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AS MANIFESTAÇÕES DO SABER POPULAR COMO PATRIMÔNIO CULTURAL E MODO DE VIDA EM COMUNIDADES TRADICIONAIS DA
CIDADE DE JANUÁRIA, NORTE DE MINAS GERAIS
Thays Barbosa Dourado Integrante do Grupo de Pesquisa OPARÁ – Grupo de estudos e pesquisas sobre
Comunidades Tradicionais do Rio São Francisco Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES
Maristela Corrêa Borges Integrante do Grupo de Pesquisa OPARÁ – Grupo de estudos e pesquisas sobre
Comunidades Tradicionais do Rio São Francisco Universidade Federal de Uberlândia - UFU
Resumo O seguinte trabalho está baseado na descrição, analise e registro da cultura imaterial da Folia do Terno dos Temerosos e do Terno de Folia da família dos Gastura, na cidade ribeirinha de Januária Norte de Minas, compreendendo as motivações para que essas modalidades de Reisado continuem ainda vivas e fortes nas manifestações culturais da cidade de Januária e também identificar, registrar e interpretar as estratégias de permanência, re-existência e reprodução dessas manifestações culturais nas comunidades tradicionais ribeirinhas e quais as associações ao rio São Francisco. Palavras-chave: Saber popular. Cultura. Comunidades tradicionais. Manifestações culturais. Identidade. Introdução O processo de modernização hoje se mostra responsável pelas transformações no modo
de vida das comunidades tradicionais que apresentam um modo singular de viver em
relação ao mundo e o espaço em que estão envolvidas. Esta afirmativa engloba as
comunidades ribeirinhas, que de acordo com De Paula e Brandão classificam o tempo
como “tempo de antigamente” e o “tempo de hoje” se referindo as modificações
ocorridas pela modernização, que ameaça sua identidade e as suas tradições. “Os
sistemas de valores ficam frágeis e sujeitos a riscos de rupturas” (2006, p.122). Em meio á sociedade da tecnologia, da modernidade, os diversos saberes que são disponibilizados, afastam os homens e as mulheres das suas falas, da oralidade, dos gestos, das palavras, das historias de suas vidas. Historias que fazem o espaço vivido de suas vidas no sertão e que entre e com as narrativas continuam repassando saberes, tradições, ritos, praticas de trabalho. (DE PAULA, BRANDÃO, CLEPS JUNIOR, 2006, p. 16)
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Mas essas populações usam de suas manifestações culturais como forma de reafirmar e
preservar os seus valores, o seu saber, o seu modo de vida e suas tradições.
Este trabalho é uma das pesquisas que compõe os projetos de pesquisa Etno-
cartografias do São Francisco: modos culturais de vida cotidiana, culturas locais e
patrimônios culturais em/de comunidades tradicionais no Norte de Minas Gerais e
Beira vida, Beira rio: Cultura, cultura popular e patrimônio cultural no Alto Médio
São Francisco que tem como objetivo de registrar e analisar diferentes modalidades de
saberes populares como patrimônios culturais construídos como modos de vida, através
de experiências vividas por comunidades tradicionais do sertão do Norte de Minas,
identificando registrando e interpretando as estratégias reprodução das manifestações
culturais nessas comunidades.
Serão tidas como objeto de pesquisa duas modalidades de manifestações culturais
existentes na cidade ribeirinha de Januária, o Terno dos Temerosos da comunidade da
Rua de Baixo a beira do Rio São Francisco e a Folia de Caixa da família dos Gastura na
comunidade de São Joaquim na zona rural da cidade. O que será relatado aqui foi
colhido através de entrevistas com atores diretamente envolvidos com os ternos e a
partir de observação participante realizadas em apresentações dos grupos e por
levantamento bibliográfico.
O lugar onde tudo acontece O Norte de Minas segundo De Paula e Brandão (2006) é geograficamente região
pertencente ao polígono das secas, ao Sudeste do Brasil, e para o planejamento estatal é
a Região Mineira do Nordeste (RMNe). O Sertão norte mineiro abrange uma
diversidade de cenários e paisagens. Lugar que foi palco de intervenções do poder
publico, direcionadas para programas de complexos agroindustriais em benefícios de
poucos, gerando desigualdade social.
O Sertão é bem retratado por João Rosa Guimarães em sua vasta literatura: Sertão é isso, a senhor sabe: tudo incerto, tudo certo. Dia de lua. O luar que põe a noite inchada... Sempre nos gerais, é a pobreza, à tristeza. Uma tristeza que até alegra. O sertão é do tamanho do mundo. (...) o gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão esta em toda parte. (GUIMARÃES, 2001, p. 23-24) Sertão. O lugar era bonito. O céu subia mais ostentoso, mais avistado do que na Mata do Oeste, azuloso com uns azinhavers, ali o céu parecia mesmo o
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Céu, de Deus, dos anjos. (...) ao bater daquela enorme luz, o ar um mar seco. (...) E a gente, bom povo. (GUIMARÂES, 2001, p.179)
Confirmamos o sertão roseano com a diversidade de cenários naturais, a pluralidade de
culturas e povos tradicionais. Tendo cinco tipos de vegetação: cerrado, cerradão,
caatinga, matas secas e campo limpo, “essa paisagem árida e inóspita, seca de atrativos
e estímulos, não compôs o circuito do capital mercantil da colônia, que iniciou a
exploração do Brasil pelas áreas litorâneas e, posteriormente, pelo seu interior”.
(ISIDÓRIO, 2010, p. 12) Assim, o sertão no passado foi estigmatizado e deixado à
margem, junto à população que o habitava. O Sertão só começou a ser entendido a partir
das interpretações de autores como Euclides da Cunha em “Os sertões” e nas diversas
obras de Guimarães Rosa. Estes autores demonstram uma múltipla e diversa cultura
sertaneja que passou a ocupar um lugar de destaque em estudos da academia brasileira.
Para Costa a cultura sertaneja (...) será o resultado do caldeamento de modos de comportamentos, relações, saberes e fazeres de etnias diferenciadas que se colocaram em contato no território norte mineiro bem como as transformações verificadas, com o passar do tempo, em função das articulações das populações existentes com homens de outras regiões. Os parâmetros sociais e culturais que nortearam o estabelecimento desses modos de comportamento, regras de relacionamento e o conhecimento do ambiente eram do tipo ocidental e judaico-cristão. (COSTA, 1997, p. 82)
O povo sertanejo, ainda segundo o autor, possui laços de solidariedade que regem as
relações de parentesco, vizinhança e compadrio dentro da comunidade. Lopes (2010)
diz que estas praticas sertanejas surgem como uma estratégia de organização e
estruturação do grupo. Essas relações são parte da constituição e do processo de
reafirmação das “gentes do Sertão” na sociedade.
O Sertão devido ao seu processo de formação e povoação formou uma cultura
particular de várias faces. Os povos do Sertão produzem e reproduzem as
representações do seu modo de vida a partir das mais diversas manifestações culturais.
É por meio dessas manifestações que eles se afirmam como pertencentes ao lugar em
que vivem, que afirmam a sua identidade, e a sua cultura.
A cidade de Januária, localizada no Sertão norte mineiro, banhada pelo Rio São
Francisco, é o local de pesquisa do presente trabalho. De acordo com o IBGE (2010) a
cidade possui uma área territorial de 6.661.653 km² e uma população de 65.463
habitantes. A população é formada pela mestiçagem de índios, negros e portugueses. O
processo de ocupação do município aconteceu no inicio do século XVI com a chegada
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dos bandeirantes em busca da extração de riquezas minerais e com a ocupação do
território para o desenvolvimento da pecuária. O município era inicialmente conhecido
por Porto do Brejo do Salgado, possuía um porto fluvial que era considerado ponto
central para escoamento e comercio de mercadorias da região durante todo o período
colonial tendo seu auge no século XIX, e foi a principal via de acesso para a integração
das regiões Sudeste e Zona da Mata nordestina por meio de vapores no século XX
(FONSECA, 2009).
Analisando o processo de ocupação e formação da cidade de Januária, podemos
destacar o papel fundamental que o Rio São Francisco teve em tal processo, foi por
meio dele que no decorrer da historia se formou a cultura das comunidades ribeirinhas
norte mineiras. Três processos históricos então parecem ter contribuído de forma clara na constituição de especificidades culturais da região de Januária: um que se deu em função do próprio rio São Francisco, a partir da cultura de barqueiros, remeiros e aquela produzida pelo transito da navegação a vapor; outro trazido “em ondas”, de caráter rural, forjado por tropeiro vindos do nordeste, do centro-oeste e também do sul do país que lá estabeleceram pequenas e grandes fazendas; além daquele cultivado cotidianamente pelos que se fixam, ou retornam, à terra e dinamicamente reelaboram as influências recebidas. (FONSECA, 2009, p. 23)
De acordo com Fonseca (2009) com a implantação das fazendas e a criação de gado, a
região do Norte de Minas foi povoada por povos paulistas que desbravaram o sertão
criando “O Caminho Geral do Sertão” e os baianos que subiram o rio São Francisco
pelo interior. Januária em 1870, após se tornar cidade, ocupava uma posição central no
oeste do Norte de Minas. Dessa forma, os variados grupos sociais que se fixaram às margens do rio São Francisco, historicamente chamado na região de “barranqueiros”, se configuram condicionados por fluxos migratórios intensos e a partir das confluências culturais das mais diversas. (FONSECA, 2009, p. 19)
No período em que o Rio São Francisco foi o principal meio de transporte de produtos
e pessoas, foi também via dupla para chegadas e partidas de influências culturais. Em
Januária isso é evidente, Esses processos históricos contribuíram para a formação das
especificidades culturais da cidade. “Seguindo essa vocação, o município, é hoje,
importante polo cultural para todo o Norte de Minas Gerais, compondo um celeiro de
manifestações e folguedos ligados à cultura popular de caráter tradicional.”
(FONSECA, 2010, p. 2).
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Religião e Festa: o sagrado e o profano presente nas manifestações culturais de comunidades tradicionais. Culturas tradicionais para Diegues (2001, 87) “são padrões de comportamento
transmitidos socialmente, modelos mentais usados para perceber, relatar e interpretar o
mundo, símbolos e significados socialmente compartilhados, além de seus produtos
materiais”. O saber popular singular se viu ameaçado pelo processo de modernização e
pela expansão do sistema capitalista que trouxe a indústria cultural e a cultura de massa,
buscando a popularização e dominação de uma só cultura: a capitalista, massificando e
alienado as demais. Adorno (1986, p.93) afirma que: Na medida em que nesse processo a indústria cultural inegavelmente especula sobre o estado de consciência e inconsciência de milhões de pessoas as quais ela se dirige, as massas não são, então, o fator primeiro, mais um elemento secundário, um elemento de calculo, acessório de maquinaria. O consumidor não é rei como a indústria cultural gostaria de fazer crer, ele não é o sujeito dessa indústria, mas o seu objeto.
O conceito de cultura se mostra essencial para a explicação de toda a simbologia
presente nas manifestações culturais de uma comunidade. Segundo Clifford Geertz
(1989) a cultura seria uma “teia de significados” essencialmente semiótica, ou seja, um
sistema de significações dos fenômenos culturais. Assim ele mesmo afirma: Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua analise, portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, a procura do significado. É justamente uma explicação que eu procuro, ao construir expressões sociais enigmáticas na sua superfície. (GEERTZ, 1989, p.15)
Assim a cultura para Geertz (1989) se torna responsável por produzir o saber popular
que de acordo com De Paula; Brandão; Cleps Junior. (2006, p.3) São falas, os gestos, as impressões, as aparências, que vão construindo as redes de significados das ações e representações dos homens e das mulheres que então vão delimitando os territórios em espaços que se criam e se identificam em lugares e que vão se constituindo na paisagem.
Manifestações culturais como a do grupo de folia do Terno dos Temerosos e do Terno
de Folia dos Gastura trazem em si, além de toda simbologia, uma forma de relembrar,
reconstruir e preservar lembranças do passado que carregam muito da identidade dessas
comunidades. Para Bosi (2004) a lembrança é a sobrevivência do passado, ela é uma
imagem que criamos a partir do que vivemos, depois de toda mudança que sofremos
com o passar do tempo. Guardada na memória essa lembrança vem a tona como forma
de reafirmar a identidade da comunidade, de manter ainda viva as suas tradições, o seu
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modo particular de vida por meio das manifestações culturais, dos ritos e festas. Bosi
vai dizer que A memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo “atual” das representações. (...) A memória teria a função pratica de limitar a indeterminação (do pensamento e da ação) e de levar o sujeito a reproduzir formas de comportamento que já deram certo. (BOSI, 2004, p. 46-47)
A religião esta intimamente relacionada à construção do saber popular, por meio dela
que os homens que justificam a sua vivencia. A religião “é, em partes, uma tentativa de
conservar a provisão de significados gerais em termo dos quais cada individuo
interpreta sua experiência e organiza sua conduta.” (GEERTZ, 1989, p. 93). Ainda
segundo Geertz os aspectos morais e os aspectos cognitivos e existenciais de uma
determinada cultura religiosa são divididos. O aspecto moral se refere ao caráter, à
qualidade de vida, ao estilo moral e estético, é o ethos de um povo. Já o cognitivo,
existencial se refere à visão de mundo, de como o povo conceitua a natureza, a si
mesmo e a sociedade na realidade. Daí a explicação para tantos rituais religiosos que
representam à fé e a realidade da comunidade. Pois a crença religiosa e o ritual confrontam e confirmam-se mutuamente, o ethos porque é levado a representar um tipo de vida implícito no estado das coisas reais que a visão de mundo descreve e a visão de mundo torna emocionalmente por se apresentar como imagem de um verdadeiro estado de coisas do qual esse tipo de vida é expressão autentica. (GEERTZ, 1989, p. 92)
Se a religião é responsável por justificar a existência do homem, por dar sentido a vida,
por definir a sua conduta, os seus valores e a sua crença, a festa por sua vez aparece
como um instrumento para se celebrar a memória as tradições da comunidade. De
acordo com Durkheim (2003) a festa tem como função manter vivas as crenças é
impedir que elas se tornem esquecidas na memória da coletividade. Ela promove a
união do grupo, traz o sentimento de solidariedade e de pertencimento à comunidade,
reforçando os laços sociais. Toda festa, mesmo quando puramente laica em suas origens, tem certos traços de cerimônia religiosa, pois sempre tem por efeito aproximar os indivíduos, por em movimento as massas e suscitar, assim, um estado de efervescência, às vezes até de delírio, que não deixa de ter parentesco com o estado religioso. (DURKHEIM, 2003, p. 417)
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Para Brandão (1989) a festa teria como função quebrar a rotina da comunidade, os
fazendo deixar de lado os problemas cotidianos levando-os a celebrarem aquilo que é
sagrado a eles, fortalecendo assim os seus laços. A festa é uma fala, uma memória e uma mensagem. O lugar simbólico onde cerimonialmente separam-se o que deve ser esquecido e, por isso mesmo, em silencio não festejado, e aquilo que deve ser resgatado da coisa ao símbolo, posto em evidencia de tempos em tempos, comemorando, celebrando. Aqui e ali, por parte interrompe a seqüência do correr dos dias da vida cotidiana e demarca os momentos de festejar. (BRANDÃO, 1989, p.8)
As manifestações culturais trazem em si simbologias, valores morais e religiosos que se
traduzem na identidade e num modo de vida particular da comunidade. Na religião e nas
festas essas comunidades reafirmam e mantém vivas as suas crenças, tradições e sua
identidade.
A folia de reis A Folia de Reis é hoje no Norte de Minas uma das manifestações culturais religiosas
mais disseminadas na região. Segundo Guedes (2009) na tradição cristã oral a Folia de
Reis celebra a caminhada dos Três Reis Magos, Baltazar, Melchior ou Belchior e
Gaspar, que saíram cada um com um presente em busca do menino Jesus, ela teria
chegado ao Brasil no período do Brasil colônia junto com os portugueses. Para Fonseca
(2009) a celebração da epifânia do período de Reis e uma ressignificação das antigas
festas pagãs promovidas pela igreja católica no seu processo de cristianização no século
XIV, que os jesuítas mais tarde usaram para cristianização dos gentios nos primeiros
anos do Brasil Colônia. Assim, os Reisados como também são denominadas as Folias
de Reis, seria A denominação erudita para os grupos que cantam e dançam na véspera e dia de Reis (6 de janeiro). Em Portugal diz-se reisada e reiseiros, que tanto pode ser o cortejo de pedintes cantando versos religiosos ou humorísticos, como os autos sacros, com motivos sagrados da historia de cristo. No Brasil a denominação, sem especificação maior, refere-se sempre aos ranchos, ternos, grupos que festejam o Natal e Reis. (CASCUDO, 1971 apud FONSECA, 2009)
No Sertão Norte Mineiro é muito forte a tradição da Folia de Reis uma modalidade de
musica de tradição oral, que usa da música dita caipira, que de acordo com Martins
nunca aparece só, enquanto musica, não apenas porque tem sempre acompanhamento
vocal, mas porque e sempre acompanhado de algum ritual religioso. A Folia existe em
“variadas modalidades: Reis de caixa, Reis dos Cacetes, Reis das ciganas, Pastoras, nos
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quais notam se especificidades quanto a musica, dança, indumentária, performance e
ritual” (FONSECA, 2009, p. 57). Em Januária essas manifestações ocupam um lugar
simbólico especifico, por serem responsáveis pela construção e reposição da identidade
de diferentes grupos.
Temerosos: a sua origem O Terno dos Temerosos é uma modalidade de reisado conhecido também por Reis do
Cacete ou Marujada de Água Doce. (...) bastante rara, embora encontre similares em alguns municípios espalhados pela calha do Médio São Francisco. No entanto, parece ser em Januária que, até hoje se mantém forte e representativa, tendo os Temerosos como provavelmente, seu único representante ativo no país (FONSECA, 2010, p.3).
Seus integrantes vestidos de marinheiros, como mostra a FIG. 1, dançam passos
sincronizados com bastões de madeira nas mãos que representam à arma do lutador e
que durante a apresentação se tocam a todo o momento.
Figura 1 – O Samba dos Temerosos
Fonte: Thays Dourado, outubro de 2011.
Há registros de sua origem na década de 1950. Esta modalidade foi fundada por um
pescador negro, o Sr. Norberto Gonçalves dos Santos mais conhecido por Berto Preto,
que foi morador da Rua de Baixo, reduto de pescadores localizado as margens do Rio
São Francisco. Segundo João Damasceno, historiador, poeta e atual Imperador do
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Terno, foi Berto Preto que aprendeu e ensinou a comunidade da Rua de Baixo como se
realizava o ritual da folia do Terno dos Temerosos. A marujada chegou aqui em Januária No século passado através de um marinheiro de vapor. Nessa época o São Francisco era a grande via de levar e trazer coisas na região. (...) Então aportou aqui em Januária um marinheiro, a gente só sabe o primeiro nome, Dermeval. (...) Ele ensinou para Berto Preto algumas musicas, a coreografia e como que se dançava, Berto preto ensinou a comunidade da Rua de Baixo. Para os pescadores estava nascendo o Terno dos Temerosos em Januária. (João Damasceno de Almeida, entrevista concedida em outubro de 2011)
Sua principal função é o giro de apresentações que eles cumprem entre os dias 2 e 6 de
Janeiro em louvor aos Santos reis, mais também se apresentam durante todo o ano nos
principais eventos da cidade, já que é considerando um dos principais símbolos culturais
de Januária.
Figura 2 – Grupo veterano do Terno dos Temerosos
Fonte: Thays Dourado, Janeiro de 2012
Existem grupos similares ao Terno dos Temerosos em vários municípios ribeirinhos
espalhados pela calha do Rio São Francisco, mas apenas em Januária esse grupo tem
existido e é a principal referência de cultura popular da cidade (FONSECA, 2010).
Assim tendo o Velho Chico como meio de transporte, a cultura ribeirinha se compõe a
partir dos diversos lugares, cidades e comunidades banhadas por ele.
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A função Os Foliões ou marinheiros usam em suas apresentações uma farda de marinheiro, que
faz menção à marinha. Elas se apresentam na cor branca e azul da cor mar. Levam nas
mãos um bastão de madeira de cor branca, que é usado em sua performance
Mesmo se apresentando em todos os principais eventos de Januária a mais importante
apresentação do Terno dos Temerosos acontece entre os dias 2 e 6 de Janeiro. O quadro
abaixo mostra as principais performances do grupo durante o ano. Em janeiro é
realizado o Giro da folia, comemorando o nascimento do menino Jesus. É realizada uma
trajetória representando o caminho que os três reis magos fizeram no nascimento de
Cristo.
Tabela 1 – As funções
Datas Acontecimentos 3 de maio
Festa de Santa Cruz
7 de outubro
Festa dos Santos do Rio
2 a 6 de janeiro
Giro da Folia em louvor aos Três Reis Magos
20 de janeiro
Giro da Folia em Louvor a São Sebastião
Fonte: dados de pesquisa de campo. Thays Dourado, Janeiro de 2012
O Ritual se inicia na Casa de Cultura Berto Preto, um local criado dentro da
comunidade da Rua de Baixo com o propósito de ser um ponto de apoio comunitário, e
também local de encontro do grupo de folia. Quando os marujos já estão todos reunidos
na casa de Cultura, eles fazem uma oração e os mais velhos tomam o “esquenta”, um
gole de cachaça, antes de sair com a folia. Sendo já às 18 horas, eles soltam rojões para
anunciar aos moradores que a folia já vai sair pelas ruas.
Os foliões Saem pelas ruas cantando em duas fileiras com um folião a frente carregando
a bandeira do Terno. O trajeto percorrido por eles é feito anteriormente, quando chegam
a uma casa em que foram convidados a se apresentar eles entregam a bandeira para o
morador e se colocam em frente à casa ainda em duas fileiras. Agora de frente um para
o outro eles cantam o reis de saudação ao menino Jesus e tocam os bastões em marcha
lenta.
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Nós pastores lentamente Boas novas vamos dar Que Jesus recém-nascido Que Jesus recém-nascido Veio ao mundo nos salvar No Oriente da minh´alma Boas novas viemos dar Que nasceu em um presépio Que nasceu em um presépio Veio ao mundo nos salvar
Depois da saudação eles se organizam em roda e com mais velocidade eles começam o
samba, animando os moradores da comunidade e todas as pessoas que vão para assistir
a apresentação do Terno. No samba os passos são rápidos e a música mais animada.
Marcha dos temerosos
O reis dos Temerosos que já vai brigar O reis dos Temerosos que já vai brigar Rebate companheiro aonde o pau pegar Rebate companheiro aonde o pau pegar Segura, segura, segura a vida Segura, segura, segura a vida Segura a pancada quem não tem quarida Segura a pancada quem não tem quarida Chamando o Salvador para nos salvar Chamando o Salvador para nos salvar É o reis dos temerosos que já vão brigar É o reis dos temerosos que já vão brigar
Depois da roda de samba o grupo dá um intervalo e se o dono da casa tiver algo a
oferecer este é o momento. Geralmente eles oferecem alguma coisa para comer e para
beber, o grupo se serve e a população presente também é servida. Logo após, eles se
organizam para a retirada, assim, novamente em duas filas eles cantam o reis da
despedida.
Despedida dos Temerosos
A retirada, meu bem, a retirada Acabou-se a nossa função Se a morte não me matar, olêlê Ora deus até para o ano
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A primeira se chama Antõnia A segunda Ana Isabel A terceira Ana do Porto, olêlê Com seu laço de fita amarela.
Depois de se despedirem da casa que se apresentaram eles seguem a sua trajetória
sempre à frente até a próxima casa, refazendo todo o ritual e assim sucessivamente até
que chegue a madrugada, quando os foliões vão para casa descansar para o próximo dia
de Ritual. O que marca o fim do giro da folia do Terno dos Temerosos e uma festa que
acontece alguns dias após o Giro, entre os integrantes do Terno.
O terno de folia de caixa da família dos Gastura: o inicio de tudo O Terno de folia da família dos Gastura, como é conhecido na comunidade de São
Joaquim distrito de Januária, é um dos muitos ternos de folia existentes na região.
Tendo já 23 anos o grupo de folia foi criado a partir de uma promessa feita pelo pai da
matriarca da família a Sra. Carolina Lisboa das Neves, a dona Calú. O seu pai o Sr.
Joaquim Francisco das Neves Sales, que na verdade era o avô de dona Calú mais foi
quem a criou, fez uma promessa aos três Reis Magos e acabou falecendo antes de
cumpri-la. Assim, segundo as narrativas da família o Sr. Joaquim apareceu em sonho a
sua filha e a pediu que cumprisse a sua promessa. E assim aconteceu, seus filhos foram
crescendo e dona Calú foi explicando a importância de sua família cumprir a promessa
de seu pai. O seu filho Antônio Carlos foi quem ficou responsável pela formação do
terno, ele foi o primeiro folião de guia da folia e ate hoje ocupa esse cargo.
Assim, no ano de 1988 foi realizada a primeira festa do terno de folia da família dos
Gastura. Segundo Antonio Carlos uma promessa feita aos três Reis Magos e cumprida
em três anos já que são três reis, por isso foram necessárias três festas pra se cumprir a
promessa do Sr. Joaquim.
A folia que em sua maioria é composta por membros da família e por amigos e
simpatizantes cumpriu a promessa e continuou com terno e hoje é conhecido por ser
uma folia animada, bonita e jovem. Antonio Carlos o Folião de Guia da família relata: A nossa folia é mais o pessoal da família, e graças a Deus Deu certo,chegamos a sair. Quando eu comecei em 88, nos saímos à folia dia 24 de dezembro pra cantar todo o São Joaquim. Saímos daqui morto de cansado, só ficou as casas que estavam fechadas e os crente né?...(...) a gente sempre foi uma folia bonita de jovens, que canta bem, coisa e tal. (Antonio Carlos Lisboa Sales, 2012).
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O terno de Folia dos Gastura hoje é composto por mais ou menos 30 foliões que podem
cantar e tocar ou só cantar ou só tocar. Existem foliões que integram a folia desde o
inicio que é o caso de Antonio Carlos, mas hoje se vê uma grande quantidade de jovens
participando do terno como foliões. O terno de folia hoje é tradição da família. As
crianças crescem nesse ambiente e vivem tudo isso. É formada então uma identidade e
assim, se torna natural a continuidade da tradição a partir da transmissão de valores as
crianças e jovens. De acordo com Guedes (2010, p. 4) “a identidade de um povo pode ser
representada pelas suas narrativas orais, uma vez que incorporam nas suas falas ideologia,
crença, valores, costumes e o comportamento dos seus indivíduos.” Isso reforça mais a
naturalidade com que são repassadas as tradições dentro de uma família ou comunidade.
Antonio Carlos ao ser perguntado como é transmitida a tradição da folia aos jovens relata: Eu acho que é por incentivo e por ver a família ali nessa tradição e por interesse deles também. Eles acha bonito entendeu? Quer se tornar um folião dos três Reis Magos e ai o incentivo que já vem da formação do terno. A vontade deles de ser um folião, que é uma coisa bonita e eles também acham. Rafael vai ser um grande doutor, faz medicina, mais é um folião. Ta lá cuidando dos estudos dele, mais aqui vem correndo pra pegar sua viola, é um bom violeiro. (Antonio Carlos Lisboa Sales, 2012)
A função Os foliões usam durante toda apresentação do terno uma toalha em volta do pescoço,
como mostra a Fig. 3 que levam a imagem dos três Reis Magos do lado direito e do lado
esquerdo a imagem da gruta de Belém, onde estão São José, a Virgem Maria e o
Menino Jesus, também uma bíblia, simbolizando o evangelho e uma pomba
representando o Divino Espírito Santo.
Figura 4 – Terno de Folia dos Gastura
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Fonte: Thays Barbosa Dourado
Os instrumentos utilizados pelos foliões durante suas apresentações nas festas são a
viola, violão, cavaquinho, caixa, pandeiro, sanfona, triângulo e o balaim. Eles cantam
reis, sambas, samba de terreiro, guaianas e quatro. Dentro do terno dos Gastura existem
vários reis, cada um para um momento especifico são eles o reis de lapinha, o reis de
morador, o reis de agradecimento de mesa, reis do nascimento de cristo, reis de
cemitério, reis de promessa, reis de saída , reis de curral, reis de chegada/entrega, reis
dos cozinheiros e o reis da despedida.
O reis possui o papel importante, pois é com ele que se pagam as promessas, se saúda e
se agradece durante todos os rituais. O cantar do reis é comandado pelo Folião de Guia
que faz a primeira voz, acompanhado por um folião que faz a segunda voz, a resposta e
feita pelo segundo guia que faz a primeira voz e a segunda voz por outro folião. O
samba, o samba de terreiro, a guaiana e o quatro são modalidades musicais mais
agitadas para a diversão da festa, nelas todos os foliões podem cantar juntos.
Antonio Carlos é o primeiro folião de guia do terno de folia dos Gastura e até hoje ele
ocupa esse cargo. O Folião de Guia é a maior hierarquia num terno de folia de reis, é
uma espécie de líder do grupo, é ele quem toma as decisões e comandar a folia junto
com o Alferes. O Folião de Guia é quem manda ou quem inicia os reis da folia.
O Alferes é quem guia os foliões ele é responsável por traçar a rota, o caminho a ser
percorrido no giro da folia. É ele quem vai a frente carregando a bandeira do terno que é
o símbolo da folia, onde tem a imagem dos Três Reis Magos. Como em uma metáfora a
folia ele segue a estrela guia que os levará ao Menino Jesus. Como é ele quem vai à
frente da folia o Alferes tem quer ser um homem atento aos sinais que podem estar
presentes na estrada à espera da folia durante o giro, com, por exemplo, velas em um
curral, que significa que ali tem uma promessa pra folia cantar. Por isso um Alferes tem
que conhecer de folia, geralmente ele é o homem mais velho do terno. O atual Alferes
da folia de reis dos Gastura é o Sr Valdivino Lopes de Araujo, o Divino como é
chamado. Ele é genro de dona Calú, assim também faz parte da família.
O folião dentro de um terno de folia tem duas funções principais. Ele pode cantar o reis
se tiver boa voz, como afirma Antonio Carlos, ou tocar algum instrumento, e até mesmo
os dois.
Os companheiros é uma categoria criada na folia dos Gastura pra denominar os homens
que acompanham, ajudam na folia cantando ou tocando mas não seguem todo o giro.
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Na folia dos Gastura há sempre uma pessoa responsável pela festa de cada ano. Ela é
chamada de Imperador. Ele é quem procura a Folia e se oferece pra organizar a festa,
seja por vontade de fazer uma festa de Folia de Reis ou por pagamento de uma
promessa. Ele é quem vai arca com os gastos e organizar as festas, mas segundo
Antonio Carlos sempre aparece alguém que se oferece pra fazer o 24 e outra pessoa pra
fazer a saída, ficando para o Imperador a maior festa que é a Folia de Reis, que fecha o
ciclo de atividades da folia.
O Terno de Folia dos Gastura cumprem o seu ciclo ritualístico entre os dias 24 de
dezembro e 6 de janeiro como mostra o quadro abaixo.
Tabela 2 – Ciclo ritualístico dos Gastura
Fonte: dados de pesquisa de campo. Thays Dourado, Janeiro de 2012
Dentro desse ciclo acontecem três festas: a do vinte e quatro, a Saída da Folia e a Festa
de Reis. O Vinte e quatro ou Vinte e cinco é a festa que abre o ciclo de festividades da
Folia. É assim chamado por acontecer da noite do dia 24 de dezembro para o dia 25.
Nela se comemora o nascimento de Jesus Cristo a meia noite e no dia 25 os foliões
fazem a saudação no cemitério, cantam reis na lapinha da igreja e nas lapinhas das casas
da comunidade de São Joaquim. A Folia dá um intervalo de alguns dias e pode retornar
nos dias 29, 30, ou 31 de dezembro na próxima festa que é a Saída da Folia, nela se
inicia o giro da Folia que vai até o dia 4 de janeiro. A terceira festa é a Festa de Reis, ela
é a maior festa do ciclo, ela ocorre da tarde do dia 5 para a manhã do dia 6 de janeiro
que é o dia em que se comemora o dia de Santos Reis. Esta festa marca o final dos
rituais do Terno de Folia da família dos Gastura que só voltará a se apresentar em
dezembro em uma nova festa.
Datas Acontecimentos
24 de Dezembro Vinte e cinco
25 de Dezembro Nascimento de Cristo, Saudação ao cemitério, à igreja e às lapinhas
28, 29, 30 ou 31 de Dezembro Saída
Data da Saída até 4 de Janeiro Giro
5 de Janeiro Chegada ou Entrega
6 de Janeiro Reza à meia noite e Despedida
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Conclusão Dentro de uma comunidade tradicional é construído um modo de vida particular, um
padrão de comportamento que configura valores morais, étnicos e religiosos de
comunidades tradicionais, representado pelas manifestações culturais do grupo. E é por
meio das representações simbólicas, das manifestações culturais que esses povos
revelam sua identidade, a sua história e se identificam como pertencentes ao lugar em
que nasceram cresceram e criaram seus filhos e netos. Transferem o seu saber à
comunidade por meio de uma oralidade que caminha de geração a geração.
A memória tem um importante papel na permanência e na reprodução das
manifestações culturais, ela traz do passado o que deu certo, o que identifica o grupo, o
que os fazem se reconhecer como são.
E são as memórias do grupo, dos velhos que veem como lembranças e se materializam
nas festas, nas tradições, no trabalho, no modo de vida, fazendo com que o “tempo de
antigamente” considerado por eles melhores, não se perca totalmente nos “tempos de
hoje”. Essa é uma constante luta dessas comunidades para não perderem a sua
identidade, a sua significação e a partir disso se vê a importância da memória, da
lembrança para a permanência das manifestações culturais.
Consideramos que as manifestações tradicionais representam um modo de vida dos
ribeirinhos que vivem nas margens do rio. As celebrações envolvem o sagrado, o
profano e definem a identidade do povo, provocando a continuidade das tradições e o
pertencimento ao lugar. Com a realização da Folia de Reis da família dos Gastura e do
Terno dos Temerosos os moradores comemoram os santos, pagam promessas e
resignificam o viver comunitário.
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