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As interconexões da Memória com a Escrita CINTYA CHAVES * Resumo: Este trabalho tem como proposta discutir as intenções dos grupos políticos ao produzirem livros acerca das experiências de suas vidas, refletindo historicamente a relação da memória escrita com a memória viva, oralidade. Nesse sentido, dentre as múltiplas possiblidades elegeu-se pensar como os grupos políticos de Limoeiro do Norte, interior do Ceará, se relacionam através de suas produções escritas? Ou seja, qual o papel destas obras no que concerne a administração das sensibilidades sociais entorno das relações de poder? A obra escolhida foi Judite- Centenário de nascimento 1906- 2006. A escolha pela mesma deve- se ao fato dela está entre o corpus documental do trabalho de dissertação, intitulado: A elite política e o poder local cearense em questão: estratégias e discursos para novos espaços de atuação (1934-1974), sendo, portanto, considerada como a mais simbólica para se refletir a respeito da questão proposta. Palavras- Chave: Livros de Memória, Oralidade, Política. Apresentação Entre a palavra planejada e a palavra espontânea, atualmente há uma prevalência pela planejada. Mas o que se quer dizer com as noções, palavra planejada e espontânea? Cada vez mais, a escrita mediatiza a forma dos indivíduos se expressarem; “até mesmo” nas atividades em que a oralidade predominaria, como por exemplo, em mesas redondas e conferências, a cultura de se escrever e consequentemente ler acerca do que será discutido, partindo-se do pressuposto que tal forma é mais inteligível ao ouvinte, é a que se aplica. É certo que as articulações mnemônicas quanto ao saber, são cada vez mais mediadas pelo o papel, tendo-se a possibilidade de se editar e reeditar os vocabulários considerados inadequados, pelos termos mais pertinentes. A palavra do locutor, do individuo considerado como o bom orador, é interceptada pela escrita. Nesse sentido, algumas problemáticas podem ser pensadas e pontos da reflexão histórica. Dentre as múltiplas possiblidades, elegeu-se aqui pensar, como os grupos políticos de Limoeiro do Norte, interior do Ceará, se relacionam através de suas produções escritas. Ou * Universidade Estadual do Ceará, Mestre em História e Culturas, apoio CAPES.

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As interconexões da Memória com a Escrita

CINTYA CHAVES*

Resumo: Este trabalho tem como proposta discutir as intenções dos grupos políticos ao

produzirem livros acerca das experiências de suas vidas, refletindo historicamente a relação

da memória escrita com a memória viva, oralidade. Nesse sentido, dentre as múltiplas

possiblidades elegeu-se pensar como os grupos políticos de Limoeiro do Norte, interior do

Ceará, se relacionam através de suas produções escritas? Ou seja, “qual o papel destas obras

no que concerne a administração das sensibilidades sociais entorno das relações de poder?” A

obra escolhida foi Judite- Centenário de nascimento 1906- 2006. A escolha pela mesma deve-

se ao fato dela está entre o corpus documental do trabalho de dissertação, intitulado: A elite

política e o poder local cearense em questão: estratégias e discursos para novos espaços de

atuação (1934-1974), sendo, portanto, considerada como a mais simbólica para se refletir a

respeito da questão proposta.

Palavras- Chave: Livros de Memória, Oralidade, Política.

Apresentação

Entre a palavra planejada e a palavra espontânea, atualmente há uma prevalência pela

planejada. Mas o que se quer dizer com as noções, palavra planejada e espontânea? Cada vez

mais, a escrita mediatiza a forma dos indivíduos se expressarem; “até mesmo” nas atividades

em que a oralidade predominaria, como por exemplo, em mesas redondas e conferências, a

cultura de se escrever e consequentemente ler acerca do que será discutido, partindo-se do

pressuposto que tal forma é mais inteligível ao ouvinte, é a que se aplica.

É certo que as articulações mnemônicas quanto ao saber, são cada vez mais mediadas

pelo o papel, tendo-se a possibilidade de se editar e reeditar os vocabulários considerados

inadequados, pelos termos mais pertinentes. A palavra do locutor, do individuo considerado

como o bom orador, é interceptada pela escrita.

Nesse sentido, algumas problemáticas podem ser pensadas e pontos da reflexão

histórica. Dentre as múltiplas possiblidades, elegeu-se aqui pensar, como os grupos políticos

de Limoeiro do Norte, interior do Ceará, se relacionam através de suas produções escritas. Ou

* Universidade Estadual do Ceará, Mestre em História e Culturas, apoio CAPES.

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seja, quais as intenções de se escrever um livro que sistematize suas experiências de vida?

Para isto, selecionou-se um livro de memória, categoria entendida aqui como, aquele que

apresenta os fatos almejando uma uniformização dos mesmos, uma estabilidade e ou

personificação destes em relação ao passado, buscando disciplinar de forma singular e

homogênea a pluralidade de interpretações possíveis, tanto dos olhares do presente como do

devir. A obra escolhida foi Judite- Centenário de nascimento 1906- 2006. A escolha pela

mesma deve-se ao fato dela está entre o corpus documental do trabalho de dissertação,

intitulado: Elites Políticas limoeirenses: Estratégias e Discursos para novos espaços de

atuação e poder, sendo, portanto, considerada como a mais simbólica para se refletir a respeito

da questão proposta.

O querer registrar-se através dos tempos

[...] Com ela na presidência da ARENA limoeirense, aconteceu um caso que não

posso omitir nestas linhas. Foi anunciado em todo Ceará, particularmente no Vale

do Jaguaribe, a visita do então Presidente da República, Ernesto Geisel, ao

perímetro irrigado de Morada Nova. [...] Não demorou muito e o avião sobrevoou a

cidade aterrissando em seguida. Desceram da aeronave o Governador César Cals,

o Presidente Geisel, o Ministro Armando Falcão e um segurança [...]. Fomos

cumprimentados por aquelas autoridades e o Governador disse para o Presidente:

“dona Judite é a única mulher presidente de diretório da ARENA no Ceará. O

Presidente completou: do Brasil”. Somente muito prestígio fez com que isso

acontecesse. Fiz questão de registrar esse fato, para lembrar aos idosos e dar

conhecimento aos mais jovens da liderança e do prestígio que dona Judite

desfrutava na política e na sociedade da região jaguaribana. [...]

Antônio Pergentino Nunes 1

Como já referido, o trecho acima é um artigo que compõe um livro de memória que

tem por objetivo homenagear Judite Chaves, em seu centenário de nascimento, 1906 – 2006.

Personagem emblemática de uma família, que tem por sobrenome Chaves, que desde o

Império até por volta os meados da década de 1950, efetivamente monopolizou o poder

1 Grifado por esta pesquisa. O autor deste trecho era correligionário da família Chaves. Em entrevista realizada,

em 22/04/11, o mesmo ainda trazia afeto, lealdade e admiração em sua narrativa, ao lembrar-se do grupo.

3

político usando como meios de poder2 o cartório, pelo o fato dos membros da família,

inclusive ela mesma, no período republicano, terem ocupado o cargo de tabelião; e a boa

relação com os padres do munícipio de Limoeiro do Norte, situado na região do Baixo

Jaguaribe, estado do Ceará. Os Chaves favoreceram-se ainda de ocuparem lideranças

consideradas como socioculturalmente importantes, empreendidas pela Igreja Católica, além

de terem como estratégia3, para a manutenção do poder local, mostrar-se aliado do governo

estadual, estabelecendo alianças em especial desde a Primeira República, especificamente na

política dos governadores onde existia uma cultura política, isto é, “um grupo de

representações, portadoras de normas e valores, que constituem a identidade das grandes

famílias políticas, e que vão muito além da noção reducionista de partido político”

(BERSTEIN, 2009: 31 -32), que lhes permitiam está mais diretamente em contato com o

governador estadual. Nesse sentido, esta família ampliou seus espaços de atuação e poder

chegando a içar cargos estaduais na década de 1940, quando Franklin Chaves, irmão de Judite

Chaves, semelhante ao seu tio Leonel, no período Imperial, conseguira adquirir o posto de

deputado estadual.

A epígrafe acima alude as experiências políticas destes indivíduos, no caso em

especial, de Judite Chaves, que apesar de nunca ter sido candidata, era uma das principais

líderes de sua família, a partir da década de 1930. Seu comando foi forte quanto às

empreitadas em prol de ocupar cargos públicos tanto da esfera “do político”, como em

2 O termo, meios de poder possui uma proporção dinâmica, ou seja, os meios de poder utilizados por um grupo

no Império, na maioria das vezes não são os mesmos utilizado por eles na República. No caso, da família Chaves

o comando do cartório se tornou meio que “transcendental” aos anos, sendo, portanto um meio de poder para se

estabelecer e se consolidar nas diversas esferas sociais, em especial na área da política, em meio às supostas

“rupturas”, na perspectiva do macro, como por exemplo, a Revolução de 1930. 3 Segundo Michel de Certeau a Estratégia seria articulada pelos produtores, um sujeito de querer e poder, e se

apoia no lugar, “[...] as estratégias escondem sob cálculos objetivos a sua relação com o poder que os sustenta,

guardado pelo lugar próprio ou pela instituição. [...]” Nesse sentido, no âmbito de Limoeiro, os Chaves eram

estes sujeitos do querer e do poder, respaldados pelos cargos institucionais, o lugar, que possibilitou acessos

outros e, experiências, tidas como socialmente importantes, que os demais limoeirenses não tiveram

oportunidades de desfrutar. No que diz respeito às táticas, Certeau explica que elas se caracterizam pelo não

lugar. Do ponto de vista deste estudo, este conceito não pode ser aplicado na íntegra, pois apesar de os Chaves,

no caso de serem relacionados com os agentes que administraram a política nacional, serem agentes comuns,

produzindo táticas, inventando o cotidiano, eles tinham o lugar municipal, para se apoiar. Assim, o termo, tática,

será empregado sob esta ressalva e somente quando os Chaves forem abordados nesta perspectiva do diálogo

com a política nacional. (CERTEAU, 1994: 46 - 47).

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associações, por exemplo; como no âmbito do político partidário, sendo ela líder da Liga

Eleitoral Católica( LEC)4 na década de 1930 e da ARENA5, na década de 1960.

O desejo de Antonio Pergentino Nunes, integrante político do grupo dos Chaves,

comprometido, como refletido por Serge Berstein, com sua família política, em “ fazer

questão de registrar” a experiência narrada acima, afere a noção de uma escrita

imortalizadora, ofertando a esta um caráter polissêmico, pois escrever seria registrar e

registrar é lembrar, é fazer conhecer, assumindo assim o seu registro, uma função

pedagógica, diante da sociedade limoeirense.

O apego à escrita bem como esta noção da mesma como perene, imortal, segundo

Draaisma, já inquietava os medievos. O mesmo relata que na Idade Média, a concepção de

escrever suas memórias era a forma de escapar de uma coletividade, que os seus mortos não

levassem o conhecimento daquela sociedade para os seus túmulos. Assim, o livro adquiriu

grande importância, pois devido as difíceis condições de sobrevivência e a baixa expectativa

de vida do período, este oferecia o suporte de reter a experiência de várias gerações. Portanto,

a transferência da memória expressa pela oralidade, para a palavra escrita burlava a

efemeridade, e “tudo o que se expunha em livro podia ser consultado por outrem, tornava-se

público, podia ser passado adiante, transportado, traduzido, trocado, copiado, disseminado; de

certa forma, o texto se tornara seguro” (DRAAISMA, 2005: 61-62).

Ao se retroceder ainda mais, esbarra-se com a biblioteca de Alexandria, século III a.C,

gerada em torno da expectativa de Ptolomeu Filadelfo, de agrupar todos as obras que

aglomeravam a produção do conhecimento do mundo, se constituindo para as gerações

seguintes, como um símbolo de referência no que concerne a noção de biblioteca, coleções e

“completude” do saber, em especial para a sociedade europeia do século XVIII, devido a

concretude de tais questões. (DUTRA, 2006: 299)

4 A Liga Eleitoral Católica, LEC, se estabeleceu como um movimento de grande relevância para o Ceará. Criada

em 16/12/1932, era mais uma das estratégias encontrada pela Igreja de se restabelecer na sociedade

aconfessional e garantir a não extinção dos princípios cristãos como também abalizar sua presença como

instituição. 5 Partido Político, organizado por volta de 1964, durante o regime militar.

5

Ao se pensar em Brasil, a década de 1930, fora palco, segundo Eliana Dutra, de um

“empreendimento editorial destinado a reunir um conhecimento sistemático sobre o Brasil,

ainda hoje, sem equivalente na história da edição do país”, através da Coleção Brasiliana,

fundada em 1931, por Octales Marcondes Ferreira. Assim, congrega-se uma dupla

compreensão acerca dos “lugares” em que se pode externar a memória e como fazê-la, ou

seja, a oralidade e a escrita. Contudo, como lembra, (ZILBERMAN, 2010: 37):

A memória muda de lugar: deixa de se situar na subjetividade do locutor, para se

colocar na objetividade do texto, a que, portanto, cabia conservar. A autoridade do

texto suplanta a de seu produtor, e este fica, de um lado, obscurecido enquanto

identidade, de outro, idealizado enquanto criador. A escrita toma lugar da voz, e

consolida-se o objeto onde ela repousa – o livro, sacralizado enquanto depósito do

texto. Esse, acima daquele, por se tratar de entidade que transita entre diferentes

leitores, desde que os últimos não intervenham no processo, depois de que seus

antepassados especializados fixaram sua natureza e conteúdo.

Assim, por meio da escrita que se materializaria no papel, onde muitas folhas

aglomeradas, bem como a sistematização e articulação de um enredo perpassado por um

raciocínio lógico e inteligível, forma-se um livro, “não só como depósito de saber de

conhecimentos, de verdades, de práticas e técnicas de sabedoria, mas como formador social e

reformador político.” Este livro, ainda possui um lugar destinado, um lugar seu e próprio, a

biblioteca, entendida como, “lugar, como dispositivo intelectual, como metáfora, [...] lugar

onde são trancados vários fios que dizem respeito à organização, à exteriorização, e aos

domínios da memória.” (DUTRA, 2006: 301- 304).

A este respeito, os sujeitos escritores, selecionam quais memórias devem ser

imortalizadas, principalmente quando se trata de registrar memórias de grupos políticos

partidários, pois em especial a escrita nesta sociedade ocidental atua como elemento

comprometedor para o autor de determinadas afirmações. Não obstante, se sabe que para a

composição de um livro em que predominam memórias políticas, dificilmente os opositores

são chamados, a não ser que na época da produção do livro se tenha desenvolvido outras

relações, sendo importante e até legitimador o que um antigo adversário e atual aliado, tem a

escrever a respeito daquele que se pretende homenagear.

6

Nesse sentido, Ulpiano T. Bezerra de Menezes, reflete a respeito de uma “cultura da

memória”, (MENEZES, 2009: 447), que pode ser compreendida como:

[...] o modo como uma sociedade assegura continuidade cultural, ao preservar, com

o auxílio de uma “mnemônica cultural”, seu conhecimento coletivo, de uma

geração à seguinte, tornando possível que gerações vindouras possam reconstruir

sua identidade cultural. Não se trata de buscar testemunhos do passado, nem

mesmo de continuidade cultural, mas de identificar material capaz de assegurar a

inteligibilidade do passado, num determinado contexto cultural do presente. O

passado, portanto, é ativamente construído. [...]

Não obstante, a definição da expressão referida, diferir em alguns aspectos devido à

proposta da análise do autor ser outra, ela é útil para se compreender esta dimensão da

preservação, bem como esta ideia da transmissão à geração a posteriori, percebendo que de

uma forma mais ampla, a sociedade, de maneira geral, desenvolve artimanhas para que os

códigos socioculturais possam ser compreendidos por seus descendentes. Malgrado, neste

caso específico, ao contrário do que é colocada pelo o autor, a busca deste auxílio

mnemônico, por parte de grupos políticos – partidários, pretende sim, recorrer a testemunhos

do passado, almejando não talvez, uma continuidade cultural, mas uma legitimação

sociocultural. Esta, está absolutamente interligada com o desejo de se apresentar socialmente,

como “os grandes políticos do passado”. Destarte, no caso deste grupo, eles gerenciam a

leitura acerca deste passado, almejando que ele não seja somente inteligível, mas sim que as

lembranças que não são convenientes para esta identidade cultural venham a ser esquecidas.

O Registro da memória

O temor do esquecimento move os grupos a narrarem-se. A produção de livros de

memória se configura no âmbito em que este narrar toma forma através da escrita, que

segundo Michel de Certeau, constitui uma prática moderna e ocidental dos indivíduos dos

últimos quatro séculos. Estes anseiam fazer a sua história, fazer história, e a escrita traria a

ideia de um rompimento com um mundo mágico, com o mítico, se constituiria, portanto,

como uma produção mais sistematizada enunciando um caráter “mais verdadeiro”.

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Certeau define o ato de escrever como uma atividade concreta, que consiste sobre um

espaço próprio, a página, em que se construiria um texto que tem poder sobre a exterioridade.

A escrita seria uma intervenção parcial e controlável, onde o sujeito não seria “possuído pelas

vozes do mundo”, exercendo deste modo, uma série de racionalidades, isto é, gestuais e

mentais, “traçando na página trajetórias que desenham palavras, frases, um sistema”

(CERTEAU, 1994: 224). Escrever, portanto, explica o autor, se constitui um teatro da vida em

que estariam representadas formalmente as práticas socais, tendo como intento uma eficácia

social, atuando sobre a sua exterioridade.

Os livros memorialísticos podem ser associados a essas representações formais, em

que fala Certeau. Um dos primeiros pontos que motiva a quem escreve é o anseio da

imortalidade, como afirma, (CANDAU, 2011:139):

[...] Cada indivíduo sabe que, uma vez que a profundidade de sua própria memória

não vai além de duas ou três gerações, ele mesmo será totalmente esquecido algum

tempo após sua morte. [...] a transmissão que todo genealogista procura é, antes de

tudo, a de si mesmo: salvaguardando a memória de seus ancestrais, ele protege

também sua.

Com a família Chaves não é diferente. É interessante para o grupo, para a família, se

posicionar como a progenitora dos grandes projetos que, “tencionaram a ascensão”

Limoeirense. Os autores de livros de cunho de memórias políticas almejam atuar sobre uma

exterioridade no sentido de fabricar discursos que comunicam que determinado, município,

estado ou país, em seus aspectos positivos “só é o que é hoje”, porque os agentes que foram

os líderes políticos de tal período tiveram uma liderança política atuante, foram proativos,

dedicados e íntegros durante suas administrações. O livro, de homenagem ao centenário de

nascimento de Judite Chaves, elencado por este estudo, “ilustra” bem tal questão no trecho em

que uma amiga ao falar de Judite, declara, “[...] Judite e Custódio marcaram profundamente,

e de forma positiva a história de Limoeiro do Norte, deixando o seu legado para as gerações

futuras. [...] 6”

6 Assessora de arte e design na Secretaria de cultura de Limoeiro, de 2004, amiga da família Chaves e se intitula

como escritora limoeirense. Grifos nossos.

8

Custódio Saraiva esposo de Judite Chaves, foi prefeito do município, por vários anos.

Nota-se assim, que a memória que está sendo construída não é somente de Judite Chaves, mas

também de seu grupo, em um movimento de gerenciamento uno, no sentido de pregar uma

interpretação singular do passado em relação ao presente, ocultando a pluralidade de versões e

interpretações que se pode ter no que diz respeito às ações e discursos destes agentes.

A fabricação desta memória está almejando ainda estabelecer relações de identidade7,

no que diz respeito não a uma identidade interna, subjetiva, intrafamiliar, mas sim uma

identidade de caráter sócio- político, buscando organizar a memória para que seja implantada

a “ficção da permanência e do sentimento de uma cultura comum” (CANDAU, 2011:147).

Nesse sentido, os sujeitos descendentes se relacionam com o presente, almejando um

reconhecimento de seus conterrâneos, um olhar diferenciado, de respeito e admiração, por

aquela sociedade em questão.

Além disso, há vários trechos do livro que são expressivos, no que diz respeito a

transmitir indiretamente o ideal político, de que eles, os descendentes dos Chaves, “os Chaves

do presente”, são habilitados para atuar politicamente, devido ao sangue, a carreira política-

partidária ou para opinar a respeito de tal assunto. Os livros memorialísticos seriam um

instrumento de “oficialização” e de tornar acessível às memórias que prestigiam o grupo.

Para Joel Candau, a manipulação do passado, permite construir passados alternativos,

em geral mais útil e conveniente, gerenciando, portanto a maneira social de conceber o

transcorrido: “[...] uma relação elíptica, eletiva ou esquiva com o passado é com frequência

uma maneira hábil de jogar com as memórias ou fragmentá-las” (CANDAU, 2011:168).

É interessante perceber como o “costume interiorano” de fazer conhecer suas

memórias através da narrativa e a própria valorização da memória, haja vista que a capacidade

de narrar o ocorrido, está interligada aos processos mnemônicos, no que confere a conceber a

memória como “uma faculdade humana encarregada de reter conhecimentos adquiridos

7 Elencou-se o conceito de Identidade enquanto “Representação social” proposto por (Pesavento 2008, 89-90),

onde se concorda que a identidade é uma construção simbólica de sentido, que organiza um sistema

compreensivo a partir da ideia de pertencimento. A identidade é uma construção imaginária que produz a

coesão social, permitindo a identificação da parte com o todo, do indivíduo frente a uma coletividade, e se

estabelece à diferença (...) é relacional, pois ela se constitui a partir da identificação de uma alteridade. Frente

ao eu ou, ao nós do pertencimento se coloca a estrangeiridade do outro.

9

previamente, [...] o antes, o experimentado pelo indivíduo [...]”, (ZILBERMAN, 2010: 28),

mudaram para estes grupos; equiparando-se o valor da memória narrada, oralidade, com a

escrita; podendo até em alguns momentos ser atribuídos a escrita uma valorização social

diferenciada, devido ao discurso que se nasceu no interior e que mesmo em meios a

dificuldades, os cidadãos limoeirenses conseguiram produzir livros, corroborando com a ideia

de Regina Zilberman, em relação ao deslocamento da memória viva, para uma escrita. 8

Até os anos de 1990, a produção de livros de memória era escassa em Limoeiro.

Contudo, a primeiro momento se pode inferir que por motivos da comemoração do centenário

do município, as principais “elites”, os descendentes dos Chaves, bem como os descendentes

da família rival, os Oliveiras, aproveitaram a ocasião para se apresentarem como os

intelectuais, os detentores da “história de Limoeiro”. A partir deste marco, observa-se cada

vez mais uma disputa pela memória, em que os indivíduos se utilizam de datas que eles

construíram como importante, como por exemplo, a comemoração do centenário de Judite

Chaves, para manipular os olhares do presente para o passado.

Afirma-se tal questão, em relação ao nivelamento oralidade e escrita, no que concerne

a transmissão da memória, devido à observação e convivência com os limoeirenses; através

de conversas que foram informais, bem como por meio da formação dos espaços sociais,

como a Academia Limoeirense de Letras e, o valor que é dado a quem faz parte de tal rol de

sociabilidade e titulação. Não obstante, também se confere grande valor aos que contam a

“história” de Limoeiro do Norte, podendo-se afirmar que a expressão da memória por meio da

oralidade e escrita é concomitante. Sobre a “historicização da relação” oralidade e escrita

(ZILBERMAN, 2010: 33-34), esclarece:

8 Dentre os livros produzidos acerca de Limoeiro do Norte – Ceará pode-se citar: FREITAS, Maria das Dores

Vidal; OLIVEIRA, Maria Lenira (orgs.). Judite: centenário de nascimento (1906 – 2006). Fortaleza: Editora

Premius, 2006. NUNES, Antonio Pergentino. Minha Vida... Minha Luta... Fortaleza: Editora Premius, 1999.

FREITAS, Maria Das Dores Vidal; OLIVEIRA Maria Lenira de (orgs.). Limoeiro em Fotos e Fatos. Fortaleza:

Edições do Autor, 1997. LIMA, Lauro de Oliveira. Na ribeira do rio das onças. Fortaleza: Assis Almeida,

1997. BRANCO, João Olímpio Castelo. O Limoeiro da Igreja. A história de Limoeiro a partir dos seus

párocos. Ed. Minerva Indústria Gráfica, 1997. Foram selecionadas estas obras como exemplos da produção de

livros acerca do município de Limoeiro do Norte, Ceará, devido às mesmas serem fontes acerca da família

Chaves, objeto de pesquisa da dissertação de mestrado, Elites Políticas Limoeirenses: estratégias e discursos

para novos espaços de atuação e poder (1934 – 1972), orientada pelo Prof. Dr. William James Mello e

financiada pelo Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, como já mencionado.

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[...] Segue-se àquela “uma oralidade coexistente com a escrita e que, segundo esta

coexistência, pode funcionar a dois modos: seja como oralidade mista, quando a

influência da escrita ainda continua externa, parcial ou retardada ( como

atualmente nas massas analfabetas do terceiro mundo); seja como oralidade

segunda, que se (re)compõe a partir da escrita e no interior de um meio em que

esta predomina sobre os valores da voz na prática e no imaginário; invertendo o

ponto de vista, diríamos que a oralidade mista procede da existência de uma cultura

escrita ( no sentido de “ possuindo uma escrita”); a oralidade segunda, de uma

cultura letrada ( na qual toda expressão é marcada pela presença da escrita)” . [...]

Nesse sentido, Certeau afirma que as alternâncias entre o oral e o escrito se produzem

reciprocamente. Seus arranjos se recombinam, bem como suas relações subscrevem num

padrão de conformações históricas. Portanto, ele propõe uma problemática acerca do

funcionamento da palavra nas sociedades da escrita. A necessidade desta oficialização da

palavra através da escrita se dá justamente pela diferença que esta sociedade moderna

estabeleceu entre o oral e o escrito, assumindo esta diferenciação “uma pertinência

epistemológica e social que não tinha antes.” (CERTEAU, 1982: 212)

Para os Chaves, é interessante socialmente gerir através da escrita a memória do

grupo, pois ao efetuar esta operação escriturária, eles produzem e reproduzem, preservam e

cultivam verdades não perecíveis: “Arrependo-me agora por não ter dado basta ao efêmero,

para participar dessa obra necessária, justa e correta, que eterniza a contribuição de Judite

Chaves Saraiva ao desenvolvimento político, social e educacional na nossa Limoeiro.” O

autor deste trecho é um professor da Universidade de Brasília e PhD pela Universidade de

Birmingham, Inglaterra, que por questões éticas se preferiu não citar o nome. O mesmo

intitulou-se sobrinho por afinidade de Judite Chave Saraiva. ( FREITAS & OLIVEIRA, 2006:

18 -20). Na construção da memória da família, através deste livro que homenageia o

centenário de nascimento de Judite, encontram-se textos de escritores intelectuais, filhos de

Limoeiro do Norte, como mestres em sociologia e este PhD, bem como de cantores,

reconhecidos no âmbito de Ceará, como Eugênio Leandro.

É importante perceber a importância que foi dada a quem foi bem sucedido

intelectualmente e socialmente, não somente no município, mas diante do próprio estado, e

como a família contatou estes sujeitos para validar seus discursos, sua memória escrita, pois

11

os estudiosos atuam neste processo, como legitimadores desta escrita diante da população,

uma vez que, como a população em especial do presente não conviveu com as ações da

família, pode questionar, sendo que há textos de cientistas sociais que percebem Judite como

heroína? A presença destes intelectuais causa respeito, admiração e autentifica cada vez mais,

a este livro, que ao contar a vida de Judite, também contaria a ‘“história” de Limoeiro do

Norte.

Ao se retornar ao trecho, percebe-se que a escrita tem a função de conservar,

transmitir, solidificar e acima de tudo, congelar a ideia de que Judite Chaves detinha de um

prestígio inigualável dentro de Limoeiro do Norte. Nos textos estão claros os destinatários do

discurso e que o produtor da alocução escrita, pretende arquivar o passado, superar as

distâncias no que diz respeito aos novos limoeirenses, que não conviveram com Judite

Chaves. Como sugeriu Certeau (1982), através desta escrita se ambiciona capitalizar o tempo,

proteger-se de fábulas, se medir o que a oralidade acrescenta. Enquanto a palavra não se

desloca do ato social da enunciação, a escrita é exportável, transgredindo a morte do

indivíduo que detinha de uma determinada memória, construindo o sentido das experiências.

Não obstante, o ato de escrever reduz e unifica as complexidades das relações sociais

sendo, portanto, importantíssimos para grupos especialmente políticos, que se sentem os

esclarecidos para governar uma determinada sociedade, no processo de privação das múltiplas

interpretações que perpassam o pretérito.

Considerações Finais

A intenção constante de se produzir a “história” do bairro, da comunidade, do

município, do estado, do país, isto é, de não se deixar a “história” se perder, é uma questão

que perpassa ao gosto de profissionais de várias áreas, como, por exemplo, médicos,

advogados, jornalistas, literatos e etc. Não se pode negar a contribuição que estes oferecem no

campo da memória, uma importante fonte para o historiador de formação. Não se esquece,

aqui, que podem existir sim trabalhos realizados por pessoas que não são historiadores de

12

formação, perpassados de problematizações, com o rigor do método, da ética, e livre dos

anacronismos, e que textualmente mostre a diferença básica das categorias, Memória e

História. Como também não se exclui que há muitos que possuem a titulação de historiadores

e possuem uma concepção de História como se nunca tivessem adentrado o mundo da

universidade.

É fato que, a ilusão de que se apreende o “real” é objeto da memória, enquanto a

busca pela explicação deste suposto “real”, do verossímil, a intenção da verdade, é a questão

da História, pois a mesma, atualmente traz em sua proposta a ideia de pluralidades de

verdades, e sabe que o real é inapreensível em toda sua complexidade, apesar de em cada

período, ela ter sido perpassada por diferentes regimes historiográficos (HARTOG, 2011:

143).

Esta percepção do historiador quanto à noção do que ele está produzindo, ou seja, este

olhar epistemológico acerca do conhecimento que ele teceu, bem como o compromisso com o

método e a maneira de analisar as fontes, a compreensão que ele possui do próprio termo

evidência9, é o diferencial, no processo de elaboração do discurso histórico em relação ao

memorialístico.

9 Para ver a historicidade da própria História bem como a discussão acerca do termo evidência, consultar

(HARTOG, 2011).

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Fontes:

Livro de Memória

FREITAS, Maria das Dores Vidal; OLIVEIRA, Maria Lenira (orgs). Judite: centenário de

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