurecer”
76
Referências Bibliográficas
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ALMEIDA, Mauro William de. NARRATIVAS AGRÁRIAS E A MORTE DO CAMPESINATO. 2007
BECKER, L.C. Tradição e Modernidade. O desafio da sustentabilidade do desenvolvimento na Estrada Real. 2009. Tese de Doutorado. Rio de janeiro
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