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AS IMAGENS REENCONTRADAS Curadoria por Tiago J. Silva Estágio curricular no drei/npcls FOLHAS DE SALA Salão Nobre da Reitoria da Universidade de Lisboa Ciclo de Cinema

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AS IMAGENSREENCONTRADASCuradoria por Tiago J. SilvaEstágio curricular no drei/npcls

FOLHAS DE SALA

Salão Nobre da Reitoria da Universidade de Lisboa

Ciclo de Cinema

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Masterclass por Tiago J. Silva

Ciclo de Cinema

AS IMAGENS REENCONTRADAS

Tentar dar uma ordem ao seu próprio passa-do e concebê-lo como uma série de aconteci-mentos devidamente arrumados é uma ativi-dade que entusiasma os seus participantes. Na biografia vulgar, as causas e as consequências das ações são sempre transparentes ao autor, e em inúmeros diários, não há lugar para in-tenções desconhecidas e erros de interpre-tação. Mas talvez as biografias e páginas de diário mais raras e interessantes sejam aquelas em que quem escreve não se assume como mestre do seu destino e capitão da sua alma; e prefere confessar, pelo contrário, que não percebia nada do que se estava a passar – e que, quando percebeu, já era tarde.

Ver SENSO de Luchino Visconti é como ler uma redacção daquele tipo; só que, além da palavra escrita, há também os olhares des-concertados, os ruídos que chegam de outra divisão e que confirmam o pior, “os encontros que não se realizaram e os dias de angústia” em que a condessa Livia Serpieri (Alida Valli) procura o tenente Franz Mahler (Farley Gran-ger) em vão. E Bruckner, sempre Bruckner a irromper da banda-sonora quando o filme já não consegue conter o seu pathos. SENSO foi considerado, do lado de vários admiradores, como o mais viscontiano de todos os filmes de Visconti e, do lado dos mais cépticos, como um delírio em que tudo é excessivo. Mas Vis-conti, precisamente a partir deste filme, torna--se no cineasta da decadência do excesso – como o são também o melhor Max Ophüls e o melhor Douglas Sirk. Este último, na longa entrevista que dá a Jon Halliday, faz uma céle-bre defesa do melodrama como a atualização

da tragédia clássica. O comentário não serve a função de enobrecer os seus filmes, tantas vezes considerados menores e de sentimenta-lidade descontrolada, mas de reavaliar critica-mente a génese e a estrutura daquele género.

De facto, SENSO, o melodrama perfeito, ob-tém da tragédia a sua força motora, evitan-do os embaraços do descalabro emocional e elevando-se ao estatuto de ópera. Por isso mesmo, o duelo entre Franz e Roberto Us-soni (Massimo Girotti) tem de ser comparado pelas senhoras de Veneza à guerra entre Ho-rácios e Curiácios; e também por isso os dra-mas pungentes pertencem à aristocracia, que Visconti não abandonará na vida nem no cine-ma, quando aquela incorre na hybris de igno-rar a morte, até quando ela surge à sua frente e interrompe os seus interlúdios. Penso aqui no cadáver do oficial que Serpieri e Mahler encontram à noite, no canal, obrigando-os a esconder-se, e na morte do soldado no jardim do Príncipe de Salina em IL GATTOPARDO (1963). Estas interrupções do quotidiano não são encaradas como traumáticas nem omino-sas, mas substituídas logo de seguida por uma qualquer outra distração. Nada daquilo há-de ter um significado especial, já que a vida não é como a ópera nem como o melodrama – a não ser quando se é uma personagem num melodrama. Quando as personagens de Vis-conti se apercebem da sua situação, fica a dor atroz e a sensação de que se é mais como um fantasma e menos como uma pessoa.

É neste ponto que SENSO é particularmente extraordinário. A fé de Visconti nas capacida-

01 | SENSOLuchino Visconti (1954)

LIVIAJá lhe pedi que não me seguisse.

FRANZSou a sua sombra.

LIVIAObrigada, a minha basta-me.

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Ciclo de Cinema

AS IMAGENS REENCONTRADAS

des da linguagem do cinema em lidar com a linguagem do melodrama não se deve à cren-ça no poder sobrenatural da imagem, mas ao controlo obsessivo de todos os detalhes que dela fazem parte. Uma madeixa de cabelo em cima de um móvel torna-se símbolo de um esquecimento inaceitável; folhetos e flores a serem distribuídos discretamente, enquan-to o acto III de IL TROVATORE de Verdi se aproxima do seu fim, assinalam o tumulto que desperta Veneza e o romance dos amantes; e um saco de dinheiro materializa a traição no mundo e na carne. E não é improvável que Serpieri perca uma e outra coisa. Afinal de contas, perde a sombra de Franz, e fica

provado que a sua não lhe basta. De onde nos chega então a sua voz, recordando os acontecimentos que não soube interpretar? É Serpieri uma aparição convocada por Visconti através do cinema? Inclinar-me-ia a dizer que sim. Mas para o confirmar, precisaria que ela voltasse a passar diante do espelho: desta vez, para ter a certeza de que não existe.

TIAGO J. SILVA

Argumento: Luchino Visconti, Suso Cecchi D’Amico, Carlo Alianello, Giorgio Bassani, Giorgio Prosperi, Tennessee Williams, Paul Bowles; a partir de um livro de Camillo Boito Fotografia: (Technicolor) G. R. Aldo, Robert Krasker Direcção Artística e Décors: Ottavio Scotti, Gino Brosio, Marcel Escoffier, Piero Tosi Som: Vittorio Trentino, Aldo Calpini Música: Sinfonia nº 7 em Mi maior de Anton Bruckner, com a Orquestra Sinfónica RAI, maestro Franco Ferrara Montagem: Mario Serandrei Interpretação: Alida Valli (Condessa Livia Serpieri), Farley Granger (Tenente Franz Mahler), Massimo Girotti (Marquês Roberto Ussoni), Heinz Moog (Conde Serpieri), Rina Morelli (Laura), Marcella Mariani (Clara), Christian Marquand (oficial), Sergio Fantoni (Luca), Tino Bianchi (Capitão Meucci), Ernst Na-dhreny (comandante em Verona), Tonio Selwart (Coronel Kleist), etc.

Produção: Renato Gualino, Domenico Forges Davanzati Director de produção: Claudio Forges Davanzati Distribuição: LUX Cópia: DVD, cores, versão italiana, legendada em português, 122 minutos.

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Certas teorias sobre a natureza da ficção di-videm-se geralmente entre a atenção dada às ações e a importância conferida a quem age. Howard Hawks nunca foi conhecido pelo seu interesse nos enredos – e, sobre THE BIG SLEEP (1946), afirmou mesmo não perceber detalhe nenhum da história que estava a fil-mar. O facto não incomodou Hawks nem os argumentistas que, naquele caso, preferiram privilegiar o diálogo e as interações impetu-osas de Humphrey Bogart e Lauren Bacall. Aquele foco no desenvolvimento das per-sonagens, de acordo com o realizador, passa a ser feito conscientemente a partir de RIO BRAVO, motivado pela ideia de que o público estava cansado de histórias e de que o mais importante seria filmar as emoções e motiva-ções das pessoas.

Falar de RIO BRAVO é, portanto, falar de uma coleção de momentos em que a vida interior daquelas personagens nos é revela-da. De início, isso acontece ainda antes de as ouvirmos falar: Dude (Dean Martin), bêbado e sem dinheiro nenhum que lhe sustente os vícios, arrasta-se pelo saloon e prepara-se para se humilhar pela moeda que lhe paga-rá a próxima bebida. Quem o salva da ver-gonha é Chance (John Wayne), que emerge do seu ponto de vista em plano contrapicado. Nenhuma palavra é dita, mas a luta que se segue com o salvador inesperado serve já de introdução às desventuras passadas de que vamos recolhendo fragmentos ao longo do filme – ao percurso que o atira literalmente ao chão, banindo-o da dimensão de grandeza moral e heroica em que Wayne fica isolado, e

que toda a sequência sublinha. Quando RIO BRAVO começa, Dude traz já em si as mar-cas da infelicidade, e a dor que o acompanha pertence a outro tempo. O mesmo é verda-de para os restantes membros do grupo de Chance, que têm como obrigação ajudá-lo a defender do bando de Nathan (John Russell) a cadeia em que se encontra preso Joe (Clau-de Akins), irmão daquele. De um lado, Stumpy (Walter Brennan) não consegue lidar com a velhice que o afasta – e que leva os outros a afastá-lo – dos conflitos que se vão travando; e do outro, Colorado (Ricky Nelson), atirado para uma contenda que não lhe dizia respeito, debate-se com a desconfiança face às suas ca-pacidades e com uma visão desapontante do seu futuro, que lhe vai sendo mostrado pelos outros homens.

A observação de todos aqueles desastres pessoais a serem construídos lentamente por Hawks torna-se no elemento mais importan-te e comovente de RIO BRAVO, exigindo toda a nossa atenção. Por esse motivo, cedo compreendemos que os contornos da histó-ria do cerco à cadeia deixam de ser o centro da narrativa, e que são sobretudo um pre-texto para colocar um conjunto de pessoas a batalhar pela sua dignidade. E Chance, tal como o espectador, é junto deles um vigilan-te silencioso que vai acompanhando e assis-tindo às suas tentativas: fá-lo ao ver Dude a recuperar-se a si próprio, vestindo as roupas que lhe guardara depois de ele se entregar à embriaguez; ao ouvir os homens cantarem MY RIFLE, MY PONY AND ME, numa das cenas mais marcantes do filme e de que só

02 | RIO BRAVOHoward Hawks (1959)

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AS IMAGENS REENCONTRADAS

Hawks é capaz; ao reparar que todos apare-ceram para o ajudar quando lhes pedira que não o fizessem. RIO BRAVO é, por isso, um dos filmes em que a natureza da amizade e da camaradagem é explorada do modo mais ter-no. Nesse aspeto, sempre presente nos filmes que Hawks realizara até então, talvez rivalize apenas com ONLY ANGELS HAVE WINGS (1939); e, mais tarde, com os dois remakes que fará de RIO BRAVO, e que são também os seus últimos filmes: EL DORADO (1966) e RIO LOBO (1970).

E, no entanto, o romance entre Chance e Fea-thers (Angie Dickinson como uma das mulhe-res hawksianas mais icónicas) não é ofuscado por esse universo de companheirismo; mas também não faz com que o filme se torne

sobre eles. As constantes provocações entre o par, devedoras das comédias screwball que Hawks assinara, enfatiza ainda mais a atual so-lidão de Dude, que deseja a Chance mais sor-te do que aquela que ele teve com a mulher que o destruiu. Em RIO BRAVO, é ele quem procura a reconciliação com a sua vida, e é isso que o filme lhe trará. Hawks conta que Wayne, a certo ponto das rodagens, lhe per-guntou que havia de fazer enquanto Martin dominava todas as cenas. E o realizador deu--lhe a única resposta possível: “you look at him as a friend”.

TIAGO J. SILVA

Argumento: Jules Furthman, Leigh Brackett; a partir de uma história de B.H. McCampbellFotografia: (Technicolor) Russell HarlanDirecção Artística e Décors: Leo K. Kuter, Ralph S. Hurst, Marjorie BestSom: Robert B. LeeMúsica: Dimitri TiomkinMontagem: Folmar BlangstedInterpretação: John Wayne (John T. Chance), Dean Martin (Dude), Ricky Nelson (Colorado), Angie Di-ckinson (Feathers), Walter Brennan (Stumpy), Ward Bond (Pat Wheeler), John Russell (Nathan Burdet-te), Pedro Gonzales-Gonzales (Carlos), Estelita Rodriguez (Consuela), Claude Akins (Joe Burdette), etc.

Produção: Howard HawksDistribuição: Warner Bros.Cópia: DVD, cores, legendada em português, 136 minutos.

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AS IMAGENS REENCONTRADAS

A história da apreciação crítica dos filmes de John Carpenter consiste, na sua maior parte, numa sucessão de instabilidades e desacordos. Ao contrário do que aconteceu com alguns cineastas, a sua obra não reuniu nunca qual-quer consenso; e, também ao contrário do que com aqueles sucedeu, certos especta-dores nunca o chegaram sequer a considerar meritório do título de “cineasta”. Carpenter faz várias vezes troça da sua exclusão de um suposto cânone, e é notória a sua opinião sarcástica sobre o assunto: “Em França, sou um auteur; na Alemanha, um realizador; na Grã-Bretanha, um cineasta de género; e, nos Estados Unidos da América, um vagabundo”. Entre os que o consideram um autor, refere--se com frequência, legitimando a sua obra, a coerência, constantemente afinada, no trata-mento do mal enquanto entidade e o sentido de composição visual herdado de realizadores como Howard Hawks.

Em HALLOWEEN, nem uma nem outra coisa estão ausentes. O terror perante os repetiti-vos e repentinos aparecimentos da máscara de Michael Myers são tanto mais perturba-dores quanto a ausência de explicações para os seus impulsos assassinos vai sendo com-provada. Foram várias as queixas em relação ao filme pela total inexistência de psicologia em Michael, assim como as acusações de ci-tar PSYCHO (1960) de Alfred Hitchcock fra-cassando na evocação de uma análise precisa da psique do assassino. Tais críticas falham o ponto por conceberem Myers como um sujei-to capaz de tomar decisões e fazer escolhas, quando, na verdade, a sua natureza está mais

próxima da própria essência do mal – a mes-ma que, anos mais tarde, se filma em PRINCE OF DARKNESS (1987), explicando que ela precede a existência humana. Myers é só a superfície que essa força básica escolhe ani-mar, mero recetáculo (não por acaso, a sua versão mascarada é referida nos créditos do filme como The Shape) através do qual ela se manifesta, e que o torna no bogeyman de que as crianças falam. Samuel Loomis (Donald Ple-asence) percebe-o antes de todos os outros, e, para espanto de quem o ouve, deixa de o encarar como pessoa: é antes um ser sem consciência e sem razão, descrito como um “it” predador e imparável. Ao contrário de outras criaturas que pertencem à sua galeria, não há para Myers quaisquer constrangimen-tos em revelar-se de dia. Vê-lo a percorrer as ruas de Haddonfield quando ainda estão envoltas em normalidade, e não só à hora dos pesadelos, não o humaniza, e causa um estra-nhamento que acentua a sensação de ameaça à vida monótona nos subúrbios. É o horror que vem de longe para tentar corromper a comunidade — como no western clássico que Carpenter admira: Ford, Peckinpah, Hawks.

A presença daquele último, homenageado por Carpenter em ASSAULT ON PRECINCT 13 (1976), o filme anterior a HALLOWEEN, vai-se fazendo sentir progressivamente, e não se limita só a traços estilísticos, nem às diver-sas alusões que são feitas ao cinema do reali-zador que venera. Para assinalar apenas duas, note-se que o xerife Leigh Brackett (Charles Cyphers) partilha o nome com a argumen-tista de vários filmes de Hawks – incluindo

03 | HALLOWEENJohn Carpenter (1978)

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RIO BRAVO (1959), alicerce da homenagem mencionada e, por coincidência oportuna, já exibido no ciclo; e que, na noite dos assassi-natos, passa na televisão THE THING FROM ANOTHER WORLD (1951), de que Carpen-ter fará um remake em 1982. Até a maneira de anunciar a chegada do perigo é semelhante às opções que esperaríamos de Hawks: “De-ath has come to your little town, Sheriff”, aqui dito por Loomis, teria facilmente lugar no diá-logo dos seus westerns.

Contudo, para fazer justiça a HALLOWEEN, é preciso não ter em conta somente as analo-gias com Hawks, e perceber como Carpenter também o transfigura e contraria. Num texto de 1999 em que discute justamente pontos de contacto entre Hawks e Carpenter, Dave

Kehr acaba por identificar a principal diver-gência entre ambos. Enquanto Hawks é visto pelo crítico como representante primeiro da “grande sensibilidade moderna do cinema”, a morbidez de Carpenter é digna “do último dos românticos”; é ele o homem que “prevê o Apocalipse”, e que, no seu imenso pessimis-mo, talvez “deseje, mesmo por um momento, que ele chegue”. Quando a morte chega à ci-dade em Hawks, as pessoas unem-se para a afugentar; em HALLOWEEN, essa possibilida-de não existe, e a ausência de resolução torna tudo fatal e tenebroso.

TIAGO J. SILVA

Argumento: John Carpenter, Debra HillFotografia: Dean CundeyDirecção Artística e Décors: Tommy Lee Wallace, Craig Stearns, Erica Ueland, Beth RodgersSom: Joseph F. Brennan, Thomas Causey, William L. StevensonMúsica: John Carpenter, Peter Bergren, Bob Walters, Dan WymanMontagem: Charles Bornstein, Tommy Lee WallaceInterpretação: Donald Pleasence (Loomis), Jamie Lee Curtis (Laurie), Nancy Loomis (Annie), P. J. Soles (Lynda), Charles Cyphers (Brackett), Kyle Richards (Lindsey), Brian Andrews (Tommy), John Michael Graham (Bob), Nancy Stephens (Marion), Arthur Malet (porteiro do cemitério), Mickey Yablans (Richie), Brent Le Page (Lonnie), Adam Hollander (Keith), Robert Phalen (Dr. Wynn), Tony Moran (Michael Myers, 23 anos, sem máscara), Will Sandin (Michael Myers, 6 anos), Sandy Johnson (Judith Myers), David Kyle (namorado de Judith), Peter Griffith (pai de Laurie), Nick Castle (The Shape), etc.

Produção: Debra HillDistribuição: Compass InternationalCópia: DVD, cores, legendada em português, 92 minutos.

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Os nomes de Paolo Sorrentino e Toni Servillo tornaram-se indissociáveis entre si no cinema italiano contemporâneo. A parceria iniciou-se logo na primeira longa-metragem de Sorren-tino, L’UOMO IN PIÙ (2001), e, até à data, resultou em mais quatro filmes com Servillo como personagem principal. Não é surpre-endente, portanto, que quando o realizador decidiu filmar a biografia de Giulio Andreotti, figura preponderante e controversa na Demo-crazia Cristiana, a escolha tenha recaído sobre o ator. Sorrentino, com o perfeccionismo que lhe é característico, coligiu textos, fotografias e vídeos de Andreotti na tentativa de que Servillo lhe procurasse aprender as palavras e os gestos; e Servillo, com a também habitual nonchalance, preferiu ignorar o pedido e, pelo contrário, não se focar em nenhum traço do político que não estivesse já incluído no guião. Por isso mesmo, deparamos em IL DIVO com uma situação incomum: a de um realizador que, não abdicando do seu estilo próprio, aceita construir o filme no rasto dos delitos com que o ator o vai presenteando.

O resultado é uma fusão insólita entre o fil-me político e o filme de terror. O Andreotti de Servillo, ainda antes de qualquer juízo mo-ral que sobre ele se teça, é um monstro. Na primeira cena de IL DIVO, em que o vemos na penumbra do gabinete, as agulhas de acu-puntura com que tenta combater as dores de cabeça tornam-no igual ao Pinhead de HELL-RAISER (1987). Depois, esse lado grotesco dá lugar à lugubridade e ao mistério de uma outra criatura: o antepassado da caricatura de Andreotti é o NOSFERATU (1922) de

Murnau, e não se o esconde como a grande referência do filme. Servillo move-se com a morosidade do vampiro; vestido de negro e com as mãos cruzadas, corta os espaços que engolem os que não partilham da sua nature-za. O pedido de casamento que faz à mulher, e a que assistimos em flashback, tem como cenário um cemitério, e a luz intensa obriga-o a cerrar os olhos. Diz-se com frequência que alguns atores carregam filmes às costas, mas no caso de Servillo a expressão deve ser en-tendida de forma literal. São as peculiaridades físicas com que vai habitando a personagem – como o modo como se curva, por mais que os restantes insistam que o primeiro-ministro se deve endireitar, e como se encolhe na es-curidão – que vão empurrando o filme para o deslindamento do seu carácter. E se IL DIVO tem como subtítulo “a vida espetacular de Giulio Andreotti”, privilegiando os momentos de ação reminiscentes de Scorsese, talvez “re-trato do vampiro enquanto político” também não fosse uma escolha inapropriada.

Vendo o filme, percebem-se as causas do in-teresse de Sorrentino por Andreotti, e a sua tolerância face a uma interpretação que não respeita as suas intenções originais. Tanto o tema como o isolamento silencioso do políti-co que Servillo agiganta estão em sintonia, por um lado, com as suas opções formais recor-rentes (os planos geométricos, os longos tra-vellings frontais e as sequências mudas em câ-mara lenta serão os exemplos mais óbvios); e, por outro, com os tipos de grupos sociais que se compraz em parodiar: da classe eclesiásti-ca – a Última Ceia profana e de costas para a

04 | IL DIVOPaolo Sorrentino (2008)

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piscina é semelhante ao tratamento irónico da Pietà na série THE YOUNG POPE (2016) – à vacuidade das elites, em claro prenúncio das festas de LA GRANDE BELLEZZA (2013), também com “mares de gente que não fazem ninguém sentir-se menos só”, e também com Servillo no papel de um homem para quem nada significa nada.

Como já sugeri, a relação entre Servillo e Sor-rentino molda os filmes do segundo e provoca certas expectativas da parte dos espectado-res quanto ao tipo de pessoa que naqueles se espera encontrar. Assim, mesmo quando o realizador não trabalha com Servillo, parece modelar as suas personagens à sua imagem: Michael Caine, em YOUTH (2015), é o primo afastado de Servillo em LA GRANDE BELLE-ZZA; e Sean Penn, em THIS MUST BE THE

PLACE (2011), é a versão rock e descontrolada de Servillo em IL DIVO. Todos eles são ho-mens com “vidas espetaculares”, mas que as vivem de modo desapaixonado e indiferente quando os encontramos. Talvez isso explique por que motivo várias pessoas se pergunta-ram, à data em que IL DIVO estreou, que faria Sorrentino com a vida de alguém como Silvio Berlusconi. Em breve, aquela questão terá res-posta: as rodagens de LORO, biopic do políti-co italiano, começarão no Verão deste ano. Pouco se sabe ainda sobre o filme, mas o ator que interpretará Berlusconi já está confirma-do — é, sem surpresa nenhuma, Toni Servillo.

TIAGO J. SILVA

Argumento: Paolo SorrentinoFotografia: Luca BigazziDirecção Artística e Décors: Lino Fiorito, Alessandra Mura, Daniela CiancioSom: Gianluca Basili, Sergio Basili, Emanuele Cecere, Vikram Joglekar, José A. Manovel, Alessandro Mo-laioli, Silvia Moraes, Massimo Puccio, Angelo Raguseo, Francesco Sabez, Antonio TirinelliMúsica: Teho TeardoMontagem: Cristiano TravaglioliInterpretação: Toni Servillo (Giulio Andreotti), Anna Bonaiuto (Livia Danese), Giulio Bosetti (Eugenio Scalfari), Flavio Bucci (Franco Evangelisti), Carlo Buccirosso (Paolo Cirino Pomicino), Giorgio Colangeli (Salvo Lima), Alberto Cracco (Don Mario), Piera Degli Esposti (Enea), Lorenzo Gioielli (Mino Peco-relli), Paolo Graziosi (Aldo Moro), Gianfelice Imparato (Vincenzo Scotti), Massimo Popolizio (Vittorio Sbardella), Aldo Ralli (Giuseppe Ciarrapico), Giovanni Vettorazzo (Magistrado Scarpinato), Orazio Alba (Gaspare Mutolo), Fernando Altieri (Oscar Luigi Scalfaro), Stewart Arnold (Larry Schoenbach), etc.

Produção: Francesca Cima, Fabio Conversi, Maurizio Coppolecchia, Nicola Giuliano, Andrea OcchipintiDistribuição: Lucky RedCópia: DVD, cores, legendada em português, 110 minutos.

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Masterclass por Ivo Canelas

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Guardam-se por vezes na memória gestos e reações de terceiros que pareceram inespe-rados no momento em que ocorreram. Há no cinema alguns exemplos disso mesmo: em DISHONORED (1931), de Josef Von Sternberg, Marlene Dietrich decide retocar o batom instantes antes de ser fuzilada; em L’ECLISSE (1962), de Michelangelo Antonioni, Vittoria (Monica Vitti) segue um homem que acaba de perder todo o seu dinheiro na bolsa para descobrir que, face ao sucedido, aquilo que ele escolhe fazer é desenhar flores num pedaço de papel. Começo por evocar estas cenas porque, a propósito de LADRI DI BI-CICLETTE, não é difícil recordar ocasiões em que a comoção nasce precisamente do im-previsto; e porque discutir sobre elas é com certeza mais proveitoso do que participar no debate saturado sobre a posição do filme no neorrealismo italiano.

Os preceitos estéticos e ideológicos são importantes para Vittorio De Sica e estão presentes; mas interessa menos ver o filme tentando entendê-lo através daqueles do que olhar com atenção para cada cena e en-contrar nelas a gentileza de uma das pesso-as mais respeitadoras para com aquilo que filma. Foquemo-nos apenas numa das mais marcantes: aquela em que Antonio (Lamber-to Maggiorani), na companhia do filho Bruno (Enzo Staiola), entra numa igreja, em que a missa acaba de começar, em perseguição de um homem que conhece quem lhe roubou a bicicleta. Antonio e Bruno são os únicos que não genufletem, e, enquanto os outros rezam e cantam, interrogam fervorosamente o ho-

mem. Pai e filho estão já a começar a ficar desesperados: a possibilidade de voltarem al-guma vez a reaver o objecto em que tinham tanto orgulho, e cujo desaparecimento signifi-cará o regresso do desemprego e da pobreza, parece quase nula. É um dos momentos do filme em que a frustração é mais intensa, e eventualmente têm de abandonar a igreja e continuar a odisseia pela cidade. Mas antes de o fazerem, e numa fração de segundo quase impercetível, Bruno precipita-se, volta atrás, ajoelha-se à frente do altar e benze-se. Sobre os mistérios da esperança e da fé vistas pelos olhos de uma criança, o filme tem pouco mais a acrescentar. O gesto de Bruno, percebe-se, é a versão religiosa das flores em Antonioni e da audácia final em Sternberg; é a atitude que, na sua aparente irracionalidade, nos diz sobre a personagem tudo aquilo que sobre ela pre-cisamos de saber.

Além disso, a cena na missa serve também para que De Sica comece a delimitar clara-mente os locais que os ricos e os pobres ocu-pam em LADRI DI BICICLETTE: a separação entre uns e outros na igreja dar-se-á também nas ruas e no restaurante. Os contrastes ma-nifestam-se quando Bruno, envergonhado por não saber usar os talheres, tenta imitar o que vê a outra família fazer na mesa atrás de si; ou, de maneira mais evidente, quando Antonio cola pela primeira vez nas paredes os cartazes de GILDA (1946) de Charles Vidor. Para po-der aceitar aquele trabalho, teve de penhorar todos os lençóis que tinha em casa, guardados depois num gigantesco armazém que nos dá a noção do verdadeiro impacto da guerra na-

05 | LADRI DI BICICLETTEVittorio De Sica (1948)

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quelas vidas – a quantidade absurda de obje-tos ali amontoados é tão interminável quanto as filas de desempregados que tentam a sua sorte e quanto as multidões que se esmagam para conseguirem lugar no elétrico. Com o sorriso melancólico de Antonio perante a mi-ragem de Rita Hayworth, e à luz do trajeto que o filme faz até então, são duas conceções do mundo que ali entram em confronto – e, em última análise, também duas conceções de cinema.

É por termos acompanhado tudo isto ao longo do filme que não recriminamos Antonio quan-do ele tem de renunciar ao seu código moral e vê o seu mundo ruir. No caminho até lá e na resolução ambígua do drama, a humanida-de de De Sica volta a afastá-lo do que outros realizadores atraídos por histórias do mesmo tipo fariam com elas: ao contrário deles, De Sica não consegue ser um miserabilista. Se o filme é chaplinesco, com a relação entre o pai

e o filho reminiscente de THE KID (1921) e o passeio final até ao horizonte a lembrar a úl-tima cena de MODERN TIMES (1936), é por-que para De Sica, como para Chaplin, não há sentido num cinema que não tem compaixão para com as personagens. O que se segue às caminhadas inúteis pela cidade é incerto; mas a dúvida não deixa de ser filmada do modo mais digno e humano. Aceitar o fim depende de se encontrar uma saída, por mais imprová-vel e milagrosa que aquela seja. Suspeito que De Sica, que se descrevia como “um otimis-ta desiludido, mas, ainda assim, um otimista”, acredita nela – e o seu filme seguinte, sabe-mo-lo, é MIRACOLO A MILANO (1951).

TIAGO J. SILVA

Argumento: Oreste Biancoli, Suso Cecchi D’Amico, Vittorio De Sica, Adolfo Franci, Gherardo Gherardi, Gerardo Guerrieri; a partir de uma história de Cesare Zavattini e de um livro de Luigi BartoliniFotografia: Carlo MontuoriDirecção Artística e Décors: Antonio TraversoSom: Gino FiorelliMúsica: Alessandro CicogniniMontagem: Eraldo Da RomaInterpretação: Lamberto Maggiorani (Antonio), Enzo Staiola (Bruno), Lianella Carell (Maria), Gino Salta-merenda (Baiocco), Vittorio Antonucci (o ladrão), Guilio Chiari (pedinte), Carlo Jachino (pedinte), Elena Altieri (senhora da caridade), Michele Sakara (secretária da instituição de caridade), Fausto Guerzoni (actor), etc.

Produção: Giuseppe AmatoDistribuição: Ente Nazionale Industrie CinematograficheCópia: DVD, p&b, legendada em português, 85 minutos.

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Masterclass por Clara Rowland

Ciclo de Cinema

AS IMAGENS REENCONTRADAS

Ao descreverem as suas vidas, algumas pes-soas oferecem também descrições de certos objetos. O exemplo mais óbvio coincide com o enigma célebre do início de CITIZEN KANE (1941): a última palavra dita pelo moribundo, que se pensa durante algum tempo ser a al-cunha de alguém, é, na verdade, o nome do trenó com que brincava na infância. Não ha-via, afinal, qualquer escândalo digno de inves-tigação e de primeiras páginas dos jornais; o filme não avança até um grande segredo, mas até à lembrança mais consoladora de quem a recorda pela última vez. E, se com Charles Kane reconhecemos como matéria e memó-ria se influenciam, podemos até ir mais longe e conceber casos em que uma e outra coisa se tornam indissociáveis. Em MADAME DE..., Max Ophüls não se interessa em filmar ou-tra coisa que não o modo como um objeto passou a ser a expressão tangível das paixões e desgraças de uma mulher; e tudo o resto se torna irrelevante face à mestria com que o consegue fazer.

No filme, desde o momento em que Louise (Danielle Darrieux) vende o par de brincos pela primeira vez até ao desgosto final pas-sam-se cerca de dois anos. Durante eles, há detalhes que nunca chegaremos a saber sobre aquela mulher – nem sequer o apelido, que Ophüls nos vai sonegando através das estra-tégias mais engenhosas. Tudo o que podemos conhecer da sua história, percebemos depois, é também o que conhecemos da história da joia que André (Charles Boyer) lhe oferece-ra como prenda de casamento e sem a qual nada teria acontecido. Tudo aquilo que se vai

passando com ela nesse período de tempo, bem como a evolução das suas emoções, é mostrado pelos diferentes modos como vai encarando e fazendo sentido do objeto que regressará vezes sem conta, por muito que abundem as tentativas de várias personagens em verem-se livres dele. Ao aborrecimento que Louise sente pelo marido – pensa-se de imediato numa outra madame, a Bovary de Flaubert – e à paixão pelo Barão Donati (Vit-torio De Sica) não corresponde só a diferen-ça de atitudes em relação aos dois homens, mas a diferença no significado que passa a atribuir aos brincos. Num êxtase da metoní-mia, o objeto de que se queria desfazer acaba por se tornar no mais importante que possui: contemplá-lo é como olhar para o amante de quem se encontra apartada; e usá-lo é como estar na sua presença. Para Louise, a dor de perder os brincos é tão excruciante quanto a dor de perder Donati porque já não é possível distinguir a afeição que sente por ambos. Seria insuficiente, portanto, dizer que os brincos são o símbolo dos amantes condenados. Numa estranha metamorfose, eles convertem-se no próprio romance e encerram a sua memória; e por isso, quando Louise os deixa na igreja como tributo, está também a sacrificar parte de si própria.

Como se pode ver, talvez este seja o filme de Ophüls em que as paixões se vivem com mais intensidade; mas isto não equivale a dizer que o ímpeto que as envolve nasce subitamente de algum mistério de que se não dá conta. Em MADAME DE..., e ao contrário do que na vida acontece, as personagens não dão por si

06 | MADAME DE...Max Ophüls (1953)

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apaixonadas numa epifania que corresponde ao momento em que percebem que qualquer coisa mudou. O enamoramento não é visto por Ophüls como um acontecimento privado e inacessível aos outros, mas como um pro-cesso em que são visíveis todas as fases que compõem a coreografia; e é precisamente pela dança que assistimos às alterações que se começam a dar em Louise e Donati. Os bailes que passam a frequentar e em que são sem-pre os últimos a ir embora fundem-se numa única valsa que se parece prolongar até à eter-nidade. Recorrendo aos dissolves e aos refle-xos nos espelhos dos salões para assinalar a passagem do tempo, Ophüls cria um dos mo-mentos de cinema mais comoventes de que há memória: ao rodopiarem pela sala, sempre ao som da mesma sinfonia, os amantes desco-brem-se presos num bailado sem fim.

Shakespeare já avisara que os deleites violen-tos têm também violentos fins, e por isso a

separação é tão exacerbada. Se Louise e Do-nati sofrem, junta-se também a eles o arreba-tamento da natureza. As centenas de cartas rasgadas em mil pedaços que vemos a voar da janela do comboio tornam-se indistinguíveis da paisagem e da neve que cai lá fora. As suas histórias inscrevem-se no mundo, e aquilo que fica de MADAME DE... não são os ecos imate-riais de uma existência que chega ao fim, mas a presença real dos objetos que se deixaram para trás como dádiva e efígie do tempo per-dido. Os brincos são a memória cristalizada do que aconteceu a quem os usava – os brin-cos são as imagens reencontradas.

TIAGO J. SILVA

Argumento: Max Ophüls, Marcel Achard, Anette Wademant; a partir de um livro de Louise de VilmorinFotografia: Christian MatrasDirecção Artística e Décors: Jean d’Eaubonne, Georges Annenkov, Rosine DelamareSom: Antoine PetitjeanMúsica: Oscar Straus, Georges Van ParysMontagem: Borys LewinInterpretação: Charles Boyer (General André de...), Danielle Darrieux (Condessa Louise de...), Vittorio De Sica (Barão Fabrizio Donati), Jean Debucourt (Monsieur Rémy), Jean Galland (Monsieur de Bernac), Mireille Perrey (a aia), Paul Azaïs (o cocheiro), Hubert Noël (Henri de Maleville), Lia Di Leo (Lola), etc.

Produção: Ralph BaumDistribuição: GaumontCópia: DVD, p&b, legendada em português, 95 minutos.

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Uma tentativa de unificação de todos os fil-mes de John Cassavetes não poderia deixar de ter em conta o interesse obsessivo do re-alizador na vulnerabilidade. Se há ideia com a qual todas as suas personagens tenderiam a concordar, é a de que aquela emoção merece a maior repulsa; e que, portanto, a desconfian-ça será a reação mais acertada quanto à ex-posição daquilo que sentem perante terceiros. A teoria é avançada de modo explícito por Richard (John Marley) em FACES (1968), que se queixa, no entanto, de que viver segundo aquele imperativo acaba por tornar as pesso-as em criaturas mecânicas. Essa constatação provocará as atitudes mais díspares da parte das personagens – enquanto algumas optam por se resignar, outras ver-se-ão obrigadas a alterar radicalmente a forma como encaram a sua existência. É este último tipo de posição que se pretende descrever em GLORIA.

Tendo em conta aquele propósito, seria pou-co tentador optar por uma leitura do filme que assentasse nos acontecimentos que le-vam, desde o início, à constante fuga da prota-gonista (Gena Rowlands) e de Phil (John Ada-mes). Sendo certo que GLORIA vive também do estilo e das referências que recolhe das an-teriores incursões cinematográficas no mundo dos gangsters, é notório que Cassavetes não está propriamente interessado em fazer um filme de género. Como já acontecera no caso de THE KILLING OF A CHINESE BOOKIE (1976), a máfia serve apenas como um pretex-to para colocar as personagens numa situação de confronto e, a partir daí, examinar como a tensão as obriga a livrarem-se das máscaras e

a revelarem-se na sua fragilidade. Forçada a proteger a criança, Gloria acaba por se afeiço-ar a ela, e não demora muito até que perca-mos o rasto à mulher que dizia detestá-la. A vizinha com quem se mantinha a mais ríspida e distante das relações vê-se, de repente, no improvável papel de mãe, e não tem qualquer noção sobre como o deverá representar. É essa aprendizagem que cativa Cassavetes e é à luz dela que as lacunas e reviravoltas da narrativa, sem aparente justificação, devem ser entendidas: não se procura em GLORIA verosimilhança do ponto de vista da ação, nem nada que se lhe pareça; e quer-se apenas olhar com franqueza para as relações huma-nas e para a suscetibilidade que elas exigem nos casos em que se tornam importantes. Se a interpretação estiver correta, as palavras que Gloria não se cansa de repetir a Phil, pe-dindo-lhe que não se preocupe, já que tudo à sua volta não passa de um sonho, não podem ser vistas simplesmente como um esforço de o tranquilizar e devolver à inocência; são tam-bém um comentário de Cassavetes sobre a plausibilidade daquilo que apresenta no ecrã e sobre as coisas com que um espectador não se deve desassossegar.

O argumento parece ser corroborado pela predominância que se atribui ao ponto de vista de Phil. Uma parte importante daquilo que acontece no filme é apreendida através da perspectiva de uma criança, e a câmara, muitas vezes colocada ao nível dos seus olhos, enfatiza a progressiva centralidade de Gloria no plano. Às ocasiões em que o pesadelo de ter perdido tudo aquilo que conhecia se fa-

07 | GLORIAJohn Cassavetes (1980)

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zem sentir com maior veemência, segue-se sempre a sua suavização pelo humor do diálo-go e pelo regresso ao conforto do ambiente familiar inusitado. Desde a explosão de cor das pinturas de Romare Bearden com que o filme abre, aquilo que se procura é um escape da desorientação que agora aflige as persona-gens, e que a cidade acentua com insistência. Nova York é filmada por Cassavetes como um labirinto confusamente iluminado pelos néons que impedem Phil de adormecer, e, ao peso da arquitetura e à violência das multidões, o filme contrapõe a imitação de vida que Gloria e Phil vão tentando ensaiar.

O cuidado com que Cassavetes trata aque-la relação separa GLORIA tanto do assumi-do remake que se lhe segue, realizado por Sidney Lumet em 1999, como dos inúmeros filmes que a premissa inicial do enredo veio

a influenciar, de que LÉON (1994) de Luc Besson é, ainda assim, o exemplo mais bem--sucedido. Interessa mais perceber como que é uma pessoa se rende à vulnerabilidade e se torna numa outra (com o disfarce, no reen-contro final, como comentário cómico sobre a identidade pessoal) do que tentar justificar as insolúveis elipses e contradições da narrativa. Tal como em OPENING NIGHT (1977), não se pode pedir das fantasias que as persona-gens constroem que sejam realistas; e quem se preocupar com o que seria necessário ou expectável está aqui a perder o ponto: “it’s just a dream”.

TIAGO J. SILVA

Argumento: John CassavetesFotografia: Fred SchulerDirecção Artística e Décors: Rene D’Auriac, John Godfrey, Peggy Farrell, Emanuel UngaroSom: Stan GordonMúsica: Bill ContiMontagem: George C. VillaseñorInterpretação: Gena Rowlands (Gloria Swenson), Julie Carmen (Jeri Dawn), Buck Henry (Jack Dawn), John Adames (Phil Dawn), Jessica Castillo (Joan Dawn), Lupe Garnica (Margarita Vargas), John Finnegan (Frank), Tony Knesich, Tom Noonan, Ronald Maccone, Frank Belgiorno, J.C. Quinn, Alex Stevens, Sonny Landham e Harry Madsen (mafiosos), Lawrence Tierney (bartender), Basilio Franchina (Tony Tanzini), etc.

Produção: Sam Shaw, Steve KestenDistribuição: Columbia PicturesCópia: DVD, cor, legendada em português, 121 minutos.