as homosexualidades na psicanálise

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http://www.uva.br/trivium/edicao1-dez-2010/artigos/ 3-as-homosexualidades-na-psicanalise.pdf 467 ARTIGOS AS HOMOSSEXUALIDADES NA PSICANÁLISE Luc iana Ribe iro Marques RESUMO O tema da homossexualidade vem ocupando diversos campos da ciência na tentativa de desvendar as raízes da escolha homossexual. Situada entre o normal e o patológico pela medicina psiquiatra oitocentista, que compartilhava seu usufruto com o sistema eclesiástico e político, a homossexualidade perdurou no campo da perversão sexual durante décadas. Freud, que para além da visão de sua época preocupava-se com o sujeito e seu sofrimento, traçou um percurso durante toda sua obra a respeito da diversidade sexual do ser humano; contudo, a escolha homossexual, ainda hoje, se apresenta como questão. Logo, será a partir da ruptura freudiana e dos benefícios dessa herança, trazidos a nós por Lacan, que pretendemos analisar o tema da homossexualidade, abrindo espaço para novas reflexões a respeito da prática clínica, desvinculada da abordagem sinonímica entre homossexualidade e perversão. Palavras-c hav e: Homossexualidade, perversão, Psicanálise. ABSTRACT The issue of homosexuality has been occupying many fields of science in an attempt to uncover the roots of the homosexual choice. Located between the normal and pathological medicine by the eighteenth psychiatrist who shared their enjoyment with the cleric and politician, homosexuality continued in the field of sexual perversion for decades. Freud, who, in beyond to the vision of his epoch, worried about the subjects and their suffering, set a course through his work about the human sexual diversity; but, the homosexual choice, even today, is presented as a matter. So, it is from the rupture freudian and the benefits of this inheritance, brought to us by Lacan, which we want to examine the issue of homosexuality, opening space for new reflections about the clinical practice, detached approach synonymy between homosexuality and perversion. K e ywords: Homosexuality, perversion, psychoanalysis. Pós-graduada em Psicologia Médica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida, Doutoranda em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. [email protected] ± tel: 9965-7729

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ARTIGOS

AS H O M OSSE X U A L ID A D ES N A PSI C A N Á L ISE

Luciana Ribeiro Marques

R ESU M O O tema da homossexualidade vem ocupando diversos campos da ciência na tentativa de desvendar as raízes da escolha homossexual. Situada entre o normal e o patológico pela medicina psiquiatra oitocentista, que compartilhava seu usufruto com o sistema eclesiástico e político, a homossexualidade perdurou no campo da perversão sexual durante décadas. Freud, que para além da visão de sua época preocupava-se com o sujeito e seu sofrimento, traçou um percurso durante toda sua obra a respeito da diversidade sexual do ser humano; contudo, a escolha homossexual, ainda hoje, se apresenta como questão. Logo, será a partir da ruptura freudiana e dos benefícios dessa herança, trazidos a nós por Lacan, que pretendemos analisar o tema da homossexualidade, abrindo espaço para novas reflexões a respeito da prática clínica, desvinculada da abordagem sinonímica entre homossexualidade e perversão. Palavras-chave: Homossexualidade, perversão, Psicanálise. A BST R A C T The issue of homosexuality has been occupying many fields of science in an attempt to uncover the roots of the homosexual choice. Located between the normal and pathological medicine by the eighteenth psychiatrist who shared their enjoyment with the cleric and politician, homosexuality continued in the field of sexual perversion for decades. Freud, who, in beyond to the vision of his epoch, worried about the subjects and their suffering, set a course through his work about the human sexual diversity; but, the homosexual choice, even today, is presented as a matter. So, it is from the rupture freudian and the benefits of this inheritance, brought to us by Lacan, which we want to examine the issue of homosexuality, opening space for new reflections about the clinical practice, detached approach synonymy between homosexuality and perversion. K eywords: Homosexuality, perversion, psychoanalysis.

                                                                                                                       Pós-graduada em Psicologia Médica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Mestre em Psicanálise, Saúde e

Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida, Doutoranda em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. [email protected] tel: 9965-7729

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O tema da sexualidade, tão fundamental para a Psicanálise, ainda gera, apesar de Freud, uma abordagem da homossexualidade inegavelmente preconceituosa. Desconsiderando os aportes freudianos e muitas vezes, calcados em posições pessoais que revelam atitudes homofóbicas em relação aos sujeitos e suas escolhas, verificamos, ainda hoje, desvios teóricos e técnicos que distorcem a doutrina freudiana. No presente artigo, proponho revisarmos o tema da homossexualidade na Psicanálise a partir de um rápido levantamento dos movimentos ocorridos na época de Freud, a fim de marcarmos sua posição em relação à sua época e, assim, contrapor a essência de sua teoria da sexualidade com posições completamente diversas que alguns pós-freudianos assumem em relação a esse tema. O intuito maior é reafirmarmos o lugar da Psicanálise enquanto teoria calcada sob a ética do desejo.   A Época de F reud Dando início ao nosso percurso, salientamos que, de maneira geral, os cientistas do fim do século XIX passaram a se preocupar com a questão da sexualidade como uma determinação fundamental do comportamento humano. Antes do termo homossexualidade ser criado, em 1860, pelo médico austro-húngaro Karoly Maria Benkert (1824-1882), o uso de nomenclaturas diferenciadas variava de acordo com as épocas, culturas e discursos vigentes: sodomitas, invertidos, doentes mentais ou perversos, dentre outros.

Benkert definia a expressão criada, explicando Além do impulso sexual normal dos homens e das mulheres, a Natureza, do seu modo soberano, dotou à nascença certos indivíduos masculinos e femininos do impulso homossexual. [...] Esse impulso criaria, de antemão, uma aversão direta ao sexo oposto. NAPHY, 2006, p. 220). A partir de então, entre 1870 e 1910, o termo impôs-se progressivamente nesta acepção em todos os países ocidentais, substituindo as antigas denominações que caracterizavam essa forma de relacionamento. Neste mesmo período, surge então a

dos três pais fundadores da doutrina: Krafft-Ebing (psiquiatra austríaco: 1840-1902), Albert Moll (médico alemão: 1862-1939) e Havelock Ellis (médico e escritor inglês: 1859-1939). (ROUDINESCO & PLON, 1998).

Embora a base em comum de seus estudos fosse a sexualidade, as ideias e as abordagens utilizadas para tratar o tema apresentavam-se bastante divergentes.

De forma geral, a maioria dos sexólogos desta época abordava o comportamento sexual misturando estreitamente a bissexualidade, a homossexualidade, o hermafroditismo e os fenômenos do travestismo. Na realidade, o discurso da ciência, atrelado com a religião e a política, inventava seu vocabulário, a fim de adotar

ditas patológicas. Parada  Orgulho  GLBT  -­‐  São  Paulo    

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Assim, enquanto Hirschfeld (psiquiatra alemão: 1868-1935) defendia sua ide

(advogado e teólogo alemão: 1826-1895) popularizava o te , para sustentar que a

, e Carl Westphal (neurologista alemão: 1833-1890) dava seu apoio à teoria congênita da homossexualidade, afirmando a existência de u PLON, 1998)

Foi neste cenário, em que a terminologia passava por múltiplas variações e a nosologia apresentava-se um tanto quanto flexível, que, paralelamente, Freud subverteu a concepção de sexualidade humana, marcando o lugar da Psicanálise e apontando para um lugar distinto da moral social. Com F reud

Freud, com seu espírito curioso, prematuramente teve sua atenção despertada para a importância da sexualidade na constituição das neuroses. As fases de investigação a transição da hipnose para a catarse e da catarse para a associação livre ocorreram gradativamente em sua construção e compreensão da histeria. Com o passar dos anos, Freud se via ainda mais compelido pelos resultados de suas investigações a dar importância aos fatores sexuais na etiologia, e os anos seguintes apenas confirmaram e ampliaram suas conclusões.

A idéia de sexualidade, que alicerça toda a construção da doutrina psicanalítica, foi abordada por Freud de maneira cuidadosa e inovadora. Fazendo dela uma disposição psíquica universal e inerente à atividade humana, Freud encarregou-se de romper com o discurso biologizante sustentado pela sexologia, que, a partir da noção de instinto, reduzia o sujeito a um padrão fixo de comportamento e classificava de perversa toda e qualquer conduta sexual que não conduzisse à preservação da espécie.

Foi com o discurso da pulsão, enquanto primeiro eixo diferenciador do pensamento até então vigente, que Freud perverteu o saber da época ao nos apresentar sua p

FREUD, 1905/1996). Afirmando que a Psicanálise se recusa a considerar os homossexuais possuidores de características especiais, Freud revela o caráter revolucionário da sexualidade humana com o conceito de pulsão e sua inerente plasticidade:

A psicanálise considera, antes, que a independência da escolha objetal em relação ao sexo do objeto, a liberdade de dispor igualmente de objetos masculinos e femininos, tal como observada na infância, nas condições primitivas e nas épocas pré-históricas, é a base originária da qual, mediante a restrição num sentido ou no outro, desenvolvem-se tanto o tipo normal como o invertido. No sentido psicanalítico, portanto, o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema que exige esclarecimento, e não uma evidência indiscutível que se possa atribuir a uma atração de base química. (FREUD, 1905/1996, p.137-138)

Neste texto, ao estender sua reflexão ao campo da sexualidade infantil, Freud demonstra que a pulsão tem um caráter parcial que, por si só, não permite restringirmos a sexualidade humana à genitalidade; já que sua parcialidade não abrange a totalidade da tendência sexual: a função biológica da reprodução. Apresentando a sexualidade fragmentada em

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pulsões parciai -organização sexual infantil e concebe a criança como um ser capaz de todas as transgressões possíveis para se satisfazer.

A partir de então, ao nos apresentar a sexualidade atrelada a uma essência polimorfa e aberrante, Freud coloca todos os sujeitos em igualdade da criança ao adulto e estabelece uma nova ponte entre o normal e o patológico.

pulsões, estas ainda aparecem marcadas por alguma obscuridade que constantemente gera a aproximação sinonímica entre pulsão e instinto e, consequentemente produz equívocos entre os psicanalistas que corroboram para a difusão dos desvios teóricos.

A pulsão, apontada por Lacan como um dos quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, e resgatada juntamente com a essência da teoria freudiana, ao ser abordada de forma reducionista, promove o alicerce para toda uma série de versões biologizantes da sexualidade humana.

Este alicerce, que destacamos como o primeiro grande desvio da pulsão, pode ser constatado na tradução pela qual James Strachey optou ao transcrever a Trieb freudiana como instinct, na tradução inglesa das obras completas de Freud. Sua desastrosa escolha do termo não só favoreceu a biologização do conceito, como também revelou a própria tradução como um desvio. A aproximação entre pulsão e instinto, (re)promovido a partir de então, reforçou os desvios teóricos e recobriu a amplitude da teorização freudiana advinda da riqueza do termo em alemão.

Trieb, um termo antigo dotado de uma ampla gama de sentidos, sempre estará correlacionada

característica em alemão, o termo evoca a ide(HANS, 1996, p.338). Com a criação do conceito e a escolha do termo para tratar especificamente da sexualidade humana, Freud marca a pulsão enquanto conceito único e sem correlatos.

A pulsão é uma Konstant Kraft, uma força constante cujo impulso parte de uma excitação interna que tende à satisfação, através de um objeto inespecífico escolhido, tão somente, por prestar-se com mais eficiência na contingência de uma dada situação.

É essa constância de Drang (pressão/força pulsional) que nos indica que este quantum de Reiz, de excitação concernente à pulsão, não pode ser extinto, e que, por sua vez, sua relação com Ziel (alvo da pulsão) acarreta a restrição de uma satisfação sempre parcial, devido à impossibilidade de eliminação do estímulo vindo da fonte.

Este paradoxo da satisfação parcial, que nos remete à categoria do impossível, é retomado por Lacan:

A idéia de que a função do princípio do prazer é de se satisfazer pela alucinação está aí para ilustrar isto é apenas uma ilustração. A pulsão apreendendo seu objeto, aprende de algum modo que não é justamente por aí que ela se satisfaz. Pois se se distingue, no começo da dialética da pulsão, o Not e o Bedürfnis, a necessidade e a exigência pulsional é justamente porque nenhum objeto de nenhum Not, necessidade, pode satisfazer a pulsão. (LACAN, 1964/1998, p.159)

Esta satisfação, obtida primeiramente através do seio materno, marca, na realidade, a busca

por um objeto perdido que nunca foi tido. A busca da pulsão, que tem como objeto um vazio, ou como trazido por Lacan, o seio em sua função de objeto, a causa do desejo, indica que a pulsão o

-se então, para nós, no Drang da pulsão, de algo que é, e que só é, conotável na

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relação à Quelle, na medida em que a Quelle (fonte) inscreve na economia da pulsão essa estrutura de borda. /1998, p.162).

Portanto, este contorno da pulsão ao objeto eternamente faltante, com sua saída e seu retorno através da borda erógena que satisfaz essencialmente pela alucinação, estrutura o caráter circular do percurso pulsional e marca o sujeito de que trata a Psicanálise: o sujeito do desejo.

Logo, a cada objeto que vem ocupar o vazio, revela-se o fato de não ser nele que a pulsão encontrará a satisfação plena, marcando o impossível do reencontro e justificando a afirmativa freudiana, fundamental para todo nosso posterior desenvolvimento a respeito da escolha homossexual, de que o Objekt (objeto) é o que há de mais variável na pulsão. A C riação da IPA e seus Impasses

Após uma época em que o próprio Freud denominou de esplêndido isolamento por sofrer as consequências de suas descobertas numa espécie de solidão intelectual , suas teorias se difundiram gradualmente e acarretaram no consequente interesse de jovens médicos pela prática psicanalítica (JONES, 1989).

Com o passar dos anos, as teorias de Freud ganhavam espaço no mundo e revelavam uma crescente legião de seguidores que o levaram, juntamente com Ferenczi, a criar, em 1910, uma associação internacional, com o intuito de unir os grupos psicanalíticos dos diversos países, a fim de expandir o movimento e as inovadoras ideias a respeito da sexualidade humana. Contudo, Freud, embora tivesse criado a International Psychoanalytical Association (IPA) a partir do desejo de ampliação de sua teoria, retirando-a da limitação do espaço vienense, não deixava de dividir com Ferenczi a preocupação contra os perigos que qualquer organização encerra: Conheço bem a patologia das instituições e sei com que frequência, nos grupos políticos, sociais e científicos imperam a megalomania pueril, a vaidade, o respeito por fórmulas vazias, a obediência cega e o interesse pessoal, em lugar de um trabalho consciencioso, dedicado ao bem comum(ROUDINESCO & PLON, 1998, p.385).

Assim, a previsão se fez. A expansão do movimento se traduziu por dissidências, tendo como motivo, simultaneamente, querelas pessoais e questões teóricas e técnicas.

Nesta época, Ernest Jones, com o intuito de preservar qualquer forma de desvio ou má interpretação da teoria psicanalítica, cria então, em 1912, o chamado Comitê Secreto , composto pelos discípulos mais fiéis de Freud.

Entretanto, este ideal de pureza doutrinal também foi perpassado pelos conflitos que pretendia evitar. Desconsiderando os aportes freudianos, o próprio Jones também presidente da IPA na época escreve a Freud, relatando sua posição contra a admissão de um analista homossexual à sociedade. Marco a posição de Freud citando a resposta dada por ele e Otto Rank:

Sua pergunta, estimado Ernest, sobre a possibilidade de filiação dos homossexuais à Sociedade, foi avaliada por nós e não concordamos com você. Com efeito, não podemos excluir estas pessoas sem outras razões suficientes [...] em tais casos, a decisão dependerá de uma minuciosa análise de outras qualidades do candidato. (LEWIS, 1988 citado por CECCARELLI, 2008, p.4)

Contudo, a posição freudiana em relação à questão não obteve consenso entre os analistas e, em 1921, a Associação Psicanalítica Internacional, através de uma decisão tomada no seio de seu

Comitê Secreto , passou a proibir, definitivamente, que a profissão de psicanalista fosse exercida por homossexuais.

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A partir daí, juntamente com as rivalidades narcísicas, acrescentaram-se questões críticas sobre a duração do tratamento, a definição da noção de inconsciente e o polêmico lugar da sexualidade para a Psicanálise. Como consequência, a associação acabou transformando-se numa organização centralizada e dotada de regras que, cada vez mais, se afastava do conjunto de conhecimentos fundamentais de Sigmund Freud (ROUDINESCO & PLON, 1998). Na sequência, e por volta de 1930, o fenômeno da dissidência deu lugar às cisões e, a partir daí, eram os grupos que se enfrentavam. Freud, por sua vez, isolado em Viena, mas célebre no mundo inteiro, prosseguiu com sua obra sem conseguir controlar a política de seu movimento. E a questão que ainda se apresenta, é que, apesar de todo o esforço de Freud para separar suas teorias das difundidas ideias classificatórias dos sexólogos da época, opondo-se a toda e qualquer forma de estigmatização desses sujeitos, o tema da homossexualidade ainda aparece, em muitos momentos, atrelado a um discurso contaminado pela moral sexual conservadora e pelo discurso médico curativo que julga o sujeito a partir de critérios comportamentais que excluem qualquer referência à subjetividade. O fato é que, tanto hoje quanto na época de Freud, muitos psicanalistas abordam a homossexualidade a partir de critérios e crenças pessoais, revelando, de forma biologizante, uma interpretação do sujeito e da sexualidade pela via do normal X patológico. Desvios T eóricos e T écnicos

Após todo o movimento a que, ao longo dos anos, assistimos contra a patologização da homossexualidade e contra a homofobia, e apesar de todo o esforço de Freud ao tratar a homossexualidade pelo viés do sujeito do inconsciente, valorizando a pulsão e admitindo todas as variações possíveis à sexualidade humana, encontramos, ainda hoje, uma retórica de argumentos psicanalíticos homofóbicos, calcados no ideal da heterossexualidade enquanto norma, que colaboram com a difusão do imaginário social da complementaridade dos sexos.

Desconsiderando os aportes freudianos, psicanalistas contemporâneos, contaminados pela moral sexual conservadora e pelo discurso médico curativo com uma visão muito mais próxima à dos pré-freudianos do que do retorno a Freud promovido por Lacan (re)interpretam a

anatomia diferencial dos corpos e marcam o cenário atual com versões imaginárias, teóricas e técnicas, para abordar o tema.

Foi a partir do século XX, logo após o motim de Stonewall, em 1969, que se iniciaram os protestos públicos contra a discriminação de homossexuais. Nesta época, a organização de ativistas gays, convencida de que as atitudes patologizantes da psiquiatria a respeito da homossexualidade tinham grande contribuição no estigma social, resolveu invadir, em 1970, e depois, novamente em 1971, as reuniões anuais da Associação Psiquiátrica Americana (APA), a fim de protestar contra os danos causados pelos diagnósticos que conferiam à homossexualidade um caráter de distúrbio psiquiátrico (DRESCHER, 2008).

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Em resposta ao protesto, e após uma revisão sobre a questão da homossexualidade que durou mais de 1 ano, a Associação Psiquiátrica Americana, em 1973, removeu a homossexualidade do DSM, influenciando outras grandes organizações de saúde mental.

Na sequência da decisão da APA, as atitudes começaram a deslocar-se ao longo do mundo. Nos EUA, a partir da aprovação da Comunidade Internacional de Saúde Mental, a homossexualidade foi retirada do Manual de Classificação Internacional de Doença (CID). Em 1981, o Conselho da Europa emitiu uma resolução proibindo aos países membros da Comunidade Europeia a criminalização da homossexualidade e instituindo direitos iguais. E, por fim, em 1991, a Organização Mundial de Saúde também deixa de considerar a homossexualidade como doença.

Contudo, e por mais incrível que possa parecer, não poderia deixar de mencionar que, antes da remoção ser formalmente implantada pela Associação Psiquiátrica Americana, os analistas da Associação Psicanalítica Internacional (IPA) que haviam argumentado contra a mudança, fizeram um manifesto e apresentaram uma petição à APA, contestando a decisão do Conselho. O pedido, proveniente de uma reunião ocorrida na Associação Psicanalítica Americana (APsaA), incluía a

assinatura de 200 membros que se posicionavam contra a retirada da homossexualidade da lista de doenças. Felizmente, a decisão final do Conselho para remover a homossexualidade foi (re)confirmada por uma maioria de 58% dos membros votantes da APA. (DRESCHER, 2008)

De fato, a comunidade psicanalítica demorou mais tempo do que os outros para adotar esta perspectiva. Foi só em 1989, que a Academia Americana de Psicanálise adotou a política de não discriminação da orientação sexual, abrindo caminho para

que, em 1991, em resposta a um processo por ameaça de discriminação, a Associação Psicanalítica Americana também aprovasse a política de não discriminação relativa à seleção de candidatos que, em 1992 ao ser revista , passou a incluir a seleção de professores, bem como a formação de analistas1 (DRESCHER, 2008).

-se em distorções técnicas e teóricas, promovidas pela homofobia, muitas vezes escamoteada, mas ainda presente no discurso de analistas e na prática de instituições.

Um claro exemplo em relação à distorção técnica é o da NARTH (The National Association for Research and Therapy of Homosexuality). A Associação Nacional de Pesquisa e Terapia da Homossexualidade afirma ser capaz de modificar a orientação sexual das pessoas com base na teoria psicanalítica. Esta organização, fundada em 1992 e inicialmente presidida por Charles Socarides, embora não tenha nenhuma ligação direta com a IPA, é composta por vários psicanalistas que são membros da Associação Psicanalítica Americana.

A posição oficial da NARTH é que a homossexualidade é um transtorno tratável e, segundo

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justifica seu entendimento de que a orientação homossexual, não só precisa como deve ser modificada, já que, segundo ele, o movimento gay é um destruidor dos direitos da sociedade (BERGGREN).

Não é de se espantar que este procedimento homofóbico e contaminado por crenças importadas de uma moral sexual social, receba apoio, inclusive financeiro, de membros da direita radical religiosa, demonstrando a dificuldade, ainda existente, de se desvincular a teoria psicanalítica da crença pessoal que é formulada por esses discursos.

Em geral, parece-nos que o cerne da questão dos desvios promovidos não repousa exclusivamente no mal-entendido da homossexualidade, mas antes e principalmente, na noção psicanalítica da sexualidade humana.

Este panorama desviante, que apontamos com o caso da NARTH, é também encontrado, ou até embasado, no contexto de produções teóricas. Ao interpretarem as bases conceituais da Psicanálise de forma, senão homofóbica, no mínimo reducionista, alguns pós-freudianos ajudam a propagar o quadro de distorções encontradas na literatura analítica atual e promovem inúmeras versões para a noção psicanalítica de homossexualidade que acabam alicerçando a difusão de novas distorções técnicas.

Com a proposta não só de denunciarmos, mas principalmente desfazermos tais equívocos, selecionamos duas versões da homossexualidade capazes de nos servir como exemplos de afirmativas teóricas incompatíveis com a Psicanálise. Lançarei mão, primeiramente, da versão reducionista da homossexualidade enquanto perversão proposta por Patrick Valas2 membro da Escola de Psicanálise Sigmund Freud em Paris para em seguida, apresentar a versão biologizante da sexualidade, tal como compreendida por Waldemar Zusman3 membro da Associação Psicanalítica Rio 3.

Tomado como primeiro exemplo, Patrick Valas, em seu livro Freud e a Perversão, nos relata ter seguido, passo a passo, a ordem cronológica dos textos freudianos com o intuito de contribuir para o conhecimento da gênese da perversão. No entanto, o autor parece-nos não ter percebido a essência estrutural do conceito e, após esse extenso trabalho, confunde escolha de objeto com escolha de estrutura, identificando a homossexualidade atrelada à perversão.

Valas, ao promover um recorte de dois textos freudianos As teorias sexuais infantis (FREUD, 1908/1996) e Leonardo Da Vinci e uma lembrança de sua infância (FREUD, 1910/1996) conclui seu livro constituindo a base da perversão a partir da feminilização do sujeito por

identificação à mãe fálica e sua consequente escolha de objeto homossexual: O objeto é escolhido em função da relação do sujeito com a castração, cuja sorte é decidida na dialética edipiana. Quando a castração é desmentida, o objeto é marcado pelo traço deste desmentido: mãe fálica, à qual se substitui a mulher falicizada pelo fetiche, ou então o próprio objeto é portador do pênis falicizado, ele é um duplo narcísico do sujeito homossexual. (VALAS, 1990, p.112)

Ao atribuir o horror proveniente da ausência do pênis na mulher enquanto razão determinante da escolha de objeto do homossexual masculino, o autor nega a ameaça de castração

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enquanto geradora de angústia em todos os sujeitos sejam eles homens ou mulheres e recorre à anatomia para entender a perversão. Na mão contrária à de Freud, o que Valas propõe é uma substituição do desmentido da castração próprio da estrutura clínica da perversão por um discurso que, utilizando o imaginário do corpo, identifica o pênis do objeto escolhido pelo sujeito como aparato fálico capaz de desmentir a castração e sustentar toda homossexualidade masculina enquanto perversa.

Certamente, o autor, assim como ocorre nas sociedades patriarcais, transforma o falo enquanto significante da falta em símbolo de poder e completude. Contudo, foi justamente para sanar este corrente intrincamento que Lacan alertou para a definição do falo como significante que marca a distância existente entre o símbolo e sua encarnação imaginária; ou seja, a anatomia suporte imaginário presente na fantasia não deve ser confundida com o estatuto simbólico das funções e das posições de desejo em relação ao significante fálico:

O falo é aqui esclarecido por sua função. Na doutrina freudiana, o falo não é uma fantasia, caso se deva entender por isso um efeito imaginário. Tampouco é, como tal, um objeto (parcial, interno, bom, mau etc.), na medida em que esse termo tende a prezar a realidade implicada numa relação. E é menos ainda o órgão, pênis ou clitóris, que ele simboliza. [...] Pois o falo é um significante [...] ele é o significante destinado a designar, em seu conjunto, os efeitos de significado, na medida em que o significante os condiciona por sua presença de significante. (LACAN, 1966/1998, p.696-697)

Eis o que Lacan articula da função do falo, falo em sua função de significante que captura o sujeito humano e produz a hiância inerente ao ser falante que se apresenta com o desejo errático, desviante da necessidade biológica. Trata-se, com efeito, da incompletude fundamental do ser humano enquanto ser de linguagem, do falo enquanto significante privilegiado na ordem simbólica, que não é representável e, portanto, jamais reduzido ao órgão sexual masculino. Logo, ninguém é possuidor do falo.  

O falo, enquanto significante da falta, ao ser retomado por Lacan, não só afasta qualquer sustentação anatômica atribuída a ele, como permite desfazermos equívocos decorrentes do imaginário ideal ou de uma leitura demasiado simplista de determinado momento do trabalho de Freud.

Não nego o fato de que, ao recortarrmos a obra freudiana, possamos correr um grande risco

de entendermos certos conceitos de forma incompleta e equivocada; no entanto, o que na presente versão chama maior atenção, e por isso questionamos, é o porquê de o autor, que se propôs a fazer um levantamento da obra freudiana sobre a perversão, sequer ter citado o texto sobre o F etichismo (FREUD, 1927/1996), em que Freud não só conclui seu entendimento da estrutura, como afirma

fetichista de se tornar homossexual, dotando as mulheres de características que as tornam toleráveis /1996, p.157).

Jacques  Lacan    

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Ao observar que o protótipo do fetiche é o mesmo em todos os casos e que se refere a um substituto do pênis da mulher (mãe) que deveria ter sido abandonado e que, no entanto, é preservado da extinção, Freud nos apresenta o conceito de Verleugnung e marca o desmentido enquanto mecanismo de defesa capaz de manter um tipo de negação específica, em que se nega algo já afirmado anteriormente.

A complexidade deste conceito muitas vezes (re)significado pelas diferentes traduções4 suscita a necessidade de um estudo aprofundado do tema. Como alertado por André Bourguignon, em O conceito de renegação em Freud (BOURGUIGNON, 1991) seu importantíssimo estudo sobre a genealogia conceitual da Verleugnung na obra freudiana á com meio século de idade, tem algumas dificuldades para evoluir e se transformar, como deveria

teóricos nas mais diversas direções, sem que nenhum deles tenha produzido um consenso no seio da comunidade psicanalítica, consideradas todas as tendências. .

De fato, o cenário múltiplo deste conceito ainda permanece. No entanto, selecionamos dentre as várias traduções a que nos pareceu mais fidedigna à ideia atribuída a essas duas atitudes, o sim e o não, que persistem lado a lado e representam um novo mecanismo de cisão do ego: Desmentido5.

Com o conceito de desmentido, Freud estabeleceu uma diferença estrutural no que tange a forma pela qual o sujeito desvia-se das exigências aflitivas expressando simultaneamente duas premissas contrárias:

Seja o que for que o ego faça em seus esforços de defesa, procure ele negar uma parte do mundo externo real ou busque rejeitar uma exigência pulsional oriunda do mundo interno, o seu sucesso nunca é completo e irrestrito. (FREUD, 1940[1938]/1996, p.217)

Freud identifica na perversão um funcionamento psíquico particular que lhe possibilita

concluir que, enquanto na psicose a foraclusão faz com que o sujeito perca a realidade de forma completa e eficaz, no caso do recalque na neurose e do desmentido da perversão, este desligamento nunca alcança êxito completo. Seguramente, ficou também evidenciado que a escolha de estrutura neurose, psicose, perversão não tem relação alguma com a escolha de objeto; mas sim, com a maneira pela qual se nega a castração simbólica que ameaça e angustia o sujeito, seja ele homem ou mulher.

Logo, focados na proposta de desconstrução dos desvios teóricos, afirmamos a homossexualidade enquanto modalidade do sexual e asseguramos que, para a Psicanálise, o sujeito seja ele heterossexual, bissexual ou homossexual pode fazer uma escolha de estrutura neurótica, psicótica ou perversa. Fato que desfaz de forma completa e inequívoca a versão proposta por Patrick Valas ao identificar todo homossexual com a perversão.

Tomando agora nosso segundo exemplo, cito Waldemar Zusman e seu entendimento da sexualidade a partir do padrão normativo heterossexual. Segundo o autor, exual se impõe aos seres humanos, bem como aos animais, sem se importar com o fato de que a chamemos

-8). Esta visão biologizante, além de reduzir a Trieb freudiana ao instinto sexual, sustenta a

versão de Zusman sobre a identificação do homossexual com a mãe enquanto fator responsável pela fixação anal e sua respectiva passividade. Apoiado na noção biológica das fases da libido em detrimento das fases da linguagem, o autor faz existir o Objeto capaz de completar o sujeito e,

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assim, sustenta sua crença de que a homossexualidade seria um desvio da norma por não ter se subordinado à primazia genital (ZUSMAN, 1997).

Freud, ao nos apresentar a concepção psicanalítica de sexualidade, lançou mão da pulsão e do inconsciente para caracterizar a especificidade do ser humano. Lacan, em seu retorno a Freud, estruturou o inconsciente como linguagem e marcou a pulsão como efeito da demanda do Outro sobre o sujeito. A partir de então, qualquer redução da pulsão ao instinto desloca a questão da sexualidade para um campo que não é o campo da Psicanálise.

Esta é a proposta de Zusman ao igualar o ser humano aos animais, articular a Psicanálise a um campo biológico que submete o sujeito às fases de maturação do organismo necessárias para a condução do órgão genital ao objeto do sexo oposto para a procriação.

Desfaçamos os equívocos: a libido, tal como apresentada por Freud, é uma energia sexual que impulsiona (a pulsão) a partir do desejo. As fases de desenvolvimento pelas quais ela passa (oral, anal etc.) referem-se à ação da linguagem sob determinada região corporal descrita por Freud como zona erógena. As zonas erógenas, por sua vez, só se tornam erógenas pela ação da linguagem em determinado orifício corporal, -se por todo o corpo e o transforma num corpo pulsional.

Ao ser humano, enquanto sujeito dividido pelo efeito da linguagem, o que importa é a dimensão do Outro: Não há nenhuma relação de engendramento de uma das pulsões parciais à seguinte. A passagem da pulsão oral à pulsão anal não se produz por um processo de maturação, mas pela intervenção de algo que não é do campo da pulsão pela intervenção, o reviramento, da demanda do Outro (LACAN, 1964/1998, p.171).

Não havendo nenhuma metamorfose natural de uma pulsão à outra, Lacan enfatiza que é na circularidade, no vaivém do movimento pulsional que sai através da borda e a ela retorna como sendo seu alvo depois de ter contornado o objeto a que se situa a dimensão do Outro. Será nesta dialética pulsional, marcada pela falta de objeto, que o sujeito fará sua entrada na linguagem através da apreensão dos significantes da mãe que nomeiam e permitem sua inserção no mundo simbólico dos seres falantes. O sujeito nasce no que, no campo do Outro, surge o significante.

Sob esse prisma, também se esclarece que a atividade-passividade atribuída por Freud à pulsão é justamente a constância desse movimento pulsional, e não uma passividade respectiva a uma fixação da pulsão anal, como propõe o autor. Desfazendo Equívocos

Se retornarmos a Freud, que de certa forma também se respaldou na biologia para tentar esclarecer a distinção anatômica entre os sexos, baseando-se no complexo de Édipo e no complexo de castração para referir-se à presença ou ausência do pênis como marco referencial de uma posterior posição subjetiva, verificaremos que, de forma análoga, o autor não desconhece na

emonstrar que desde os primórdios da infância, o bebê, ao condicionar sua sobrevivência à mãe, está, na realidade, restringindo sua existência à presença do desejo do Outro primordial e, assim, conferindo plasticidade à constituição de seu corpo na relação com esse desejo.

Esta questão nos leva a refletir que: se o desejo do sujeito e o corpo biológico do sujeito não estão intimamente relacionados, isso se dá pela plasticidade pulsional, a qual tem como único objetivo a satisfação. Desta forma, podemos afirmar que a pulsão não reconhece a anatomia do corpo e que o desejo se dá independentemente desta.

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Logo, verificamos que a escolha de objeto não tem nenhuma relação com a anatomia do sujeito e muito menos com a escolha de posição sexuada na partilha dos sexos. Ou seja, um homem biológico (posse do pênis) que se situa ou se reconhece como homem enquanto sua posição sexuada, tem como possibilidade de escolha um homem biológico ou uma mulher biológica para ocupar o lugar de seu desejo de satisfação enquanto objeto de amor. Então, não temos nenhuma relação que resulte de uma posição feminina ou masculina definida a partir do sexo biológico de seu objeto de escolha.

Portanto, a partir do reconhecimento do desejo inconsciente, da plasticidade pulsional, da bissexualidade originária, da fantasia e da falta constitutiva do sujeito, não podemos nos satisfazer com o apoio anatômico enquanto suporte do pênis/falo como o único responsável pela subjetividade e pela posição do sujeito enquanto ser de escolhas.

Façamos um retrocesso: por que o falo com seu valor simbólico é equivalente ao pênis com sua característica anatômica? Este é o ponto que nos parece causar um dos principais equívocos trazidos por alguns pós-freudianos quando confundem o suporte da diferença fálico/castrado na relação parental claramente descrita por Freud e a função dos genitores na procriação derivada do modelo fálico/posse do genital.

Certamente, nas sociedades patriarcais, o falo enquanto marca da falta foi transformado em símbolo de poder e completude: o homem, enquanto possuidor de um pênis, é também possuidor do falo. No entanto, temos que ter em mente que a anatomia é o suporte imaginário presente na fantasia e que esta não deve ser confundida com o estatuto simbólico das funções e das posições de desejo em relação ao significante fálico.

Portanto, ninguém é possuidor do falo, já que este é da ordem do simbólico, da incompletude fundamental do ser humano e jamais poderá ser reduzido ao órgão sexual masculino.

Peguemos, então, o gancho e voltemos nossa atenção para o fundamento que nos permite distinguir as posições masculina e feminina.

Deixemos claro: Freud, ao falar de atividade, refere-se a uma maior quantidade de libido investida no objeto. Em contraposição, ao falar de passividade, aponta para uma maior quantidade de libido investida no eu. Assim, podemos começar a concluir que a libido masculina, no homem ou na mulher, representa um movimento de maior investimento no objeto, independentemente de este ser homem ou mulher.

Desta forma, se a libido, em si, é ativa, o feminino e o masculino, enquanto pulsionais, estão sempre presentes em diferentes medidas no homem e na mulher. Ou seja, ao tratarmos de uma concepção dinâmica, ora nos mobilizamos em direção ao objeto, ora nos fazemos objeto para o outro.

Sob esse prisma, a busca pela satisfação pulsional em uma ou outra posição será sempre um movimento de caráter ativo, pois, mesmo se tratando de um gozo da posição passiva, é de uma passividade ativamente produzida que se trata.

Nesse sentido, deixa de existir a anatomia que privilegiava a mulher feminina e passiva em oposição ao homem masculino e ativo, passando a operar uma dinâmica pulsional circulante entre as posições, sem nenhuma restrição quanto ao sexo biológico que ocupará tal lugar em determinado momento.

, apresentadas no Seminário 20 - Mais, ainda -, observaremos que o destaque dado pelo autor ratifica que, na escolha do sexo, não devemos confundir a escolha da posição sexuada, dentro da partilha dos sexos, com a escolha do objeto enquanto possibilidade de desejar um

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homem ou uma mulher. Esta teorização da diferença sexual separa-se radicalmente da diferença anatômica, há uma reversão indispensável para nosso entendimento da teoria, pois Lacan faz cair o

e, para , que está para além do falo.

Portanto, o que precisa ser entendido em termos de definição para que não se possa justificar

respectivamente a maior quantidade de libido investida no objeto ou a

relacionados à dinâmica pulsional, pela qual o sujeito se posiciona perante o desejo e os objetos, escolhendo ora o movimento de amar, ora o de ser amado.

Logo, podemos concluir que um indivíduo, homem ou mulher biológico (pênis/vagina), independentemente de sua escolha de posição sexuada enquanto interpretação do desejo do Outro como homem ou mulher, sempre terá uma libido

ativa como força motriz de sua vida sexual, independentemente de sua finalidade pulsional enquanto dinâmica ter um maior objetivo masculino/amar ou feminino/ser amado por um objeto biologicamente definido como homem ou mulher.

Assim, a homossexualidade é apenas mais uma possibilidade de encontro, a partir das múltiplas escolhas do sujeito, e o que por fim consideramos necessário ser destacado é o dever da Psicanálise de mostrar que esse dito saber sexual unificado pelo sistema de valores morais não corresponde à realidade, já que a pretensa naturalidade desejante correspondente à anatomia diferencial dos corpos não condiz com o subjetivo inerente a qualquer escolha do sujeito, já que a relação sexual, enquanto pré-determinada entre pulsão e objeto, não existe. Conclusão Como vimos, no início do século XX, Freud subverteu o saber da época ao apresentar a publicação do livro Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). O autor revolucionou a concepção de sexualidade humana ao indicar a falta de objeto, apontando para o fato de que não há uma naturalidade desejante correspondente à anatomia diferencial dos corpos e afirmando não haver nenhuma articulação entre o biológico e o subjetivo nas escolhas do sujeito.

Entretanto, verificamos que o saber psicanalítico apresenta-se, muitas vezes, atravessado por outros discursos, que, calcados em aspectos ideológicos, acarretam transmissões teóricas que substituem a ética do desejo pelo imaginário social de uma moral sexual encarnada no casamento heterossexual, visando à procriação.

Psicanalítica Internacional (IPA), liderado por Ernest Jones, em 1921, ao proibir definitivamente que a profissão de psicanalista fosse exercida por homossexuais. Desde então, nos deparamos com movimentos que normatizam a análise, o analista e o desejo do sujeito, vindos de diversas escolas de Psicanálise, que contribuem enormemente para a discriminação da homossexualidade e apontam para a falta de consenso entre os pós-freudianos a respeito do tema.

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Freud, de fato, nunca separou os homossexuais dos outros seres humanos ou os classificou como perversos, nem vislumbrou qualquer possibilidade ou necesconsequência da bissexualidade constitucional humana, a existência da homossexualidade em estado latente em todos os heterossexuais. Lacan, por sua vez, também se posicionava contra a homofobia e, em sua prática clínica, revelou-se um emancipador, ao ser o primeiro psicanalista a permitir que os homossexuais também se tornassem psicanalistas.

No entanto, nem mesmo a posição de seu fundador foi capaz de repreender a homofobia promovida pela IPA, inicialmente liderada por Jones e atualmente manifesta em discursos escamoteados, distorcidos, ou, como sugerido por Elisabeth Roudinesco, denegados, em versões desviantes promovidas por psicanalistas que após a manifestação de 1997, no Congresso de Barcelona6 não mais ousaram confessar sua homofobia: O desagradável é que os psicanalistas homofóbicos pretendem falar em nome da psicanálise, em nome de Freud ou de Lacan, ao passo que não fazem senão exprimir sua opinião de cidadão. Daí as críticas que lhes são dirigidas

NESCO, 2009, p.67). Assim, fica claro perceber que o cenário atual revela, cada vez mais, um afastamento do

conjunto de ensinamentos fundamentais de Sigmund Freud que se desencadeiam em consequências clínicas. É uma roda viva que precisa ser freada, pois estes analistas que difundem discursos calcados no imaginário pessoal também promovem uma clínica guiada pela moral; e com isso, quem sofre essa violência homofóbica é o sujeito. É preciso sanar esse movimento no campo da Psicanálise.

Sem dúvida, esse tema, que suscita uma grande quantidade de questões na prática clínica, nos exige repensar a responsabilidade do analista frente ao sujeito, que é sempre sujeito de desejo, mesmo que atravessado pela angústia promovida pela moral sexual difundida no social. Daí se reforça a necessidade da compreensão psicanalítica da sexualidade humana e de uma clínica centrada na ética do desejo. Importância também vigorada por Roudinesco: [..] é preciso tomar partido em prol dos homossexuais contra todas as discriminações das quais são vítimas. Se a psicanálise quer permanecer freudiana, deve prosseguir a missão civilizadora e emancipadora de que estava imbuída em sua origem. (ROUDINESCO, 2009, p.69).

É por acreditarmos que a promoção de versões teóricas desviantes no entendimento da homossexualidade tem efeitos clínicos na condução do tratamento analítico suprimindo a fala do

que nosso objetivo vem se justificar pela desconstrução dos equívocos e desvios que têm como resultado uma aplicação da P ; assim contribuindo para a ruptura da clínica da moral e sustentando a clínica do desejo, baseada na ética da Psicanálise.

De fato, a resistência à Psicanálise permanece tão viva quanto a necessidade de denunciarmos e desfazermos os desvios teóricos dela advindos.

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NOTAS 1. Considerações sobre a particularidade norte-americana relativa à formação analítica e ao consórcio psicanalítico encontram-se amplamente descritas em Lacan e a formação do analista (JORGE, 2006). 2. Na época do lançamento do livro aqui referido, Patrick Valas era membro da Escola da Causa Freudiana em Paris. 3. Na época da publicação do artigo aqui referido, Waldemar Zusman era membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de janeiro. 4. As traduções de Verleugnung comumente encontradas são: renegação, recusa da realidade da castração e desmentido. 5. O psicanalista francês Guy Rosolato propôs traduzir Verleugnung désaveu) e, assim, melhor caracterizar, no campo psicanalítico, a dupla operação reconhecimento e recusa , típica da estrutura perversa, e que, até então, havia sido comumente confundida com o conceito de denegação. (ROUDINESCO & PLON, 1998) 6. Congresso onde ocorreu a primeira manifestação de psicanalistas membros da IPA, ao se declararem abertamente homossexuais.

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. A dissolução do complexo de Édipo . A divisão do ego no processo de

defesa . (1940[1938]) Esboço da psicanálise - Extratos dos documentos dirigidos a Fliess (1908) Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade . (1915 s instintos e suas vicissitudes . Leonardo Da Vinci e uma lembrança de sua infância . (1906[19 Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (1923 organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade . (1931) Sexualidade feminina . Sobre as teorias sexuais das crianças Sobre o narcisismo: uma introdução (1905 Três ensaios sobre a teoria da sexualidade . HANNS, L. A. (1996). Dicionário comentado do alemão de F reud. Rio de janeiro: Imago. JONES, E. (1989). A vida e a obra de Sigmund F reud. Rio de Janeiro: Ed. Imago. JORGE, M. A. C. (2007). A teoria freudiana da sexualidade 100 anos depois (1905-2005). Psychê. ano 11, n. 20, São Paulo. p. 29-46. _____. (2005). Fundamentos da psicanálise de F reud a Lacan, vol. 1: As bases conceituais. 4. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar. JORGE, M. A. C. (org.) (2006). Lacan e a formação do psicanalista. Rio de janeiro: Contra Capa. LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. _______. Outros escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003. _______. (1956-57/1995). O seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: J. Zahar. _______. (1957-58/1999). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: J. Zahar. _______. (1963-64/1998). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2. ed. corr. Rio de Janeiro: J. Zahar. ______. (1972-73/1985). O seminário, livro 20: mais, ainda. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: J. Zahar. LANTERI-LAURA, G. (1994). Leitura das perversões: história de sua apropriação médica. Rio de Janeiro: J. Zahar. MARMOR, J. (org.) (1973). A inversão sexual: as múltiplas raízes da homossexualidade. Rio de Janeiro: Imago. MARQUES, L. R. (2008). Homossexualidade: uma análise do tema sob a luz da psicanálise. Dissertação de mestrado, Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro.

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Recebido em: 15 de outubro de 2010 Aprovado em: 17 de novembro de 2010