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Artigo sobre a Folia de ReisTRANSCRIPT
I ENCONTRO DE PESQUISADORES DA HISTÓRIA DA ZONA DA MATA MINEIRA
A FOLIA DE MESTRE CÉLIO EM RIO POMBA: UMA PERSPECTIVA ETNOMUSICOLÓGICA. Marcelo de Castro Lopes
Introdução
Seu Joaquim é uma das pessoas mais conhecidas e queridas de Rio
Pomba, cidade situada na Zona da Mata de Minas Gerais. Não sabe ao certo a
idade que tem. As especulações sobre o assunto giram entre 77 e 83 anos. Sua
resposta às brincadeiras sobre o fato de ser solteiro é sempre a mesma: “Tenho
medo de mulher”. Muitos o conhecem por Joaquim Cangalha. Segundo ele por que
“carregava muito peso na cacunda” nos tempos de trabalhos pesados na roça. Hoje
seu Joaquim é aposentado como trabalhador rural e mora na cidade em um
pequeno cômodo alugado na casa de Dona Geralda, viúva de Seu Zé Satiro.
Dentre suas posses, que não são muitas, estão um pandeiro, uma gaita e um
cavaquinho. Tem por hábito ir para a praça, onde toca seus instrumentos na
companhia de sanfoneiros, violonistas e cantores que ali se reúnem religiosamente
todas as tarde de domingo. Tocam músicas que remetem a um universo rural bem
conhecido da maioria deles. Tocam para si mesmos. Calangos, valsas e mazurcas
integram o repertório, em sua maior parte baseado em gravações de música
caipira. Mas a partir do final de novembro, Seu Joaquim se ausenta destes
encontros. Ele tem compromisso com um grupo que inicia seus ensaios neste
período. Este grupo é a folia de mestre Célio.
Mestre Célio conta que começou a sair com sua folia em 1998. Ele deixa
clara sua intenção de dar continuidade a uma prática que vem sendo passada de
geração em geração em sua família. Seu avô foi folião, assim como seu pai. Alguns
anos após a morte de seu pai, Célio decidiu montar uma folia. Entretanto, seus
filhos não demonstram interesse em manter a tradição. Célio afirma que “eles
gostam de forró”. A maior parte dos instrumentos lhe pertence: sanfona, caixa,
triângulo, violão e pandeiro. O número de integrantes varia de ano para ano. A folia,
que já chegou a contar com doze integrantes, hoje possui sete. As visitas às casas
se iniciam dia 25 de dezembro e vão até dia 20 de janeiro. Entretanto, estas só
ocorrem nos finais de semana e feriados, quando a maioria dos integrantes está
livre de compromissos de trabalho. Até o dia 6 de janeiro a folia é de reis. Entre os
dias 6 e 20 de janeiro, a folia é de São Sebastião. O uniforme e a bandeira são
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diferentes nas duas folias. Existe uma “toada” – como os foliões chamam a música
que cantam – de entrada e outra de saída. As “toadas” são as mesmas em ambas
as folias. Apenas os versos, que antes tratavam da viagem dos reis magos, passam
a narrar passagens da vida de São Sebastião. O canto é a várias vozes e
acompanhado por instrumentos. Durante as visitas, são recolhidas esmolas.
Tive a oportunidade de entrar em contato com esta folia em função de
possuir parentes que residem na cidade. Sabendo de meu interesse por folias, meu
primo Altair Rocha me apresentou a mestre Célio quando seu grupo fazia visitas
numa localidade na área rural de Rio Pomba conhecida como Córrego dos Ferreira,
em 2001. Sabendo por meu primo de meu interesse, Mestre Célio me convidou a
integrar a folia, o que fiz entre os anos de 2002 e 2009. Para uma melhor
compreensão do significado desta atitude é necessário que eu fale um pouco de
minhas diferenças com relação aos demais integrantes. Tendo nascido em Juiz de
Fora (distante 75 km de Rio Pomba), mudei-me com minha família para o Rio de
Janeiro aos 11 anos de idade. Ali estudei e concluí o curso de licenciatura em
música pela Universidade do Rio de Janeiro. Meus parentes em Rio Pomba são
proprietários de terras. Os demais integrantes têm baixo grau de escolaridade e são
provenientes de áreas rurais. É importante ressaltar que minha aceitação se deu
imediatamente apesar de Célio não conhecer minhas competências (como canto,
como toco), de eu não ter contato com nenhum integrante anteriormente e de
pertencer a outro grupo social. Acredito que minha aceitação se relacione a
processos em curso na folia de Célio, que serão discutidos mais adiante.
A folia de Célio é a única a sair em Rio Pomba atualmente. Em conversas
com os demais integrantes, tive conhecimento de mais de uma dúzia de folias que
saíam na região até algumas décadas atrás. A dificuldade em se encontrar pessoas
que assumam as folias após a morte - ou impedimento por questões de saúde – de
seus mestres é apontada pela maioria dos foliões como a razão para o
encerramento de suas atividades. Rio Pomba não ficou fora do violento processo
de urbanização ocorrido no país. Menos de 20% da população da região reside
atualmente na área rural1. Uma parcela cada vez menor desta população se
identifica com hábitos e práticas oriundas do universo rural. Mestre Célio enfrenta o
1 � Fonte: IBGE. Censo 2000.
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desafio de manter uma tradição em um meio adverso, isto é, cada vez menos
identificado com as práticas da folia. Fazem parte de sua luta tanto a reivindicação
por apoio institucional - quer da Igreja, quer da prefeitura - quanto a busca por
novos espaços para visitas. Assim, sua folia tanto se desloca para a área rural em
busca de uma população mais identificada com a tradição, quanto visita outras
cidades onde possa ser recebida por um maior número de casas. Nestas visitas,
para que sua presença se faça notar, a folia canta em estabelecimentos comerciais
como bares e mercearias, e já houve ocasião de se apresentar na rodoviária e em
rádio local. Ao mesmo tempo em que luta contra a falta de interesse da população e
de autoridades, mestre Célio não encontra renovação em sua folia. A média de
idade dos integrantes é alta e não aparecem jovens interessados.
Metodologia
Embora os processos de mudanças ocorridos em manifestações
tradicionais em função de transformações sociais não sejam um assunto novo,
pouco se escreveu a respeito na literatura sobre folias até aqui. O exame das
relações da folia de Célio com os meios de comunicação de massa, de sua
demanda por apoio institucional, de sua busca por novos espaços para visitações,
bem como de outros aspectos de sua luta para dar continuidade a uma tradição
rural em um contexto urbano, tem por finalidade contribuir para o conhecimento
sobre este complexo processo de relação entre tradição e modernidade.
Quando do meu primeiro encontro com a folia de mestre Célio, não
imaginava que esta se tornaria tema de uma pesquisa. É evidente que, juntamente
com meu desejo de participar, havia a vontade de aprender. Mas somente anos
mais tarde optaria por fazer desta prática objeto de estudo. Esta posição de ser ao
mesmo tempo observador e agente de uma prática apresenta vantagens e riscos
para a pesquisa. Se, por um lado, a proximidade com o grupo e sua prática permite
uma perspectiva privilegiada, por outro é preciso que se redobrem os cuidados com
os riscos que esta proximidade oferece tanto na coleta quanto na interpretação de
dados. Visando garantir uma maior confiabilidade com relação aos resultados da
pesquisa, busquei seguir as orientações de Becker (1993) sobre procedimentos a
serem adotados em pesquisa de campo, e em especial na observação participante.
Dentre estes, destaca-se ser a melhor maneira de se garantir confiabilidade a uma
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pesquisa qualitativa deixar claro o caminho percorrido para se chegar a um
determinado resultado, para que o leitor possa avaliar sua validade.
Uma crítica que atualmente atinge àqueles que se dedicam à pesquisa de
campo, entre estes os etnomusicólogos, é com relação à sua autoridade enquanto
detentores de conhecimento a respeito de práticas de grupos dos quais não fazem
parte. Este questionamento traz não só uma questão ética quanto metodológica. É
importante que a voz “nativa” deixe de ser apenas uma fonte de coleta de dados e
passe a ocupar uma posição mais ativa na construção do conhecimento sobre suas
práticas. Baseado em estudos sobre o assunto2, acredito que a melhor forma de
enfrentar esta questão seja o diálogo entre minha perspectiva enquanto
pesquisador, e a perspectiva dos demais integrantes. Isto se dá em conversas tanto
com o grupo quanto individuais. Outro ponto importante é deixar clara minha
posição enquanto elemento vindo de outra realidade cultural e social, o que pode
gerar barreiras sociais que limitam minha visão enquanto pesquisador.
O espaço rural e o urbano
Mestre Célio comenta a diferença da receptividade que tem a folia ao visitar
casas na área rural e na área urbana. Para ele, e esta também é a opinião de
vários membros da folia, existe uma valorização maior das atividades da folia por
parte da população da área rural. Célio vai relacionar esta constatação ao fato de a
folia ser originária do universo rural. Para sustentar esta relação, argumenta que
aqueles que residem na cidade mas são originários do campo, valorizam a visita da
folia:
Ah, o povo da roça dá mais valor, gosta mais, bobo. Bom, quem tá aqui na cidade que é da roça também, gosta também. Dá valor, sabe? Mas não é todos, não. A maioria não é da roça. É, na roça é todo mundo. É, na roça não pode passar uma casa sem ir. Aqui na cidade, não. Você...tem bairro aí, tem rua aqui, costuma você ir numa casa, saltar quinze, vinte pra frente, num...né? Ninguém quer saber. Eles quer saber é de funk, forró. Assim.
2 � Em trabalho sobre pesquisas sociais qualitativas, Russel e Kelly (2002) destacam que a chamada reflexividade na pesquisa não se restringe ao diálogo com a voz “nativa”. Também faz parte deste processo o auto-exame do pesquisador para clarificar as razões (tanto pessoais quanto institucionais) que o levam a escolher determinado objeto para ser estudado.
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A cada ano a folia de Célio visita com maior freqüência a área rural. Ter de
“saltar quinze casas pra frente” na cidade significa dificuldade de se encontrar
espaço para a performance3 da folia no contexto urbano. Daí a folia se dirigir cada
vez mais para fora da cidade. Ao ser indagado sobre as razões para esta maior
valorização na área rural, Célio busca explicação na origem rural da folia e
acrescenta que seu grupo se apresenta na cidade pelo fato de ele, mestre da folia,
residir na área urbana. Pois, segundo seu relato, os mestres de folia que residiam
na área rural não vinham cantar nas cidades:
É porque na roça... sempre a folia incentivou mais na roça, né? Foi mais pra roça. Não é mais de cidade, não. É igual...nós estamos cantando aqui na cidade porque eu moro aqui. Mas se eu morasse na roça nós ia cantar mais é lá. Eu não ia vim aqui. Não é? É por causa disso. Os folião de lá não vinha aqui na rua. Só cantava lá.
O fato de a folia de mestre Célio se encontrar em espaço urbano implica
em que esta esteja subordinada a leis e normas que regem seu procedimento neste
contexto. Entretanto, existem situações em que o desejo de Célio se choca com
estas regras e determinações legais, sejam elas reais ou presumidas. Uma delas é
a questão da lei do silêncio. O desejo de mestre Célio sair com a folia durante a
noite,4 encontra um impedimento na legislação urbana. Ciente da inflexibilidade da
lei, Célio não se anima a buscar uma permissão para que sua folia saia durante a
noite. “Mas eu tinha vontade também de sair com a folia, assim, à noite...” E explica
o que o impede: “É por causa de ter a lei do silêncio, né? Depois das dez horas,
né? Eu acho que se nós for mexer, tirar licença pra isso eles não vai autorizar, não”.
Outro aspecto referente à folia e normas de procedimento envolve a
questão dos limites entre os municípios. Segundo Célio, a folia de uma cidade
precisa de autorização para cantar em outra cidade que não seja a sua de origem.
Isto parece se dar em função de se tratar de diferentes paróquias, e as esmolas
3 � O termo performance é utilizado aqui pois abarca tanto o canto ritual em casas de devotos, quanto apresentações em rádios e eventos como o Encontro de Folias. 4 � Segundo a tradição, as folias de reis deveriam fazer seu percurso à noite, pois assim viajaram os reis magos orientados pela estrela guia até o local de nascimento do menino Jesus.
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recolhidas em uma cidade visitada serem levadas para a cidade de origem da folia5.
Para exemplificar esta situação, Célio contou uma passagem que envolveu a folia
de seu pai. Neste caso, em não se tratando de uma legislação municipal e sim de
uma espécie de código de ética, Célio se sente encorajado a, por vezes, ignorá-lo
para visitar cidades onde a receptividade e a valorização da folia são maiores:
O papai mesmo resolveu uma vez ir em Piraúba (cidade próxima a Rio Pomba). Ele tirou uma licença com o padre para ir lá, o padre deu licença a ele. Folia de São Sebastião. Chegou lá, pegou a chover bezerro, leitoa, pra São Sebastião. O padre soube, mandou parar. Disse que ia trazer a esmola de lá tudo pra aqui. Não podia. Embargou ele lá. Tanto é que às vezes eu vou pra algum lugar, alguma cidade fora aí, eu fico com um bocado de medo por causa disso, sabe? Que nós não tem ordem para ir, não. Se parar nós tem que vir embora na hora. Não pode teimar, não. Eu entro de enxerido assim, mas qualquer coisa eu estou encolhendo igual lesma (risos).
A informação fornecida por Célio com relação à necessidade de se tirar uma
licença com o padre responsável para a visita a outras cidades é confirmada por um
ex-folião da cidade de Mercês. Zé Satiro (falecido recentemente), que integrou a
folia de José Brás “batendo caixa”, contou que uma folia só podia tocar em outra
cidade com a permissão do padre local. “Se o padre não desse autorização, não
podia tocar”.
Há ainda outra restrição imposta à folia que entra em conflito com o desejo
de mestre Célio. Segundo ele, o fato de as folias da região não possuírem palhaço6
está ligado a uma determinação legal. Esta determinação teria sua origem em um
episódio ocorrido em um passado distante. No entanto, parece ter sido marcante o
suficiente para estender esta restrição a todas as folias da região e mesmo de
cidades próximas:
Antigamente tinha palhaço. Hoje diz que não pode ter, né? Diz que não pode. Eu tinha vontade de pôr. Diz que pela lei não pode mais, né? Porque diz que o palhaço chegava na casa, ele ia chegando, ia entrando. Ele ia andando nos cômodos da casa,
5 � Célio relata que a esmola recolhida durante o período de visitas é entregue à Igreja. 6 � O palhaço é uma figura mascarada e irreverente encontrada em muitas folias. Há diferentes explicações para seu significado. Alguns afirmam que o palhaço representa os soldados de Herodes. Outros, ser ele protetor dos foliões.
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onde fosse, ninguém podia falar, impor, falar nada, sabe? Ele tava fazendo farra, né? Mas dizem, eles fala, os antigos falam que...falavam que sumiu um negócio, não sei o que, numa casa e jogaram culpa no palhaço. Então, aí, deu problema com a Justiça, aí a lei cortou. Não pode pôr palhaço mais, não. Por causa disso. Mas o certo é ter o palhaço. Os palhaços faz a farra, né? Alegra a molecada, né?
A descrição feita por Célio das atitudes do palhaço quando entrava em uma
casa está em acordo com a relatada por Reily (2002). Ela comenta certas “licenças”
concedidas aos palhaços como a de pedir coisas que estão no interior da casa.
Aquilo que lhes for concedido, eles colocam em suas bolsas e lhes pertence. A
autora também registra outra “licença” concedida aos palhaços: se forem trancados
em um cômodo da casa, têm o direito de destruir o que estiver ao seu alcance. Há
ainda foliões que alegam ser o palhaço a única figura da folia que pode manusear
dinheiro durante a jornada, devendo ser ele aquele que recebe as doações feitas
em dinheiro. Não é difícil imaginar situações de conflito envolvendo o palhaço e
devotos, ou mesmo o palhaço e outros integrantes da folia, em função da posse de
bens ou de dinheiro. Embora não se tenha registro de quando teria acontecido esta
“proibição” da figura do palhaço na folia em Rio Pomba, podemos supor que este
episódio só pode acontecer em um contexto de mudança. As “licenças” da folia já
não são aceitas por todos. A folia teve que se adaptar a uma nova realidade em que
suas práticas se chocaram com uma mudança na postura de devotos. Recebem a
folia, mas não aceitam certas práticas dessas. E a intermediação dessa relação é
feita não pela autoridade da Igreja ou do mestre da folia, mas pela Justiça. No dizer
de mestre Célio: “(...) deu problema com a Justiça, aí a lei cortou”.
Podemos entender que quando o desejo de Célio se choca com alguma
restrição, seja ela na forma de lei ou de uma ética do folião, existe uma escolha
feita por ele que parece se basear numa avaliação entre os riscos que se corre e os
benefícios que serão obtidos pela folia. Sair com a folia à noite, numa cidade em
que não se tem muito prestígio, como é o caso de Rio Pomba, implicaria em grande
possibilidade de conflito com moradores incomodados com a performance da folia,
tendo estes a lei a seu favor. Ao passo que visitar localidades em que se tem
prestígio, ainda que desobedecendo aquilo que Célio acredita ser uma regra,
parece ser um risco que vale a pena ser corrido. Este prestígio pode ser constatado
pelos convites feitos, pelos almoços oferecidos aos foliões e pelas esmolas
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recolhidas. Em Rio Pomba, por vezes a folia só sai após o almoço por não haver
nenhum devoto disposto a dar almoço aos foliões naquele dia. E muitas casas não
desejam a visita da folia. Quando fala dos planos para visitar outras lugares na
próxima saída da folia, o entusiasmo de Célio é evidente:
Silveira (Silverânia, cidade próxima a Rio Pomba) nós foi uma vez só, agora tem que ir umas duas esse ano. Nós não canta um dia só, não. Lá, não. Nós foi uma vez só lá, não deu pra cantar tudo. E eles ficaram clamando lá. Que lá em Silveira é assim: cada lugar que nós canta ‘oh, o almoço ano que vem é aqui, hein!’. Assim (risos). Tem uns cinco almoços marcados lá. Nós não sabe onde vai almoçar! (risos).
Mudanças nas relações de trabalho
As mudanças introduzidas nas relações de produção no campo vão gerar
também mudanças nas relações de trabalho. Assim, para tentarmos compreender
aspectos relativos a este processo e suas conseqüências, é importante levar em
conta tanto a ótica do antigo empregador, que viveu uma outra realidade nas
relações entre patrões e empregados e vê na legislação trabalhista e de seguridade
social agravantes das dificuldades por ele enfrentadas para viver de sua produção,
quanto a perspectiva do antigo empregado, que deixa o campo e busca na cidade
possibilidade de uma vida melhor. Um antigo fazendeiro, que preferiu não se
identificar7, assim definiu as razões que levam o trabalhador rural a deixar o campo
e vir para a cidade:
[O povo] tá saindo da roça porque as aposentadoria dos velho, da mãe e do pai, os filho quer ficar na cacunda dos pai, comendo e não quer trabalhar, porque os pai tá aposentado, né? Eles acha que eles também tá. Fica à toa, né? Então, quer vim pra cidade. Ficar bebendo cerveja, né? E gastando dinheiro, e não quer saber de trabalhar, não. Essa lei é a favor deles. O patrão não tem mais autoridade nenhuma. Tudo quanto há, o empregado é que tem direito, né? É direito em tudo. Patrão não tem direito de nada.
A seguir, o fazendeiro descreve como eram as relações de trabalho no
campo antes do advento das legislações trabalhistas que vieram a regulamentar o
trabalho rural, e compara este período às atuais relações de trabalho: 7 � Entrevista realizada dia 9 de setembro de 2006 em Rio Pomba.
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Antigamente os empregado era amigo dos patrão. A lei...não tinha essa lei trabalhista, né? Depois que apareceu essa lei trabalhista eles só pensa em dar chucho no patrão.(...) De primeiro eles procurava serviço com os patrão na roça. Precisava trabalhar pra comer. Agora, não. Agora o patrão que fica atrás deles, empenhando com eles pra ir trabalhar. E eles é que bota o preço. Se o salário é R$ 350, eles quer trabalhar a R$ 20 por dia. Então dá R$ 600. O patrão não tem renda pra pagar isso. E lá vai ficando desmazelada as fazenda. O patrão sozinho não agüenta trabalhar. Ele já tá velho. Ele vem pra cidade também e os empregado também vem. Porque meu sogro, na fazenda ele vendia capado, ele vendia cachaça, ele vendia rapadura, ele fazia tijolo pra vender, fazia telha, pra vender, né? E fazia tudo lá. Tinha madeira, ele serrava madeira pra vender, tinha engenho de cana pra fazer rapadura. Tinha quase umas trinta família morando. Quando casava o filho de um empregado, ele fazia uma casa e colocava eles. Hoje não pode fazer isso mais, porque se ele dá uma morada pra um empregado, se ele não tiver registrado, quando ele fica lá uns tempo, ele te toma a terra.
Em contrapartida, antigos empregados de fazendas relatam as dificuldades
de sobrevivência no período anterior à criação da legislação trabalhista para o
trabalhador rural. O ex-folião e ex-empregado de fazenda Zé Satiro, deixou seu
depoimento:
Era a vida nossa, meu filho, era a vida era triste. Falar a verdade com você que nem roupa pra vestir direito nós não tinha. Tinha não. Nós saía pra folia assim, oh, chegava, tomava um banho de galope assim com a caneca jogando pra cacunda afora, trocava de roupa e saía. Sem dinheiro no bolso, sem nada. Sem um calçado. A gente tinha que ir trabalhar pra ajudar os pai da gente. Não era igual hoje, não. Os filho trabalha, os filho é difícil de ajudar os pai. Antigamente, não. Nós tinha que trabalhar pra ajudar os pai. Porque se não trabalhasse, ajudasse os pai, não ficava em casa, não.
E fala também da dura jornada de trabalho e das conseqüências do trabalho infantil
para sua formação escolar, e volta a criticar comportamentos que observa nas
novas gerações:
[Os patrões] Explorava muito. A gente tinha respeito dos pai, das mãe. Tinha que trabalhar pro patrão. Eu saí da escola com nove anos pro mor de candiar boi pra patrão. Não aprendi nada. Hoje, a molecada hoje não aprende a ler e escrever porque não quer. Cinco horas da manhã, quatro horas, cinco horas da manhã tava lá do lado do engenho, tocando boi no engenho pro mor de fazer rapadura. Moer cana. Hoje não, hoje dá sete horas, quando
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pensa que não, o rapaz tá virando em cima de uma cama ainda. Não é igual a nosso tempo, não.
A aprovação de Zé Satiro à legislação que regulamenta o trabalho no campo
– “Depois que saiu essa lei mudou muito, uai. Foi muito bom pro povo”- e a queixa
do antigo fazendeiro de que “o patrão não tem direito de nada” e de que o preço da
mão de obra inviabiliza a produção, são duas visões de um processo complexo
que, ao mudar as relações de produção e trabalho tanto no campo quanto nas
cidades, muda também a distribuição da população que passa a ocupar cada vez
mais o espaço urbano. Isto inclui tanto os antigos empregados de fazendas quanto
produtores rurais. Compreender estas mudanças é importante para se compreender
sob que condições estes trabalhadores deixam o campo e vêm para as cidades. Os
próprios pequenos e médios produtores rurais se encontram em dificuldades para
manter seus negócios diante de uma exigência cada vez maior de modernização
que os coloca em posição de desvantagem frente a grandes produtores. Por outro
lado, estes trabalhadores não possuem qualificação, sendo obrigados a ocupar
postos de trabalho de baixa remuneração ou a serem “ambulantes”, isto é, a
fazerem pequenos serviços diversos para garantirem sua sobrevivência. Neste
contexto se encontra a maioria dos integrantes da folia e muitos dos devotos que
hoje recebem suas visitas na cidade de Rio Pomba.
Táticas de Célio
Em sua busca por assegurar a continuidade da tradição de folias, que já vem
há três gerações em sua família, mestre Célio se utiliza de táticas que têm por
objetivo aumentar a visibilidade do grupo, o que poderia aumentar a receptividade
nas casas visitadas e a quantidade de visitas, assim como possibilitar o surgimento
de apoio, seja ele institucional ou não. O termo “tática” é usado aqui no sentido que
possui nas reflexões de Certeau (1990) em que aparece relacionado à idéia de
resistência e em oposição à idéia de dominação presente no termo “estratégia”.
Para o autor, aquele que se utiliza de táticas deve “jogar com o terreno que lhe é
imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha” (Certeau, 1990, p100). No
caso da folia de Célio este “terreno” consiste em uma realidade gerada a partir de
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decisões tomadas em várias esferas de poder, e nele sua folia precisa encontrar
instrumentos para enfrentar suas dificuldades.
Célio enxerga nos meios de comunicação de massa um caminho para o
aumento da visibilidade de sua folia. Embora durante os sete anos em que
acompanhei o grupo, este tenha se apresentado apenas em duas oportunidades
em rádios locais – em 2002 na cidade de Rio Pomba e em 2006 na cidade de
Mercês – Célio deixa claro seu desejo de intensificar a exposição da folia nos meios
de comunicação de massa. Dentre estes, a televisão recebe especial interesse do
mestre. Ao ser perguntado se acredita que, ao aparecer na televisão, mais pessoas
venham a convidar sua folia para cantar, sua resposta não só demonstra esta
convicção, como revela o fato de que ele já tem planos para quando o número de
convites crescer: “Ah, vai. Vai. O telefone vai tocar diário aí, oh (risos). Mas é igual
eu tô fazendo. Nós tira...nós vai num ano num lugar, no outro nós vai no outro, uai.
Não é? Cada ano nós vai pra um lado.”
A maneira encontrada por Célio para que sua folia seja veiculada na
televisão é participar do Encontro de Folias em Juiz de Fora. Célio expõe o desejo
de participar do evento e de encontrar alguém que ajude a folia em seu
deslocamento até Juiz de Fora e na confecção de um novo uniforme. É interessante
notar que a televisão é ao mesmo tempo o meio através do qual Célio imagina
poder proporcionar projeção à folia e aquele que o informa sobre a existência de
um espaço onde esta projeção possa se dar:
Eu vejo falar na televisão, né? Até todo ano tem encontro lá. Tem quatorze grupo. E se nós for vai interar quinze. Só que nós não tem as vestimenta que eles têm não, sabe? Porque lá eles têm...deve ter algum apoio, né? Eles veste direitinho, sabe? Só não canta igual nós, né? Agora, se nós for lá, nós vamos com esse uniforme mesmo, aí. Agora se alguém quiser achar que...né? Quiser melhorar pra nós, melhora no outro ano, né? Eu só vou conversar com ele lá, com o Zé Afonso8 pra...se ele vai dar uma força pra levar nós e comunicar com a TV Panorama lá pra filmar nós lá, né? Aqui nós vamos passar no MG TV, também. Não é?
Uma das principais razões para que Célio busque a exposição na mídia é
que assim ele imagina poder surgir alguém interessado em patrocinar a folia. Na
8 � Morador de Rio Pomba que trabalha com transporte de passageiros.
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verdade, esta é uma demanda do grupo. Ao comentar o fato de se apresentar com
a folia em estabelecimentos comerciais visando aumentar a visibilidade do grupo
em lugares em que este não é conhecido, mestre Célio revela que a busca por
visibilidade tem como objetivo não só aumentar o número de casas que desejam a
visita da folia, como possibilitar o surgimento de alguém disposto a patrociná-la:
Tem, porque, aí as pessoas que não conhece nós, nunca viu nossa folia, passa a conhecer, né? Por isso. Pode aparecer um caminho mais fácil pra nós, às vezes uma oportunidade...ter uma fama também, né? Às vezes até a pessoa...porque nós precisa de patrocinador e nós não tem. Às vezes uma hora pode aparecer um.
O patrocinador seria alguém disposto a arcar com as despesas da folia em
seus deslocamentos, na confecção de novos uniformes, bem como na aquisição e
manutenção de instrumentos musicais. Célio também deseja que um patrocinador
possa arcar com despesas relacionadas a eventuais problemas de saúde de
integrantes da folia. Parte do tipo de ajuda que Célio espera de um patrocinador
encontra-se presente em sua seguinte fala:
É que nós precisa de... às vezes, condução pra nós. Nós viaja com dificuldade de condução, uai. Igual você tá vendo aí, o carro meio enrolado, nós não tá cantando direito, correndo, fugindo até da polícia, às vezes. Igual ontem, fiquei com medo daquela Brasília porque, ela tá em dia, mas o Toco não tem carteira, né? E...carro precisando de arrumar, ela não tá pegando direito no tranque, na chave, dando trabalho...né? Uniforme pra nós, a gente tinha que ter uma roupa melhor, um uniforme mais bonito, mais arrumado, né?
Célio guarda suas críticas com relação à falta de apoio institucional para um
outro momento. Mesmo diante de uma provocativa menção à cidade de Juiz de
Fora, onde as folias locais recebem uma verba anual da prefeitura, num primeiro
momento Célio prefere não direcionar suas críticas às instituições e continua a
enumerar as responsabilidades de um eventual “patrocinador”:
Igual se os instrumentos arrebentar corda nós tem que ficar tirando do bolso pra comprar, né? Isso daí é tudo com o patrocinador. Nós tamo andando aí, um passa mal na viagem tem uma...um patrocinador que ajuda. Nós tem que pensar em tudo isso. Nós tamo com saúde, mas não sabe, na hora que de repente, né? Igual o Chico9, que aquela vez perrengou na folia.
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Nós não pode fazer nada pra ele, coitado, que nós também é apertado, né? Única coisa que nós pôde fazer pra ele foi correr com ele pro hospital, né? Mas se fosse o caso de gastar com remédio pra ele nós não podia. Nós tem que pensar tudo isso.
A necessidade de ajuda com relação ao transporte evidencia o fato de que
Célio viaja com sua folia, não se restringindo à região que esta possa percorrer a
pé. Como já abordado anteriormente, a falta de prestígio de sua folia na cidade de
Rio Pomba leva Célio a buscar novos espaços para suas visitas, tanto em áreas
rurais quanto em outras cidades da região. A estrutura necessária para o transporte
dos integrantes da folia (no mínimo sete componentes) gera um custo com o qual
Célio tem dificuldade de arcar. Também a confecção de uniformes mais vistosos, ou
a viagem para a participação no Encontro de Folias demandam recursos dos quais
Célio não dispõe. O que é interessante destacar é que estas despesas são
originadas pela necessidade do grupo de aumentar sua visibilidade e buscar novos
espaços para realizar suas visitas. Em uma situação em que folias realizavam suas
visitas na região em que residiam seus integrantes, onde, de acordo com descrição
de Zé Emídio, a identificação dos foliões se dava através da “cor da toalha” que
usavam no pescoço, gastos com deslocamentos e uniformes vistosos eram
desnecessários. Portanto a demanda do grupo por um patrocinador encontra-se
diretamente ligada à busca por aumento de visibilidade. Parece haver aqui a
intenção de que se instale uma espécie de um ciclo em que o aumento de
visibilidade propicia o surgimento de um patrocinador, e este auxilia o grupo em sua
busca por mais visibilidade e mais espaços para performances.
Interessante também é o fato de Célio desejar uma espécie de “seguro
saúde” para os integrantes de sua folia. É possível que haja aí, assim como na
expectativa de Célio de que houvesse um “camarim” para sua folia no Encontro de
Folias de Juiz de Fora, indícios de que ele vislumbre a profissionalização de seu
grupo no futuro. É importante não fechar os olhos para uma característica
importante do modo como Célio olha sua folia. Ele vê sua folia não só como
expressão da tradição e religiosidade, mas também como expressão artística. Mais
� Chico, irmão de Zé Emídio, sentiu-se mal após o último dia em que saiu com a folia em 2004/2005 e teve que ser levado para o hospital. Recuperou-se mas, meses depois, viria a sofrer um acidente vascular cerebral que o impediu de sair com a folia em anos posteriores em função de sua dificuldade de locomoção.
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de uma vez se utilizou de falas como “nós quer é alegrar o povo”, ou ainda “É
tradição e o povo gosta”. Entretanto, é necessária uma investigação mais
aprofundada para verificar se os indícios de que Célio busca caminhos para a
profissionalização de sua folia se confirmam ou não. Aparentemente, no tocante às
táticas que utiliza – entre elas a busca por um patrocinador – Célio não faz distinção
entre as apresentações em casas de devotos e em eventos “profissionais” como o
Encontro de Folias de Juiz de Fora. De qualquer modo, todas essas são formas de
manutenção da tradição que, como vimos, é um dos principais argumentos de Célio
para justificar sua obstinada tentativa de manter viva a folia.
Falta de renovação das folias
Segundo Tonico, as folias de outros tempos não necessitavam de apoio
institucional porque eram muitas, isto é, não corriam o risco de desaparecerem.
Esta explicação remete a uma importante questão que é a falta de renovação nas
folias de Rio Pomba. Os integrantes da folia de Célio têm opiniões a respeito do
fenômeno que são de grande auxílio na sua compreensão. Ao ser perguntado sobre
a razão de só haver uma folia ativa hoje em Rio Pomba, Joaquim sintetiza, com sua
simplicidade, a questão: “Por que não apareceram outras, né?”. Zé Emídio busca
aprofundá-la, relacionando-a ao interesse ou desinteresse de cada indivíduo pela
prática: “Ah, bom, isso aí eu não sei, não. Depende de quem gosta, né? Depende
de quem gosta. Eu mesmo já cantei e toquei em cinco folia. É que um morre,
pronto, eu vou pra outra. O outro morre, eu vou pra outra. O outro para de sair, eu
vou pra outra”. Célio enfoca a questão sob a perspectiva da descontinuidade da
tradição no núcleo familiar10: “Não aparece porque os folião...os folião que
morreram não têm filho que puxou não. Tem filho mas não...”. E do desinteresse
dos próprios foliões que, na sua opinião, poderiam estar saindo com suas folias:
“Tem dois folião aí, oh. Mas eles não quer! Um anda na ponta dos pé. Feito tá
pisando em coquinho. O outro só pensa em forró. O Totonho, lá dos Gonçalves, tá
10 � Chaves (2003) descreve em seu trabalho que o provável sucessor de mestre Tachico será seu irmão mais novo Ivanir, ou seu filho caçula, João dos Reis.
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no Matadouro11, caça forró e jogo de bola”. Tonico reforça o ponto de vista de Célio:
“O pessoal do Vintém ali só anda cheio do produto12”. Na verdade, estes pontos de
vista não são excludentes e sim complementares. Como bem disse Zé Emídio,
“depende de quem gosta”. E quem gosta de folia são aqueles que se identificam
com esta prática oriunda de um universo rural, cada vez menos presente na vida da
população atual de Rio Pomba. Sendo assim, não é surpresa que os filhos de
mestres, nascidos já nas cidades e identificados com outro universo cultural, não se
interessem por folia. Juscélio, filho mais velho de Célio, afirma não integrar a folia
por não ter “dom” para cantar ou tocar. Entretanto, não acompanha as visitas da
folia, o que pode revelar mais desinteresse que inaptidão. Afirma preferir “forró”,
“pagode” e “funk”, pois são músicas mais “agitadas” e ligadas a “baladas” onde se
pode “pegar mulher pra dançar”. A identificação de Juscélio com os gostos e as
práticas dos jovens de Rio Pomba é natural. Ele nasceu e se criou na cidade.
Embora nascido em uma família de foliões, a folia não faz parte de seu universo de
interesses, assim como dos jovens de sua geração. Eventualmente, algum antigo
mestre anuncia que vai sair com sua folia em determinado ano. Entretanto, até hoje
isto não se concretizou. A razão parece estar na dificuldade de se encontrar
companheiros com quem se possa contar num universo cada vez mais distante
daquele em que as folias tinham uma presença importante na vida religiosa da
população.
As folias de Juiz de Fora não passam por esta dificuldade. É grande a
participação de jovens e o número de folias que se apresentam no encontro é cada
vez maior. Acredito que a razão para que isto ocorra esteja relacionada ao apoio
dado pela prefeitura, que fornece uma ajuda de custo para as folias da cidade e
apoio para a organização e promoção de um evento que lhes dá visibilidade. Há,
evidentemente, questões importantes relacionadas aos efeitos que o apoio
institucional causa sobre as práticas das folias, que não tratarei neste trabalho. O
que importa é o fato de Célio buscar caminhos para viabilizar a continuidade da
folia, uma vez que parece não ter mais esperanças de que esta seja assegurada
11 � Bairro da periferia de Rio Pomba. 12 � Cachaça.
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por sua família, ou mesmo por algum dos atuais foliões. Célio explica a razão de
sua descrença na possibilidade de que algum dos atuais integrantes o substitua:
“Por causa de que eles são muito vergonhoso, né? E...você não vê o Zé Emídio?
Vai tocar uma sanfona já vem me buscar pedindo uma caixa pra mim ajudar. É
difícil. Ele tem vergonha. Ele fica acanhado. A pessoa assim não pode ser folião”.
Ao ser perguntado se teria coragem de assumir uma folia, Zé Emídio revela
que poderia, uma vez que se preparasse para tal:
Não, eu tenho. Mas aí eu tenho que estudar. Tenho que pegar, só depois, daí um ano ou dois, depois de eu ler o livro todo, que aí, se eu gravar na cabeça...eu não sei falar nada, não, mas se eu gravar na cabeça, aí depois de um ano ou dois eu posso assumir até, às vezes até assumir uma folia. Se eu tiver vivo, né?
Mais importante que saber se Zé Emídio poderá ou não vir a substituir Célio
caso este não possa mais continuar a sair com a folia é o fato de que estamos
falando de duas pessoas que pertencem à mesma faixa etária. A última frase da
resposta de Zé Emídio – “se eu tiver vivo” – revela uma questão crucial no que se
refere à continuidade da folia de Célio: não surgem jovens integrantes. O relato da
maior parte dos componentes da folia é de que começaram a sair com folias
quando ainda eram bem jovens. Quando Célio precisa encontrar um novo membro
para sua folia, este se encontra em idade próxima ou superior à daquele elemento
que está sendo substituído. Se não houver uma mudança na relação entre os
jovens e a folia, o futuro desta permanecerá ameaçado. Da busca de Célio por
novos caminhos depende o futuro de sua folia.
Folia e folclore
“Folia é folclore. Nós fala folia. Mas isso é folclore que chama. Né?...É um
folclore. Folia é apelido. Não é?”. Esta fala de Célio, proferida em 3 de junho de
2006, causou surpresa. Foi a primeira vez que o ouvi pronunciar a palavra “folclore”
– (ingressei na folia em 2002). E o fez como que em substituição ao termo “folia”. O
que leva um mestre de Folia cuja tradição se encontra há gerações em sua família,
que luta pra mantê-la viva, a abandonar um termo, tão seu conhecido, que dá nome
à tradição que busca manter, para substituí-lo por outro? Não se trata de uma
palavra qualquer. Trata se do nome de uma tradição que agora é colocado na
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condição de “apelido”. E o que significa para Célio, esta palavra que alega ser o
nome correto desta tradição: “folclore”? Na investigação destas questões podemos
encontrar mais uma das táticas de Célio para buscar uma sorte melhor para sua
folia. Ao ser perguntado sobre qual o significado da palavra folclore, Célio responde:
Folclore pra mim é o mesmo que folia, né? Você falar o folclore, pra quem conhece, é folia. Você tá falando folia. Se falar folclore comigo, eu sei o quê que é. Muitos não sabe. A gente fala folia, mas é modo de falar, mas não é folia. É folclore. Tocar folclore. Amanhã eu vou tocar folclore, eu vou assistir folclore.
Até a data da entrevista com Célio, eu só tinha ouvido a palavra “folclore”
durante as visitas da folia quando pronunciada em algumas casas da cidade cujos
moradores pareciam mais interessados na folia enquanto manifestação cultural que
em seu significado devocional. Normalmente, vinha em frases como esta que ouvi
em certa casa visitada: “É nosso folclore, não pode deixar acabar”. Recentemente,
também Zé Emídio se utilizou do termo “folclórico”. Quando enumerava as coisas
que precisavam ser melhoradas em sua folia e que dependiam da ajuda de um
patrocinador, Célio mencionou a caixa que pertenceu a seu pai. Zé Emídio se opôs
à substituição da caixa: “Não, a caixa é boa porque a caixa é antiga. Não bota coisa
novo na folia, não”. Diante da argumentação de Célio de que não estava satisfeito
com o som da caixa, Zé Emídio insiste na defesa de sua manutenção: “Não, que é
isso? O negócio é coisa folclórica. Coisa antiga que é bom. Coisa bonita não
adianta não, uai”. Entretanto, Célio e Zé Emídio possuem opiniões diferentes sobre
o significado da palavra folclore. Zé Emídio esclarece o que entende ser “folclore”:
Bom, eu não sei explicar a coisa, não. Pra mim é coisa antiga, assim, uma coisa que tá querendo acabar ou já acabou há muito tempo e nós volta aquilo de novo. A ativar aquilo de novo. Pra mim é uma coisa do tipo assim. Uma coisa que já acabou, uma coisa boa que já acabou. Tentar incentivar aquilo de novo.
O significado que folclore tem para Zé Emídio, como sinônimo de “coisa
antiga”, está próximo do entendimento do senso comum. Normalmente, a
veiculação de manifestações folclóricas na mídia está ligada à ancestralidade
destas tradições e ao fato de estarem, muitas delas, em vias de desaparecimento.
Assim, há afinidade entre o que Zé Emídio entende como folclore – “coisa que tá
querendo acabar” - e o que entendem os moradores interessados na folia enquanto
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tradição. E a afinidade se estende para abarcar a preocupação em “não deixar
acabar”.
Entretanto, Célio faz um uso diferente da palavra. Trata-a como sinônimo de
folia: “folclore pra mim é o mesmo que folia”. Qual o interesse de Célio em que a
folia passe a ser chamada de folclore? Acredito que esta seja outra das táticas
usadas por Célio no sentido de angariar apoio à sua folia. Se é de reconhecimento
geral que o folclore é importante e deve ser preservado, se a poderosa mídia
eletrônica enaltece as manifestações folclóricas e afirma a importância de preservá-
las, Célio quer deixar bem claro para todos que a folia dele é folclore. Quer gozar
do mesmo prestígio de outras manifestações veiculadas na mídia como folclóricas.
Quer que se tenha a mesma preocupação com a continuidade de sua folia que
aquela apresentada na mídia em relação a manifestações que devem ser
preservadas. Se sua folia for reconhecida como “folclore”, sua continuidade deve
ser preocupação de todos: governo, Igreja, imprensa e sociedade em geral. A folia
não é reconhecida como importante pela maior parte da população de Rio Pomba.
Não foi reconhecida até aqui como importante pelo governo local ou pelos
representantes da Igreja em Rio Pomba. Então, é mais interessante para Célio que
não se chame mais folia. “Folia é apelido”. Se chame “folclore”. Este, sim, detentor
de prestígio e entendido por todos como algo que deve ser cuidado e preservado.
Conclusão
Embora a fé e a religiosidade sejam elementos presentes e importantes, não são
suficientes para que se compreendam vários fenômenos ligados às práticas da folia de
Rio Pomba. A começar pelo fato de que apenas um dos atuais integrantes afirma ter
entrado na folia por promessa. Os demais afirmam estar na folia porque gostam. O
próprio mestre Célio enfatiza o fato de estar dando continuidade a uma tradição e não
sua devoção, que sem dúvida existe. Isto torna a folia de Rio Pomba diferente das que os
estudiosos têm discutido, impregnadas da religiosidade católica popular. Quando
perguntado por uma moradora de Rio Pomba, sobre a razão de sair com sua folia, Célio
respondeu: “É tradição e o povo gosta”. Também Zé Emídio manifestou sua preocupação
com relação à tradição: “Não bota coisa novo na folia, não”. Assim, a busca de Célio por
garantir a continuidade de uma tradição que vem há três gerações em sua família, com a
qual se identificam outros foliões, é um elemento importante para que se possa
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compreender os processos que estão em curso em sua folia. Não pude averiguar, no
período desta pesquisa, o significado deste apego à “tradição” por parte de mestre Célio.
Contudo, pode-se apresentar uma hipótese com base nos dados apresentados. No
contexto das mudanças vividas pela geração de foliões da qual Célio faz parte, a tradição
pode ser o índice de uma consciência do processo de transformação que, por um lado,
ameaça a folia de perda de significado no local e, por outro, abre-lhe o horizonte de uma
profissionalização.
Na medida em que os integrantes do grupo passam a residir na cidade, a rede de
relações que havia no campo vai se alterar. As práticas oriundas daquilo que Brandão
(1981, p36) chamou “mundo camponês”, se encontram diante de um desafio. A presença
de moradores da cidade que, como os foliões, vieram do campo, possibilita que parte da
relação que havia entre folia e devotos se mantenha no meio urbano. Entretanto, é cada
vez maior a população que não se identifica com as práticas rurais, inclusive nas próprias
famílias dos integrantes da folia. Zé Emídio sintetiza: “o povo hoje parece que não tá
gostando muito”. Os filhos de mestres da região já falecidos não deram continuidade a
suas folias. Os filhos de Célio demonstram desinteresse pela tradição. Também em
função da falta de identificação com as tradições rurais, não surgem jovens integrantes. A
média de idade dos foliões cresce de ano para ano. Some-se a esta ameaça de
descontinuidade o fato de que cada vez menos residências solicitam a visita da folia na
cidade de Rio Pomba. Na medida em a população identificada com suas origens rurais
envelhece, diminui o número de devotos dispostos a receber a folia em suas casas.
Diante deste quadro que resultou no término das atividades de diversas folias em Rio
Pomba e região, mestre Célio busca saídas.
Uma das tentativas de mestre Célio em sua busca por caminhos para sua folia é a
volta ao meio rural. Célio vem intensificando as visita a áreas chamadas pelos foliões de
“roça”. Ali é maior a identificação com as práticas da folia. Entretanto, estes
deslocamentos representam custo. Célio paga pelas viagens da folia a estas regiões, que
são realizadas em carros de integrantes ou em veículos contratados para o transporte. É
importante notar que a folia se retira da comunidade onde vivem os foliões. Ela vai buscar
em outros lugares aqueles que se interessam por recebê-la. No custo destas viagens e
na procura por novos espaços, a volta ao meio rural se articula com outros caminhos
onde Célio imagina encontrar saídas para sua folia: a procura por um patrocinador e a
busca por aumentar sua visibilidade.
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A busca por aumento de visibilidade gera gastos com os quais Célio tem
dificuldade de arcar. Viagens e indumentária luxuosa são elementos através dos quais
Célio imagina aumentar a visibilidade de sua folia. Espera encontrar um patrocinador que
possa arcar com estas e outras despesas. Mas como encontrar patrocínio quando não se
tem visibilidade? Como aumentar a visibilidade quando não se tem apoio? A folia se
encontra em uma espécie de impasse. Existe uma demanda por ajuda por parte das
instituições. Prefeitura e Igreja não manifestaram até aqui interesse em apoiar a folia em
Rio Pomba. Célio volta suas esperanças para os meios de comunicação de massa.
Acredita que, uma vez que sua folia apareça na televisão, vai encontrar quem se
interesse por patrociná-la e haverá aumento no número de casas que desejam sua visita.
Entretanto, Célio não domina o universo que rege as decisões e os interesses que
envolvem eventos ligados à mídia de massa, não obtendo êxito, até aqui, em seu desejo
de que a folia seja veiculada pela televisão.
Diante de processos complexos que se refletem na prática de diversas
manifestações tradicionais, como as mudanças nas relações de produção, urbanização e
modernização, a folia de Célio busca alternativas que lhe assegurem continuidade. Se,
por um lado, estas mudanças estão na raiz de transformações sociais que levam a um
certo isolamento da folia na cidade de Rio Pomba, por outro podem conter os
instrumentos para que a folia ocupe uma nova posição dentro deste quadro. Na tentativa
de desenvolver relações entre a folia e diversos elementos presentes no contexto urbano
e moderno, como os meios de comunicação de massa, a figura de um patrocinador e
mesmo as responsabilidades atuais do Estado frente às manifestações tradicionais, Célio
busca a valorização de sua folia em Rio Pomba. Este desejo de um novo olhar para sua
folia é simbolizado por uma mudança reivindicada por Célio em sua designação: “Isso é
folclore que chama. Folia é apelido”.
Muitas perguntas permanecem sem resposta: Por que cidades vizinhas parecem
mais interessadas em apoiar a folia de Célio que Rio Pomba? O fato de a folia encontrar
maior receptividade por parte da população de Silverânia se deve ao fato de ser uma
cidade menor, mais ligada ao universo rural, ou haverá outra explicação? Será que as
táticas de Célio vão conduzir sua folia a um processo de profissionalização? É desejo
dele que esta profissionalização aconteça? Em que medida os meios de comunicação de
massa contribuem para o olhar dos foliões sobre sua própria prática enquanto tradição
que deve ser valorizada e apoiada? Acredito que o acompanhamento dos processos em
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curso na folia de Célio deva trazer algumas respostas, assim como certamente trará
novas questões.
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