as jornadas de junho e a hora da política

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32 BOLETIM CEDES JULHO-SETEMBRO 2013 ISSN 1982-1522 As jornadas de junho e a hora da política * Felipe Maia ** Nos últimos 20 anos o bordão “é a economia, estúpido” foi repetido ad infinitum como explicação para as mais diversas formas de decisão e manifestação política. Afora o mau gosto da expressão que insulta o interlocutor, subjaz ao bordão a tese de que a racionalidade humana não faz outra coisa senão calcular as possibilidades de ganho econômico e aquisição material. Assim, se a economia vai bem, tudo vai bem, sociedade e sistema político inclusos. Quando vai mal, tudo vai mal. Muitos políticos, jornalistas e marqueteiros para não falar dos próprios economistas acreditaram piamente nesta tese. Em boa medida orientaram-se por ela, fazendo da gestão do crescimento econômico e das variáveis a ele atreladas o PIB, o emprego, os juros, o câmbio o objetivo supremo da atividade política. Mesmo a política social sofreu com a colonização das técnicas economicistas, que impuseram o predomínio de intervenções focalizadas sobre políticas universalistas e estruturantes. Este ponto de vista anda de braços dados com a redução da política a mera técnica administrativa. Aos políticos caberia a gestão da “governabilidade”, neologismo que codifica a continuidade e a reprodução de um sistema político autorreferenciado, sem sobressaltos e, sobretudo, com a minimização dos conflitos sociais. Afinal, o investimento, a “competitividade” e o “ambiente de negócios” exigem estabilidade e sem eles não há crescimento econômico. Toda uma tecnologia foi desenvolvida para administrar os controles sociais e econômicos em regimes de democracia parlamentar e eleitoral. Marqueteiros produzem e decodificam pesquisas de opinião pública para medir a “popularidade” de discursos e candidatos, configurando o “mercado eleitoral”. Economistas orientam a gestão de macro variáveis capazes de indicar os fluxos de capital. Jornalistas produzem os enquadramentos e as imagens midiáticas que dão suporte comunicativo à gestão. Quanto maior foi a crença na infalibilidade destas teses, maior a dificuldade de entender as manifestações de rua que aconteceram em todo o país nas últimas semanas. * Artigo originalmente publicado no Breviário de Filosofia Pública (n.103). ** Doutorando em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ).

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Artigo sobre as manifestações brasileiras de junho de 2013

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    BOLETIM CEDES JULHO-SETEMBRO 2013 ISSN 1982-1522

    As jornadas de junho e a hora da poltica*

    Felipe Maia**

    Nos ltimos 20 anos o bordo a economia, estpido foi repetido ad infinitum

    como explicao para as mais diversas formas de deciso e manifestao poltica. Afora

    o mau gosto da expresso que insulta o interlocutor, subjaz ao bordo a tese de que a

    racionalidade humana no faz outra coisa seno calcular as possibilidades de ganho

    econmico e aquisio material. Assim, se a economia vai bem, tudo vai bem,

    sociedade e sistema poltico inclusos. Quando vai mal, tudo vai mal. Muitos polticos,

    jornalistas e marqueteiros para no falar dos prprios economistas acreditaram

    piamente nesta tese. Em boa medida orientaram-se por ela, fazendo da gesto do

    crescimento econmico e das variveis a ele atreladas o PIB, o emprego, os juros, o

    cmbio o objetivo supremo da atividade poltica. Mesmo a poltica social sofreu com

    a colonizao das tcnicas economicistas, que impuseram o predomnio de intervenes

    focalizadas sobre polticas universalistas e estruturantes.

    Este ponto de vista anda de braos dados com a reduo da poltica a mera

    tcnica administrativa. Aos polticos caberia a gesto da governabilidade, neologismo

    que codifica a continuidade e a reproduo de um sistema poltico autorreferenciado,

    sem sobressaltos e, sobretudo, com a minimizao dos conflitos sociais. Afinal, o

    investimento, a competitividade e o ambiente de negcios exigem estabilidade e

    sem eles no h crescimento econmico.

    Toda uma tecnologia foi desenvolvida para administrar os controles sociais e

    econmicos em regimes de democracia parlamentar e eleitoral. Marqueteiros produzem

    e decodificam pesquisas de opinio pblica para medir a popularidade de discursos e

    candidatos, configurando o mercado eleitoral. Economistas orientam a gesto de

    macro variveis capazes de indicar os fluxos de capital. Jornalistas produzem os

    enquadramentos e as imagens miditicas que do suporte comunicativo gesto.

    Quanto maior foi a crena na infalibilidade destas teses, maior a dificuldade de

    entender as manifestaes de rua que aconteceram em todo o pas nas ltimas semanas.

    * Artigo originalmente publicado no Brevirio de Filosofia Pblica (n.103).

    ** Doutorando em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Polticos (IESP-UERJ).

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    Muitos lderes polticos experimentados deram declaraes estapafrdias demostrando

    incapacidade de compreender o momento. O espanto aparecia em perguntas do tipo:

    como um aumento to pequeno no preo das passagens causou tanta revolta? Como

    pode uma presidenta da Repblica com tanta popularidade sofrer crticas nas ruas? Por

    que falhou a velha operao de criminalizao dos movimentos sociais? Como tal

    mudana de humor escapou s pesquisas de opinio?

    As tcnicas de controle social e de gesto da governabilidade mostraram-se

    incompetentes para lidar com uma expresso renovada da vontade social. Esta ltima

    no se mostrou tradutvel na linguagem dos economistas pois apontou para questes que

    transcendem a gesto do mercado incidindo sobre problemas estruturais da vida urbana.

    Tampouco foi tradutvel no marketing poltico maniquesta, acostumado a reduzir o

    conflito poltico polarizao PT vs. PSDB. Governantes de ambos os campos foram

    igualmente criticados e produziram respostas incrivelmente parecidas. J os idelogos

    da mdia podem assistir a uma retrospectiva dos vdeos de Arnaldo Jabor no YouTube

    se quiserem recordar seus patticos fracassos.

    A sociedade se movimentou com uma pauta prpria, ainda que pouco

    organizada e pouco precisa como talvez seja prprio de movimentos que se alastram

    como rastilho de plvora. Mas deve-se dizer que esta pauta remete substancialmente ao

    mundo da vida urbano, ao campo das experincias compartilhadas e vividas nas

    grandes metrpoles, problemas para os quais a tcnica governamental usual parece

    incapaz de prover solues. Muito mais do que os 0,20 centavos, a organizao do

    espao, a qualidade dos servios pblicos e a crtica de hierarquias e distines sociais

    que parecem impulsionar os manifestantes. So cidades mercantilizadas que se

    reproduzem segundo uma lgica de desigualdades e excluso, frutos da expanso de um

    capitalismo desregulado, descolado das experincias e expectativas da maior parte da

    populao. As administraes pblicas so percebidas como impotentes para ordenar

    esse processo, quando no so elas mesmas agentes de sua acelerao.

    No toa que os megaeventos esportivos tornaram-se alvo fcil do protesto

    popular por simbolizarem ao mesmo tempo a oportunidade de grandes negcios e a no

    realizao das promessas de contrapartidas sociais, sendo a mobilidade urbana a maior

    delas. O contraste entre as obras dedicadas aos estdios de futebol e os precrios

    equipamentos pblicos de sade e educao expresso em palavras de ordem tais como

    escolas e hospitais padro Fifa ou ainda o professor vale mais que o Neymar so

    afirmaes contundentes da recusa submerso dos direitos sociais na escala de

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    visibilidade e prioridade na ao governamental. Face a esses argumentos de pouco

    adiantou dizer que a Copa do Mundo de futebol trar empregos e crescimento

    econmico. As manifestaes j subverteram as ordens de grandeza mobilizadas no

    debate pblico.

    Na Europa, manifestaes semelhantes tambm abalaram os sistemas polticos.

    L a crise veio da impossibilidade de conjugar a continuidade do crescimento

    econmico com uma distribuio justa da renda e da proteo social. No Brasil, deve-se

    dizer que o crescimento econmico jamais acompanhou uma distribuio minimamente

    justa da renda, bem como a formao de redes confiveis de servio pblico e proteo

    social. A ideia de que o crescimento econmico experimentado em meados dos anos

    2000 poderia conduzir uma transformao social sem conflitos revela-se, luz das

    manifestaes, mera iluso.

    A domesticao das demandas sociais por um discurso pretensamente realista,

    centrado na governabilidade, terminou por afastar lideranas polticas e movimentos

    sociais organizados das expectativas de realizao de direitos por parte da populao.

    As manifestaes trazem assim um sentido de urgncia para uma pauta que no em si

    mesma nova, pois j frequentava os programas de organizaes diversas, mas que vinha

    sendo relegada a um plano inferior no andamento lento e problemtico das instituies

    governamentais brasileiras.

    O sistema poltico, excessivamente autoconfiante e autorreferenciado, no

    conseguiu interpelar a tempo a formao desta nova vontade. Fechou-se em sua lgica

    prpria, na rotina da gesto do aparato estatal, que, se levarmos em conta os trs nveis

    federativos, absorve todos os grandes partidos polticos. A semelhana na forma de

    conduo das coalizes polticas e seu famigerado presidencialismo de coalizo e

    nos procedimentos para a competio eleitoral fez tbula rasa das diferenas partidrias,

    generalizando a crtica em direo ao sistema. Sinais desta insatisfao, a rigor, no

    faltaram, mas foram mal interpretados, como por exemplo no enquadramento da crtica

    corrupo como udenismo, ou em seu reverso, a corrupo como inveno do PT.

    Neste contexto, as manifestaes parecem ter cumprido o objetivo de tirar o

    sistema poltico de sua zona de conforto e desestabilizar uma rotina que se reproduzia

    em circuito fechado. As manifestaes podem assim alargar o horizonte de

    possibilidades e trazer um fato novo, que, se bem interpretado, pode ser criador de

    grandes transformaes. Esta boa interpretao no se restringe, por certo, aos

    governantes e s instituies que se tornaram alvo dos protestos, mas tambm os

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    manifestantes devem refletir sobre o significado de suas aes e os caminhos a serem

    seguidos no futuro prximo. A baixa capacidade organizativa deu espao para

    manifestaes localizadas e obscuras de irracionalidade, violncia e preconceitos

    incompatveis com a cultura democrtica que parece ser predominante entre os

    manifestantes.

    O ponto principal que j no se pode voltar atrs, as jornadas de junho

    apresentam desafios novos que reclamam no uma interveno providencial, que com

    base no carisma ou na autoridade viesse a serenar os nimos e reestabelecer a ordem

    antiga, mas uma coordenao de iniciativas que respondam a problemas concretos, que

    esto ligados a um conjunto de expectativas de realizao de direitos que a

    modernizao das estruturas econmicas e a poltica social focalizada no puderam e

    no podem realizar. Trata-se tambm de renovao dos procedimentos diminuindo a

    distncia entre a autoridade poltica e a populao. Esta propriamente a hora da

    poltica, que s se far grande se recuperar sua dimenso criadora e inventiva,

    transformando prticas e deslocando interesses particularistas, sejam eles os da

    expanso predatria da economia privada ou os da autorreproduo do sistema poltico.

    Tambm os movimentos e seus participantes tero que lidar com desafios de grande

    poltica elevando sua capacidade organizativa e programtica.

    As respostas no esto prontas, mas a prpria linguagem que vem das ruas pode

    oferecer caminhos a serem desbravados. Na sua multiplicidade de expresses, e sem

    desprezar as diferenas polticas que existem em conjunto to amplo, os manifestantes

    recorrem aos temas dos direitos, da virtude pblica e da democracia. No so temas

    estranhos tradio do pensamento poltico e social do ocidente, mas exigem por certo

    uma atualizao s condies do tempo e da sociedade presentes. H potencial a para

    reorganizar o espao pblico, mas isso s se dar se boas interpretaes se encontrarem

    com uma prtica poltica igualmente renovada.