as mil e uma noites - roso de luna

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Mario Roso de Luna Tradução e notas explicativas: Celso Agostinho Martins de Oliveira

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  • Mario Roso de Luna

    Traduo e notas explicativas: Celso Agostinho Martins de Oliveira

  • Agradecimento

    Ao amigo Esteban Cortijo, presidente do Ateneo de C-ceres, Espanha, pelo inestimvel auxlio com os esclarecimentos necessrios elucidao de alguns trechos do texto original.

    O Tradutor

  • Sumrio

    Apresentao do Tradutor .....................................................11As Tradies Persas Mais AntigasSobre os Polos e os Continentes Submersos .......................15Prlogo do Autor ....................................................................17

    captulo iA Atual Introduo de As Mil e Uma Noites ......................37

    captulo iiA Primitiva Introduo de As Mil e Uma Noites? ..........57

    captulo iiiComea o Livro de O Pescador .........................................77Primeira Verso do Conto O Pescador,no Texto de Galland ...............................................................79Segunda Verso do Conto O Pescador .............................83Terceira e Quarta Versesdo Clssico Conto O Pescador, ..........................................85

  • captulo ivProssegue o Livro de O Pescador .....................................97Stima Verso do Conto O Pescador,no Texto de Mardrus ............................................................100Oitava Verso do Conto O Pescador no Texto Srio.....102Nona Verso do Conto O Pescadornas Literaturas de Cordel Espanholas ............................108

    captulo vCulmina o Livro de O Pescador .....................................117Verso Dcima Primeira do ContoO Pescador, no Texto Srio ...............................................123Verso Dcima Segunda do Conto O Pescador ............124Comentrios ..........................................................................126

    captulo viA Histria Prodigiosa da Cidade de Bronze ..................137

    captulo viiTermina o Conto de O Pescador .....................................157

    captulo viiiO Livro dos Mareds ou Habitantes das guas ..............177

    captulo ixO Grande Mito de Aladdinou a Lmpada Maravilhosa .................................................197Histria de Aladdin, ou a Lmpada Maravilhosa ............199

    captulo xO Anel Prodigioso de Aladdin ...........................................215

  • captulo xiContinua o Grande Mito de Aladdin.................................235Verso Terceira do Mito de Aladdin(Yamlika, a princesa subterrnea) ......................................235Verso Quarta do Mito de Aladdin(O tesouro sem fim) .............................................................240A Verso Quinta do Mito de Aladdin ................................243Verso Sexta do Mito de Aladdin .......................................248

    captulo xiiCulmina o Grande Mito de Aladdin ..................................257Verso Oitava do Mito de Aladdin(Aventuras do Prncipe dos Runs) .....................................262Verso Nona do Mito de Aladdin(Histria de Hassn al Basri) ..............................................266

    captulo xiiiComea o Livro dos Efrites ou Gnios Areos .................277Verso Dcima do Mito de Aladdin(Histria Esplndida do Prncipe Diamante) ...................278

    captulo xivComea o Livro dos Homens Heris ou das Iniciaes ....... 299A Parbola da Verdadeira Cincia da Vida .......................300Histria de Mahmud ............................................................305Histria de Codadad e de seus irmos ..............................312Histria do Invejoso e do Invejado ....................................316

  • SEGUNDA PARTE

    captulo xvDescrio das Viagens Iniciticasde Sindbad, o Marujo ...........................................................323Histria de Sindbad, o Marujo ...........................................325O prncipe Ahmed e a Fada Pari-Banu .............................338

    captulo xviA Histria de Ali Bab .........................................................345Histria de Ali Bab e os Quarenta Ladres,Exterminados por uma Escrava .........................................346Comea a Grande Histria do Carregadore das Trs Princesas de Bagd .............................................355

    captulo xviiA Histria dos Trs Calndares ..........................................365Histria do Primeiro Calndar ...........................................369Histria do Segundo Calndar ...........................................372Histria do Terceiro Calndar ............................................376

    captulo xviiiTermina o Livro das Iniciaes .......................................385Histria de Zobeida ..............................................................385Histria de Amina ................................................................388

    captulo xixTransio ao Livro dos Cavaleiros Andantes.................407Histria de Ganem, o Escravo do Amore Filho de Abu-Aibu .............................................................408

  • Histria do Rei Omar Al-Neman e de SeusDois Maravilhosos Filhos Scharkan e DaulMakan .........413

    captulo xxComea o Livro dos Cavaleiros Andantes .....................427

    captulo xxiMais Verses do Primitivo MitoCavaleiroso de Camaralzaman e Badura ...........................443Histria de Nureddin e da Formosa Persa ........................449Histria de Abul-Hassan-Ali-Ben-Becare de Schem-Sel-Nihar ..........................................................453Histria da bela Zumurrud e de Alischar,Filho da Glria ......................................................................454Histria do Jovem Amarelo ................................................456Histria de uma Enfiada de Prolas ...................................457

    captulo xxiiO Livro das Religies ou do Corcundinhae dos Sete Barbeiros .............................................................463Histria do corcundinha .....................................................464Histria Contada pelo Mercador Cristo ..........................465Histria Contada pelo Vendedor Muulmano .................467Histria Contada pelo Mdico Judeu ................................468Histria Contada pelo Alfaiate ...........................................471Histria do Barbeiro ............................................................476Histria do Primeiro Irmo do Barbeiro ..........................477Histria do Segundo Irmo do Barbeiro ...........................477

  • Histria do Terceiro Irmo do Barbeiro ............................478Histria do Quarto Irmo do Barbeiro .............................480Histria do Quinto Irmo do Barbeiro .............................481

    captulo xxiiiTermina o Livro dos Barbeiros ...........................................483Final da Histria do Corcundinha .....................................486Aplogo em As Mil e Uma Noites ...................................488O Ganso e os Perus Reais ....................................................489O Martim-Pescador e a Tartaruga ......................................492Os Trs Amigos .....................................................................493O Corvo e o Gato .................................................................494O Estorninho Sedento ou Mais ValeAstcia do que Fora ..........................................................495A Astcia de um Vizir ..........................................................495As Chinelas Fatdicas ...........................................................497O Cdi e o Burrico ou Jumentinho ....................................498

    captulo xxivA rvore de Bodhi ou da Primeva Sabedoriae a Obra de As Mil e Uma Noites .......................................503

    Glossrio ................................................................................517

    Bibliografia ............................................................................519

  • 15

    Este no um livro de histrias. muito mais do que isto. Deve ser compreendido nas entrelinhas. O autor no narra as j conhecidas histrias; apenas apresenta um resumo de cada uma delas e ao final de cada resumo nos d a interpretao desses contos. Por isso deve ser lido com toda a ateno, pois so ensi-namentos sublimes acima das religies vulgares e da enfatuada cincia contempornea. As palavras inevitavelmente grafadas em lngua estrangeira (porque no existem ainda correspondentes em nossa lngua), na maioria em snscrito, constam do glossrio ao final da obra para melhor entendimento do texto.

    As notas constantes desta traduo organizam-se da se-guinte forma: Notas do Prlogo e Notas do Captulo destaca-das por letras entre parnteses, que so do autor e notas explicati-vas de rodap, de autoria do tradutor.

    O ttulo original da presente obra El velo de sis o las mil y una noches ocultistas (O vu de sis ou as mil e uma noites ocultistas).

    Para as pessoas no habituadas aos assuntos esotricos, julgamos oportuno prestar os esclarecimentos seguintes: sis a deusa Virgem-Me. representada na mitologia grega com o rosto coberto por um vu e no frontispcio do seu templo em Sas esto escritas as seguintes palavras: Sou tudo o que foi, e ser e nenhum mortal jamais retirou o vu que oculta minha divindade

    apresentao do tradutor

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    aos olhos humanos.Ocultismo a cincia que estuda os mistrios da Natureza

    e desenvolve nos seres humanos os seus poderes psquicos laten-tes. O que pode ser oculto para uma pessoa pode no ser para outra. O mundo da luz e das cores oculto para os deficientes visuais assim como o do som o para os deficientes auditivos. As cincias ocultas no so cincias imaginrias descritas pelas enciclopdias; so cincias reais, verdadeiras, e muito perigosas nas mos dos que no fazem delas o uso correto.

    Iniciao so os primeiros passos em uma cincia. A pr-tica da iniciao ou admisso nos Sagrados Mistrios realizada nos colgios iniciticos e tem por finalidade a expanso da cons-cincia do discpulo.

    O autor considera os candidatos iniciao heris que, em sua valentia, saem dos limites ordinrios da humanidade co-mum como se tocassem o mundo superior dos semideuses ou dos deuses, isto porque eles conseguem vencer os grandes obst-culos que existem dentro de cada um de ns, muito bem descritos nesta obra.

    So do Prof. Henrique Jos de Souza (fundador da Socie-dade Brasileira de Eubiose) as seguintes palavras:

    dentro e no fora de ns que se encontra a centelha crs-tica, ou melhor, a Conscincia Imortal, a maior de todas as ver-dades. Razo por que as iniciaes orientais ensinam: quando o discpulo est preparado, o Mestre aparece. Mestre esse que no nenhum personagem barbudo, de turbante, de olhos hipnoti-zadores, como pensa a maioria; mas o Eu-Conscincia, o Mestre dos Mestres! Do contrrio, viver o homem sempre como eterna criana, a brincar com fogo (e tudo mais quanto queima) em bus-ca de uma Dulcineia Del Toboso, que logo se transforma em sim-ples camponesa; a dar combate a moinhos de vento e a rebanhos fantsticos, qual Cavaleiro da Triste Figura, vtima das iluses dos sentidos, que se desfazem como enganosas miragens no Deserto da Vida. Da a exclamao do discpulo ao seu pretenso Mestre, segundo as escrituras orientais: do ilusrio conduz-me ao real;

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    das trevas luz; da morte imortalidade.Jina o mesmo que shamano (snscrito). Em rabe,

    djinn significa esprito.O autor em sua obra El libro que mata a la muerte o libro

    de los jinas (O livro que mata a morte ou livro dos jinas) diz que os jinas habitam ou frequentam de preferncia os lugares mais afastados do comrcio humano e at vivem sem ar nas mes-mas entranhas da Terra. As relaes com eles podem causar nossa felicidade ou nossa desgraa, dependendo de nossa constituio interior. Finalmente, a morte de que fala o ttulo daquele livro no no sentido fsico, j que tudo que nasce morre e tudo que morre renasce, mas no sentido transcendente de matar em ns essa far-sa macabra da Morte, que simplesmente o Vu de sis que nos separa das delcias da imortalidade.

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    A tradio lendria no podia desfigurar os fatos de tal modo que viesse a torn-los irreconhecveis. Entre as tradies do Egito e da Grcia, de um lado, e as da Prsia, de outro pas sempre em guerra com os primeiros h demasiada semelhana de smbolos e de nmeros para que se possa atribuir tal coinci-dncia a um simples acaso.

    As lendas passaram aos contos populares e s tradies hoje correntes na Prsia, do mesmo modo por que muitas fic-es, que tinham um fundo de verdade, puderam insinuar-se em nossa histria universal. As narrativas sobre o Rei Artur e seus Cavaleiros da Tvola Redonda tm toda a aparncia de contos de fadas e, no entanto, esto baseadas em fatos que pertencem his-tria da Inglaterra. Por que as lendas do Ir no haveriam de ser parte integrante da histria e dos acontecimentos pr-histricos da Atlntida? Vejamos o que dizem essas lendas.

    Antes da criao de Ado, viveram na Terra duas raas su-cessivas: os Devs, que reinaram durante 7.000 anos, e os Peris (os Izeds), que s reinaram 2.000 anos, quando ainda existiam os pri-meiros. Os Devs eram gigantes, fortes e malvados; os Peris eram de menor estatura, porm mais sbios e mais bondosos.

    Neles reconhecemos os Gigantes Atlantes, e os rias, ou os Rkchasas do Ramyana e os filhos do Bhrata-varcha, ou da ndia; os antediluvianos e os ps-diluvianos da Bblia.

    as tradies persas mais antigas sobre os polos e os continentes submersos

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    Por mais desfiguradas que estejam atualmente essas lendas, no se pode deixar de identific-las com as tradies caldeias, egpcias, gregas e at mesmo hebraicas.

    Acerca dessas tradies, consulte-se Collection of Persian Legends, em russo, em georgiano, em armnio e em persa; as L-gendes Persanes, de Herbelot, Bibliotque Orientale.

    (Helena Petrovna Blavatsky, A Doutrina Secreta)

    As Mil e Uma Noites, o Pachatantra e o QuixoteH outro livro oriental que est no mesmo nvel do As

    Mil e Uma Noites, do qual constitui quase o reverso: o Pacha-tantra ou Cinco Sries de contos nos quais os personagens no so homens, fadas e gnios, como naquelas, mas sim animais que raciocinam... como os conspcuos homens de nossa poca, orientados sempre para a utilidade, para o dinheiro, O POSITI-VO. Dir-se-ia tambm que ambos os livros esto compendiados em um pelo gnio imortal de Cervantes. As Mil e Uma Noites, de fato, com seu idealismo sublime salvo as passagens inter-caladas pelo semitismo rabe, seu transmissor so o prottipo do sublime Cavaleiro da Mancha, enquanto que no Pachatan-tra mais afim do grosseiro Sancho Pana, do qual at tem uma espcie de ressonncia fontica e assim como toda literatura cavaleirosa deriva daquelas, toda nossa mal chamada literatura didtica, sobretudo a das fbulas petites phrases, pensamentos, etc. deriva do segundo, motivo pelo qual Fedro, Esopo, La Fon-taine, Samaniego e demais fabulistas so apenas plidos reflexos do moralismo deste ltimo livro: livro admirvel para comer-ciantes, prias e sudras orientais ou ocidentais; mas detestvel e falso para sacerdotes e guerreiros, pois, diga-se de passagem, a lei de castas existe e existir sempre, ainda que no fisicamente ou em sociedade, mas na infinita gama ou escala de almas.

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    H.P.B1. nossa Mestra em Ocultismo terico vulgo Teo-sofia , depois de constituir a Sociedade Teosfica e de escrever seu admirvel livro sis sem Vu, chave dos Mistrios antigos e modernos, se dedicou at o fim dos seus dias, a levantar esse ci-clpico monumento de nossa poca que leva por ttulo A Dou-trina Secreta, sntese da Cincia, Religio e Sabedoria, base de extensos comentrios a um antiqussimo livro inicitico tibetano conhecido pelo nome de As Estncias de Dzyan, poema primi-tivo no qual se compendiam os mais puros ensinamentos rios sobre Cosmologia e Antropologia.

    Emulando nobremente tamanha bravura, ainda que sem sequer sonhar em igual-la, faz tempo que pensamos realizar, at onde nossas dbeis foras o permitam, um trabalho anlogo com o tambm livro inicitico que tem por ttulo As Mil e Uma Noi-tes, ou melhor, As Mil Noites e Uma Noite, segundo o pouco aceitvel pleonasmo com o qual nos traduziu ao francs mais re-centemente o mdico srio doutor J.C. Mardrus.

    Voc chama de livro inicitico nos perguntar surpreso o culto leitor a uma heterognea coleo de velhos contos de crianas, clebres no mais que pelo absurdo de seus relatos ma-ravilhosos, onde campeiam sem freio algum a exuberante fantasia oriental? Voc chama tambm de livro inicitico a relatos que so 1. Com estas iniciais seguiremos designando, segundo costume dos tesofos, a Helena Petrovna Bla-vatsky, a incompreendida princesa russa. (NA)

    prlogo do autor

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    capazes de ruborizar o homem mais mundano por suas cruezas e liberdades de linguagem no que ao sexo e ao no sexo se refere?...

    E, no entanto, apesar de tudo isto, As Mil e Uma Noites encerram uma profunda revelao ocultista que no se deve des-denhar e, certamente, no havero de desdenhar os imparciais assim que se aprofundarem nas pginas seguintes.

    As frases do prefcio dos editores da verso espanhola indicam acertadamente que a moral dos rabes nossos atuais transmissores do grande livro diferente da nossa; seus costu-mes so outros e seu carter primitivo os faz ver como coisas na-turais o que para outros povos motivo de escndalo. Cobrem o amor de poucos vus e sua vida social est baseada na poligamia. Alm disso, este um livro antigo e os escrpulos morais mudam com os sculos. Sirva de exemplo nossa prpria literatura, na qual os maiores autores do Sculo de Ouro aparecem usando com na-turalidade palavras hoje consideradas imorais e que ningum se atreveria a repetir.

    Os povos primitivos diz o Sbio chamam as coisas por seu nome e no consideram nunca condenvel o que natural, nem chamam de licenciosa a expresso simples do natural acrescenta por sua vez Madrus ao dar-nos a verso francesa. A literatura rabe ignora totalmente esse produto idoso da velhice espiritual que se chama inteno pornogrfica. Ela ri de todo co-rao onde um puritano gemeria de escndalo... O rabe, diante de uma melodia de cantos e flautas, diante de um lamento de ka-nun2, um poema de aliteraes em cascata, de um perfume de p de laranjeira ou jasmim, de uma dana de flor movida pela brisa, de um voo de pssaro ou da nudez de uma cortes... responde, no com este gesto brbaro e inarmnico, vestgio indiscutvel das raas ancestrais antropfagas que danavam em torno do poste da vtima e do qual fez a Europa sinal de alegria burguesa... seno com um ah!, grande, sabiamente modulado e esttico, porque o rabe um delicado instintivo que, moderado em pala-vras, s sabe sonhar...2. Kanun a tradio enfeixada em cdigos. (N. do T.)

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    Como a nossa inteno diferente da dos tradutores cita-dos e do texto rabe vertido, no necessitamos, de fato, dizer tan-to. Poderamos, de relance, recordar as cruezas anlogas e ainda piores da Bblia, livro sagrado de hebreus, cristos e rabes, em passagens como O Cntico dos Cnticos (Cantares de Salomo), L3, Tamar4, o Livro de Rute (como apndice do Livro de Juzes) e o de Judite5. Poderamos insistir que a imoralidade no est tanto nas coisas chamadas imorais, mas nos pecadores olhos dos que com repreensvel deleite as olham. Fez, pois, muito bem Mardrus em ser traduttore e no tradittore com sua verso literal literal at no pleonstico ttulo , que garantia de verdade, cativando em sua nudez de esttua o aroma primitivo que assim se crista-liza. Fez ainda melhor o velho Galland do sculo XVIII em dar-nos o texto expurgado de tais coisas, se que o original de onde traduziu, mais puro em si talvez que este outro texto rabe, as continha; mas a ns, em nosso mais alto propsito comentador, nada dele nos afeta, pois que no tratamos seno de meditar e fazer meditar nas purssimas doutrinas mais ou menos veladas, no tanto sob o primitivo texto, que se diz perdido, mas quanto a este outro vu cruel da carne corruptvel, que nos impede ver, segundo a universal lenda, as excelsas realidades suprassensveis que esto acima do sexo e que, como tais, so reveladas com a ini-ciao ocultista durante esta vida, ou com a morte quando, junto com a carne, desaparece o sexo e suas torturas essas torturas que nos parecem delcias graas, precisamente, a esse Vu do Sexo que assegura aqui em baixo a continuidade da espcie; mas que no deve nem pode continuar ali onde a reproduo animal do homem no continua.

    No tocante a revelaes, como a tudo, o bom ocultista deve ater-se estritamente etimologia e se velar lanar um vu ocul-

    3. L filho de Har, irmo de Abrao, portanto, sobrinho do patriarca dos hebreus. Foi pai de Moab e Amon, frutos da relao incestuosa com suas duas filhas. (Genesis) (N. do T.)4. Tamar mulher belssima, irm de Absalo. Amnon, irmo dela por parte de pai, se apaixonou por ela forando-a a ter relaes sexuais com ele. (Segundo Livro de Samuel) (N. do T.)5. Judite bela viva judia que foi forada a se envolver com o general assrio Holofernes, decapitando-o depois, para livrar a cidade de Betlia do domnio assrio. O Livro de Judite um dos dezesseis apcrifos. (N. do T.)

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    tador, revelare, voltar a velar, lanar segundo vu mais espes-so que o anterior, com o qual, ao cabo de algumas revelaes, a verdade fica, ao fim, mascarada, personificada (de persona, per-son, que significa em latim mscara ou caricatura), quer dizer, sepultada, caricaturada, quando no absolutamente perdida e in-visvel, qual tesouro que foi sepultado nas entranhas da terra ou qual rutilante sol dos cus quando se v encoberto por negrssima nuvem tempestuosa, e eclipsado pela sbita interposio da opaca lua... A tarefa do ocultista, pois, ao pretender levantar uma ponta do simblico Vu de sis, quer dizer, ao buscar a Verdade sem os Vus da Mentira, ir franca e diretamente contra todas as idiotas revelaes, considerando-as, o que elas efetivamente so: fbulas, ou seja, verdades com roupagens de mentira, e ir despojando-as, com trabalho paciente, dos mltiplos vus que a encobrem.

    A traduo literal de Mardrus, no sculo XIX(a), lana um vu recente anterior de Galland do sculo XVIII, e a de Mardrus v no velho livro uma novela humana exuberante de paixo com a linguagem franca, juvenil e sonora das meninas morenas nascidas nas tendas do Deserto, que no existem mais. O sentido ertico s conduz alegria, enquanto a pureza de Galland, se-gundo o prprio prefaciador de Mardrus-Blasco Ibaez, o genial e equivocado Gmez Carrillo, o levou a dar-nos dourados con-tos de crianas, que so, como queremos demonstrar com nossos comentrios, ensinamentos sublimes acima das religies vulgares e da enfatuada cincia contempornea. O sentido ertico era bem conhecido de quantos vagaram pelo Oriente e se deliciaram nos adorveis botequins rabes, onde se fumava o haxixe, ltimo pre-sente de Al aos homens. Se, pois, um nico sculo bastou para fazer mais espesso o vu cado sobre aquele grande livro primi-tivo, quantos no sero os que desde os bons tempos dos deuses prsis6 caram tambm sobre o prodigioso livro?

    Um estudo das origens de As Mil e Uma Noites, no que possa alcanar nossa falta quase absoluta de dados histricos, se 6. Prsis ou parses eram os antigos persas emigrados para escaparem da perseguio muulmana. (N. do T.)

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    faz indispensvel desde o comeo da tarefa a que nos impusemos como ocultistas, isto , como desveladores do que jaz suprave-lado, oculto e perdido.

    Comecemos pelo que nos ensinam os editores da obra de Mardrus, seguindo, no a ordem histrica, mas o inverso da que vai levantando os citados vus dos sculos.

    O Dr. J.C. Mardus prontificou-se faz alguns anos a dar a conhecer ao pblico europeu a magna obra com toda a sua fres-cura original. Mardrus era rabe de nascimento e francs de na-cionalidade. Nasceu na Sria, filho de nobre famlia de muulma-nos do Cucaso que, por haver-se oposto dominao russa, teve de trasladar-se para o Egito. Muitos dos contos que anos depois haveria de fixar para sempre com sua pena de tradutor artista os escutou em criana no colo das domsticas maometanas ou nas ruas estreitas e sombreadas do Cairo. Depois de haver estudado medicina e viajado muito pelo Golfo Prsico e pelo Oceano ndi-co como mdico de navio, sentiu o propsito de condensar para sempre a grande obra literria de sua raa, conhecida somente em fragmentos e com irritantes amputaes. A esta empresa enorme dedicou grande parte de sua vida, escrevendo os relatos ouvidos nas praas do Cairo, nos cafs de Damasco e de Bagd ou nas al-deias mouriscas do Imen, joias literrias mantidas unicamente pela tradio oral e que podiam perder-se. Como os poemas dos trovadores que depois figuraram sob o nome de Homero; como o Romanceiro do Cid e como todas as epopeias populares, o gran-de poema rabe pertence a diversos autores, segundo j dissemos, e diferentes povos colaboraram com eles atravs dos sculos. Os contos sobreviviam soltos, guardados pela memria dos contistas populares e pela pena dos escribas pblicos. O doutor Mardrus teve que peregrinar por todo o Oriente (Egito, sia Menor, Pr-sia, Indosto), anotando velhos relatos e adquirindo manuscritos, at completar em seus menores detalhes a clebre obra. A frescura original, a ingenuidade dos primeiros autores, foram respeitadas por Mardrus, mas realando-as e adornando-as com sua maestria de artista moderno. O doutor Mardrus um notvel escritor, e a

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    celebridade literria o acompanha duplamente em seu lar, pois est casado com a delicada novelista francesa Lucia-Delarne Mardrus. Para seu trabalho serviram de base as edies egpcias mais ricas em expresses de rabe popular, que ele ainda enriqueceu conside-ravelmente com novos contos e cenas tiradas da tradio oral e dos valiosos manuscritos adquiridos em suas viagens.

    Por confisso prpria sabemos, pois;

    a. que Mardrus, se por seus antepassados era montanhs prsi (hoje diramos armnio), por seu nascimento, edu-cao e tendncias era egpcio e srio, coisa muito impor-tante para nossa crena de que As Mil e Uma Noites so rias ou prsis em sua origem, havendo-as aviltado os se-mitas com seu sensualismo atravs de muitos sculos;

    b. que foi mdico com a natural propenso ideolgica, pois at o positivismo cientfico e o sensualismo poti-co parecem impregnar o seu trabalho;

    c. que viajou pelos mares e terras do Oceano ndico, pondo-se em contato com todas as lendas populares daqueles povos sensualistas, to diferentes da pureza prstina que existe em todos os grandes livros religiosos do passado como As Mil e Uma Noites em sua origem sem excluir nem mesmo a moderna de Jesus, que nos Evangelhos res-plandece, e que era ria tambm, ou seja, acima do sexo;

    d. que as criadas domsticas, os frequentadores dos cafs-fumadouros7 e dos mercados e caravaneiros extremamente rudes lhe adicionaram tradies orais derivadas do perdido livro e adornadas, como natural, com as sensuais fantasias e fraseologia prpria de tais lugares e de tal gente;

    e. que ainda nos velhos manuscritos que implorou aqui e ali realou sua fresca ingenuidade, adornou-os com maestria de artista moderno, glosando-os do uso sexu-al de tanta lamentvel literatura francesa que parece s feita pelo sexo e para o sexo;

    7. Locais onde as pessoas se reuniam para fumar narguil. (N. do T.)

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    f. que consultou edies egpcias mais ricas em expres-ses de rabe popular, pois as edies egpcias, quanto ao problema do sexo, so as mais semitas e as menos rias e influenciadas alm disso pelos rigores excitantes do clima do trpico;

    g. que a protagonista Scheherazade muito diferente da de Galland, como veremos a seu tempo;

    h. que tudo confirma, contra o prefaciador espanhol, a opinio dos entusiastas da tradio clssica deste lti-mo, que, segundo Gmez Carrillo, ope que na verso nova de Mardrus h mais detalhes, mais literatura, mais pecado e mais luxo, mas no mais poesia nem mais pro-dgio. Por cantar mais, as rvores no cantam melhor, e por falar com superior eloquncia, a gua no fala com maior graa. Todo o estupendo que aqui vemos: as pe-drarias animadas, as rochas que ouvem, os muros que se abrem, os pssaros que do conselhos, as princesas que se transformam, os lees domsticos, os dolos que se fazem invisveis, todo o fantstico, enfim, estava no velho e ingnuo livro. A nica coisa que o doutor Mar-drus aumentou a parte humana quer dizer, a paixo, os refinamentos e a dor. A nova Scheherazade mais artista. Tambm mais psicloga. Com detalhes infini-tos, explica as sensaes dos mercadores sanguinrios durante as noites de rapto, e as loucuras dos sultes nos dias de orgia. Mas no agrega um s metro ao salto do cavalo de bronze, nem faz maiores as asas da ave Roc; nem d melhores talisms aos prncipes amorosos; nem torna mais gordas as riquezas nas cavernas da monta-nha. Enfim... da palpitao formidvel da vida, Galland fez alguns aplogos morais.

    Concordamos com Mardrus que s existe um mtodo honrado e lgico de traduo: a traduo literal e em tal sen-tido nos eximimos muito bem de censur-lo; mas os partidrios

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    de sua traduo literal podem ver na clssica obra algo mais de literatura para uso, ainda que seja a primeira em mrito e em tempo, onde aparece o Oriente com suas fantasias exuberantes, com suas orgias sanguinrias, com suas pompas inverossmeis, nas quais se respira o perfume dos jasmins da Prsia e das rosas da Babilnia, misturado com o aroma dos beijos morenos, como sonho de pio... Tudo menos o doce e santo aplogo que nos apresentou Galland, e por trs do qual, como atrs das ardilosas roupagens de toda fbula, deve-se buscar uma Verdade perdida. Passar, pois, da nova verso de Mardrus anterior de Galland, por mais incompleta que esta parea comparada com aquela, tirar dela um vu, o vu da ltima degradao sexual-oriental semtica e da ltima degenerao europeia, tida, oh! dor e oh! aviltamento de gostos, pela suprema palavra da literatura sem be-leza e sem humanos objetivos: uma degenerao, enfim, na qual o polo negativo do sexo subiu cabea e anuviou o polo positivo da mente em prejuzo do prprio sexo e da espcie.

    O pensamento no tem sexo; a alma humana, tampouco, e mais: o verdadeiro amor que leva unio santa do homem com a mulher para constituir essa mnada social que se chama famlia, no genuinamente sexual em seu princpio, mas sim algo mais puro, pois comea pela simpatia e pela fantasia em alturas verdadei-ramente excelsas que, se bem acabam em lgica unio fsica, por mera e natural queda da roda do progresso em seus ciclos, como a neve pura quando se transforma em gua, a gua pura quando se transforma em lodo e o fecundo lodo, enfim, do qual as roseiras brotam em curso ascendente de novo, de todo o ciclo. Quando o astro rutilante se eleva nos cus e se reflete no lago no quando parece sepultar-se ele mais e mais nas guas do mesmo lago?

    Mas Mardrus se equivoca e muitos o seguem. As Mil e Uma Noites, de fato, no so, como ele diz, a grande obra imaginativa dos contistas semitas, mas sim destroado resto da obra inicitica dos rios de Bactriana ou da Armnia, melhor ou pior refletido no Hazar Afsanah persa, que se cr perdido, como este o foi por sua vez no Muruf Al Dahab Va-Djanhar, do sculo IX, atribudo

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    ao historiador do Califado Abul Hanan Ali Al Marudi, e no Kitab Al Fihrist, de Mohamed ben Ishak Al Nadin, do sculo X, e com base nessas obras formaram os semitas posteriormente o livro que conhecemos to castigado de sensualismo alcornico e bblico e to afastado, por conseguinte, da pureza prstina dos jainos, pr-sis, hindus, budistas, essnios e demais instituies iniciticas que conheciam seu esprito mais que sua letra. S tm razo os que acreditam no ser ela obra consciente, reflexiva e de um ou vrios autores sucessivos, mas sim livro como de aluvio, em cuja forma-o ou desintegrao lenta, melhor dito abarca em si, apesar de sua origem persa, toda a demopedia ou folclore islamita, copiada e recopiada mil vezes por escritos dispostos a fazer intervir seu dia-leto natal no dialeto dos manuscritos que lhes serviam de originais, acabando por ser receptculo confuso de todas as formas do rabe, desde as mais antigas at as mais recentes(b) .

    Os autores nos levam, como vemos, at o sculo IX ou X em sua excurso retrospectiva para encontrar naquela poca as origens do grande livro. Mas esta poca que mais ou menos corresponde dos esplendores do califado rabe em Damasco, Bagd e Crdoba, no a que vira nascer a dita obra inicitica, e a razo bem simples: seus protagonistas no so rabes, mas persas e trtaros; no aparecem huris alcornicas, seno prsis e devas persas; no se usam nomes rabes genunos, mas sim no-mes mais ou menos snscritos arabizados e nos quais o do Sol, da Lua, dos jinas, dos devas, dos efrites desempenham o principal papel, como iremos notando oportunamente.

    Alm disso, o livro em questo parente muito prximo de outras duas obras mestras ou snscritas dos rios: Hitopadesa8 ou Instruo proveitosa e o livro Kalila e Dimna, que at o s-culo VI foram traduzidos ao pli e deste ao persa e ao rabe nos sculos VIII e IX, ou seja, na poca em que a cultura islmica che-gou ao seu mximo esplendor. Nosso filsofo Don Jos Alemany y Bolufer, ao dar-nos a verso castelhana do Pachatantra snscrito 8. Palavra snscrita significando instruo ou ensinamento proveitoso. Ttulo de uma obra composta de uma coleo de preceitos morais compilados do Pachatantra. (N. do T.)

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    ou Livro das Cinco Sries de Contos, faz dos dois nomes Kalila e Dimna meros antecessores dos de Scheherazade e Dinarzada, pro-tagonistas de As Mil e Uma Noites, porquanto os nomes snscritos Karata-ka e Damana-ka (ou Karata e Damana, sem o sufixo ka diminutivo) equivalem ao de domadora ou triunfadora (bem adequado, pois que dominou com sua inteligncia de iniciada o lbrico e sanguinrio Shah-kariar, o sacrificador) e o outro o de gralha ou astuta (a clebre gralha ou poupa confidente to clebre em muitas suratas do Alcoro), com o que a filiao ria do men-cionado livro fica j estabelecida, sem que tenhamos necessidade de internar-nos em difceis etimologias. No ser demasiado tarde, no entanto, que, para ulteriores investigaes dos doutos, aponte-mos que o ttulo persa com que comeamos a conhecer As Mil e Uma Noites o de Hazar-Afsanah (azahar, perfume dos Assni-das, essnios ou curadores?) e nos outros ttulos, agora rabes, de Al-Dahab-ua-djanbar e de Al-Kitab-al-Fihrist, aparece o inevitvel nome dos djanhaur, djainos, djins, janos ou jinas, como no de Alf-Layyal-u-Layla, aparece por sua vez o tpico nome de Ka-lai-lah ou Kalila daquele outro livro rio mais primitivo.

    H que diz-lo sem rodeios, ainda que nossos doutos atu-ais da grande novela humana, exuberante de paixo e de sangue, se escandalizem: o vu da obra comea em seu ttulo, composto de um hieroglfico, o de mil e uma e de um nome simblico de noite, equivalente ao de ocultao ou vu, e citado hierglifo, em si, a chave mais antiga e mais preciosa que qualquer outra. Mil e Uma, em simbologia numrica, se escreve, de fato, assim:

    e desfazendo o hierglifo se passa a este outro:

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    que unido logo em um, nos leva ao signo lingual vdico

    ltima e incompreendida letra das quarenta e nove do al-fabeto snscrito dos rios, do qual se passa com inteira facilidade ao caduceu de Mercrio,

    a serpente boa e m, ou Agatho-daimon e Kaco-daimon da clebre Tau de Moiss e dos sacerdotes Faraon (Gnesis, xodo cap. VII) e, enfim, com uma nova decomposio por notrico9, ao conhecido hierglifo ou sis. Mil e Uma Noites foneticamente equivalem, pois, a Vu de sis, ou seja, a Livro em que certas ver-dades iniciticas jazem ocultas.

    Concordando com essas afirmaes, nos diz por isso a Mestra H.P.B. que em meio dos fantsticos desatinos de As Mil e Uma Noites, muito poderia encontrar-se digno de ateno se os relacionssemos ao desenvolvimento de alguma verdade histri-ca. A Odissia, de Homero, por exemplo, sobrepuja em aparente falta de sentido comum a todos os ditos contos juntos, e, apesar disso, est provado que alguns de seus mitos so muito mais que a criao imaginativa do velho bardo, porque, como disse Plato, os mitos so vestimentas poticas envolventes de grandes verda-des bem dignas de serem meditadas.

    Digamos, diante de tudo, que os precedentes do admirvel livro esto muito obscuros, por serem eles verdadeiras agadas10 9. Notrico processo cabalstico que consiste em formar palavras com as iniciais de uma frase, ou em formar frases com palavras s quais se d por iniciais cada uma das letras da palavra. (N. do T.)10. Do hebraico agadah, significando relato, lenda. (N. do T.)