sobre o tempo e a memória na psicanálise

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Dissertação de 1997, na qual se realizou o estudo da noção de a posteriori em Freud e Lacan, avaliando-se sua importância para a compreensão da função do tempo e da memória na psicanálise.

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UFRJ CFCH IP PPGTP

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM TEORIA PSICANALTICA

SOBRE O TEMPO E A MEMRIA NA PSICANLISE: O A POSTERIORI EM FREUD E LACAN

Dissertao de Mestrado Por: Jos Csar Coimbra Orientador: Waldir Beividas

SOBRE O TEMPO E A MEMRIA NA PSICANLISE: O A POSTERIORI EM FREUD E LACAN

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Dissertao de Mestrado submetida ao corpo docente do Programa de PsGraduao em Teoria Psicanaltica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessrios obteno do grau de mestre.

Aprovada por:

_____________________________ Prof. Waldir Beividas

______________________________ Prof. Anglica Bastos

______________________________ Prof . Josaida de Oliveira Gondar

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Ficha Catalogrfica e Instrues Coimbra, Jos Csar Sobre o tempo e a memria na psicanlise: o a posteriori em Freud e Lacan. Rio de Janeiro, UFRJ, IP, Programa de Ps-Graduao em Teoria Psicanaltica,1997. [IX. 186f] Tese: Mestre em Teoria Psicanaltica 1.Psicanlise 2.Memria 3.Tempo 4.Teses

I. Universidade Federal do Rio de Janeiro (IP) II. Ttulo

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Norma e Flvia

Agradecimentos

Este trabalho pde ser realizado graas ao apoio da Coordenao do Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), da qual fui bolsista no perodo 1994/95. Do mesmo modo, agradeo aos professores do Programa de Ps-Graduao em Teoria Psicanaltica em cujas disciplinas foram sendo construdas as linhas principais desta dissertao. Em particular, a Waldir Beividas cuja orientao e estmulo foram poderosos aliados, bem como a Ana Beatriz Freire pelo apoio nos momentos iniciais deste projeto. Tambm aos professores do Curso de Especializao em Psicanlise (UFF), sem os quais esta pesquisa no teria os contornos que adquiriu. Em particular a Paulo Vidal pelas sugestes bibliogrficas, bem como ao incentivo sempre reiterado.

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A Virgnia Kastrup, atravs de quem no s iniciei minhas leituras de Bergson, como tambm aproximei-me de modo mais sistemtico das questes relativas ao tempo e memria. A Anglica Bastos, com quem aprendi a reconhecer a importncia dessas questes na psicanlise, e que soube apontar o caminho por onde iniciei minha pesquisa. A Carlos Almino, pelas informaes preciosas sobre cinema e lngua alem. A meus pais, pelo incentivo de todas as horas.

ResumoEsta dissertao teve como objetivo realizar um estudo sobre o conceito de a posteriori [nachtrglich] em Freud e Lacan, estabelecendo uma correlao com a funo da memria na psicanlise. Para tanto, partimos de uma definio inicial onde o a posteriori indicaria uma dissimetria entre fato e lembrana, estando o valor traumtico, por exemplo, associado segunda e no experincia original. A partir da definio anterior formulamos as seguintes hipteses: 1) O a posteriori no deve ser entendido exclusivamente como dizendo respeito aos efeitos de significao; do mesmo modo que a memria no responderia somente pela ratificao do passado. Seja num caso ou no outro no se trata apenas de uma questo de ordenamento significante, anlise semntica dos termos que compreenderiam um enunciado. 2) Tanto no a posteriori como na memria podemos reconhecer tambm a produo de algo refratrio significao. Tal produo desdobra-se em duas vertentes: a) o trauma como dizendo respeito a algo inassimilvel, origem dos sintomas, e, por conseguinte, possvel ponto de partida para a anlise; b) uma memria-lacuna ou esquecimento constitutivo. Quer dizer, algo tambm da ordem do sintoma, embora do que nele existe de intratvel. Esse esquecimento equivaleria, portanto, ao resto da interveno analtica, tal como o objeto a poderia ser entendido

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como dejeto, sobra da operao de ordenamento significante. s hipteses acima acrescentamos uma ltima: se existe semelhana entre a posteriori e iluso retroativa ela no significaria, contudo, identidade.

RsumLobjectif de ce travail a t de faire une tude sur laprs-coup [nachtrglich] chez Freud et Lacan et dtablir sa correlation avec la fonction de la mmoire en psychanalyse. Pour cela, nous avons parti dune dfinition initiale o laprs-coup signalerait une dissymtrie entre fait et souvenir du fait. La valeur traumatique tant, par exemple, associe au deuxime et pas au premier. Freud met laccent sur lintervalle temporel qui rendrait lexprience traumatique. A partir de la dfinition ci-dessus nous avons formul les hypothses suivantes : 1) L aprs-coup ne doit pas tre peru exclusivement comme attach aux effets de signification; du mme coup, la mmoire ne rpondrait pas qu la ratification du pass. Cest--dire quil ne sagirait pas seulement dune question de mise en ordre du signifiant; 2) Dans l aprs-coup, aussi bien que dans la mmoire, on peut reconnatre galement la production de quelque chose de rfractaire la signification. Telle production prsente deux volets: a) le trauma ayant rapport quelque chose dinassimilable, origine des symptmes, et par consquent, cens tre le point de dpart pour lanalyse; b) une mmoire dun trouou oubli constitutif, cest-dire, quelque chose ayant galement rapport au symptme, quoique ce que celui-ci a d intraitable. Tel que lobjet a, rsidu de lintervention analytique, loubli constitutif pourrait tre compris comme dchet de lopration de capitonnage du signifiant. Aux

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hypothses ci-dessus, il a fallu en ajouter une autre: sil existe ressemblance entre aprscoup et illusion rtrospective , elle ne signifierait cependant pas identit.

ndice

Introduo Instante de verI. Um Lugar para a Memria?Do Laboratrio Clnica Wundt, Weber, Fechner e Dilthey Hipnose e Histeria As Afasias

xi 1

2 6 9 13

II. Entre o Somtico e o PsquicoLocus Suspectus Os Primeiros Passos de Freud Intensidade e Lembrana Lacuna e Psique A Memria no Toda 20 24 28 31 34

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III. Sobre a Imagem e a LembranaForsan et Haec Olim Meminisse Juvabit Lembranas Encobridoras, ainda Lembrana e Experimentao Lembrana e Experincia Impasses Reminiscncias... 36 41 44 45 49 50

IV. A Persistncia da MemriaPulso de Morte e Princpio do Prazer Histria e Lembrana O Estranho Emma 54 58 64 70

Tempo de CompreenderV. Do Saber e da MemriaTransferncia, Sentido e Histria ( I ) Transferncia, Sentido e Histria ( II )

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74 83

VI. Che Vuoi?O Fracasso da Memria Duas Memrias Prolegmenos a uma Histria de Lobos Sobre o Homem dos Lobos Pravda e Istina Memria, Sonho O Grafo: a posteriori e Memria 118 8 89 94 101 108 112 116

9 O Grafo: a posteriori e Esquecimento Esquecer, Esquecer... 126 132

VII. O Futuro AnteriorA Gramtica do Tempo Iluso Retroativa 136 140

Momento de Concluir

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Escrever tantas vezes lembrar-se do que

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nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao menos sei? assim: como se me lembrasse. Com um esforo de memria, como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrana em carne viva. C. Lispector

Introduo

O crculo no redondo1

Mnemosyne, me das musas, filha de Urano [Cu] e Gaia [Terra]. Essa talvez seja a primeira referncia que nos ocorre quando temos em vista uma pesquisa sobre a memria. No s me das musas, presidindo, portanto, funo potica, mas tambm irm de Chronos. Desse modo, percebemos em poucas linhas uma relao muito prxima entre memria e tempo datada j da Grcia arcaica. Mas, o que isso pode significar para ns que realizaremos uma investigao sobre a memria e o tempo na psicanlise, e, mais precisamente, especificando a articulao que o conceito de a posteriori promove entre ambos?

1 Frase citada no filme Before the Rain (M.Manchevski,1994,U.K./Macednia/Frana). 10

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importante notar que entre a memria na Grcia arcaica e aquela que estudaremos aqui cabe uma distncia que no pretendemos ver reduzida. Mas pensamos ser possvel atravs dela nos aproximarmos de algumas questes introdutrias que sero tambm extremamente pertinentes a este trabalho. Na Grcia arcaica a funo rememorativa passava por ser uma ascese em direo verdade. Os poetas, assim como os adivinhos, so aqueles cuja memria sabe discernir, para alm do presente, o que est enterrado no mais profundo passado e amadurece em segredo para os tempos a vir (Vernant,1990:115). No entanto, essa verdade tocada pela memria no significava um possvel recapitular de uma histria individual, e muito menos de uma histria coletiva. Diria respeito sobretudo a um mergulho no tempo antigo, ou tempo original, comeo absoluto, a partir de onde tudo teve incio. Essa , portanto, a capacidade que Mnemosyne concederia: estar presente no passado de modo imediato (cf. Vernant,1990:109). Logo, ao poeta inspirado pelas Musas no caberia seguir o tempo num retroceder quase infinito, como se este fosse inteiramente homogneo, sem desvios ou sutilezas. Parece haver uma outra concepo de tempo implicada, onde prevalece a idia de genealogia, fazendo imperar uma multiplicidade de relaes distintas, pressupondo, por exemplo, a idia de raas arcaicas1 (de ouro, prata, bronze e ferro), onde cada uma delas encontrar-se-ia submetida a um determinado fluxo de tempo, que diferiria completamente das demais (idem:112). Assim poderamos dizer que a memria no dizia respeito a uma reconstruo do tempo, nem uma anulao dele, como acontecer posteriormente. Ela est intimamente1 Essa formulao est ligada a idia de idades mticas, e encontra-se explicitada no poema de Hesodo (meados do sculo VII a.C.) Os Trabalhos e os Dias. Nesse poema Hesodo misturou dois temas j existentes: o mito das quatro idades com nomes de metais, por ordem decrescente de excelncia, e a lenda de uma idade dos Heris, inserida entre a terceira e quarta idades. (cf. Goff,1984a:316). 11

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ligada s funes iniciticas2 onde se caracterizava por uma possibilidade de conhecimento sobre-humano, j que por seu intermdio quebrava-se a barreira que separava o passado e o presente, e desse modo tambm o mundo dos vivos e aquele dos mortos (idem:113). nesse registro que vamos encontrar as primeiras referncias anmnesis ou reminiscncia. A tambm no se encontrava ainda uma distino entre Mnemosyne e Lethe, memria e esquecimento, mas ambas funcionavam como um par de foras complementares (idem:114). Todavia, o esquecimento j era associado morte, noite. Por isso, aquele que no Hades conseguia guardar a memria transcendia a condio mortal (ibid). No entanto, essa relao entre memria e esquecimento, mesmo entre os pitagricos e depois com Plato, passa a ser compreendida de uma outra forma. A primeira torna-se o meio pelo qual o homem pode escapar das garras do devir, do perecimento, da condio humana enfim. E o esquecimento ser justamente associado a essa condio e, por extenso, passa a estar em estreita conexo com o tempo (idem:122). Portanto, o tempo imutvel (Chronos agraos) que divinizado, estando o devir associado ao engano, ignorncia, morte. E a valorizao da anmnesis d-se justamente na medida em que ela propiciaria uma anulao desse tempo que faz perecer, que marcado pela mudana (idem:123). Se sobretudo com Plato assistimos a uma oposio entre tempo e memria, na medida em que seria a segunda um meio de ascese, nos oferecendo a possibilidade de reencontrar o mundo das Idias, com Aristteles haver uma nova aproximao entre tempo e memria, mas para eliminar completamente qualquer resqucio de divindade que

2 A anlise do carter inicitico, ou hermtico, da memria foi muito bem conduzida por Yates (1975), que nos revela como este tema foi de suma importncia da Grcia ao Renascimento. 12

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pudesse ser encontrado na segunda. A memria passa a dizer respeito parte sensvel da alma, no podendo significar a possibilidade de um verdadeiro conhecimento, nem quanto ao passado, nem quanto ao ser, revelando antes a nossa incapacidade de ser inteligncia pura, marca de imperfeio (idem:130-131). Trata-se na verdade em Aristteles de distinguir entre memria e reminiscncia. A primeira estando ligada propriamente a parte sensvel da alma; enquanto a segunda encontrar-se-ia ligada parte intelectual, ainda que fosse portadora de traos das formas corporais. A reminiscncia caracterizar-se-ia sobretudo pelo fato de depender da associao e da ordem (cf. Yates,1975:80 e 84). Talvez pudssemos dizer que este , em suas linhas gerais, o percurso do papel da memria da Grcia arcaica aurora do pensamento filosfico: de funo divina marca de imperfeio. Todavia, e aqui nos baseamos em Yates, preciso tambm ter em vista que toda uma arte da memria constituiu-se desde a Grcia antiga at o Renascimento no s como mnemotcnica, mas tambm contiguamente retrica e, a partir dos escolsticos, com a tica. Ora, no seria essa uma histria que poderamos repetir, mutatis mutandis, para a psicanlise, sobretudo no que toca ao percurso freudiano? Dos estudos com Charcot Carta 69, no a veracidade do evento (traumtico) que posta em xeque e com ela a prpria memria? E, entretanto, no seria por essa via mesma que entreveramos a especificidade com que a psicanlise pode defini-la? Charcot j havia assinalado, quanto s neuroses traumticas, preocupao a

respeito de um tempo de elaborao psquica, intervalo que haveria entre um evento e a manifestao sintomtica. Na mesma esteira vamos encontrar as primeiras elaboraes

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sobre o a posteriori freudiano, sobretudo nos Estudos sobre a Histeria, atravs dos chamados momentos traumticos auxiliares. Sem dvida boa parte do uso do conceito de a posteriori aponta para o efeito traumtico advindo de um lapso temporal. Mais especificamente fala de um intervalo que se traduz numa defasagem entre um evento de origem sexual e sua lembrana quando da puberdade. Da significando a possibilidade de um efeito retroativo, a partir do advento desta, sobre a experincia que na infncia no pde ser compreendida. preciso ter em mente que ao nos determos exclusivamente nessa concepo de a posteriori no poderamos dar mais do que alguns passos, j que a hiptese de uma sexualidade infantil deveria ser suficiente para coloc-la abaixo. Iremos notar que o uso do a posteriori parece explicitamente concentrado num primeiro momento do pensamento freudiano. Mas, a pergunta inicial que nos fazemos : no estaria implicado nele uma questo que acompanhar Freud por muito tempo, qual seja, a da relao entre sintoma e trauma, lembrana e experincia, ou ainda, verdade material e verdade histrica? Mesmo ao reavaliar a hiptese de uma etiologia traumtica (Carta 69), no haver a, perdurando at o final de sua elaborao, pontos tais como o do umbigo do sonho, ou seja, aqueles que se caracterizariam por um limite interpretao? E o a posteriori no nos propiciaria justamente a articulao entre uma representao (sintoma, lembrana) e o que no pode ser representado (trauma, experincia original)? Do mesmo modo em Lacan se postulado uma lgica do significante, e que o inconsciente estruturado como uma linguagem, estaria a dito que tudo simblico, ou, como dito vulgarmente quanto a Freud e Lacan, que tudo sexual? No poderamos dizer que em ambos encontramos tambm um domnio que at revela-se por esse vis,14

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mas sem se confundir com uma suposta realidade biolgica, diz tambm respeito a algo para alm dele, e se expressa, por exemplo, na pulso de morte e no objeto a? Assim, o primeiro objetivo desta dissertao passa por apontar a limitao que h em tratar o a posteriori como pura e simplesmente um efeito retroativo de significao. Acentuaremos, portanto, o que a comparece como um resto, produto da operao de basteamento significante. Ainda que seja a partir desse efeito, por exemplo, que uma identificao se instaure, e, de modo mais amplo, uma histria (a do sujeito em anlise, por exemplo) possa ser narrada (cf. Zizek,1992:100). O segundo objetivo diz respeito a possibilidade do a posteriori servir para pensarmos o que seria a memria para a psicanlise. No trataremos de distinguir, a princpio, as suas diversas formas, tais como poderamos depreender nos termos rememorao, lembrana, reminiscncia etc. Mas, nos interessar o que nesses diversos termos podemos chamar memria. Quando se fizer necessria a distino, seja porque um determinado autor, Plato, Aristteles - como vimos acima - ou Freud, por exemplo, usa um e no outro, procederemos explanao. No entanto, voltamos a repetir, usaremos ora um ora outro, no querendo apagar com isso as possveis diferenas que existam, mas nos servindo delas para especificar a relao entre memria e a posteriori, ou seja, entre memria e tempo. Os objetivos acima podem ser retomados na formulao das seguintes hipteses: 1) A estrutura da memria feita de uma articulao significante (cf. Lacan,1988:272), embora no se resuma a ela. Quer dizer, o a posteriori no deve ser entendido exclusivamente como dizendo respeito aos efeitos de significao; do mesmo modo que a memria no responderia apenas pela ratificao do passado. Deveremos, por conta dessa hiptese, tambm esboar uma distino entre sentido e significao (cf.15

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Miller,1987:184). Todavia, esse no ser nosso objetivo principal, haja vista que tal empreendimento exigiria um trabalho exclusivo. No entanto, deveremos estar atentos a algumas consideraes que nos sero de valia, sobretudo na medida em que, grosso modo, o primeiro termo citado em referncia a algo que escaparia ao domnio significante (cf. infra, cap. VI). 2) O a posteriori no deve ser entendido apenas como ligado retroatividade. Quer dizer, no se trata apenas de uma questo de ordenamento significante. Ou, dito de outro modo, como sinnimo de uma capacidade ilimitada de ressignificao do passado. Tanto no a posteriori como na lembrana podemos reconhecer tambm a produo de algo refratrio ordem da significao. A isso tanto poderemos chamar trauma, como tambm memria-lacuna ou esquecimento constitutivo. O primeiro diz respeito a algo inassimilvel, origem dos sintomas, e, por conseguinte, possvel ponto de partida para a anlise. Os demais, tambm apontam para o sintoma, para o que nele existe de intratvel. Quer dizer, resto da interveno analtica, tal como o objeto a poderia ser entendido como dejeto da operao de basteamento significante. Na verdade essas duas hipteses convergem na medida em que C. Soller nos apresenta um matema da rememorao (S1/$), indicativo de que na anlise o sujeito vem produzir, reencontrar e ejetar simultaneamente os significantes a partir dos quais ele se construiu(Soller,1991:56). Ela continua: Reconstruir sua histria reencontrar a sucesso das identificaes do sujeito (S1...S1...S1) e a cada etapa, a verdade que a se liga (idem:57, grifo nosso). O que esperamos acrescentar com as hipteses acima diz respeito a uma parcela de resto, que parece introduzir-se na memria de modo a caracteriz-la no como um doce regresso a um passado j vivido, mas como a perpetuao de um enigma, tal como16

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podemos acompanhar em Freud, por exemplo, em seus textos Lembranas Encobridoras [1899] e Mecanismo Psquico do Esquecimento [1898], e que nos leva a falar

propriamente de um corpo estranho no seio da memria. O percurso que iremos realizar inicia-se em Freud de modo a seguirmos as primeiras referncias ao a posteriori no corpo de sua obra. De fato, comearemos por tentar distinguir o que seria uma problemtica da memria pensada do ponto de vista da psicanlise. Posteriormente daremos maior nfase a Lacan, realizando, entre outros comentrios, uma anlise de seu seu grafo do desejo, tal como elaborado ao longo de seus Seminrios As Formaes do Inconsciente [1957-58] e O Desejo e sua Interpretao [1958-59], assim como no texto Subverso do Sujeito e Dialtica do Desejo [1960], embora venhamos a nos deter exclusivamente sobre este. De modo mais detalhado, propomos o seguinte percurso: I.Um lugar para a memria?, captulo onde exporemos os pressupostos nos quais se basearam as primeiras pesquisas a respeito da memria no sculo XIX, e o modo como Freud a se diferencia, principalmente no que diz respeito a problemtica das localizaes cerebrais, das afasias e da hipnose; II.Entre o somtico e o psquico , onde daremos continuidade s questes precedentes, nos detendo, contudo, nos primeiros trabalhos de Freud. Notaremos como a j se esboava uma tenso no tocante memria entre o que podemos chamar uma busca no passado e a possibilidade de uma reconstruo posterior; III.Sobre a imagem e a lembrana , captulo onde notaremos a continuidade da tenso do captulo precedente, nos servindo das Lembranas Encobridoras e dos Estudos sobre a Histeria. Tentaremos mostrar por que a memria no se definiria como um

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espelho do mundo, estando, ao contrrio, prxima ao que Freud formula no Rascunho K como representao-limite; IV.A persistncia da memria. Nesse momento estaremos investigando a relao entre pulso de morte e princpio do prazer, e passaremos a fazer uso de modo mais sistemtico da obra lacaniana, principalmente do Seminrio 7; V.Do saber e da memria. Aqui, nos serviremos de algumas consideraes de Derrida a propsito do nachtrglich, bem como teremos em vista a questo da transferncia e o modo como a partir dela memria e tempo se relacionam; VI.Che vuoi? Esse ser o captulo mais longo, e ter como momentos privilegiados o estudo do caso do Homem dos Lobos, bem como o grafo do desejo lacaniano. O objetivo ser ressaltar uma defasagem entre rememorao e histria e o que da poderemos definir como esquecimento constitutivo. VII.O futuro anterior. Esse ser o ltimo captulo, e nele daremos ateno especial ao uso na lngua alem do vocbulo nachtrglich, bem como a importncia da aproximao promovida por Lacan entre ele e o tempo verbal do futuro anterior. Tais argumentaes tero como alvo realizar uma distino entre a posteriori e iluso retroativa. Esclarecemos que o interesse pelo grafo do desejo d-se em funo de nele podermos notar uma articulao entre a cadeia significante e seus efeitos retroativos, assim como tambm a presena de elementos que, apesar de estarem relacionados com a cadeia, no se confundem com ela, como por exemplo, a voz. Na mesma medida em que esta voz comparece como acusmtica (cf. Zizek,1992:152), e, portanto, como uma mancha ou corpo estranho no campo do significante, podemos notar tambm que o

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objeto a, diferentemente do sujeito, comparece como um produto e no como um efeito da estrutura da linguagem (cf. Miller,1990:103). Ou seja, se quanto ao sujeito e ao objeto na psicanlise ressaltamos uma dimenso negativa, onde um e outro comparecem pelo vis de uma falta, poderamos dizer que o sujeito caracterizar-se-ia por uma falta no significante, e o objeto por uma falta do significante1. Parece ser indicativo disso inclusive o fato de Lacan ter escolhido uma letra (a) distinta do S pelo qual so designados o sujeito e o significante (respectivamente $ e S1, S2). Mesmo que Miller no tenha desenvolvido a distino entre efeito e produto, ela nos servir no momento para notarmos que as relaes estabelecidas pelo significante no so unvocas. Parece haver uma diferena capital ao tomarmos o grafo nessa perspectiva, e tal nfase distingue as anlises de J. Dor (cf. 1990:148 e ss.) e Zizek (cf. 1991, passim e 1992: cap.V), por exemplo. O primeiro expe de maneira clara e precisa a gerao do grafo e a articulao deste com as formaes do inconsciente (atos falhos, sintomas), e em momento algum nomeia esse elemento mpar que a voz (um dos nomes do objeto a para Lacan), ou comenta mais detidamente o segundo vetor do grafo (gozo-castrao), que nos levaria ao encontro das formulaes de Lacan acerca do real. O caminho escolhido por Zizek exige necessariamente toda uma outra formulao, j que privilegia de modo inconteste justamente os conceitos que ficaram sombra no estudo de Dor. Se nos vemos orientados pela perspectiva exposta por Zizek porque encontramos nela uma problematizao maior quanto ao que diz respeito a uma lgica

1 Para ficarmos apenas numa frase que poder nos ser til para essa distino, poderamos citar Lacan: (...)Quanto a ns, nos atemos a que o significante no concerne ao objeto, mas ao sentido (Lacan,1992:53). 19

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do significante, onde ao acentuar o papel do que Lacan chamou real, procura examinar os efeitos que esse registro impe sobre o domnio do significante. Assim, a memria que pretendemos estudar passa pelo vis do significante, com todas as articulaes e nuances que comeamos a destacar nos pargrafos precedentes. Essa memria de certa forma uma pontuao do passado, um modo de narr-lo, e diversos autores, no pertencentes ao campo psi, j fizeram tambm por nos mostrar isso. Sem entrarmos no campo da filosofia e mesmo na cincia onde muito foi escrito sobre o tempo, tema conexo questo da memria, temos tambm na literatura anlises extremamente interessantes em autores to dspares quanto Hector Bianciotti, Vladimir Nabokov, e, sendo quase impossvel no citar, Proust. No cinema tambm encontramos esse tema em abundncia, e, guisa de ilustrao, citaremos apenas Alain Resnais. Trs de seus filmes procuram levar os paradoxos da memria ao seu limite: Hiroshima meu amor [1959], O ano passado em Marienbad [1961] e Providence [1977]. Em cada um deles a memria no comparece como um lugar de encontro, da certeza factual, mas como disperso, fonte de enigmas, bifurcaes incessantes que atravessam o sujeito, no dizendo respeito a uma memria individual, mas perpetuando, entre uma reminiscncia e outra, um X que no resolvido, ainda que sejam lanados em todas as direes inmeros apelos. Talvez essa passagem pelo cinema seja menos forada do que parece, ainda que no tenhamos a inteno de along-la mais1 . Mas bom ter em vista que 1995 trouxe lembrana a comemorao do centenrio do cinema, bem como a da redao do Projeto. Curiosa coincidncia que nos leva a ver, tanto em um como no outro, os efeitos de uma

1 Para o incio de uma apreciao sobre como o tempo e a memria se impem como temas privilegiados no cinema cf. Tarkovski,1990, Peixoto,1996 e Carrire,1995. 20

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certa iluso, aquela dos 24 quadros/segundo e a da proton pseudos1. No poderamos dizer que nelas encontramos o anncio de uma certa verdade, ao menos daquela que s pode ser dita numa estrutura de fico? por tudo isso que comeamos dizendo que o crculo no redondo. Frase absurda, a princpio, e que parece ao seu modo traduzir os efeitos que esperamos extrair do a posteriori. Onde, junto significao produzida retroativamente, parece permanecer um resto que no sem conseqncia. Ao final, talvez tenhamos contribudo para uma viso da memria e do a posteriori que no os tome como conceitos extremamente simples sobre os quais nada mais haveria a dizer. Esperamos problematizar esse campo e apontar para o fato de que a psicanlise tem a falar sobre a memria, e que esta no pode ser entendida apenas como uma recapitulao do passado. Na medida em que ela tambm produzida, o setting analtico o lugar de uma batalha cujo final no pode ser assegurado de antemo, e nem no passado mais remoto. Para concluir esta introduo, ainda que pese as diferenas j notadas entre a psicanlise e a filosofia bergsoniana (cf. Lacan,1985a:139 e 269; 1990a:116 e 153; Garcia-Roza,1993: cap.3 e Jouhaud,1992), poderamos repetir aqui o que para este autor era a caracterstica fundamental do tempo: impedir que tudo tenha sido dado de uma vez (cf. Bergson,1971:327 e 1993:101-102). H muito dessa frase que encontraremos ao longo deste trabalho. Assim como h muito dela tambm na Carta 52. Na verdade interessante notar que um dos ltimos seminrios de Lacan teve como ttulo A Topologia e o Tempo2. Marca de uma1 Essa expresso significa literalmente primeira coisa falsa. Na Grcia designava um erro primeiro a partir do qual decorreriam necessariamente concluses falsas. Em Aristteles designa a premissa falsa que num silogismo leva a uma concluso tambm falsa (cf. Garcia-Roza,1991:187). 2 La Topologie et le Temps, Seminrio XXVI, 1978-79, indito 21

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preocupao j assinalada desde Funo e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanlise, onde entre outros temas, comenta sobre os efeitos tcnicos do tempo (Lacan,1990a:298 e ss.), definindo-o como uma funo onde o simblico e o real reunirse-iam (ibid). nesse percurso lacaniano, onde o registro do real vai adquirindo uma envergadura cada vez maior, que entendemos ser pertinente um estudo do tempo na psicanlise. Tal como o objeto a, o tempo compareceria tambm com um dejeto da rede simblica, impedindo que tudo tenha sido dito, ou lembrando. Excesso que no sentido, ou na memria, lana-os para alm de um vivido, prximo ao sem sentido (cf. Miller,1987:184), onde talvez um e outro no poderiam ser seno carne viva, matriaprima para uma nova histria.

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Instante de Ver

I. Um Lugar para a Memria ?

Do laboratrio clnica

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Deixo cair a tarde/ Nos olhos fatigados./ O dia foi de luz intensa e demorada,/ Nevada nas alturas/ ... / Longe daqui, e sempre aqui/ Presente,/ Quero sonhar apenas o que vi./ Quero ver o que vi mais transparente. Miguel Torga

Iniciar um estudo sobre a memria implica ter em perspectiva o modo como esse tema fez-se objeto de investigao. Neste captulo veremos alguns autores que no sculo XIX estudaram a memria, assim como tambm trataremos das primeiras observaes de Freud sobre essa questo, sobretudo aquelas ligadas ainda ao uso da hipnose. Se conseguirmos o mnimo de ateno ao nos determos sobre o que foram as primeiras pesquisas nessa rea, nos depararemos de fato com o que foi o prprio surgimento da psicologia e da psicanlise. Desse modo, nos encontramos diante de uma bifurcao que dever ser seguida em ambas as direes para que possamos ter uma compreenso do quadro que se perfila diante de ns neste momento. De um lado temos no sculo XIX uma preponderncia das disciplinas ligadas neurofisiologia tentando responder s interrogaes suscitadas pelas afasias e pela histeria, tendo logo de sada produzido um campo de batalha em torno das questes relativas s localizaes cerebrais (cf. Bergson,1990,passim; Garcia-Roza,1991:cap.1 e Heidbreder,1969: Introduo, seo 3). Por outro, a psicologia, que enquanto se

desvencilhando da filosofia, no que dizia respeito ao estabelecimento de um mtodo, no deixava de ter nela uma fonte de inspirao no que se tratava dos objetivos, operando um deslizamento que significou a substituio das perguntas sobre o ser (o que conhecer, perceber, p.ex.), para aquelas relativas a descrio de um fenmeno (como se conhece, percebe, p.ex.). Nesse terreno nebuloso, onde o limite dos saberes encontrou-se pouco a pouco modificado, foram introduzidas outras personagens, tais como Bergson e Freud. Ambos24

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propuseram respostas s questes de sua poca, esboando um quadro novo que no dizia respeito unicamente biologia, mas partia de experincias que se pautavam na metafsica, para o primeiro, e na psicanlise, para o segundo. No que toca psicanlise, o estudo da memria nos incita a perguntar sobre sua prpria definio e, em particular, da importncia do conceito de a posteriori, onde o valor traumtico de um evento deslocado em funo de sua lembrana. Tambm deveremos ter em perspectiva ao longo deste trabalho que a problemtica da memria na psicanlise toca de maneira radical a prpria definio de sujeito , e com isso talvez venha a ser demarcada uma primeira diferena com a psicologia. desse modo que nos voltamos para o que foi o primeiro estudo cientfico da memria, realizado por Hermann Ebbinghaus que, atravs do experimento de memorizao de slabas sem sentido, observou uma relao diretamente proporcional entre tempo e aprendizagem. Ainda que havendo excees a essa regra, detectadas por ele mesmo, o que gostaramos de sublinhar a ligao entre memria e aprendizagem que parece marcar o incio das investigaes psicolgicas desse tema. O que poderamos ver nessa primeira iniciativa exatamente a preocupao de como proceder para otimizar a investigao da reteno de informaes, na mesma medida em que o sujeito do experimento deveria estar isento de saberes prvios que viessem a interferir na averigao, da as slabas sem sentido. A preocupao parece ser uma s: como proceder para extrair um dado do fio do tempo para cristaliz-lo num hbito. Ou melhor, o esforo parece dar-se no sentido de como verificar a eficcia dessa tentativa, a de poder reproduzir da melhor maneira possvel o que num dado momento apresentou-se percepo. Ainda que os experimentos de Ebbinghaus ponham em relevo a preocupao quanto a mensurao de um estado psicolgico, ele mesmo reconhecia que, assumindo tal posio, no fazia mais do que abordar uma determinada face, muito limitada, da memria:25

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A fim de verificar praticamente, embora apenas num campo limitado, uma forma de penetrar mais profundamente nos processos da memria (...) cheguei ao (...) mtodo [de aprendizagem de slabas sem sentido] (Ebbinghaus, 1971:642).

Ao longo de seu texto A Aprendizagem de Slabas Sem Sentido [1885], alm de apresentar o seu mtodo, ele se colocava questes acerca da natureza da memria para as quais apontava a insuficincia dos saberes da poca, como se no ultrapassassem um limiar de estudo apenas descritivo. Ele escreveu:(...) se nossa curiosidade nos leva para diante e desejamos informaes mais especficas e minuciosas quanto a essas dependncias e interdependncias [da memria] (...) se fazemos perguntas, por assim dizer, quanto sua estrutura interna - nossa resposta silncio (idem:640).

As consideraes tecidas at aqui acerca do experimento de Ebbinghaus nos so de valia na medida em que nos colocam diante do que se forjava naquele momento como mtodo para a psicologia e conseqentemente nos revelam muito do que era tambm o seu objeto de pesquisa. A preocupao quanto a mensurao parece ligar de modo indissocivel Ebbinghaus a Fechner, de modo que poderamos reconhecer entre ambos os ideais cientificistas vigentes no sculo XIX, cujo paradigma encontrava-se nitidamente ligado s problemticas de quantificao e matematizao dos experimentos. o que podemos notar nessa observao de Fechner:

(...) assim como na fsica e na astronomia, tambm na mensurao psquica podemos inicialmente deixar de lado as irregularidades e os pequenos afastamentos com relao ordem, a fim de descobrir e examinar as relaes de princpio com que a cincia deve lidar. No entanto, no se deve esquecer

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27 a existncia de tais excees, pois o maior desenvolvimento e o maior progresso da cincia dependem da sua determinao e do seu clculo,to logo exista possibilidade de faz-lo (Fechner, 1971:83).

Mas, no que diz respeito estritamente nossa investigao, o que devemos reter no momento a razo inversa estabelecida entre tempo e memria. Na mesma medida em que o tempo por si s seria apenas uma funo que atuaria no sentido de desfazer as ligaes da memria, processo conhecido na psicologia como degenerao espontnea do trao, a repetio apresentar-se-ia como possibilidade de superao desse empecilho, otimizando e cristalizando relaes1. Essa oposio, que no momento pode nos parecer ainda pouco precisa, j por si mesma suficiente para apontar que o interesse da psicologia experimental parece, pelo menos nesse momento, reduzir-se a algo que no mximo poderamos chamar de hbito. No que a memria no apresente tambm essa face, mas o que parece muitas vezes esquecido que a memria no se reduz ao hbito (cf. Bergson,1990:59-62). Exatamente como uma lio que aprendida de cor, depreende-se dos experimentos que ela adquirida pela repetio de um mesmo esforo. Como todo exerccio habitual do corpo, enfim, ela armazenou-se num mecanismo que estimula por inteiro um impulso inicial, num sistema fechado de movimentos automticos que se sucedem na mesma ordem e1 Guillaume retoma o experimento de Ebbinghaus, concordando com o fato de que o tempo apaga, debilita, transforma as recordaes(Guillaume,1959:198). Do mesmo modo, confere um papel importante repetio: A lei do esquecimento permite compreender a verdadeira natureza da fixao. Se foram necessrias 20 leituras para aprender de memria uma lista de slabas e no dia seguinte somente foram necessrias 12 para voltar a aprend-la no mesmo grau e dois dias depois nada mais que 8, devemos por isso dizer que essas novas leituras fizeram voltar cada vez a recordao ao estado da vspera? Sem dvida o afirmaremos assim, no sentido de que a recordao reconstituda permite sempre a mesma recitao correta. A segunda parte da resposta de Guillaume merece um comentrio breve. Ele credita a facilitao na fixao/evocao de lembranas no s repetio, mas tambm s alteraes fisiolgicas: Mas h outro sentido em que essa afirmao no deve ser aceita, quando a recordao oferece cada vez maior resistncia a ao do tempo: se sabe o mesmo, mas de outra maneira. A recordao cada vez mais slida, pois o mesmo lapso a debilitar cada vez menos(idem:199). Decorrendo dessa exposio, ainda seria interessante enunciar a diferena proposta pelo autor entre memria e saber. Este, sendo mais estvel, j no implicaria uma recordao de suas origens (idem:199-202). Grosso modo tal distino poderia ser comparada oposio entre memria implcita (ou procedural) e explcita (ou declarativa) (ver infra, p.15). 27

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ocupam o mesmo tempo(idem:61). Ainda que no fosse por essa observao de Bergson sobre a relao entre memria e hbito, a distncia que a queremos ressaltar tambm se faria notar, por exemplo, no papel peculiar que Freud concede memria, seja na Carta 52, seja no Alm do Princpio do Prazer, s para nos determos nesses dois momentos de seu pensamento. Talvez seja necessrio nos aproximarmos um pouco mais do contexto em que esses estudos sobre a memria foram realizados, lembrando que praticamente no mesmo perodo a problemtica das afasias e da histeria levantavam questes cruciais acerca desse tema. De sada interessante notar como o discurso da psicologia inteiramente pautado num modelo experimental que parece desconhecer por completo o apelo da clnica e suas questes. no espao do laboratrio que vamos encontrar no sculo XIX toda a discusso acerca do estatuto da cincia e da oposio desta com a metafsica.

Wundt, Weber, Fechner e Dilthey dessa forma que o estabelecimento do primeiro laboratrio de psicologia por Wundt em Leipzig, 1879, ainda que no tenha significado o incio da psicologia experimental (cf. Heidbreder,1969:70), vem dar provas de que a psicologia teria se tornado definitivamente cientfica1, moldando para si um objeto de estudo que a princpio teria ficado disperso por entre disciplinas como a anatomia e a fisiologia. Nesse sentido Wundt define a psicologia como o estudo da experincia imediata, realizado atravs do duplo processo da introspeco e da experimentao, onde o objetivo o de treinar a percepo para que ela pudesse desvencilhar-se de uma srie de informaes secundrias (luminosidade, cor, hbitos em geral, por exemplo) na descrio de um objeto. Assim, a experincia mediata, cara s cincias naturais cujo modelo a fsica, procederia como1 Talvez seja necessrio esclarecer que no estamos colocando em discusso o estatuto de cincia da psicologia. Limitamo-nos a contextualizar o objetivo dos autores em questo. 28

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que por excluso do fator subjetivo; ao passo em que a psicologia, fazendo apelo experincia imediata, no se serviria de tal abstrao. Embora a psicologia experimental esteja apoiada sobre a fisiologia e a anatomia desde os seus primrdios, apoio que em ltima instncia encontra sua razo de ser na possibilidade de efetuar uma teoria do conhecimento esvaziada de pressupostos filosficos e em prol do mtodo experimental, vamos encontrar no prprio Wundt uma ciso quando fala dos processos mentais superiores (criao artstica, por exemplo), para os quais seria preciso recorrer a um estudo dos produtos sociais, atravs de uma investigao histrica. com Weber e Fechner, este segundo muitos o pai da psicologia experimental, que podemos detectar de maneira cristalina a preocupao de estabelecer um modo de correlacionar a atividade psquica com o estmulo fsico (cf. Heidbreder, op.cit.:74-79 e Herrnstein e Boring, 1971:77-90). Ao contrrio do que se percebe na obra de Wundt uma dicotomia entre a perspectiva experimental e histrica - com Fechner o intuito o de maximizar o alcance que a noo de psicofsica poderia ter no universo cientfico. Apesar de encontrarmos tambm nele uma dicotomia nos objetos de estudo (corpo e esprito), ao contrrio de Wundt, isso no teria redundado numa dicotomia do mtodo (ibid). Weber, fisiologista, postulava uma relao especfica entre corpo e mente que no entanto no se resumia a uma equivalncia pura e simples. Entre uma grandeza e a habilidade para perceb-la caberia estabelecer a razo que as ligaria. Fechner em seu livro Elementos de Psicofsica [1860] ir generalizar o enunciado de Weber a ponto de erig-lo em lei, segundo a qual a magnitude da sensao proporcional ao logaritmo de seu estmulo (cf. Herrstein e Boring, op.cit.:81). No entanto a querela entre fsico e psquico, ou corpo e mente, teve sua perfeita expresso no que se chamou Methodenstreit [querela dos mtodos]. A distino que se anuncia sob esse termo funda-se numa separao entre natureza - cujos mtodos29

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corresponderiam queles existentes na cincia clssica - e a histria ou esfera do homem -que precisaria recorrer a uma metodologia prpria. De um lado o explicar [ Erklren] e do outro o compreender [Verstehen] (cf. Assoun,1983:46). Foi Droysen, um dos renovadores da historiografia alem do sculo XIX, quem formulou essa distino que encontra plena continuao com Dilthey e sua Introduo s Cincias do Esprito [1883]. Alguns anos depois, quando Freud escrevia o Projeto, Dilthey publicava o ensaio Psicologia Comparada, onde alm de diferenciar de maneira categrica os campos concernentes histria e natureza, situava, contrariamente maioria dos autores citados at aqui, a psicologia como uma cincia do esprito, sendo mesmo o seu fundamento. Teramos por um lado conexes causais e por outro conexes de sentido, aquelas trabalhando com categorias como substncia e causalidade, e estas com categorias de significao e fora. Essas seriam em linhas gerais as diferenas entre a Naturwissenchaft [cincia da natureza] e a Geisteswissenschaft [cincia do esprito] (cf. GarciaRoza,1991:71-74). Talvez j pudssemos arriscar notar um primeiro aspecto da especificidade freudiana. Compreenso e explicao opem-se na medida em que, grosso modo, a primeira faz apelo a uma intuio ou experincia vivida, ao passo em que explicar fazer uso de processos discursivos, em particular mostrando que o fenmeno a ser explicado encontra-se associado a outra coisa - sua causa - ou submetido a uma lei geral. Mas, Freud justamente no cinde explicao e interpretao. Causa e sentido recobrem-se e encontram-se no termo alemo Deutung [interpretao] que explica de modo interpretativo ou interpreta fornecendo a causa (Assoun,1983:49). A interpretao em Freud est indissociavelmente marcada por esse contedo objetivo (cf. O Homem dos Lobos ou o Sonho da Injeo de Irma, por exemplo) que se traduz na explicitao do nexo causal, explicao que vale por elucidar (...) o vnculo objetivo entre o contedo manifesto e o contedo latente do sonho. por esta razo que o contedo manifesto sempre introduz, em sua funo de significante, um aspecto objetivo que o torna30

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semelhante a um efeito, assim como o contedo latente introduz, no indizvel do significado, a eficincia material da causa. Por conseguinte, o ato interpretativo nunca se liberta totalmente do ato explicativo pelo qual se remonta do efeito causa(idem:50). Se na interpretao freudiana pode-se delinear a vertente causal da explicao, na hipnose, tal como Freud a utiliza, no poderamos tambm ver implicada a questo da causalidade e do sentido, sobretudo, quando nos diz que caberia hipnose remontar pr-histria psquica da doena (...) ocasio psquica em que se originou o referido distrbio? (Freud,1990:105). No haveria nessas linhas um flanco aberto s interrogaes sobre a memria?

Hipnose e histeriaFique quieto! No diga nada! No me toque! Essas so as palavras insistentemente repetidas por Frau Emmy von N, s quais Freud acaba por se render. Esse caso revela-se como uma verdadeira dobradia entre a hipnose e a associao livre, onde podemos acompanhar o esforo minucioso por parte de Freud em recuperar e, literalmente, apagar lembranas que teriam efeitos patognicos sobre a paciente, a partir do que, em tese, estaria ela livre dos seus males. No entanto, um primeiro aspecto chama a ateno: qual o motivo da insistncia dos sintomas? Se a histria vasculhada e a sugesto ps-hipntica seguida risca, o que que est sempre a retornar? Na minha opinio (...), todos esses fatores psquicos embora possam responder pela escolha dessas fobias, no podem explicar-lhes a persistncia (Freud,1988:112). Essa afirmao dos Estudos Sobre a Histeria [1893-95], assim como a quase totalidade dos casos ali citados, j nos deixa entrever a idia de um trauma desdobrado em dois momentos e sobretudo a formulao de que a patologia histrica estava intimamente ligada a uma lembrana carregada de afeto no descarregado.

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Entre a induo do paciente e a cura parece reinar um abismo que a hipnose no cobrir. Abismo que ser marcado tanto mais quanto se puser em evidncia o discurso do paciente e seus pontos eletivos, suas lembranas, seus esquecimentos, seus sintomas. Desse modo em Freud a hipnose se reveste de uma preocupao que o leva a dizer que (...) desde o incio fiz uso da hipnose de outra maneira, independentemente da sugesto hipntica. Empreguei-a para fazer perguntas ao paciente sobre a origem de seus sintomas (...) (Freud,1976:31). Se a pesquisa da origem dos sintomas parece revelar para Freud a sua diferena para com as demais prticas da hipnose, o que isso significa? Teria ele de fato feito um uso peculiar dela? As primeiras referncias hipnose reportam-se a Mesmer [1734-1815], e ainda que se tenha desejado fazer uma distino clara entre as diversas correntes associadas ao mesmerismo e a um hipnotismo cientfico (com Braid e depois Charcot), constata-se o quo difcil essa tarefa, uma vez que mesmo as sonmbulas, os espritas e os magnetizadores pareciam tambm circular pela Salpetrire (cf.Barberis,1992). A tese de Mesmer em medicina foi a Dissertao Fsico-Mdica sobre a Influncia dos Planetas, na qual j podemos ver o princpio bsico de seu magnetismo animal, que nada mais era seno uma retomada de temas tais como o dos vapores ou fluidos, os quais seriam responsveis pela unificao do corpo e da alma (ibid). Essa temtica do fluido, de um agente geral, influenciou sobremaneira os filsofos romnticos para os quais o universo era visto como um organismo vivo provido de alma a partir do qual o fluido percorreria o todo e coligaria as partes. Com o Marqus de Puysgur o mesmerismo sofre uma inflexo em direo ao sonambulismo, onde a influncia psquica do hipnotizador est muito mais em destaque do que a composio fludica propriamente dita. Na continuidade dessa problemtica encontramos Briquet [1796-1881] que representou um ponto de tenso entre a perspectiva romntica e a acuidade mdica, sendo32

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tambm por sua vez, o autor que centrou a questo histrica no encfalo, e no mais no tero. Ressaltou de modo contundente que a histeria antes de se resumir a uma conseqncia direta das paixes - como numa relao linear - dizia respeito muito mais reproduo, ao memorial, rplica do acontecimento original (cf.Trillat,1991). Ainda que no haja nesse breve comentrio sobre Briquet uma referncia hipnose, tal como em Freud, nele se delineia a possibilidade de explicao da etiologia pelo vis da histria do paciente, lembrana que fala da origem e das vicissitudes do sujeito na constituio de seus sintomas, sendo por isso mesmo fonte de um saber e no apenas um apndice a ser suprimido ou um acontecimento ultrapassado pela fora da hereditariedade. No seriam estas duas ltimas caractersticas as suposies

implcitas nos dois pilares da hipnose que foram Bernheim e Charcot? Coube a Libeaut fundar a Escola de Nancy, assim como retomar a hipnose quando esta encontrava-se em profundo descrdito, fazendo dela um meio de cura para as mais diversas doenas, da tuberculose artrite (cf.Ellemberger,1974). Mas ser Bernheim quem dar continuidade Escola de Nancy e ratificar a proposio bsica que define a hipnose como um tipo de sugesto. Mesmo tendo Freud interessado-se a princpio por essa definio, ela no foi suficiente para mant-lo ligado Escola de Nancy, uma vez que ele a julgar insuficiente, como j dissemos, para abarcar a natureza dos fenmenos que se prope atingir (cf.Freud,1988:122). J para Charcot e a Salpetrire, a hipnose estava indissociavelmente ligada condio patolgica das histricas e com isso define-a de modo antagnico Escola de Nancy. Para esta, a hipnose era produto da sugesto; ao passo em que para a Salpetrire a sugesto que seria uma forma leve de hipnose. Freud escreve que na questo da hipnose, realmente tomei partido contra Charcot, ainda que no estivesse inteiramente a favor de Bernheim (Freud,1990b:118). Talvez possamos ver a os indcios dos caminhos distintos que implicaro para cada um

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deles uma forma de clnica, assim como o papel que a memria ter no uso que cada um far da hipnose. Porque para dar conta da etiologia da histeria Freud no ir apostar, por muito tempo, nem na hereditariedade, nem na sugesto, e isso parece apontar para o que nesse perodo era uma questo central, a experincia traumtica. Por conseguinte, o intuito de Freud era o de poder estabelecer o que se oferecia como condio suficiente e necessria para a manifestao patolgica. No seria essa a preocupao que acompanharia as tcnicas que sucederam a hipnose, como a concentrao e a presso manual? No poderamos j notar nessas tcnicas diversas o intuito de Freud em abordar a questo da origem, questo que ser retomada diversas vezes ao longo de suas elaboraes, seja, por exemplo, atravs das especulaes evolutivas com Ferenczi, ou ainda, atravs da noo de fantasias originrias ou do prprio conceito de recalque originrio? Desse modo, no seria lcito afirmar que o que se espera da memria nesse momento que ela possa tudo falar, entregando de modo preciso a prpria razo de sua opacidade? Ou seja, como Freud afirmou tantas vezes, a expectativa parecia ser a de um preenchimento das lacunas da memria para que da pudesse advir a eliminao do sintoma. Seria o caso de pensarmos ento numa equivalncia pura e simples cura/rememorao, sintoma/amnsia? Antes de prosseguirmos com uma resposta, necessrio frisar que so justamente os fenmenos hipnticos e histricos que colocaro em xeque a funo e o sentido das perdas de memria tal como vinham sendo estudados at aqui. Ao lado dessas investigaes vamos encontrar toda a querela em torno da problemtica das afasias e, conseqentemente, das localizaes cerebrais. O ponto central de todas essas investigaes acerca da memria era sem dvida a da conservao do passado. Quer dizer, o que opunha materialistas e espiritualistas, mdicos e filsofos, era a problemtica quanto ao estatuto do suporte dessa conservao. Dito de outro modo, onde estaria o passado? A amnsia implicaria de fato numa destruio das lembranas?

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As afasiasO termo amnsia surge na Frana em 1803 (cf.Carroy,1994:752), e em 1825 o mdico francs J-B. Bouillaud prope que a perda da memria dever-se-ia a uma leso cerebral precisa. Do mesmo modo, o mdico alemo F. Josef Gall, criador da frenologia, esfora-se por localizar faculdades psicolgicas complexas (amor, ambio, por exemplo) numa regio cerebral especfica. Em contraposio, os fisiologistas P. Flourens e L.P. Gratiolet, eminentes pesquisadores desse perodo, defendiam hipteses relativas ao funcionamento cerebral como totalidade (ibid). Nomes, datas e experimentos sucedem-se, mas o leitmotif acaba por ser sempre o mesmo. Em 1861 P.Broca ao apresentar o caso Tan parecia desfechar o golpe definitivo a favor da problemtica localizacionista. Ele teria descoberto num paciente que havia perdido a faculdade da fala, e falecido recentemente, um tumor localizado no lobo frontal do hemisfrio esquerdo. Esse paciente sempre que indagado no conseguia responder, apesar de aparentemente entender as questes que a ele eram dirigidas, de outro modo que no atravs do monossilbico tan, tan, tan (cf.Rosenfield,1994:18). Para esse tipo de patologia, Broca cunhuou o termo afemia (perda do poder de expresso pela fala, devida a leso cerebral). Em 1874 Carl Wernicke, neurologista alemo, identifica e localiza a leso correspondente de um outro tipo de distrbio da memria que no deixa de guardar uma equivalncia com o distrbio descoberto por Broca. Enquanto a afasia descrita por Broca dizia respeito incapacidade de produo dos movimentos da fala, de Wernicke implicava a incapacidade de compreenso dos sons. Nas afasias motoras (Broca), perdese a faculdade da fala; nas afasias sensoriais (Wernicke) as funes expressivas mantmse perfeitas e o paciente capaz de falar e escrever, mas no consegue ler nem compreender a fala(idem:27).

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A tnica dos estudos das patologias da memria, como temos mostrado, tem sido a da amplificao da importncia do paralelismo psicofisiolgico, ou seja, a do estabelecimento exato de uma relao entre uma leso fsica e o seu correlato sintomtico. Nessa perspectiva interessante notar a voz discordante que foi a de Hughlings Jackson, neurologista ingls, autor de relativa importncia nas elaboraes de Freud sobre as afasias, opondo-se de maneira contundente ao tema das localizaes. Nos artigos que publicou na revista Brain [1878-1880] ele afirmava que era preciso privilegiar a clnica em detrimento da neurologia no que dizia respeito aos distrbios da memria (Carroy,op.cit.:754). Mas, o que o coloca numa posio distinta daquela dos demais tericos de sua poca a nfase que conceder a uma teoria da memria que se pauta principalmente sob a problemtica do sentido. Jackson acentua a importncia do contexto no funcionamento da memria. a capacidade de criar sentidos inditos ou novos - rearranjando os estmulos em novos contextos - que to caracterstica da linguagem, em particular, e da funo cerebral em geral(apud Rosenfield, op.cit.:71,grifo nosso). Desse modo, a memria estaria associada capacidade de criar, ou reconhecer, contextos a partir dos quais determinadas respostas tornam-se possveis, ou no. Essa tambm a tese central do livro de Israel Rosenfield, A Inveno da Memria, onde procura desmistificar a idia de uma memria a longo prazo, ou, o que vem a ser o mesmo, uma memria cujo funcionamento dar-se-ia a partir de traos permanentes armazenados no crebro. Ele define uma memria de procedimentos 1, que no implicaria pura e simplesmente a recuperao de uma informao prvia que tivesse sido impressa no crebro de modo definitivo2 .1A definio que Rosenfield faz de uma memria de procedimentos, estritamente ligada produo/reconhecimento de sentido, distanca-se das definies usuais de uma memria a longo termo e a curto termo (que estoca e trata as informaes durante o processo de aprendizagem, raciocnio ou compreenso). Assim como tambm das definies de uma memria implcita (ou procedural) e explcita (ou declarativa). A memria procedural nesse caso est ligada a um savoir-faire, na medida em que existe uma aprendizagem sem no entanto haver reteno da experincia que levou a ela. A memria declarativa por sua vez aponta para fatos e eventos particulares, experincias (cf. Baddeley: 731 e ss. e Meunier: 761). 2 Essa impresso no crebro est em estreita conexo com o que foi designado como engrama, ou seja, um trao mnsico inscrito no tecido nervoso. Esse termo foi usado no incio do sculo pelo alemo R. 36

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Jackson fez uso em seus estudos da memria da teoria evolucionista de Spencer. Essa teoria afirma ser a evoluo dos seres vivos um percurso que vai do homogneo ao heterogneo, ou seja, um processo de diferenciao crescente, ao contrrio da teoria darwinista, que coloca o acento sobre o processo de seleo natural. Conseqentemente afirmava que os fenmenos do esquecimento seguiam uma ordem inversa quela da linha evolutiva. Desse modo, o dficit atingiria primeiro as lembranas de ordem intelectual, depois as lembranas afetivas e finalmente os automatismos e os hbitos. Todavia essa ordem rgida explicar-se-ia no pelo valor intrnseco de cada termo envolvido, mas pelo fato de que de uma extremidade outra dessa linha encontrar-se-ia uma especificidade cada vez maior de aplicao. Assim, por exemplo, os contextos em que as lembranas intelectuais poderiam ser atualizadas estariam cada vez mais limitados em razo de sua prpria especificidade, opondo-se aos hbitos e automatismos que de certa forma encontrariam um maior campo de atuao, atualizando-se numa gama de contextos mais diversos. Nesse mesmo perodo vamos encontrar na Frana um outro pesquisador que tambm se utiliza das teorias evolucionistas na memria, tal como Jackson as elaborou. Ribot publica em 1881 um de seus principais livros, a monografia chamada Psychologie des Maladies de la Mmoire, que dividida em quatro captulos: a memria como fato biolgico; as amnsias gerais; as amnsias parciais; e as exaltaes da memria (cf.Mervant,1989). Ainda que tenha sido Ribot quem procurou otimizar as propostas de Jackson a respeito da ordem seguida pelos dficits da memria, erigndo-as em lei, otimizao que encontra tambm outras formas de enunciado, como aquele que diz serem

Semon, sendo retomado e divulgado por K.S. Lashley, sobretudo em seu artigo In search of the engram apresentado em 1950 na Society for Experimental Biology (cf. Doron e Parot,1991:246). interessante frisar que a par desse estudo sobre o engrama, onde transparece a preocupao de Lashley sobre o suporte neuronal da memria, tambm foi postulado por ele a lei da ao de massa e a plasticidade das estruturas corticais. A primeira afirma que a perda mnsica dependia menos da localizao da leso do que da extenso anatmica (quantidade de tecido nervoso) atingida. A segunda postulao afirma que certas partes do crebro podem substituir outras lesadas e suprir s funes correspondentes (cf. Sillamy,1983:383-384). 37

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esquecidos primeiro os substantivos prprios, depois os comuns, em seguida os adjetivos e finalmente os verbos, nem por isso deixa de haver diferenas entre ambos. Carroy (1994:754), escreve que a principal diferena entre eles dar-se-ia na medida em que Ribot insiste em derivar a psicologia a partir da biologia, ao passo em que para Jackson se houvesse uma relao entre o biolgico e o psquico, este no se daria seno em termos de concomitncia. Ribot afirmou que a memria por essncia, uma fato biolgico; por acidente, uma fato psicolgico (apud Mervant, op.cit.:260). Seriam trs as caractersticas da memria para Ribot: conservao, reproduo e localizao no passado, sendo este ltimo item acidental, ligado conscincia, e responsvel por uma memria mais elaborada, psicolgica (ibid). Porm, a respeito de toda essa caracterizao da memria, Mervant parece detectar uma dupla preocupao em Ribot: o aspecto biolgico comparece em sua teoria como que para cobrir uma dimenso da memria que no seria alcanada propriamente pelos aspectos conscientes envolvidos (localizao no passado, por exemplo). Sendo que, no entanto, essa polarizao no deixa de ser sem conseqncias para o que em Ribot vem a ser entendido como consciente ou psicolgico1. justamente no cruzamento de duas propostas de Ribot que a hiptese de Mervant parece pautar-se. Primeiro, ele espera buscar na patologia das funes psquicas o segredo de sua atividade normal. Segundo, como citamos acima, ele credita capacidade de localizao no passado o ponto de distino entre uma memria orgnica e uma psquica. Da Mervant sustentar que Ribot apresenta em seu livro um modelo manifesto (fisiolgico) e um latente (psicolgico), onde o segundo se constituir como1 Encontramos em Titchener [1867-1927], aluno de Wundt e fundador da psicologia de cunho estrutural nos EUA, uma preocupao conexa quando postula a sua teoria do contexto, que no entanto ir conhecer outros desdobramentos. Nela ele se interroga sobre como o significado se conjuga com a sensao. O significado de uma sensao, para a teoria de Tichener, era, simplesmente, o contexto em que ela ocorria na conscincia(Marx e Hillix,1993:175). Mas seria o significado sinnimo de conscincia? Marx e Hillix, citando Titchener, escrevem que: (...) o significado pode ser, principalmente, uma questo de sensaes dos sentidos especiais, ou de imagens, ou de sensaes cinestsicas, ou de outras sensaes orgnicas, de acordo com o que exija a natureza da situao. (...) Mas o significado ser sempre um significado consciente? Certamente que no; o significado pode ocorrer em termos puramente fisiolgicos (ibid). 38

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verdadeiro piv de sua teoria sobre a memria (idem:262). Isso porque ganhar destaque no livro de Ribot as amnsias peridicas e a ciso histrica, justamente patologias que no facilmente se adequariam a um modelo de amnsia que se resumisse s amnsias de fixao, que seriam de modo geral aquelas que responderiam pelas desordens de origem orgnica, dizendo respeito aos problemas de memorizao (idem:263). Elas estariam muito mais prximas dos problemas de rememorao, assim como as amnsias de evocao e as amnsias temporrias (ibid). Essa distino entre memorizao e rememorao1 nos lana no terreno propriamente psicolgico na medida em que, como j citamos, para Ribot a localizao no passado que seria da ordem psquica. E esse acesso que se faria segundo pontos de orientao (idem:261), que significam na prtica um encurtamento da distncia entre a lembrana e o evento que ela representa, de modo que o tempo de acesso lembrana no seria o mesmo que se passou entre o evento e o momento de sua recapitulao. Nem o passado apresentar-se-ia tal como ele teria sido, mas segundo pontos privilegiados a partir dos quais ele recapturado. Logo, o quadro que a memria nos d do passado (...) por sua vez enganador e exato - ele tira sua exatido da iluso mesma(ibid). O que foi apresentado at aqui parece ser suficiente para nos mostrar a impossibilidade de tratar a memria como se fosse constituda de um modo nico e homogneo. Do laboratrio clnica, da filosofia psicologia, nos deparamos com questes que sem dvida no deixam de ressoar entre si, mas que procedem segundo uma lgica interna peculiar, multifacetando o que ingenuamente poderia ser entendido sob o termo memria. No entanto, notamos claramente como a memria ora entendida como uma capacidade de armazenamento e reproduo de informaes, ora associada a uma capacidade de ressignificao e/ou localizao de um determinado evento no passado.1 interessante perceber que semelhante distino tambm foi proposta por Lacan e, de certa forma, guardando as mesmas definies (cf. Lacan,1985:234; tb. infra, cap.VI). 39

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Ainda poderamos acrescentar que ora ela descrita como guardando uma relao de identidade com o evento do qual ela a recordao, ora descrita como semelhante, no idntica a um determinado evento, marcada por traos que podem mesmo chegar a falsific-lo, mas nem por isso deixando de represent-lo sua maneira (ver supra, sobre Ribot). a partir dessas consideraes que prosseguiremos para verificar como esse tema apresentou-se inicialmente ao pensamento de Freud, tendo em vista , em particular, a importncia do a posteriori, de modo que se possa melhor compreender o seu papel na teoria psicanaltica. Seria ele apenas a capacidade de ressignificar o passado? A traduo inglesa deferred action, e conseqentemente as tradues para o portugus de ao retardada ou ao preterida, seriam elas adequadas? Tendo em vista que Freud jamais estudou a memria enquanto tal (cf.Mervant,1989:266), talvez seja preciso seguir a distino de Mervant, para quem da psicologia psicanlise a clnica da memria como faculdade se substitui (...) [a] uma clnica das relaes do sujeito com suas lembranas (idem:267), de modo que possamos delinear as diferenas que se fazem necessrias. E o estatuto mesmo dessas lembranas que esperamos colocar em destaque atravs do nachtrglich freudiano, onde parece prefigurar-se um ponto de criao ex-nihillo (Lacan,1988:258,260 e 261), a partir do qual a cadeia significante funda-se e articula-se como tal. Desse modo, as lembranas no deveriam mais ser tomadas simplesmente como um desenrolar despretensioso sobre o qual viramos nos instalar e de onde narraramos uma histria. A referncia a um ponto de criao ex-nihillo faz meno a criao de uma histria, ordenamento significante, assim como a produo de um resto, de um resduo, que permaneceria para alm da prpria cadeia significante. Assim, a memria responde paradoxalmente tambm pelo que no se pode encontrar de traos positivos, representao, apontando para uma insistncia a partir da qual, talvez, possamos considerar a rememorao como algo mais do que simplesmente um no querer esquecer.40

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II. Entre o Somtico e o Psquico

Locus suspectus

Nem no meio ambiente nem na hereditariedade eu consigo encontrar o instrumento exato que me formou, a prensa annima que estampou em minha vida uma certa marca d'gua complexa cujo desenho singular se torna visvel quando examino o papel almao da vida contra a luz da lmpada da arte. V. Nabokov

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Afirmvamos no captulo anterior que a memria no se constituiria per se como tema de investigao para a psicanlise, sendo o acento colocado sobre a relao entre sujeito e lembrana. Da a pergunta: seria a memria algo mais do que um processo de atualizao de eventos, oportunidade de repetio do passado, proporcionada alteraes permanentes do sistema nervoso? J passamos em revista o que no sculo XIX poderia ser entendido sob o termo memria, e como se procedia sua investigao. Salientamos que os fenmenos ditos patolgicos (histeria, amnsia, afasia) propiciaram um novo campo de estudo, onde, apesar de tudo, as questes localizacionistas adquiriram certo vigor. Mas, esses mesmos fenmenos pareciam complicar sobremaneira uma explicao simplificadora e reducionista de suas manifestaes. dessa forma, por exemplo, que H. Jackson nos fala de um afsico que sob um determinado contexto - um incndio diante do hospital - conseguiu pronunciar a palavra fogo (Rosenfield,1994:73). Do mesmo modo, h relatos de como as amnsias histricas podiam ser desfeitas sob hipnose, descobrindo-se a inclusive um fato importante para a sua patologia. Assim, como proceder para compreender esses distrbios da memria que, em alguns casos, no tm como chave privilegiada um endereo certo no crebro? a partir desses problemas que podemos acompanhar um certo redirecionamento que a questo da memria ir ter no prprio sculo XIX, de modo que Janet, por exemplo, ir defini-la como conduite du rcit [conduta de narrao] por

(cf.Carroy,1995:756). interessante que embora as diferenas tericas entre Janet e a dupla Breuer/Freud sejam ntidas (cf.Freud,1987:53-55), no se pode deixar de notar pontos de convergncia, como na definio acima, que guarda uma estreita correlao com toda a argumentao apresentada na Comunicao Preliminar e nos Estudos Sobre a Histeria sobre a talking cure. De fato, o prprio Janet chega a incluir uma nota favorvel Comunicao Preliminar em seu artigo Algumas Definies Recentes da Histeria, publicado nos Archives de Neurologie [1893] que posteriormente seria utilizado como42

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captulo final de seu livro LEtat Mental des Hystriques, publicado em 1894 (cf.Freud,1988:21). O que est implcito na conduite du rcit de Janet que a cura visa lhe permitir [ histrica] ser capaz (...) de narrar em lugar de reviver e de repetir(Carroy,op.cit.:756). Ainda que pudssemos notar na definio acima uma certa equivalncia com as

propostas de Freud e Breuer, onde salta aos olhos a idia de um passado aparantemente esquecido, presente, contudo, pelo vis dos sintomas, h que se notar, todavia, as diferenas que os separam. A primeira delas centra-se no fato de que as hipteses de Breuer diziam respeito capacidade da paciente fazer uso de uma narrao depuratria ou catrtica, induzida por sua vez atravs da hipnose. Vale a pena notar que, apesar da trajetria terica divergente que marcou posteriormente a separao de Breuer e Freud, a Breuer que Freud credita ser a fonte de onde teria forjado a sua clnica (cf.Freud,1988:20). Ainda poderamos focalizar o ponto de divergncia entre Janet e Breuer/Freud de modo mais preciso. a prpria definio da histeria que torna remota qualquer possibilidade de aproximao entre eles. Para Janet a histeria seria marcada pelo regresso a um funcionamento mental dissociado mais primitivo (talvez possamos perceber aqui ecos das premissas evolucionistas de Ribot, de quem Janet foi aluno), de modo que a terapeutica ser marcada no s pela tentativa de resgate de uma lembrana aparentemente esquecida, mas mais ainda, sendo necessrio atravs da hipnose mudar as prprias lembranas para que um efeito de cura seja alcanado. H que se notar, porm, que a oposio de Freud a esta definio de histeria no teria impedido-o de utilizar-se no nvel da tcnica, durante algum tempo ao menos, dos mesmos expedientes. Para Breuer, a origem da histeria liga-se a uma experincia vivida sob estado hipnide. Ou seja, um estado de suspenso que caracterizar-se-ia por fundar-se parte da corrente associativa consciente, sendo, portanto, indicador de uma clivagem no psiquismo. A terapeutica diria respeito ento possibilidade de reviver e rememorar a43

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lembrana de modo a ab-reagir a cota de afeto a ela ligada. Todavia, talvez pudssemos notar em comum nas hipteses de Breuer e Janet uma tentativa de ultrapassamento do modelo neurolgico que parecia predominar notadamente nos estudos dos distrbios psquicos. Ainda que Freud no tenha compartilhado por muito tempo dos estados hipnides (cf. As Psiconeuroses de Defesa e Estudos sobre a Histeria), no menos certo que a noo de uma clivagem da conscincia, tal como pode ser apreendida dessa teoria, no tenha sido importante para suas consideraes. Freud salienta contudo o aspecto de representao incompatvel, formulado atravs do conceito de histeria de defesa. Desse modo so as hipteses de Janet, que invariavelmente apontavam para uma (...) fraqueza inata da capacidade de sntese psquica e uma estreiteza do campo da conscincia (Laplanche e Pontalis,1988:219), que encontram-se inteiramente desconsideradas. Entretanto, quando mencionamos a conduite du rcit de Janet, foi-nos quase impossvel no ver ali uma preocupao que era tambm a de Freud, ou seja, a de que pelo vis da fala o paciente deveria poder elaborar a recordao plena de afeto, fruto da incapacidade de sntese psquica, para um, ou da experincia que no conseguiu outro destino seno seu isolamento psquico, para o outro. Mesmo alguns anos depois do perodo de uso do mtodo catrtico, em que Freud fazia uso da hipnose calcado nos pressupostos de Breuer, vamos encontrar ainda nele definies quanto tcnica que concedem um valor todo especial rememorao. desse modo que em Recordar, Repetir, Elaborar [1914], ao distinguir a tcnica analtica daquela que dizia respeito ab-reao, ainda assim, ele afirmava que O objetivo destas tcnicas diferentes, naturalmente, permaneceu sendo o mesmo. Descritivamente falando, trata-se de preencher lacunas na memria; dinamicamente, superar resistncias devidas represso (Freud,1969:193). Esse prencher as lacunas da memria nos lana diretamente ao que havamos citado anteriormente atravs de Assoun (ver supra, cap.I), onde ele comentava a relao44

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causa/efeito,

contedo

latente/manifesto,

significado/significante,

para

situar

corretamente o que seria a interpretao [ Deutung] em Freud; e como sob essa noo poderamos ver o modo pelo qual Freud contorna a querela compreenso/explicao. Pois, todo esse procedimento interpretativo objetiva precisar o nexo que ligaria o efeito sua causa, do mesmo modo que sob os auspcios da memria no encontraramos outra coisa que os determinantes da condio patolgica atual. Todavia, ao nos determos somente nessa explanao, talvez no pudssemos notar que em geral ao falarmos da memria em Freud devemos necessariamente acentuar o aspecto de hiato que marca a relao entre a experincia e sua lembrana. Desse modo o percurso de uma outra no seria passvel de uma verificao emprica. Ao contrrio, dar-se-ia segundo uma sutil relao de foras que no exclui componentes de construo (tal como definido por Freud em Construes em Anlise) e de fantasia, que necessariamente compem o quadro onde a interpretao tem lugar. Contudo, se concordamos que a questo da memria para a psicanlise afasta-se de uma problemtica que diria respeito pura e simplesmente reproduo de um fato, estaramos autorizados a dizer que ela seria da ordem da inveno? A memria seria como uma construo que encontra seu lugar no passado posteriormente, e ao dar conta de um passado, como numa histria com comeo, meio e fim, resolve todos os dilemas do sujeito, redundando num final de anlise, onde tudo teria sido explicado? Aqui poderamos retomar o vnculo objetivo a que Assoun faz meno (ver supra, cap.I) a propsito da interpretao. Por um lado, que poderamos chamar emprico ou positivo, ele indica o risco de empobrecer a interpretao, remetendo-a a eventos que teriam de antemo existido, tentativa de reconstituir os elos que levariam do efeito causa. Por outro, nos d uma primeira indicao de que determinadas articulaes impem-se, e a interpretao no est aberta a todos os sentidos. Como Lacan nos lembraria mais tarde, numa passagem que no podemos deixar de ligar ao que estamos

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dizendo aqui, a vida no um sonho, e a psicanlise no um idealismo (cf.Lacan,1990:55).

Os primeiros passos de FreudEssas questes, que apontam para um certo embarao a propsito de temas como tempo, memria e causalidade, esto presentes em Freud desde o incio de suas elaboraes sobre as neuroses. Vemos, por exemplo, em seu texto Histeria [1888] definir essa patologia como doena orgnica, assim como creditar uma influncia decisiva hereditariedade, sendo a manifestao desencadeada pela presena de agents provocateurs. Sobretudo, ele sublinhar a distncia que caracteriza a experincia e o efeito traumtico ao dizer que:(...) A evoluo dos distrbios histricos muitas vezes exige uma espcie de incubao, ou melhor, um perodo de latncia, durante o qual a causa desencadeante continua no inconsciente (Freud,1990:100,grifo nosso).

Do mesmo modo, em seu artigo Hipnose [1891] ele afirma que:

A observao dos pacientes mostra que, em regra geral, as impresses psquicas necessitam de certo tempo, de um perodo de incubao, a fim de efetuarem uma modificao fsica (Freud,1990c:170).

Esse recurso a um perodo de incubao, ou um perodo de latncia, ou ainda perodo de elaborao, reporta-se ao uso que Charcot fazia desses termos ao postular a histeria traumtica. Nela haveria um hiato entre a experincia traumtica e seu efeito,

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sendo a causa reconhecida, contudo, na violncia do primeiro termo e no no intervalo temporal propriamente dito (cf.Gondar,1995:50). Nessa fase do pensamento freudiano com que nos deparamos, a histeria parece estar prxima de dois fatores que se interligam, e que poderamos enumerar: primeiro, uma lembrana entendida como revivescncia alucinatria de uma cena traumtica; segundo, a idia de um trauma psquico como uma intensidade com a qual o sujeito seria incapaz de lidar, intensidade que seria o prprio contedo da lembrana (cf.Freud,1990d:203). No entanto, na mesma passagem onde Freud comenta esses fatores, ele nos diz tambm que a irrupo da histeria no sujeito poderia ser devido no s intensidade do evento em si, mas a sua ocorrncia em um momento particular (ibid). Poderamos notar aqui, talvez, uma inclinao para as postulaes de Breuer sobre os estados hipnides e sua correlao com o estabelecimento de um efeito patognico, mas, por outro lado, j o anncio da busca de uma etiolgico da histeria. especificidade para o fator

Especificidade que ser circunscrita posteriormente como

pertencente ao campo sexual, marcando desse modo um afastamento tanto de Breuer, como de Charcot. Vale notar que at 1897 a questo do trauma ser uma constante em Freud, sofrendo a partir da uma modificao em funo do abandono da teoria da seduo. Trauma, lembrana e intensidade parecem desse modo indissociavelmente ligados, sendo ainda a lembrana como que a portadora dessa experincia que o sujeito no teve como desvencilhar-se. Assim falvamos, quanto origem do trauma, de um momento particular, e agora tambm da lembrana como portadora dessa experincia, do mesmo modo que percorre de um extremo ao outro a idia de intensidade. curioso que se nos detivermos sobre cada um desses aspectos talvez fssemos conduzidos a concluses inteiramente divergentes a respeito de uma mesma questo. Se acentudado um momento particular a respeito da experincia traumtica, seu estatuto seria definido em funo da relao estabelecida com outros eventos que47

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colaborariam para esse resultado, como que por somao, por exemplo. Poderamos do mesmo modo ressaltar a constituio (biolgica ou emocional) do indivduo que facilitaria o resultado traumtico de uma experincia. Por outro lado, ao falarmos da lembrana como uma revivescncia acentuamos um aspecto que diz respeito a recapitulao ou reproduo de um determinado evento (ou de pelo menos parte dele). O interessante que nesse momento Freud no parece excluir ambas as hipteses, de modo que elas comparecem como possibilidades perfeitamente capazes de coexistir:O contedo da lembrana geralmente ou um trauma psquico, que,

por sua intensidade, capaz de provocar a irrupo da histeria no paciente, ou um evento que, devido sua ocorrncia em um momento particular, tornou-se um trauma (ibid).

Essas mesmas questes so recolocadas no Esboo para a Comunicao Preliminar [1892], onde de sada Freud chama a ateno para a importncia da elaborao de uma teoria da memria (Freud,1990e:214). Alm disso ele escreve que o elemento constante e essencial de um ataque histrico o retorno de um estado psquico que o paciente j experimentou anteriormente - em outras palavras, o retorno de uma lembrana (idem:219). E continua: A lembrana que forma o contedo de um ataque histrico no uma lembrana qualquer; o retorno do evento que causou a irrupo da histeria - o trauma psquico (ibid). Dessa origem tantas vezes retomada, tantas vezes quantos forem os ataques histricos, podemos reconhecer quase as mesmas questes que comentvamos no texto anterior de Freud. Aqui, porm, essa lembrana que forma o contedo de um ataque histrico dita tambm inconsciente e localizada, portanto, como fazendo parte de um segundo grupo psquico. Por isso a necessidade de trazer essa lembrana inteiramente conscincia normal (idem:220). O corolrio, que se tornar famoso nos Estudos sobre a

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Histeria, que os ataques histricos so impresses que no conseguiram encontrar uma descarga adequada (idem:222). At aqui temos notado como as referncias lembrana, no que dizem respeito a etiologia da histeria, aparecem ligadas de modo indissocivel questo do trauma. Mais do que nos perguntarmos sobre sua natureza, devemos nos manter atentos para o que possa vir a ser entendido sob a denominao de lembrana. Isso porque em mais de uma oportunidade notamos que o contedo da lembrana ligada a um ataque histrico tem sido caracterizado como dizendo respeito, no mnimo, a um fragmento da experincia traumtica. Quer dizer, aquela que o sujeito no pde elaborar, ou que, enfim, no conseguiu encontrar uma descarga adequada, permanecendo no psiquismo e promovendo os sintomas. A lembrana aparece ento como a atualizao de um sem-sentido (ou intensidade) com o qual o sujeito v-se obrigado a deparar-se de tempos em tempos. Mas a, voltamos a andar em crculos. Pois, seria o caso de falarmos a respeito de uma lembrana que ela lembrana de alguma coisa, lembrana de uma experincia, de um evento, de algo enfim. No entanto, o que vimos at esse momento nos permitiria

dizer que a lembrana traduz-se sobretudo em termos confusos, imprecisos, ou at mesmo no se apresenta em termos positivos, como representao, mas faz-se presente em termos de intensidade. E o esforo de Freud, Breuer e at mesmo Janet, o de tornla consciente ou permitir que algo a seu respeito possa ser dito. Quase sem ser percebido foi feito j um pequeno movimento. Estamos tratando da lembrana como se tratssemos da prpria experincia, j que uma parece ser a representante da outra, sendo sua caracterstica principal a de nunca apresentar-se de modo completo ou ntido. Seria essa caracterstica um limite ou o ponto de partida para falarmos da memria na psicanlise? Se falvamos em atualizao, ela poderia ser entendida como a permanncia da experincia (traumtica)? Ou seria o caso de

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afirmrmos que comea a delinear-se no horizonte freudiano uma idia de passado que se constituiria imanentemente ao seu prprio movimento de elaborao no presente? O importante a ser mantido em vista diz respeito a influncia do conceito de a posteriori sobre o de memria e vice-versa. Se um assinala a constituio do trauma e o outro aponta para os caminhos da rememorao, fcil notar que nem um nem outro deixam de apontar para um limite, que se traduz comumente por um impossvel de dizer, que um impossvel de lembrar, onde a cura no caminha necessariamente no mesmo passo que o levantamento de fatos ligados vida do sujeito.

Intensidade e lembranaNessa medida o Rascunho K (anexo carta 39 a Fliess de 01/01/1896), posterior ao Projeto, traz referncias explcitas problemtica que toca o a posteriori. No mesmo momento em que vai buscar alternativas hiptese da hereditariedade como fator

fundamental para a manifestao histrica, ele afirma que:

nisso, realmente, que se concretiza a possibilidade de uma lembrana ter, posteriormente, uma capacidade de liberao maior do que a produzida pela experincia correspondente. Somente uma coisa necessria para isto: que a puberdade se interponha entre a experincia e sua repetio na lembrana -evento que tanto aumenta o efeito de revivescncia (Freud,1990f:308).

Essa referncia parece vir ao encontro do que usualmente o prprio Freud, e com ele a comunidade psicanaltica em geral, prope para a compreenso do nachtrglich. De

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sada, coloca em destaque um novo vis para a relao causal, onde no caberia um efeito linear tal como poder-se-ia entender comumente por relao causa-efeito. Mas, ao nos determos exclusivamente na citao acima, somos colocados diante da possibilidade de compreenso do conceito de a posteriori apenas como ao diferida. Ou seja, ao adiada em funo de um outro evento, no caso a puberdade, que como por um efeito de adio, viria possibilitar ao primeiro todo o seu efeito patognico (cf.Laplanche e Pontalis,1988:445). Poderamos reformular o pargrafo precedente do seguinte modo: at que ponto necessria a associao entre o a posteriori e a puberdade? Estaria a relao evento e lembrana (traumtica) restrita nica e exclusivamente a esse episdio do desenvolvimento humano? O prprio J. Strachey procura explicitar essa argumentao ao afirmar que: (...) segundo a teoria usual de Freud, era a interposio da puberdade entre uma experincia sexual precoce e a primeira lembrana dessa experincia que tornava possvel a existncia das neuroses(Freud,1990g:322). nessa perspectiva que na Carta 46 a Fliess (30/05/96), Freud parece sintetizar todas as argumentaes anteriores entre trauma, intensidade e lembrana ao afirmar que:

O despertar, numa poca posterior, de uma lembrana sexual de poca precedente produz um excesso de sexualidade na psique, o qual atua como uma inibio do pensamento e confere lembrana e s conseqncias desta um carter obsessivo - impossibilidade de ser inibido (idem:319).

Sem dvida a pergunta que nos ocorre agora justamente aquela que diz respeito correta contextualizao do conceito de a posteriori. Ser que mesmo sob a pena de Freud, e nesse perodo sobre o qual nos detemos, estaria esse conceito apenas51

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determinado por uma variao, biolgica e/ou psquica, em todo caso ligada ao desenvolvimento do indivduo? curioso que no prprio texto que citvamos, Freud nos brinde com uma frase que no deixa de ser intrigante, e que ao mesmo tempo, de certa forma, aponta para a necessidade de aproximarmo-nos de outras referncias para uma melhor apreenso do que seja o a posteriori. Ele diz que o recalcamento e a formao de sintomas defensivos s ocorrem posteriormente, em conexo com a lembrana (...) (Freud,1990f:318). Na verdade se mantivermos ao nosso alcance a idia de que a lembrana adquiriria sua intensidade, e, conseqentemente, seu efeito patognico devido interposio da puberdade, que forneceria os elementos necessrios para uma ressignificao do primeiro evento at ento andino, essa frase no nos propiciaria susto algum. Mas, e a pergunta nos volta com insistncia, estaria toda a novidade do a posteriori, que consiste num descentramento da causa ao efeito, restrita de fato aos efeitos propiciados pela puberdade? Episdio que em conexo com a lembrana forneceria a esta uma marca indelvel que de sada a foraria a ser algo mais que a prpria experincia original? Uma das crticas apresentadas em favor de um certo abandono do conceito de a posteriori pauta-se no fato de que, em suas linhas gerais, ele teria sido elaborado antes das formulaes da teoria sexual infantil de Freud, e, conseqentemente, antes dele mesmo reconhecer o papel desempenhado na produo das neuroses pelos impulsos sexuais j presentes na tenra infncia (cf. nota de J. Strachey em Freud,1988:150). O curioso que no prprio Freud o uso do a posteriori vem a ter um lugar de destaque no relato do caso clnico do Homem dos Lobos publicado em 1918, portanto, numa poca onde a primeira fase de sua teoria j se encontrava perfeitamente consolidada.

Lacuna e psique

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Quanto frase de Freud que citvamos acima, talvez seja necessrio nos determos um pouco mais sobre ela. Nessa passagem do Rascunho K, Freud nos fala de uma lacuna na psique como primordial na etiologia histrica, ao mesmo tempo em que ressalta que o recalque deve-se a intensificao de uma idia limtrofe que justamente recebe esse nome porque, de um lado, pertence ao ego e, de outro, forma uma parte no-distorcida da lembrana traumtica (Freud,1990f:318, grifo nosso). Ele continua, esclarecendo que essa idia-limite que representa a lembrana da experincia traumtica no fluxo do pensamento, no se manifesta numa substituio com base em alguma categoria de tema, mas num deslocamento da ateno ao longo de uma srie de idias ligadas pela simultaneidade temporal (ibid). Essas passagens nos so de valia na medida em que nos permitem situar melhor duas sries com que vnhamos procurando trabalhar at agora. Primeiro, a idia do a posteriori como propiciadora de uma inverso da relao usual causa-efeito, onde no estaria o efeito contido, a princpio, no que poderia ser suposto como sua causa. Ou seja, se h em alguns casos de histeria um intervalo temporal para a manifestao sintomtica, no porque haveria de sada uma causa e seus desdobramentos, mas, um pouco diferente, o vocbulo nachtrglich enfoca a permanncia de uma conexo entre o agora e o momento de ento, mantendo ambos interligados(Hanns,1996:83). Segundo, se entre evento e experincia traumtica, ou entre evento e lembrana, h uma distncia no tempo, a memria parece ser o lugar de uma repetio despojada de qualquer inclinao reducionista, que pudesse ser traduzida como sendo uma reproduo da experincia original. Sublinhar esse aspecto tambm uma tentativa de fidelidade ao nachtrglich, que na lngua alem implica no s que algo permanece latente e se manifesta posteriormente, como tambm que algo refeito/remodelado por acrscimo/retorno. (ibid). Do que citvamos a respeito da idia limtrofe, devemos reter que por constituirse como uma formao de compromisso (cf.Freud,1990f:318) ela no s atende ao ego, e53

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poderamos dizer traduz-se em imagens as mais diversas, mas tambm forma uma parte no-distorcida da lembrana traumtica, ou seja, relaciona-se diretamente com o que Freud chama nesse texto uma lacuna na psique(ibid). Poderamos nos fazer ento a partir da duas perguntas: Poderamos melhor especificar a natureza das imagens em jogo nas lembranas? E ainda, qual o estatuto dessa lacuna na psique? na Carta 52 (06/12/1896) a Fliess que vamos encontrar novas pistas a respeito das questes que temos levantado at aqui. Freud escreve:

(...) estou trabalhando com a hiptese de que nosso mecanismo psquico tenha-se formado por um processo de estratificao: o material presente em forma de traos da memria estaria sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo segundo novas circunstncias -a uma retranscrio. Assim, o que h de essencialmente novo a respeito de minha teoria a tese de que a memria no se faz presente de uma s vez, mas se desdobra em vrios tempos; que ela registrada em diferentes espcies de indicaes (Freud,1990h:324).

O mecanismo psquico que Freud nos apresenta na Carta 52 dividido em cinco partes1: Wahrnehmungen [percepes] e Bewusstsein [conscincia], ocupando as extremidades do aparelho. Poderamos representar o funcionamento da primeira tal como aquele das lentes num instrumento tico, um meio de passagem de impresses sensrias. Apesar da distncia espacial no esquema, haveria uma proximidade entre percepo e conscincia na medida em que esta encontrar-se-ia destituda de qualquer caracterstica que significasse uma condio de possibilidade de juzo. Distino que j havia sido formulada no Projeto, onde percepo e memria deveriam necessariamente corresponder a mecanismos diferentes, uma vez que no se poderia conceber um acmulo1 Para o que se segue, cf. Freud,1990h:325-326. 54

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de funes sobre um mesmo registro. Da a concluso que a conscincia e a memria so mutuamente exclusivas(idem:325, ver tb. comentrios de Breuer e Strachey em Freud,1988:198); Wahrnehmungszeichen [signos de percepo]: primeiro registro, associaes por simultaneidade; Unbewusstsein [inconscincia]: segundo registro, disposto de acordo com outras relaes, talvez ca