as leis dos outros e a fala do direito no vale do ribeira (sp) · paradoxalmente, as mesmas que...

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1 As leis dos outrose a fala do direito no Vale do Ribeira (SP) 1 Carmem Lúcia Rodrigues (UFRRJ/RJ) 2 Resumo: No final de 2012 o Fandango Caiçara foi reconhecido pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) como autêntico “patrimônio cultural imaterial do Brasil”. Trata-se de um complexo de músicas e danças que retrata as atividades religiosas, de trabalho, artísticas e festivas de famílias e de comunidades de pescadores-agricultores situadas no litoral sul do Estado de São Paulo e ao norte do Paraná. Em 2010 o 'Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente' do Ministério Público do Estado de São Paulo interpôs uma Ação Civil Pública e obteve a concessão de uma liminar judicial que determinava a imediata retirada dos moradores da 'Estação Ecológica da Juréia-Itatins', uma das áreas de florestas mais belas e bem preservadas no sudeste do país. As famílias de caiçaras ameaçadas na Juréia são, paradoxalmente, as mesmas que compõem os principais grupos de fandango na região. Assim, neste trabalho analiso, pelo prisma do fandango, os principais contrastes entre "as leis dos outros" - tal como o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, instituído pela lei federal 9.985/2000, que visa preservar a biodiversidade em áreas ambientalmente protegidas -, às regras/normas internas das comunidades tradicionais que vivem ou viviam até recentemente nesses mesmos territórios. Palavras-chave: Fandango caiçara; direitos comunais; direitos humanos. 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN 2 Professora-adjunta no Instituto Três Rios da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

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As “leis dos outros” e a fala do direito no Vale do Ribeira (SP) 1

Carmem Lúcia Rodrigues (UFRRJ/RJ) 2

Resumo: No final de 2012 o Fandango Caiçara foi reconhecido pelo IPHAN (Instituto

do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) como autêntico “patrimônio cultural

imaterial do Brasil”. Trata-se de um complexo de músicas e danças que retrata as

atividades religiosas, de trabalho, artísticas e festivas de famílias e de comunidades de

pescadores-agricultores situadas no litoral sul do Estado de São Paulo e ao norte do

Paraná. Em 2010 o 'Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente' do

Ministério Público do Estado de São Paulo interpôs uma Ação Civil Pública e obteve a

concessão de uma liminar judicial que determinava a imediata retirada dos moradores

da 'Estação Ecológica da Juréia-Itatins', uma das áreas de florestas mais belas e bem

preservadas no sudeste do país. As famílias de caiçaras ameaçadas na Juréia são,

paradoxalmente, as mesmas que compõem os principais grupos de fandango na região.

Assim, neste trabalho analiso, pelo prisma do fandango, os principais contrastes entre

"as leis dos outros" - tal como o Sistema Nacional de Unidades de Conservação,

instituído pela lei federal 9.985/2000, que visa preservar a biodiversidade em áreas

ambientalmente protegidas -, às regras/normas internas das comunidades tradicionais

que vivem ou viviam até recentemente nesses mesmos territórios.

Palavras-chave: Fandango caiçara; direitos comunais; direitos humanos.

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN

2 Professora-adjunta no Instituto Três Rios da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

2

Os olhos daquela gente brilham quando me contam dos encontros de

Fandango. Caiçaras que eu conhecera anos antes, em outras situações,

agora auto denominam-se "fandangueiros" e demonstram evidente orgulho

ao tocar algum dos típicos instrumentos do Fandango, ou por haver

composto uma das modas que animam os bailes comunitários e

apresentações pública.Havia algo de totalmente novo acontecendo naquelas

comunidades do litoral sul e minha atenção, seguindo a deles, voltava-se

agora para o Fandango. As músicas e danças caiçaras mais populares

ressurgiam surpreendentemente com total vigor depois de anos de suposta

"extinção".

O que significaria aquele movimento? Por que o Fandango atrairia mais o

interesse das pessoas do que os inúmeros encontros e reuniões nos quais

participei com aquela mesma gente a respeito dos conflitos ambientais que

enfrentam para permanecer onde vivem?

(diário de campo redigido em fevereiro de 2011)

O que hoje se conhece como Fandango Caiçara foi estudado por alguns

pesquisadores no passado e recentemente. Um dos trabalhos que teve grande

repercussão nas comunidades é “Projeto Museu Vivo do Fandango”, coordenado pela

Associação Caburé de produtores culturais do Rio de Janeiro e realizado em parceria

com pequenas associações locais do litoral nos estados de São Paulo e Paraná.3 Há que

se ressaltar que a maior parte desses trabalhos sobre o fandango realizados por

estudiosos das artes em geral (música, dança, teatro), inclusive no caso do “Projeto

Museu Vivo do Fandango”, dedica-se à análise da dimensão estética de festas

populares, ou seja, da arte stricto senso, não analisando aspectos ritualísticos e/ou

possíveis processos sociais articulados ao Fandango. Foi este meu principal desafio ao

pesquisar no doutorado o Fandango após ter realizado pesquisas a respeito dos conflitos

ambientais e territoriais nos quais este grupo é um dos atores principais: procurar

compreender o significado do complexo de músicas e danças que, tal como um prisma,

permite que sejam desveladas múltiplas dimensões do modo de ser caiçara e de sua

relação com direitos territoriais e culturais.

Temas derivados da relação entre direito e diversidade humana estimularam de

certa forma meu estudo etnográfico. Ao perguntar-me se praticavam o Fandango, e

como praticavam, "pra não esquecer quem são" - perguntas-chaves que sugeriu Carlos

Rodrigues Brandão há tantos anos atrás para compreender festas populares -, eu também

3 O citado Projeto patrocinado pela Petrobrás produziu um livro, lindamente ilustrado, e dois CDs.

Ambos os produtos distribuídos aos “fandangueiros” e suas associações retratados no Projeto.

3

passei a me perguntar: por que estariam eles [caiçaras] preocupados em não esquecer

quem são? Por quais razões? Percebi, então, depois de tantos anos pesquisando

naqueles mesmos lugares e com aquela mesma gente, que "eles" não estavam só falando

entre "eles". Diante de quem querem afirmar seu modo de ser e de viver dessa maneira

tão conspícua por meio do Fandango?

Em minha tese discuti os possíveis significados do Fandango, nos termos

propostos por Geertz, ou seja, o que eles nos dizem e se dizem por meio dos ritmos,

coreografias e “modas” que compõem este ritual popular. Talvez se eu tivesse estudado

este mesmo fenômeno em lugares em que os grupos não estivessem envolvidos em uma

verdadeira "luta" para poder viver onde vivem ou viviam e poder fazer o que sempre

fizeram e/ou o que alguns ainda querem voltar a fazer - a roça de coivara, a pesca

artesanal, o extrativismo de plantas nativas, a caça e o fandango -, a dimensão jurídica

não tivesse se imposto de maneira relevante. Este trabalho deriva, portanto, de

pesquisas realizadas anteriormente no litoral de São Paulo e, sobretudo, de minha

etnografia do Fandango Caiçara concluída em 2012.

Notas introdutórias

A recente medida de reconhecimento e de registro do Fandango como "patrimônio

cultural brasileiro" responde a antigas reivindicações de grupos de caiçaras situados no

litoral sul do estado de São Paulo e no norte do Paraná. Todavia, as atuais políticas

nacionais de patrimonialização dos chamados "bens culturais" evidenciam, desde um

ponto de vista mais teórico-conceitual, certos paradoxos da relação natureza-cultura.

Ao analisar os significados que tais categorias de sujeitos atribuem a festas

populares, como o exemplo estudado, depara-se com certa frequência com demandas

por direitos territoriais, subjacentes à autoatribuição de identidades coletivas - como

insinua a narrativa de um dos membros da Associação Jovens da Juréia:

"ter contato com o que é Fandango, é com o que é ser caiçara. (...) Minha

geração está tendo esse contato de novo. Se a gente não tivesse contato e

não soubesse o que é o Fandango, como acontece o Fandango, por que

acontece o Fandango, nossos filhos e nossos netos, bisnetos não iam saber.

E qual é a nossa meta: não perder a tradição que vem muito antes da nossa

(...) O Fandango é um dos meios que a gente tem pra gente lutar para o que

a gente quer(...) levar essas pessoas que querem voltar pra onde viveram,

pra onde era seu modo de vida, de trazer essas pessoas pro ambiente delas

4

(...).Queremos voltar lá pra dentro de novo! Se eu voltar pra lá [estação

ecológica da Juréia], eu vou me sentir em casa”.

(Pedrinho, em entrevista concedida em Iguape, em junho de 2011)

Apresentação de Fandango na Barra do Ribeira (Iguape, SP) durante a “Festa do Robalo”

em 2010. Ambas as fotografias são de minha autoria.

Grande parte das áreas ambientalmente protegidas existentes nos estados do

Sudeste e Sul do país sobrepôs terras ocupadas por comunidades tradicionais. A criação

destas "reservas" fundamenta-se em uma falsa premissa: a de que tais áreas seriam

originariamente desabitadas e, portanto, de que a natureza virgem e exuberante lá

existente deva ser mantida "intocada". Tal postulado viola direitos étnicos e culturais

contemplados na Constituição de 1988 e em convenções internacionais, a exemplo da

Convenção 169 da OIT4.

A legislação ambiental vigente no Brasil ainda contradiz programas nacionais que

buscam a salvaguarda da cultura imaterial criados para proteger, dentre outros bens:

"conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades"; "rituais e

festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e

de outras práticas da vida social", tal como prevê o Programa Nacional do Patrimônio

Imaterial, instituído pelo Decreto 3551 em 2000.5 Assim, pode-se afirmar, como Ferreira da

4 Conforme garantem dispositivos jurídicos da Constituição Federal (nos artigos 215 e 216), bem como

as expressas na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), realizada em Genebra

em 1989 e introduzida ao ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto 5.051 de 2004. Tais

preceitos dessa Convenção que trata dos “Direitos dos Povos Indígenas e Tribais” são considerados

normas supra legais. A maior parte das políticas que reconhecem os direitos identitários hoje em vigor no

país norteia-se pela Convenção 169 da OIT.

5 O Decreto 3551 instituiu no ano de 2000 o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) que

prevê o registro dos bens reconhecidos nos seguintes livros: “I - Livro de Registro dos Saberes, onde

serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; II - Livro de

5

Silva (2011: 138), que "os direitos ambientais sobrepõem e ameaçam direitos humanos

nestas áreas". É o que ocorre no Vale do Ribeira, onde o estudo aqui retratado foi

realizado.

Contexto: o “aperto desse negócio de meio ambiente"

Denomina-se Vale do Ribeira a área da bacia do rio Ribeira do Iguape,

localizada na região sul do Estado de São Paulo e ao nordeste do Estado do Paraná (ver

mapa a seguir). A região é frequentemente lembrada por apresentar as menores taxas do

IDH do Estado de São Paulo.

Estudos apontam que a ocupação do Vale do Ribeira foi marcada por processos

sucessivos de exclusão social e de expropriação violenta de terras de grupos que ali se

constituíram ao longo dos séculos à margem das políticas agrícolas e agrárias oficiais

(QUEIROZ, 2006). Ainda assim, nos dias de hoje é possível encontrar famílias e

comunidades quilombolas e caiçaras que ocupam áreas de florestas, mangues e restingas

bem preservados na região.

.

Fig.: Detalhe do mapa acessado livremente na internet no site do Ministério do Desenvolvimento Agrário

(MDA), aqui apresentado sem escala.

Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho,

da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; III - Livro de Registro das Formas

de Expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas, lúdicas; IV Livro

de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde

se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas”.

6

De acordo com Diegues, o modelo operacional que rege as áreas

ambientalmente protegidas brasileiras - chamadas "unidades de conservação" no jargão

ambiental - resulta de um modelo de conservação da natureza que prega: primeiro,

haver uma clara separação entre homem e natureza; segundo, que o ser humano é,

invariavelmente, destruidor de uma natureza considerada selvagem e, portanto, deve

manter-se à distância; terceiro, que conhecimentos e metodologias mais adequadas à

proteção da natureza são frutos exclusivos da ciência moderna, sobretudo, das ciências

naturais (DIEGUES, A.C. 2000: 9-20). Embora a “neutralidade científica” apregoada

por grupos ou pessoas responsáveis pela criação de políticas ambientais restritivas

fundamentadas na biologia da conservação o que estaria por detrás de tais proposições

seria a ideia de que a condição principal da conservação ambiental é a existência de

“ilhas protegidas de biodiversidade”, isto é, sem gente.

Alguns dos antigos moradores ou membros de famílias que habitavam a

“Estação Ecológica Juréia-Itatins” no Vale relatam de que maneira testemunharam o

processo de expropriação do lugar onde viviam:

" (...) o pessoal do sítio, o mais deles tiveram que ir embora pra cidade. Porque entrou

o negócio de meio ambiente, não podia mais plantar, se o pessoal fizesse uma roça

depois, já era multado, ai a gente não tinha licença." (Juvenal, em Cananéia)

"O Guapiuzinho que nem eu conheci, que era vizinhança grande, estão tudo no Rocio

[periferia de Iguape] . Saíram do mato, tão tudo lá. Aconteceu a perda de não poder

viver no mato, de não poder fazer isso, de não poder fazer aquilo. Ah, esse negócio de

meio ambiente, isso aí apertou bastante, isso aí modificou." (Seo Carlos Maria, no

bairro do Prelado, Iguape)

Deduz-se, então, que as principais normas jurídicas voltadas à proteção de

florestas de importância inquestionável - como é o caso da Floresta Amazônica e

também da Mata Atlântica - desconsideram os direitos patrimoniais de povos e

comunidades tradicionais que ocupam essas áreas há muitas gerações e, sob

determinadas condições, apregoam a exclusão humana dessas áreas. É o caso das

"unidades de conservação de proteção integral", segundo o Sistema Nacional de

Unidades de Conservação (SNUC), instituído pela lei federal no. 9.985 de 2000.

No SNUC há uma diferenciação quanto admitir ou não a presença humana no

interior das “unidades”, classificando-as em duas categorias principais: "unidades de

7

proteção integral" (parques, reservas, estações ecológicas...) e "unidades de uso

sustentável" (RDS: reserva de desenvolvimento sustentável; APA: área de proteção

ambiental; RESEX: reserva extrativista, dentre outras). Ocorre que, assim como em

outras regiões no país, grande parte das comunidades caiçaras situa-se no interior ou no

entorno de áreas geográficas onde foram criadas, por meio de decretos estaduais ou

federais, as chamadas “unidades de conservação de proteção integral"

A partir da década de 1980 passaram a ser criminalizadas na região do Vale do

Ribeira, assim como em outras áreas do país, inúmeras práticas tradicionais de uso dos

recursos naturais utilizadas por determinados grupos étnica ou culturalmente

diferenciados, gerando um conflito iminente entre direitos culturais e territoriais e as

exigências estabelecidas pela lei federal (SNUC). Nesse sentido, pode-se dizer que

privilegia-se nestas áreas medidas de exclusão humana baseadas nos princípios da

"biologia da conservação"6 em detrimento da proteção dos direitos étnicos e comunais,

ou seja, dos direitos humanos. (RODRIGUES, 2013: 25)

Paradoxalmente, de maneira contrária à política ambiental vigente, o que se

observou nos últimos dez anos nesta região foi uma revitalização de manifestações

culturais, a exemplo do Fandango Caiçara, que reacendeu a discussão acerca da

atribuição de identidades coletivas e, de maneira indireta, fortaleceu as lutas para

obtenção de certos direitos de que são sujeitos esses grupos. O mesmo argumento vale

para as comunidades quilombolas, onde a revitalização recente das festas religiosas é

marcante - a exemplo da "Romaria de São Gonçalo" no Quilombo Reginaldo e a

celebração "Recomendação das Almas" no Quilombo Cedro, ambas as comunidades do

município de Barra do Turvo, bem como a "dança da Nha Maruca" do Quilombo

Sapatu, em Eldorado. Estas manifestações populares, ressignificadas nos últimos anos,

exercem um papel relevante na reconstrução do modo de ser tradicional entre caiçaras e

quilombolas que ocupam áreas do Vale do Ribeira.

A identidade "tradicional" autoatribuída passa então a existir como oposição a

algo que estas pessoas não querem ser e um modo de vida que não querem para si.

Retrata uma necessidade de autoafirmação em momentos de "aperto por essa gente do

ambiente", como disse um de meus interlocutores, em busca de restituição de coisas e

6 A biologia da conservação é um ramo da ciência biológica voltado à preservação da diversidade biótica.

Cf. SARKAR, Sahotra. Restaurando o mundo selvagem. In: DIEGUES, Antônio Carlos.

Etnoconservação: novos rumos para proteção da natureza nos trópicos. São Paulo: HUCITEC, 2000.

8

não-coisas importantes para essa gente, apontando a necessidade de garantir seus

direitos .

Por outro lado, medidas e mecanismos que movem as atuais políticas culturais

de patrimonialização devem ser relativizadas. De maneira geral, tais políticas não

reconhecem suficientemente a importância de mulheres, homens, jovens e velhos de

carne, osso e alma, detentores de um "bem cultural imaterial" a ser preservado, bem

como não evidenciam processos históricos e políticos em que estão envolvidos, muitas

vezes representados pelo bem patrimonial de interesse a ser preservado. Isto é, até o

presente não parece terem sido criadas medidas para resguardar efetivamente os lugares

e as formas de sociabilidade onde estas pessoas exercem e reproduzem suas

"maestrias".7

Esta desarticulação entre políticas estatais e o descaso quanto às reivindicações

destes povos é evidenciado nas narrativas de mestres fandangueiros, dentre os quais

ocupa um lugar de destaque Maria das Neves Rocha Silva, que anima semanalmente um

salão de Fandango no centro da cidade de Iguape: o Sandália de Prata. Dona Maria

cresceu em um sítio em um lugar conhecido por Itimirim, onde hoje se situa a estação

ecológica Juréia-Itatins. Contou-me, entre outras coisas, o seguinte:

"Meu avô era violeiro. Eu desde a idade de onze anos já dançava. A gente

fazia mutirão. A gente trabalhava no sitio, mas a gente não pagava ninguém

para fazer nada pra gente. A gente vivia da lavoura: arroz, milho,

mandioca, tudo, tudo. Então se você queria derrubar um terreno, naquele

tempo o IBAMA não proibia, da beira da porta podia plantar o que queria.

Então quando a gente queria fazer uma roça e era meu pai sozinho, nós era

tudo pequenininho. Ele não ia fazer um roçado grande. Então a gente fazia

o convite pra vizinhança, moravam tudo pertinho, ai a turma vinha,

trabalhava, mas você não pagava. Se era de manhã, você dava o almoço. Se

era na parte da tarde, você dava a janta. E de noite, o pagamento era o

Fandango".

(Dona Maria das Neves, em entrevista concedida em Iguape em 2012)

Além disso, condizente com a aplicação da lei federal (SNUC) que tem justificado

a exclusão de famílias e de comunidades tradicionais de reservas "naturais", não se leva

em conta que o resultado mais imediato deste tipo de medida ambiental é uma

inexorável "perda do patrimônio cultural" ao expulsá-los de seus territórios. Mas quem

são e como vivem estas famílias e comunidades nos dias de hoje?

7 Mesmo sendo prevista no PNPI a diretriz "Promover a inclusão social e a melhoria das condições de

vida de produtores e detentores do patrimônio cultural imaterial" no Programa Nacional de Patrimônio

Imaterial. Cf. site do IPHAN.

9

De "ademão", "ajuntório" e Fandango: o lugar da vida caiçara

Há inúmeras evidências que indicam que caiçaras mantêm ou reproduzem

sistemas naturais com grande efetividade nas áreas onde vivem ao longo de séculos.8

Não é por acaso que as áreas mais exuberantes e diversificadas de florestas, restingas,

manguezais e praias que compõem os trechos bem preservados da Mata Atlântica no

estado de São Paulo coincidem com as áreas ocupadas por esse grupo. Ainda assim, são

constantemente colocados em xeque os direitos desta gente ocupar os lugares onde

vivem suas famílias há inúmeras gerações, ameaçando o princípio básico da dignidade

humana que a Constituição Federal de 1988 procura assegurar.

Regras relacionadas ao uso comum da terra e à organização das atividades

produtivas - que no caso aqui em foco implica pluriusos do território ocupado por

caiçaras – no mar, nos rios, o solo e outros ambientes nas matas, restingas e mangues -,

são ignoradas e principalmente desrespeitadas a medida que agentes externos,

governamentais ou não, impõem aos caiçaras um série de restrições aos usos

tradicionais dos recursos naturais.

Sistemas análogos de uso comunitário de recursos comuns (common-pool

resources) foram pesquisados pela economista e pesquisadora Elinor Ostrom. Ele e sua

equipe comprovaram que muitos dos sistemas tradicionais são manejados nos trópicos

com bastante sucesso em regimes de autogestão por comunidades locais onde são

criadas e reproduzidas sofisticadas regras de uso comum do ambiente – distintamente

do que ocorre em propriedades privadas ou em áreas administradas pelo Estado.9

No Vale, práticas comunitárias que envolvem relações entre natureza e

sociedade sob a égide da sustentabilidade ampla - não só econômica, mas também social

e cultural -, utilizadas tradicionalmente há inúmeras gerações por caiçaras passaram a

ser “proibidas”: "roça de coivara"; "pesca de cerco"; caça de subsistência; extração de

cipós e palha para confecção de apetrechos de pesca, dentre outras.

8 Cf. Diegues, Antonio Carlos. Etnoconservação: novos rumos para a conservação da natureza;2000.

9 Sua tese contradiz alguns pesquisadores que afirmam que bens ou recursos de propriedade comuns

(commons) levam inevitavelmente à destruição ao longo do tempo, pelo fato de que propriedades

coletivas resultam no uso excessivo dos recursos naturais – tal como postulava Garret Hardin na obra

“Tragédia dos Comuns” publicada em 1968. Pesquisas empíricas realizadas pela equipe de Ostrom

demonstraram que determinados grupos humanos têm alcançado sucesso em criar arranjos institucionais e

sistemas de manejo de recursos comuns que permitem garantir o uso sustentável e equitativo por longos

períodos de tempo em áreas de florestas, nos oceanos, em rios e lagos, nas pastagens, dentre outros

ecossistemas (RODRIGUES, C.L.,2013:55).

10

A fala do Direito no Vale do Ribeira

As reivindicações de direitos (ou por justiça) de povos, comunidades e famílias

tradicionais no Vale têm percorrido caminhos um pouco distintos em diferentes

momentos e de acordo com os principais grupos envolvidos nos conflitos territoriais

que se arrastam há décadas.

Até meados de 1990, os direitos tradicionais reivindicados pela maioria das

comunidades caiçaras situadas no interior ou no entorno das chamadas "áreas

protegidas" restringiam-se ao direito de uso dos recursos naturais e o direito de

permanência na terra. De maneira contrária às determinações da lei federal que regula as

chamadas "unidades de conservação" (o SNUC), essas reivindicações foram

asseguradas em alguns locais por meio de portarias internas à Secretaria do Meio

Ambiente do Estado de São Paulo (SEMA). Foi o caso na Ilha do Cardoso, um parque

estadual situado no extremo sul do litoral paulista onde ainda hoje vivem cerca de

trezentas famílias caiçaras. Lá, durante um certo período e devido a condições

extraordinárias, que não serão discutidas aqui, foi concedida aos caiçaras a permissão do

cultivo de pequenas roças de mandioca e de extração de palha de uma palmeira nativa

para cobertura de ranchos de pesca.10

Porém, há pelo menos dez anos estas práticas não

são mais permitidas naquele parque. Contrários aos interesses e reivindicações dos

povos e comunidades tradicionais, as conquistas relacionadas ao direito de uso e

ocupação das áreas mostraram-se temporárias, frágeis e precárias. Prova disso é o caso

da Ação Civil Pública11

apresentada em 2012 por ambientalistas do 'Grupo de Atuação

Especial de Defesa do Meio Ambiente' (GAEMA) do Ministério Público estadual que

exigia do Estado de São Paulo a expulsão imediata dos moradores da Juréia. A despeito

das constantes ameaças de serem expulsos do lugar onde vivem há mais de duzentos

anos, ainda hoje se encontram algumas poucas famílias de caiçaras em locais que

denominam “Rio Verde”, “Grajaúna”, “Cachoeira do Guilherme”.12

Em um segundo momento, em função da organização dos quilombolas cada vez

mais marcante no Vale e no país como um todo, somada ao acirramento de conflitos em

10 Cf. (RODRIGUES, 2001).

11 A citada ACP foi repudiada em moção aprovada por unanimidade na reunião nacional da ABA em

julho de 2012 em São Paulo.

12 No estudo genealógico que realizei junto e com algumas destas famílias foi possível traçar diagramas

de parentesco que remontam a nove gerações de caiçaras vivendo nestes mesmos lugares.

11

alguns locais ocupados por caiçaras (na Juréia, sobretudo), houve um certa

"flexibilização" das leis ambientais na região. Isto ocorreu quando foram criadas as

primeiras 'Reservas de Desenvolvimento Sustentável' (RDS) e 'Reservas Extrativistas'

(RESEX) na forma de 'mosaicos de Unidades de Conservação'. Ambas as categorias de

áreas protegidas (RDS e RESEX), segundo o SNUC, permitem a presença e o "uso

sustentável" dos recursos por "populações tradicionais"13

. Primeiro foi instituído o

'Mosaico de Juréia', entre os municípios de Peruíbe e Iguape, em 2006. Dois anos mais

tarde (2008) foi criado o 'Mosaico de Jacupiranga', mais ao sul do Vale do Ribeira, onde

localizam-se os municípios de Cananéia, Ariri, Barra do Turvo e Cajati. No entanto,

segundo a mesma norma, as áreas ainda devem permanecer sob a tutela do Estado e as

decisões sobre a gestão das mesmas devem ser tomadas por um Conselho,

obrigatoriamente presidido por um funcionário do órgão ambiental gestor.

Há quem reconheça um certo avanço na "recategorização das áreas protegidas".

Devo salientar que este caminho têm sido proposto por algumas organizações de

caiçaras de forma que sejam legalizadas certas atividades produtivas que hoje são

proibidas.

Bem mais recentemente surge a necessidade de salvaguarda dos "direitos

culturais" de caiçaras e quilombolas no Vale, ou seja, a valorização dos "bens culturais"

de que os grupos tradicionais são detentores, mesmo daqueles que vivem no interior das

reservas ambientais onde não se prevê a ocupação humana (parques, estações ecológicas

e afins). A questão dos direitos passa então a ser discutida por novos sujeitos e desde

uma outra perspectiva. Não se argumenta mais que esses povos sejam supostos

"guardiões da natureza", ou que podem ser considerados "parceiros na conservação da

biodiversidade" - bandeiras até então utilizadas por determinados pesquisadores das

áreas humanas para garantir a permanência desses grupos nas reservas. O que se

reivindica é o direito desses povos de manterem seus modos de vida, o que implica na

reprodução de práticas tradicionais de uso dos recursos existentes, além da proteção de

expressões culturais específicas relacionadas às festas comunitárias, rituais religiosos,

saberes e fazeres tradicionais. Percebo neste processo o início de sérios questionamentos

das leis que regem as áreas decretadas "reservas" onde esses povos vivem (ou viviam e

para onde querem voltar).

13 Cf. Artigo 14 do SNUC, lei federal no. 9.985/2000.

12

Como um desdobramento desta última estratégia, há alguns sujeitos que

reivindicam a criação de um "território caiçara" (ou "território do Fandango", como

alguns sugerem). O que se pretende, neste caso, é uma maior autonomia para que estes

sujeitos possam viver de acordo com determinadas regras internas de uso do espaço e

regras relacionadas à sociabilidade do grupo, certamente imbricadas e indissociáveis.

Todavia, com exceção das terras indígenas e dos territórios quilombolas, em certa

medida garantidos pela CF 88, não há jurisprudência que poderia consubstanciar a

criação de um território caiçara.

Esta última questão é apontada como a principal razão pela qual muitos dos

sujeitos envolvidos nas disputas territoriais consideram a proposta difícil de ser

concretizada. Pergunta-se, contudo: há argumentos conceituais e, mais precisamente,

jurídicos, que justificariam a criação de um território caiçara em locais de parques,

estações ecológicas e reservas biológicas? A problemática que tem sido debatida junto

aos movimentos sociais agrupados na categoria povos e comunidades tradicionais. E

neste sentido penso ser válido argumentar que o Brasil recepcionou a Convenção 169 da

Organização Internacional do Trabalho, através do Decreto n° 5.051/2004. O

dispositivo que trata dos direitos ao território dos povos indígenas e tribais em países

independentes é considerada uma Emenda Constitucional por ter sido aprovada pela

maioria no Congresso Nacional e por tratar da proteção de direitos humanos.

Considerando ainda que todas as unidades de conservação no Brasil são legisladas pelo

Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), ou seja, uma lei federal

ordinária, é possível argumentar que esta não tem o poder de contradizer uma

determinação prevista na Constituição e o que preconiza a Convenção 169 da OIT.

Pode-se aferir então, desde um certo ponto de vista, que o SNUC é inconstitucional

quando é operado para regulamentar os usos por comunidades em “terras

tradicionalmente ocupadas” (ALMEIDA, 2008). 14

Além disso, as restrições de

ocupação e de uso pelos sujeitos coletivos aqui em foco também contraria as

disposições do decreto federal n° 6.040/2007 que institui a ‘Política Nacional de

Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais’.

14 Reproduzo aqui com a declaração sobre a inconstitucionalidade do SNUC em relação aos PCT,

proferida pela Drª. Débora Duprat – Vice-Procuradora Geral da República e Coordenadora da 6ª Câmara

de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, durante Conferência Inaugural do Simpósio

Internacional “Conhecimentos Tradicionais na Pan-Amazônia” ocorrido em Manaus/AM de 14 a 16 de

julho 2010.

13

Quando se menciona "direitos das comunidades", todavia, é preciso antes

diferenciar "direitos coletivos" e "direitos difusos" (chamados "direitos de terceira

geração") dos "direitos culturais", ou melhor, aqueles que aqui chamo "direitos

comunais", procurando diferencia-los dos direitos coletivos e difusos. Os dois

primeiros, assim como os "direitos individuais homogêneos", são direitos de natureza

transindividual, ou seja, tratam de interesses da natureza individual e privada, mas

alcançam pessoas indeterminadas, ou indetermináveis.15

Já os "direitos comunais"

seguem a alusão de Sousa quando refere-se aos "direitos culturais e de

autodeterminação dos povos" (SOUSA, 2001:64). Estes "sujeitos coletivos de direitos"

têm sido denominados em recentes políticas públicas "povos e comunidades

tradicionais" e engajam-se "na busca por uma coletividade comum entre si e distinta do

resto da nação" (FERREIRA DA SILVA, 2012: 151). Trata-se de "sujeitos de direito

como comunidades", isto é, um grupo específico de sujeitos que autoatribui a si uma

identidade coletiva que os diferencia étnica ou culturalmente da maioria da população.16

Para os casos aqui referidos (caiçaras e quilombolas), não basta, portanto,

reconhecer as diferenças étnicas e culturais destes grupos. Devemos antes de mais nada

restaurar ou criar políticas que garantam a redistribuição de recursos a esses grupos

situados historicamente às margens do desenvolvimento econômico. Um exemplo

inequívoco é o dos quilombolas. Por outro lado, não basta igualmente tornar acessíveis

a esses grupos os bens e serviços básicos providos pelo Estado-nação. O que está em

jogo na busca do "direito de ser diferente" (SOUZA, Ibid: 75). Nos casos aqui em

discussão, extrapola uma mera luta por bens e justiça material.

A complexidade que caracteriza propostas do direito e da justiça pautados na(s)

diferença(s) é tratada de maneira esclarecedora por Nancy Fraser. Apoiando-se em

antigas tradições de organizações igualitárias, trabalhistas e socialistas, Nancy Fraser

(2007) elucida que "ações redistributivas" buscam uma alocação mais justa de recursos

e bens. Desta perspectiva, tratam-se de "medidas compensatórias". Muitas vezes,

todavia, o que os sujeitos coletivos buscam é o reconhecimento de suas diferenças

autoassumidas. Como esclarece a autora inspirada em determinadas teorias da filosofia

política sobre “direitos às diferenças”:

15 O direito de todos os cidadãos ao meio ambiente sadio e à boa qualidade de vida também enquadra-se

nesta categoria: a dos "direitos difusos".

16 A exemplo dos quilombolas e de outros tantos grupos tais como aqueles reunidos na 'Comissão

Nacional de Povos e Comunidades tradicionais'. Cf. site http ://www.mds.gov.br/cnpct.

14

“Nesses casos, realmente estamos diante de uma escolha: redistribuição ou

reconhecimento? Política de classe ou política de identidade?

Multiculturalismo ou igualdade social? Essas são falsas antíteses (...) Justiça,

hoje, requer tanto redistribuição quanto reconhecimento; nenhum deles,

sozinho, é suficiente. A partir do momento em que se adota essa tese,

entretanto, a questão de como combiná-los torna-se urgente. Sustento que os

aspectos emancipatórios das duas problemáticas precisam ser integrados em

um modelo abrangente e singular. A tarefa, em parte, é elaborar um conceito

amplo de justiça que consiga acomodar tanto as reivindicações defensáveis

de igualdade social quanto as reivindicações defensáveis de reconhecimento

da diferença”. (FRASER, 2007: 103).

Contudo, para além de analisar a hierarquia das leis e discutir questões

relacionadas ao direito estatal e positivo, parece-me que uma das maiores contribuições

da Antropologia ao Direito é procurar entender o que ocorre internamente aos grupos

que os motivam a criar, recriar e acionar regras próprias, muitas das quais apresentadas

no formato de rituais, como o Fandango.

O ritual do fandango

"Então, esse conteúdo de dança, de mutirão, eles dançavam quando varava uma canoa.

Eles faziam canoa enorme de três palmos e meio de boca, quatro palmo de boca, de

canela. E ai juntava sessenta homens pra varar uma canoa e a noite tinha o baile, que é

o fandango. Fazia esses mutirão, juntava esse pessoa pra varar uma canoa. Na época a

casa era tudo de chão batido, de terra mesmo, dançavam no chão. Dançavam baile,

dançavam também o dito passadinho, a noite toda....".

(Ciro no Guaraú, Peruíbe)

A despeito de serem alvo de admiração por suas danças, músicas, trajes coloridos,

animação e desenvoltura, fandangueiros e fandangueiras são pessoas que buscam antes

de mais nada a valorização de "seu modo de ser" e formas de saber-fazer particulares,

modos de "sentir, pensar e agir", ou modos de "criar, fazer e viver", bens protegidos na

Constituição Federal.17

Outrossim, os bens culturais estariam diretamente relacionados

aos lugares onde essa gente vive, sendo que suas manifestações seriam antes de tudo

mediadoras de todas as dimensões sociais daquele grupo.

O Fandango, tal como outras manifestações culturais de grupos populares em

nosso país, parece expressar as alegrias e vicissitudes que essa gente enfrenta em seu

17 Tal como é mencionado no artigo 216 da Constituição Federal de 1988.

15

cotidiano representando suas lutas, sonhos, o mundo que desejam para viver. Como

Geertz teria sugerido, o Fandango parece contar "uma estória sobre eles que eles contam

a si mesmos”.

Sob a ótica dos caiçaras, outros significados menos evidentes e talvez até mesmo

mais relevantes são sublinhados nas letras das músicas, nos ritmos, nos gestos e nas

expressões das pessoas durante os eventos de Fandango. Trata-se de uma abordagem

que se relaciona ao direito/justiça ainda que tal enfoque esteja situado "muito além

daquilo que está expresso em qualquer código de direito, ou mesmo nos princípios

formais que balizam os procedimentos e nas leis positivadas" (OLIVEIRA, L.R.C,

2010).

O Fandango tal como é praticado hoje nas comunidades ou em apresentações

públicas de cultura popular sugere um possível movimento de transformação, de

passagem de uma situação para outra, de uma condição a outra, que, além do reviver das

coisas boas do tempo no “sítio” (os encontros de amigos e parentes, as músicas, danças,

os namoros, as brincadeiras, os trabalhos coletivos), possibilitaria a criação, a invenção

de um mundo melhor de acordo com a perspectiva daquelas pessoas. E mais: parece

ainda haver alguma intencionalidade de mudança no Fandango, mesmo que

oculta/inconsciente. Ao que tudo indica, seus praticantes pretendem transformar esse

presente doloroso em algo mais prazeroso, por meio da "brincadeira", do "respeito", do

"orgulho de ser caiçara" e fandangueiros. De forma análoga às observações de DaMatta

ao analisar o ritual do carnaval carioca, é possível compreender o Fandango como um

momento de "inversão" dos papéis sociais ou "substituição" por uma condição

simbolicamente mais favorável que permite a estas pessoas vivenciar a alegria e o

orgulho de ser caiçara e/ou fandangueiros.

Observei em campo inúmeras vezes durante o Fandango uma situação simbólica

de transformação daqueles sujeitos. Nos momentos em que o Fandango acontece, foi

possível notar que, de certa forma, são transpostas situações dramáticas enfrentadas por

caiçaras, tais como a expropriação territorial, a criminalização de suas práticas

produtivas tradicionais. Destarte, ao celebrar os usos, os costumes e os valores do

grupo por meio de suas danças, composições e de todas as práticas específicas de cada

modalidade, o Fandango aciona certas regras sociais internas ao grupo que muito

frequentemente aludem às atividades agrícolas e pesqueiras e, pode-se dizer que, em

16

certa medida, recria determinadas regras, que francamente antagonizam com as leis

ambientais vigentes.

Últimas considerações

Caiçaras comunicam - entre "eles próprios" e com os "outros" - por meio dos

ritmos, das coreografias e das "modas" os dramas que enfrentam nas áreas em que

vivem (ou viviam), mas também celebram a alegria dos momentos de troca e de

comunhão.

A "fala do direito" entre caiçaras que vivem no presente na iminência de serem

expulsos de seu território se expressa em inúmeras manifestações de sua cultura, nas

narrativas, em seus rituais. Contudo, reconhecer suas "maestrias" não é suficiente para

garantir seus direitos. Primeiro, porque as políticas patrimoniais não criaram medidas

efetivas para a proteção das pessoas, famílias ou comunidades detentoras dos "bens

culturais". Segundo, por haver uma clara desarticulação entre setores do Estado, e até

mesmo na sociedade como um todo, apartando os que tratam e regulam os "direitos

culturais" de povos tradicionais e aqueles que regulam a proteção de áreas

transformadas em "reservas naturais" onde ainda hoje famílias vivem segundo seus

sistemas simbólicos particulares.

No Vale do Ribeira, a expropriação territorial e a violação ao princípio da

dignidade da pessoa humana tem levado grupos de caiçaras - assim como quilombolas -

a reivindicar direitos buscando remediar a expropriação pelo Estado do lugar da vida

dessa gente em áreas decretadas "reservas naturais". O Fandango Caiçara coloca em

foco uma série de experiências que liga estes eventos à vida cotidiana e aos dramas

enfrentados por caiçaras. Além disso, esses sujeitos buscam legitimidade para

estabelecerem e manterem regras próprias relacionadas às suas atividades tradicionais

(religiosas, de trabalho, artísticas e festivas) que, simbolicamente, reproduzem ou re-

criam quando praticam o Fandango.

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