ciúme na psicanálise e na literatura

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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASILIA – UniCEUB FACULDADE DE CIÊNCIAS DA SAÚDE - FACS CURSO DE PSICOLOGIA CIÚME NA PSICANÁLISE E NA LITERATURA THIAGO DAMACENA DE OLIVEIRA PEREIRA SOARES BRASÍLIA, DEZEMBRO/2007

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  • CENTRO UNIVERSITRIO DE BRASILIA UniCEUB FACULDADE DE CINCIAS DA SADE - FACS CURSO DE PSICOLOGIA

    CIME NA PSICANLISE E NA LITERATURA

    THIAGO DAMACENA DE OLIVEIRA PEREIRA SOARES

    BRASLIA, DEZEMBRO/2007

  • ii

    THIAGO DAMACENA DE OLIVEIRA PEREIRA SOARES

    CIME NA PSICANLISE E NA LITERATURA

    Monografia apresentada como requisito para concluso do curso de graduao de Psicologia da Faculdade de Cincias da Sade do UniCeub Centro Universitrio de Braslia. Prof orientador: Marcos Abel

    BRASLIA, DEZEMBRO/2007

  • iii

    THIAGO DAMACENA DE OLIVEIRA PEREIRA SOARES

    Braslia, 12 de dezembro de 2007

    BANCA EXAMINADORA

    ______________________________ Marcos Abel

    _______________________________

    Sandra Baccara

    _______________________________ Francisco Cechin

  • iv

    Dedico aos meus amados pais pela educao e carinho, aos meus irmos pela compreenso e aos meus amigos pelo companheirismo. Tenho conscincia de que essa realizao no seria possvel

    sem a particular participao de cada um de vocs. Dedico este trabalho em especial Tatinha

    que provavelmente estaria realizando mais uma conquista, entretanto teve seus sonhos interrompidos.

  • v

    AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais pela base, pelo amor, pelos sacrifcios.

    Aos meus irmos pelo exemplo de filho, de cidado.

    Aos amigos Bruno, pela ajuda, Mrio, pelas impresses, Pedro, pelos livros

    devolvidos e Felipe pelos livros emprestados.

    primeira chefe Patrcia e gerente e amiga Lara pela primeira oportunidade e por

    serem exemplos de profissional, de garra, de tica. Gisela, pela sutileza, pelo

    respeito e pela ponderao. s minhas atual gestora Ana Carolina e analista

    Amanda Morais pela chance, pelos ensinamentos e pela compreenso, e tambm

    Esther, cuja participao nesse trabalho foi fundamental.

    equipe perfeita, Mandinha e Pri.

    Aos amigos conquistados na faculdade, pelos momentos de descontrao, de

    estudos, de ajuda e tambm de fora na dor, Nathy, R, Livinha, J, Tha, Polly e

    Daniel.

    Aos velhos amigos e amigas, que embora distante nunca perderam importncia.

    E sobre tudo, a Deus, porque sem Ele nada seria possvel.

  • vi

    Meu senhor, livrai-me do cime! um monstro de olhos verdes, que escarnece do prprio pasto que o alimenta. Quo felizardo o enganado que, cnscio de o ser,

    no ama a sua infiel! Mas que torturas infernais padece o homem que, amando, duvida, e suspeitando, adora.

    Shakespeare

  • vii

    SUMRIO

    1 INTRODUO 9

    2 CIME NA PSICANLISE

    2.1 Cime e complexo de dipo no menino 12 2.2 Cime infantil 15 2.3 Cime e complexo de dipo na menina 18 2.4 Cime no Adulto 21 2.4.1 Cime Competitivo ou Normal 21 2.4.2 Cime Projetivo 23 2.4.3 Cime Delirante 24 3 PSICANLISE E LITERATURA

    3.1 Psicanlise em Extenso 28 3.1.1 Freud e a Arte da Literatura 30 3.1.2 Freud e Machado de Assis 31 3.2 Anlise da Obra 31 3.2.1 Dom Casmurro 32 3.2.2 Consideraes 41 3.2.2.1 Ligao com a Infncia 41 3.2.2.2 Posicionamento Feminino 42 3.2.2.3 Sobre o Delrio do Personagem 43 4 CONCLUSO 45

    Referncias Bibliogrficas 48

  • viii

    RESUMO

    O presente trabalho tem como objetivo compreender o fenmeno psquico do cime atravs da psicanlise, e em extenso, entrelaando psicanlise e literatura. Este estudo dividido em duas sees e comea com uma reviso terica abordando o complexo de dipo no menino e na menina e sua importncia para a organizao e desenvolvimento psquico de qualquer pessoa, alm de sua contribuio para a formao do sujeito ciumento. Em seguida a teoria psicanaltica passa a ser explorada, especialmente segundo as postulaes freudianas em seu nico texto especifico sobre cime. Em 1920 Freud classifica o cime de acordo com trs tipos: Competitivo ou normal, projetado e delirante. So apresentados aqui, cada um dos trs tipos de cime com seus respectivos exemplos e as contribuies de outros autores, como Quinet, Klein, Santos e Delpierre. A segunda seo demonstra a relao entre o pai da psicanlise e a literatura, que constatada desde suas primeiras teorias. A seo, em seguida apresenta a obra de Machado de Assis, Dom Casmurro, em especial, o personagem que d nome ao livro, analisando-o e interpretando-o sob a luz da psicanlise. O clssico da literatura brasileira revela-se um documento clnico literrio pela consistncia psicolgica de seus personagens e que proporciona a aplicabilidade da teoria psicanaltica. Bento uma criana que cresce sem pai, com uma me superprotetora e que se apaixona pela vizinha, mas que estava prometido ao celibato. Com uma mente imaginativa, aps a primeira mordida de cime, Bentinho comea a traar uma teia de ruminaes que chegam a lev-lo ao delrio. Uma vez casado, o cime de Bento aumenta significativamente, chegando ao auge no episdio da morte de seu melhor amigo, um colega do tempo de seminrio ao projetar na esposa, uma possvel traio, que na verdade escondia seus prprios desejos inconscientes para com o amigo. Atravs do mecanismo de cime delirante, Bento passa a acreditar veemente na suposta traio de sua mulher, e faz isso para conseguir manter-se fiel a ela e no concretizar a sua prpria infidelidade. Seu cime consome-lhe a sanidade, levando-o a construo de um processo delirante que o acompanha at o solitrio final de sua vida. Como Freud afirmou e essa histria mostra, podem ser encontrados os trs tipos de cime em uma mesma pessoa. Palavras-chave: Cime, dipo, Dom Casmurro.

  • ix

    1. INTRODUO

    Cime, segundo o dicionrio Aurlio (1999), tem como sinnimo zelos, no

    plural. Santos (2003) diz que zelos proveio do latim zelmem, que derivou do grego

    zelosus e originou jealous e jalousie, que significa cime em ingls e francs

    respectivamente. Da mesma origem vm as palavras geloso e celoso, que tm o

    mesmo significado e que correspondem ao italiano e ao francs. No entanto, zelo no

    singular representa cuidado, dedicao, interesse, o que passa a idia de afeio e

    liga essa palavra origem de cime.

    Em nossa cultura o cime tem raiz judaico-crist. O prprio Deus j exigia

    exclusividade com no servir a dois senhores e amars a Deus sobre todas as

    coisas no Antigo Testamento em xodo captulo 20 versculo 3 5, revelando um

    sentimento de posse, ou zelo. Para Santo Agostinho, cime era prova de amor, o

    que colaborou para que o cime se tornasse mais aceitvel em nossa sociedade. Na

    cultura greco-romana, que se trata de outro pilar do mundo ocidental, o cime se

    revela de forma explicita. Na mitologia ele est relacionado inveja (SANTOS,

    2003).

    O polimorfismo desse sentimento revelado ao se analisar suas diferenas

    ao longo dos tempos. Na Bblia, no livro Nmeros 5.6 do antigo testamento, a lei

    sobre o cime condena a mulher a pagar por sua iniqidade (perversidade),

    mesmo sem prova alguma de traio, simplesmente por ter despertado o cime do

    marido. Na mitologia grega, o cime comparvel inveja, como mostra a raiva de

    Afrodite despertada pela beleza da mortal Psiqu. Para Eros, ainda na mitologia, o

    amor no poderia conviver com a suspeita. Otelo de Shakespeare devorado pelo

    monstro de olhos verdes numa metfora do cime. Tambm no faltam msicas

    nem to pouco crimes motivados por esse sentimento. Seja atravs da Bblia, da

    mitologia, da literatura, da msica ou dos crimes passionais, o cime, ora escuso,

    ora revelado, revela sua importncia h sculos.

  • 10

    Mantendo o cime como cerne, o presente trabalho visa melhor conhecer

    esse sentimento, que pode ser to avassalador e compreender suas origens, suas

    vicissitudes, seu desenvolvimento e suas possveis conseqncias. A metodologia

    utilizada a pesquisa bibliogrfica e a psicanlise em extenso, vertente que

    expande seu alcance para fenmenos da cultura, neste trabalho, especialmente,

    para a literatura. A abordagem psicanaltica do cime ser aplicada sobre Dom

    Casmurro (1889), obra de Machado de Assis, que mesmo escrita duas dcadas

    antes das teorias de Freud acerca do tema, de impressionante acuidade nas suas

    descries. O entrelaamento da teoria com tal obra almeja corroborar com a viso

    psicanaltica do tema.

    A seo 2 discorre sobre o cime na psicanlise. Dentre os psicanalistas,

    existe quase um consenso a respeito da importncia da infncia para a estruturao,

    organizao e desenvolvimento psquico. Iniciamos, portanto, com o complexo de

    dipo desde sua origem e sua diferenciao no menino e na menina. Os

    relacionamentos com o pai, com a me e/ou com os irmos nos primeiros anos de

    vida podem ser determinantes para a constituio de um sujeito ciumento. A ltima

    parte do captulo aborda, especialmente, as teorias de Freud no texto de 1922,

    Alguns mecanismos neurticos no cime, na parania e no homossexualismo. A

    obra rene as principais concepes do pai da psicanlise acerca do cime, que ele

    classifica em trs tipos: Competitivo ou normal, projetado e delirante. Sero

    discutidos cada um desses tipos, com exemplos e complementos de outros autores.

    Baseada na seo 2 parte-se para a seo 3 onde sero aplicadas as teorias

    j mencionadas no clssico da literatura brasileira. Mostrar-se- em princpio, a forte

    ligao que Freud tem com a literatura e a grande influncia da mesma em suas

    obras e teorias. Freitas (2001), demonstra que Freud era profundo conhecedor e

    admirador da literatura, e que desde sua origem, a psicanlise j contava com

    relatos e citaes de personagens para desvendar o inconsciente. Em seguida faz-

    se relaes entre Freud, pai da psicanlise e Machado de Assis, pai da Academia

    Brasileira de Letras, que, embora tenham vivido na mesma poca e em contextos

    diferentes no h indcios de ligao alguma entre eles. Entretanto, as obras do

    autor brasileiro so de tamanha densidade psicolgica, que mesmo antes das

    teorias de Freud, seus personagens j revelavam o inconsciente com exatido. Para

  • 11

    Tripcchio (2001), Dom Casmurro, um documento clnico-literrio extremamente

    rico e valioso por seu realismo e veracidade. Segue-se o restante do captulo

    relatando a histria de Bentinho, o conhecido Dom Casmurro. A infncia sem pai, a

    me super protetora, a promessa do seminrio, assim como a paixo pela melhor

    amiga e as mordidas de cime que progressivamente lhe tomaram a mente e lhe

    guiaram as atitudes. Sero utilizadas tanto as teorias psicanalticas, que se aplicar

    sobre tal obra, como tambm interpretaes anteriores de outros psicanalistas, com

    a finalidade de enriquecer o presente trabalho, de analisar e corroborar com as

    teorias postuladas.

  • 12

    2. O Cime na Psicanlise

    Meu propsito ajudar o melhor possvel as pessoas que vivem num constante inferno. No no alm, mas aqui mesmo na Terra... Minhas descobertas cientficas, minhas teorias e mtodos visam torn-las conscientes deste inferno, para que dele possam se libertar (FREUD, 1922).

    Neste captulo, sero abordados alguns fatores que atuam na construo e

    elaborao do cime.

    Com foco psicanaltico, ser visto que, nessa vertente de estudo, a infncia

    tem fundamental papel no desenvolvimento psquico do homem e da mulher no que

    diz respeito sexualidade, inveja, ao cime e s identidades masculina e feminina.

    A tese de Freud de que o cime anormal est intimamente relacionado

    neurose, parania e ao homossexualismo e suas distines, tambm sero

    tratados no final da seo.

    2.1 Cime e Complexo de dipo no menino

    Citado pela primeira vez em 1897 em uma carta de Freud destinada a Fliess,

    o complexo de dipo foi postulado como parte da teoria da sexualidade Infantil para

    explicar a influncia do comportamento sexual infantil no comportamento sexual

    adulto e a ligao entre eles. Para Moreira (2004), o processo de teorizao do

    complexo de dipo organizado em quatro momentos crescentes e constitui uma

    das problemticas fundamentais da teoria e da prtica psicanaltica. A cena edpica

    decisiva na constituio do sujeito segundo essa teoria. O dipo no seria

    somente o complexo nuclear das neuroses, como fora chamado a princpio, mas

    tambm o ponto estruturante para a sexualidade humana. Seria o processo de

    produo da sexuao, pois a partir do dipo que o sujeito se estrutura e organiza

    o que vir a ser.

  • 13

    O complexo de dipo, contudo, uma coisa to importante que o modo por que o indivduo nele se introduz e o abandona no pode deixar de ter seus efeitos. Nos meninos o complexo no simplesmente reprimido; literalmente feito em pedaos pelo choque da castrao ameaada. Suas catexias libidinais so abandonadas, dessexualizadas, e, em parte, sublimadas; seus objetos so incorporados ao ego, onde formam o ncleo do superego e fornecem a essa nova estrutura suas qualidades caractersticas. Em casos normais, ou melhor em casos ideais, o complexo de dipo no existe mais, nem mesmo no inconsciente; o superego se tornou seu herdeiro (FREUD, 1925, p. 139).

    Na mencionada carta Fliess, Freud faz a primeira analogia ao mito de

    Sfocles, abordando superficialmente a proibio do incesto, mas foi em outro

    momento que ele se ocupou mais do assunto. Totem e Tabu (1931) ampliou a

    discusso do complexo de dipo e trouxe o outro, o terceiro da trade que

    estabelecer a relao de alteridade, tirando o foco que estava no eu. nessa obra,

    atravs de um recurso mtico, que Freud coloca a origem da tica, da organizao

    social, da cultura e da religio como decorrentes de um pacto, projetando-o para o

    cultural (MOREIRA, 2004).

    O mito da horda primeva remonta transio em tempos arcaicos de uma modalidade de lao coletivo, em que haveria um pai tirnico possuidor de todas as mulheres, para uma cultura familiar regulada pelo interdito ao incesto e ao parricdio (SANTOS, 2006, p. 65).

    O pacto resultado da morte do pai da horda, que guardava para si todo o

    poder e todas as mulheres. O pai foi morto pelos prprios filhos revoltados e unidos

    na horda fraterna. Aps o crime, a culpa pela morte do pai e a nostalgia da proteo

    que o mesmo oferecia, fez com que os responsveis pelo parricdio fizessem um

    pacto que proibia o incesto e o assassinato, renunciando, assim, coletivamente, s

    mulheres e ao poder que o pai exercia, para preservar a ordem e a coletividade.

    Para preservar o pacto, foram criados os interditos, ou tabus, como no matar o pai

    e no desposar a me ou as irms, regulamentando a, a expresso dos instintos

    (SANTOS, 2006). Esse mito criado por Freud foi uma significativa etapa na

    construo da teoria do dipo. Totem e Tabu representa um momento decisivo nos

    movimentos de teorizao do dipo (MOREIRA, 2004, p.3).

    Freud (1938) mostra em um exemplo de trabalho psicanaltico que para a

    criana, o primeiro objeto ertico o seio da me, uma vez que a origem do amor

  • 14

    est relacionada necessidade de sua nutrio saciada que o seio lhe proporciona.

    Inicialmente, no h distino entre seu prprio corpo e o seio da me e quando

    este tem quer ser separado e deslocado de seu corpo, estando ausente, ele carrega

    consigo uma parte das cartexias libidinais narcsicas originais, como objeto. Freud

    (1938) argumenta ainda que, posteriormente, este primeiro objeto complementado

    na pessoa da me, que desperta na criana inmeras sensaes. Nos cuidados

    com o corpo do filho, a me se torna seu primeiro sedutor. Nesta relao, a me se

    estabelece como primeiro e mais forte objeto amoroso e como prottipo de todas as

    relaes amorosas que surgiro ao longo da vida.

    O objeto primeiro para a criana um objeto de necessidade. Progressivamente, ele se torna, com a ajuda da me, um objeto de desejo que a criana vai poder, progressivamente tambm, transferir para outro objeto. No cime patolgico, o objeto permanece no registro da necessidade e sua ausncia no garante mais a autoconservao. [...] O estatuto do objeto, que funo do momento traumtico ligado fixao do pequeno, primordial quanto forma que tomar a expresso do cime (LACHAUD, 2001).

    Na fase flica, o menino se torna amante da me e passa a sentir prazer

    com a estimulao manual de seu rgo sexual, j com a libido em

    desenvolvimento. O menino deseja a me e tenta seduzi-la mostrando-lhe o pnis

    que tem orgulho de possuir e sua masculinidade prematuramente despertada,

    procura ocupar o lugar do pai, fazendo deste ltimo, seu rival. A me, cedo ou tarde,

    probe o menino de manipular seu rgo genital. Tal proibio tem pouco efeito e a

    me ameaa tirar dele a coisa com que ele a est desafiando. Para se fazer

    acreditar, a me diz delegar ao pai a execuo do que seria cortar fora o pnis da

    criana, ameaa que s funcionar sob uma condio. Condio essa que,

    independente do momento, deve resultar na lembrana dos rgos genitais

    femininos e, conseqentemente, a percepo da ausncia da parte to valorizada

    por ele. Surge ento o complexo de castrao, que se trata do trauma mais srio em

    sua tenra idade.

    Com intuito de preservar seu rgo sexual, o menino renuncia posse da

    me, o que marcar definitivamente sua vida sexual. Caso esteja presente no

    menino algum componente feminino, sua fora aumentada pela intimidao da

    masculinidade do pai e, tal como a me, ele se submete a uma atitude passiva em

  • 15

    relao a este. No abandonando as fantasias sexuais, e sendo elas sua nica

    forma de satisfao, o garoto continua a se identificar com o pai, mas

    simultaneamente tambm com a me. Essas primeiras fantasias masturbatrias

    normalmente proporcionam o caminho para a construo do seu futuro ego e

    desempenha papel na formao de seu futuro carter.

    O pai em regra tem preferncia pela filha, a me pelo filho: a criana reage desejando o lugar do pai se menino, o da me se trata da filha. Os sentimentos nascidos destas relaes entre pais e filhos, e entre um irmo e outros, no so somente de natureza positiva, de ternura, mas tambm negativos, de hostilidade. O complexo assim formado destinado pronta represso, porm continua a agir do inconsciente com intensidade e persistncia. (FREUD, 1910, p. 43 - 44).

    2.2 Cime Infantil

    O nascimento de um irmo desperta na criana um sentimento de ter sido

    trada pelos pais. Surge ento raiva, dor, indignao, ressentimento, angstia de

    abandono, culpa e ferimento narcsico. Essas sensaes permanecem pulsando,

    ressoando dos primrdios at o fim da vida. O ser humano, ao nascer, est

    submetido s foras e tenses do corpo e do meio ambiente que, a princpio, no

    so distinguidas umas das outras. Posteriormente vem a necessidade de receber

    ateno, de sentir-se includo e reconhecido. Tais demandas e pulses precisam ser

    transformadas em figuras e fantasias, depois em palavras e memrias para poderem

    virar experincia vivida e comunicvel. Encontramos ento, o incio da vida psquica,

    das pulses aos nomes, s figuras e s memrias. sob este tecido primordial e

    inconsciente, que base da memria primria, que se assenta nossa vida

    psquica, formada por sentimentos e sensaes ilimitados e que disparam nossa

    revelia (CINTRA apud SANTOS, 2006).

    A infncia tem grande importncia na elaborao do estilo de vida. Os primeiros sete anos de vida que parecem insignificantes e sem peso representam em vez um valor capital. O choque dos primeiros obstculos sobre a cera infinitamente plstica do crtice cerebral gerar mais tarde o nosso modo de comportar-se (DELPIERRE, 1975, p. 49).

  • 16

    Segundo Cintra citado em Santos (2006), o cime demonstra a vontade de

    controlar e possuir exclusivamente para si a quem se quer bem. Essa demanda de

    exclusividade desperta o desejo de significar tudo para a outra pessoa, da mesma

    forma que torna insuportvel dividir a ateno da pessoa amada. O cime tambm

    traz consigo a angstia de ser excludo.

    Uma das tarefas mais difceis do crescimento superar a forma infantil de amar, que permanece pulsando na penumbra. A criana atemporal que vive escondida em ns exclusivista, possessiva, onipotente e no quer saber de autonomia e independncia do outro. (CINTRA apud SANTOS, 2006, p. 56).

    A me e as pessoas que cuidam do beb preenchem todas suas

    necessidades, pois so fonte de alimento e amor inesgotveis para a satisfao da

    criana e que ela no est disposta a dividir com ningum. Ainda sim, uma vez

    perdida a unidade pr-natal com a me, a amamentao, o colo e todos os

    carinhos parecem insuficientes. Por maior que seja o cuidado materno, a segurana

    e a plenitude da situao intra-uterina ser sempre maior. dessa diferena que

    surge a insatisfao, que nos acompanha desde o nascimento. Assim como a

    inveja, o cime nasce da saudade de um estado ideal, pleno da satisfao que se

    teve e foi perdida, misturado a um enorme ressentimento (CINTRA apud SANTOS,

    2006, p. 57).

    A precursora da clnica psicanaltica infantil, Melanie Klein (1975) exerceu

    grande influncia em Cintra, e tambm afirmou que a infncia tem papel

    fundamental na vivncia do cime. Klein (1975) acrescenta que nem todo cime

    decorrente da primeira experincia de rivalidade, referindo-se ao Complexo de

    dipo, afirmando que isso no basta como explicao. Ela explica que, de certa

    forma, repetimos as experincias de nossas infncias ao longo da vida. No entanto,

    h diferena entre os indivduos ao fazer isso e tal fato ocorre pela mesma razo

    que agimos no primeiro caso, mas que no encontramos maneira melhor de agir.

    Tambm para Delpierre (1961), o ciumento se assemelha a uma criana pelo

    seu modo de pensar incoerente. A criana dramatiza angstias do passado e

    antecipa situaes futuras, como de socorro ou proteo. A origem de to irracional

  • 17

    e intenso temor est na necessidade de sentimento de segurana. O Eu amado

    sente-se forte, enquanto o Eu abandonado sente-se frgil e exposto aos perigos.

    Para o ciumento ento, as representaes que seguem uma emoo so

    mascaradas pelo medo, smbolos e imaginaes que, na verdade, se tratam de

    resduos de uma percepo infantil do mundo.

    O cime seria, como a avareza, um resduo da infncia. A vista de um irmozinho ou de uma irmzinha enquanto so amamentados diferentemente um fator que provoca a associao da inveja e do cime (DELPIERRE, 1961, p. 78).

    Delpierre (1961) tambm diz que a criana, at a idade de sete anos,

    ciumenta por natureza. O cime direcionado ao irmo ou irm natural. O apego

    que a criana tem com os pais caracterizado pelo desejo de exclusividade. Dos

    trs aos sete anos a criana tem cimes de qualquer pessoa que se aproxima de

    seus pais.

    Na medida em que o cime represente uma reao de dio e agressividade a uma perda ou ameaa de perda, ele bastante simples e primrio, e to inevitvel quanto qualquer reao semelhante do mesmo padro (KLEIN, 1975, p.66).

    Klein (1975) justifica que a pessoa que no se sente ou no acredita ser

    amado, inconscientemente acha que no digno de amor, que odivel. Ele

    justifica em seu inconsciente que no bom suficiente, que foi negligenciado e

    abandonado pelo amado. A sensao de ser indigno resulta em depresso e

    sentimento de desvalia que so insuportveis, o que se explica tortura do cime.

    Com isso, as pessoas esforam-se para atenuar a dor, condenando e odiando o

    rival.

    A criana revela tambm um intenso sentimento de cime para com irmo e irms, na medida em que se apresentam como rivais no amor dos pais. Entretanto, ela tambm os ama, e assim novamente a esse respeito so despertados intensos conflitos entre impulsos agressivos e sentimentos de amor (KLEIN, 1975, p.91).

  • 18

    2.3 Cime e complexo de dipo na Menina

    J foi discutido o complexo de dipo no menino, agora trataremos do mesmo

    complexo na menina, assim como o complexo de Castrao, a fase pr-edipiana e

    suas conseqncias no sexo feminino.

    Freud (1931) discursa a respeito da fase pr-edipiana, que se trata da fase

    exclusiva de ligao da criana com a me. Essa fase tem nas mulheres importncia

    muito maior que nos homens. da sua ligao forte com a me e na tomada do pai

    como objeto, que deriva a feminilidade da mulher.

    O complexo de castrao nas meninas resulta, no do medo de perder, mas

    do fato de no ter recebido um pnis. Nas meninas, o complexo de dipo uma

    formao secundria. As operaes do complexo de castrao o precedem e

    preparam (FREUD, 1925, p. 138).

    Cords e Salzano (2004, p. 4) mostram que segundo Freud, essa condio de

    castrao na mulher se d pelo reconhecimento da falta do falo. Isso ocorre por trs

    caminhos:

    Pelo primeiro, ela renunciaria de forma geral sexualidade. A insatisfao com seu clitris impulsionaria a abandonar sua atividade flica e boa parte de sua inclinao masculina em outros setores. O segundo caminho, a fantasia de ter um pnis subsistiria, resultando em uma eleio homossexual de objeto. Pelo terceiro, a mulher tomaria o pai como objeto e alcanaria a forma feminina do complexo de dipo, o que a conduziria definitivamente conduta feminina normal. Pelo deslocamento de seu desejo do pnis por um beb, alcanaria atravs da maternidade sua realizao completa (CORDS & SALZANO, 2004, p.4)

    Seguindo essa viso, a criana do sexo feminino inveja os meninos desde o

    incio pela posse do pnis. Freud (1925) afirma ainda que todo desenvolvimento da

    menina se d sombra dessa inveja. Ela passa a efetuar tentativas de agir tal qual

    os meninos e frustra-se. Entretanto, posteriormente ela passa a se esforar para

    compensar a falta do pnis, o que pode conduzi-la a uma atitude feminina normal.

    Na tentativa de obter prazer com um menino atravs da estimulao dos rgos

  • 19

    genitais, a menina na fase flica normalmente fracassa e acaba por estender para

    todo seu eu, ou self, o julgamento de inferioridade de seu pnis atrofiado. Ela

    abandona a a masturbao para no se lembrar da superioridade do menino e

    fecha os olhos para a sexualidade. Se a menina persiste no primeiro desejo de se

    transformar em menino, poder em alguns casos, apresentar traos masculinos ao

    longo da vida e, em casos extremos, ser um fator a somar para que se torne

    homossexual manifesta. Outro desfecho o abandono da me que sempre amou,

    uma vez que culpa e no consegue perdoar a me por ter nascido incompleta,

    resultado da inveja que tem do pnis do menino. Esse ressentimento faz com que a

    menina abandone a me como objeto de amor e coloque o pai em seu lugar.

    Perdendo um objeto amoroso, a reao que se segue a de identificao.

    A identificao com a me pode ocupar o lugar da ligao com ela. A filha se pe no lugar da me, como sempre fizera em seus brinquedos; tenta tomar o lugar dela junto ao pai e comea a odiar a me que costumava amar, e isso por dois motivos: por cime e por mortificao pelo pnis que lhe foi negado. Sua nova relao com o pai pode comear tendo por contedo um desejo de ter o pnis dele sua disposio, mas culmina noutro desejo ter um filho dele como um presente. O desejo de um beb ocupou assim o lugar do desejo de um pnis, ou, pelo menos, dele foi dissociado e expelido (split off) ( FREUD, 1938, p. 207, grifo do autor).

    Percebe-se, agora, que o complexo de dipo e o complexo de castrao

    assumem formas opostas entre mulheres e homens. Fica claro que a ameaa de

    castrao d fim ao complexo de dipo no sexo masculino, enquanto no sexo

    feminino, justamente a falta do pnis que as impulsionam a entrar em seu

    complexo de dipo.

    Freud (1925), em Algumas conseqncias psquicas da distino anatmica

    entre os sexos, afirma que quando a mulher, ainda menina, percebe que no possui

    o pnis do menino e decide que quer t-lo, inicia-se um complexo de masculinidade.

    Tal complexo pode dificultar o desenvolvimento normal no sentido do

    desenvolvimento da feminilidade caso no seja superado a tempo.

    Ainda na mesma obra, Freud (1925) demonstra que a inveja do pnis, no

    absorvida, pode ter grandes conseqncias, como, por exemplo, um sentimento de

    inferioridade cicatrizado, que ocorre quando ela percebe essa ferida ao seu

  • 20

    narcisismo. Primeiramente, a ausncia do pnis vista como uma punio pessoal

    para si mesma. Depois de certo tempo a menina compreende a universalidade

    desse carter sexual, para em seguida compartilhar com os homens, o desprezo por

    um sexo que inferior e, ao sustentar essa opinio, a mulher persiste em ser como

    homem.

    Mesmo aps a inveja do pnis ter abandonado seu verdadeiro objeto, ela continua existindo: atravs de um fcil deslocamento, persiste no trao caracterstico do cime. Naturalmente, o cime no se limita a um nico sexo e tem um fundamento mais amplo, porm sou de opinio que ele desempenha um papel muito maior na vida mental das mulheres que na dos homens e isso se deve ao fato de ser enormemente reforado por parte da inveja do pnis deslocada. (FREUD, 1925, p. 315, grifo do autor).

    Freud (1925) complementa afirmando que a menina, aps a descoberta da

    insuficincia genital, passa a demonstrar cimes de outra criana, acreditando que

    sua me gosta mais dessa outra do que dela mesma. Essa crena suficiente para

    que a filha abandone sua ligao com a me.

    Para Freud (1925), o aspecto mais importante decorrente da inveja do pnis

    (ou da descoberta de inferioridade do clitris) para as mulheres a pouca tolerncia

    em relao masturbao. Essa significativa diferena, segundo ele, mesmo no

    podendo ser tomada como regra, consiste no fato de que enquanto os homens no

    se abstm em uma oportunidade de usar a masturbao como via de escape, as

    mulheres so incapazes de fazer o mesmo e ainda se esforam para evitar tais

    circunstncias.

    As reaes de indivduos humanos de ambos os sexos naturalmente se constituem em traos masculinos e femininos. No obstante, pareceu-me que a masturbao est mais afastada da natureza das mulheres que da dos homens e a soluo do problema poderia ser auxiliada pela reflexo de que a masturbao, pelo menos do clitris, uma atividade masculina, e que a eliminao da sexualidade clitoridiana constitui precondio necessria para o desenvolvimento da feminilidade (FREUD, 1925, p. 317).

    Mantendo como referncia mesma obra, Freud mostra no acreditar que a

    intensa averso surgida no perodo flico em relao masturbao, logo aps os

    primeiros vestgios da inveja do pnis do menino, seja unicamente influncia

  • 21

    educacional. Freud supe que a oposio feminina masturbao flica s poderia

    ser pela ferida narcsica causada pela humilhao relacionada inveja do pnis.

    No podendo, portanto, competir com os meninos por causa da distino anatmica

    dos sexos, melhor seria, para ela, abandonar essa idia. O reconhecimento dessa

    distino fora a menina a se afastar da masculinidade e da masturbao, o que a

    levar ao desenvolvimento da feminilidade. Essa feminilidade contendo resqucios

    de inveja do pnis predispe ao cime na mulher.

    2.4 Cime no Adulto

    Em Alguns mecanismos neurticos no cime, na parania e no

    homossexualismo, Freud (1922), diz que cime um estado emocional normal

    como o luto. Mesmo no sendo totalmente racional, nem resultado de um fato

    concreto, o medo de perder o objeto de amor, o sofrimento da ferida narcsica, a

    rivalidade e a autocrtica, so desencadeadores de um cime normal e controlado

    pelo ego consciente. O ego consciente tem resqucios intensamente enraizados no

    inconsciente e originados no desenvolvimento psquico da criana na relao

    edipiana, ou do primeiro perodo sexual. A anormalidade do cime deve-se sua

    intensidade exagerada e qualquer um est passvel de experiment-lo. A pessoa

    que acredita no possuir cime, na verdade, reprime-o, o que acarreta graves

    conseqncias para a vida mental inconsciente. Este cime anormalmente intenso

    constitudo de trs camadas. As trs camadas ou graus do cime podem ser

    descritas como cime (1) normal, (2) projetado, e (3) delirante. (FREUD, 1922, p.

    237).

    2.4.1Cime competitivo ou normal

    A primeira camada que trata do cime normal ou competitivo decorrente do

    Complexo de dipo ou do relacionamento com irmos na infncia, anteriormente

    citado. Sobre o cime normal Freud diz:

    fcil perceber que essencialmente se compe de pesar, do sofrimento causado pelo pensamento de perder o objeto amado, e da ferida narcsica, na medida em que esta distinguvel da outra ferida; ademais, tambm de sentimentos de inimizade contra o rival bem-sucedido, e de maior ou menor quantidade de autocrtica que procura

  • 22

    responsabilizar por sua perda o prprio ego do sujeito (Freud, 1922, p.237).

    Freud (1922) complementa dizendo que apesar dessa primeira camada do

    cime ser chamada de normal, ele no necessariamente originado em decorrncia

    de uma situao real, racional, sob controle do ego consciente. O motivo estaria

    significativamente enraizado no inconsciente, se tratando de uma continuao das

    manifestaes iniciadas da vida emocional da criana que originada no complexo

    de dipo ou de irmo e irm no primeiro perodo sexual.

    [...] Um doente de trinta e trs anos, atormentado h muitos anos pelo medo atroz de engolir fragmentos de vidro. H vrios meses ele quase no se alimentava, persuadido como estava de que no alimento havia pedacinhos de vidro. Quando consultou o psiquiatra achava-se em estado de desnutrio e de fome piedoso. Cresceu sempre dominado pelo medo e h muitos anos uma atmosfera intolervel, devida em parte sua fobia, reinava em sua casa. (...) Depois de alguns sedativos de psicanalistas, ele se lembra de um grande cime de uma irm nascida cinco anos mais tarde do que ele, e acaba revelando particulares muito significativos, nos quais ele se revela furioso contra a rival que lhe roubava o amor materno (DELPIERRE, 1961, p.105).

    Seguindo a concepo de Freud, Depierre (1961) reafirma que o cime um

    resqucio da infncia, de um amor possessivo, repetindo as exigncias do cime

    latente em relao me e reativando o cime da criana que fora despertado pelo

    irmo ou irm.

    O carter obsessivo do cime devido antes de tudo ao fato de que a situao real que despertou o cime causada por um antecedente de longa data que fora contido. A nova humilhao pe-se em primeiro plano ao passo que as velhas eclipsam-se na sombra (DEPIERRE, 1961, p. 76).

    Freud menciona, tambm, a possibilidade de algumas pessoas

    experimentarem, inconscientemente, um cime bissexual, onde o rival odiado e

    sua mulher o motivo do sofrimento, da mesma forma ama e sofre pelo rival e odeia

    a sua mulher, como rival. [...] um homem no sofrer apenas pela mulher que ama

    e odiar o homem seu rival, mas tambm sentir pesar pelo homem, a quem ama

    inconscientemente, e dio pela mulher, como sua rival (FREUD, 1922, p. 237).

  • 23

    Ao falarmos de bissexualidade psquica importante considera-la no necessariamente como uma experincia real e consciente, mas como algo que, em algum momento, fez parte das primeiras manifestaes psquicas de qualquer criana (ARREGUY apud SANTOS, 2000, p. 62).

    Delpierre (1961) contrape Freud e Arreguy ao afirmar que em qualquer caso

    de cime, e no apenas em alguns, existe mesmo que mnima, uma projeo de

    homossexualidade. O ciumento no se incomoda apenas porque sua mulher se

    interessa por outro, mas tambm porque o rival se interessa pela mulher e no por

    ele.

    2.4.2 Cime Projetivo A segunda camada, a do cime projetado, diz respeito aos impulsos da

    prpria infidelidade, tenham sido eles concretizados ou no, que passaram pela

    represso. O ciumento projeta os seus sentimentos de hostilidade ou de infidelidade

    com relao ao objeto sobre o prprio objeto (DELPIERRE, 1961, p. 74). Visto que

    os impulsos de infidelidade so comuns a todos, quem quer que tente neg-los

    veemente, o faz utilizando mecanismos inconscientes de projeo, em busca da

    absolvio de sua prpria conscincia e projetam a infidelidade a quem deve ser fiel.

    Freud (1911, citado por Delpierre, 1961) conta a histria de uma senhora, que com

    dez anos de casamento, sentia ainda um excessivo cime do marido. Foi

    demonstrado, em anlise, que quem tinha fortes desejos por um rapaz, era ela e,

    inconscientemente, tudo transcorria como se, de certo modo, ela acreditasse que se

    o seu marido a havia trado, ela tambm poderia faz-lo.

    Quando algum inconscientemente sente-se pobre em amor e bondade, e teme que essa deficincia possa vir a ser descoberta e denunciada pelo seu parceiro no amor, ou possa ofend-lo, ento comea a demonstrar cime e a procurar falta de amor no referido parceiro, a fim de no encontr-la em si mesmo, e a descobrir maldade num rival em lugar de faz-lo em si mesmo (KLEIN, 1975, p. 67).

  • 24

    Freud (1911) afirma que o desejo de infidelidade habitual tanto em homens

    como em mulheres e costumam ser consentidos por conveno social. Esse

    consentimento tem papel importante, pois tornam as ameaas inofensivas.

    Uma pessoa ciumenta, contudo, no reconhece essa conveno da tolerncia; no acredita existirem coisas como interrupo ou retorno, uma vez o caminho tenha sido trilhado, nem cr que um flerte possa ser uma salvaguarda contra a infidelidade real (FREUD, 1911, p. 238).

    2.4.3 Cime Delirante

    A terceira camada tambm se origina em impulsos de infidelidade reprimidos,

    cujo objeto de desejo outra pessoa do mesmo sexo. Este cime delirante se trata

    de homossexualidade latente que, uma vez recalcada, se enquadra na parania,

    como mecanismo de defesa. Nesse caso, o delrio surge para esconder o desejo por

    uma pessoa do mesmo sexo. Para Freud, o cime proveniente da parania atravs

    da projeo, repele dois impulsos distintos, que so o da infidelidade e da

    homossexualidade. Tais impulsos inconscientes alimentam inclusive o cime normal,

    como j foi mencionado. O ciumento projeta sobre a mulher os prprios desejos

    inconscientes de tra-la (DELPIERRE, 1961, p. 75). Arreguy em Santos (2000)

    destaca, com base nas teorias de Freud (1922), que na tentativa de defesa contra

    um forte impulso homossexual indevido, a situao pode, no homem, ser descrita

    pela frmula: Eu no o amo; ela quem o ama (p. 63).

    O psiclogo, examinando os atos de um marido e os mltiplos detalhes da aventura, nota que Paulo fez de tudo inconscientemente, se entende para lanar Joana nos braos de Lus que o seu verdadeiro plo afetivo. De fato, precisamente por essa razo que eles se tornaram amigos. Enfim, identificando-se com a mulher atravs dela e por procurao, ele se entregou a Lus (DELPIERRE, 1961, p. 74).

    Freud (1911), constatou que todos os casos de parania, especificamente,

    tm como centro do conflito, uma defesa contra o desejo homossexual. A parania

    seria ento, resultado do fracasso dessa tentativa de dominar a corrente

    homossexual, inconscientemente reforada. Os delrios revelam e remontam s

    razes de sentimentos sociais em um desejo ertico.

  • 25

    Segundo Freud, as paranias mais notrias so oriundas de contradies de

    uma mesma proposio, em todas as suas possveis vertentes. Tal proposio seria:

    eu (um homem) o amo (um homem) (FREUD, 1911, p. 85).

    O senhor e a senhora N..., ambos de 44 anos gerem uma padaria numa pequena vila mediterrnea. Senhora N... tem por seu marido um cime tirnico desde o incio do matrimnio, 18 anos antes. Chega ao ponto de dispensar o forneiro para que o marido no tenha tentaes homossexuais! Depois probe-lhe o acesso ao balco da padaria e, para que no tenha algum contacto com as clientes, pe um cadeado na porta que separa a loja do forno e cobre os vidros desta porta com papel de embalagem e tbuas pregadas (DELPIERRE, 1961, p. 129).

    Um dos delrios da parania pode ser de perseguio, onde o indivduo nega

    a proposio que ama o outro e essa percepo interna substituda por uma

    percepo externa de que ele odeia o outro, e depois projeta para outra proposio

    de que ele odiado, perseguido. A caracterstica mais notvel da formao de sintomas na parania o processo que recebe o nome de projeo. Uma percepo interna suprimida e, ao invs, seu contedo, aps sofrer certo tipo de deformao, ingressa na conscincia sob a forma de percepo externa. Nos delrios de perseguio, a deformao consiste numa transformao do afeto; o que deveria ter sido sentido internamente como o amor percebido externamente com o dio. (FREUD, 1911, p. 89).

    A erotomania outro delrio que o indivduo para no se conscientizar que

    ama o outro, ele passa a amar a outra e atravs da projeo ele sente-se amado por

    ela, o que tambm justificaria o seu amor (por ela).

    Os delrios de cime contradizem a terceira proposio e podem ser

    visualizados por gnero. Eles podem ser delrios alcolicos de cimes, j que o

    lcool desempenha papel indiscutvel nesse distrbio, uma vez que aquela fonte de

    prazer afasta inibies e desfaz sublimaes (FREUD, 1911, p. 87). Freud

    menciona que, em diversas situaes, o homem busca a satisfao emocional que

    proporcionada pela companhia de outros homens em bares, quando se desentende

    com sua mulher. Inconscientemente, esses homens so responsveis pelo terceiro

    tipo de contradio da proposio nica. No sou eu quem ama o homem ela o

    ama, e suspeita da mulher em relao a todos os homens a quem ele prprio

    incitado a amar (FREUD, 1911, p. 87). Nas mulheres o cime exatamente

  • 26

    idntico. Para elas, quem ama as outras mulheres seu marido, e no ela prpria.

    Fica fcil detectar o ponto de fixao da mulher, ao observar os objetos amorosos

    que ela atribui ao marido. Os delrios de cime contradizem o sujeito, os delrios de

    perseguio contradizem o predicado, e a erotomania contradiz o objeto (FREUD,

    1911,p. 88). Alm dessas trs contradies proposio, existe uma quarta. A

    ltima contradio nega a proposio na sua totalidade, onde o indivduo acredita

    no amar ningum, de forma alguma. No entanto, a libido precisa encontrar um

    lugar, um escoadouro, o que seria a proposio de eu s amo a mim mesmo. Essa

    preposio resulta na megalomania e se trata da supervalorizao sexual do ego.

    justo presumir que a megalomania essencialmente de natureza infantil e que, medida que o desenvolvimento progride, ela sacrificada s consideraes sociais. Do mesmo modo, a megalomania de um indivduo nunca to veemente abafada como quando ele se acha em poder de um amor irreversvel. (FREUD, 1911, p. 88).

    Apesar das j mencionadas formas de parania terem sido oriundas das

    experincias clnicas de Freud e outros colaboradores, ele deixa claro a necessidade

    de investigao de um grande nmero de pessoas cujo distrbio resultado de

    parania. Apesar de ter detectado o desejo homossexual em indivduos do sexo

    masculino em todos os seus casos de estudo, Freud (1911) deixa aberto a brecha

    para que seja limitada a sua assertiva a um nico tipo de parania caso seja

    detectado tipos deferentes.

    Iniciamos a presente seo, abordando alguns momentos da construo da

    teoria do complexo de dipo e sua importncia para a constituio do sujeito. A

    responsabilidade da cena edpica para o desenvolvimento psquico da criana e a

    constatao dela servir como palco para as primeiras experincias de amor, raiva,

    inveja e cime, mostram-nas como razes primitivas desses sentimentos, e que

    foram discutidos aqui, especialmente em razo deste ltimo. Verificamos que o

    cime pode ser resultado tanto de alguma falha na passagem do dipo, como da

    fixao em alguma outra fase da constituio do sujeito, ressonando na vida adulta

    do mesmo. As teorias de Freud sobre o assunto, assim como as diferentes

    classificaes em camadas, e o enquadramento do cime na parania tambm

    foram esmiuados, tal como o delrio que serve como tentativa de defesa contra um

    desejo homossexual e a projeo no outro, de seu prprio desejo de infidelidade.

  • 27

    A seguir, ser aplicada a teoria psicanaltica do cime, j discutida nessa

    seo, a uma obra literria. Buscar-se- o apoio da literatura para constatar a

    dinmica ciumenta, explorando e entrelaando uma outra.

  • 28

    3 PSICANLISE E LITERATURA

    Dizem que um autor deveria evitar qualquer contato com a psiquiatria e deixar aos mdicos a descrio de estados mentais patolgicos. A verdade, porm, que o escritor verdadeiramente criativo jamais obedece a essa injuno. A descrio da mente humana , na verdade, seu campo mais legtimo: desde tempos imemoriais ele em sido um precursor da cincia e, portanto, tambm da psicologia cientfica (FREUD, 1906-7).

    Veremos nesse captulo, como a psicanlise e a literatura, se relacionam.

    Para tal, aplicaremos alguns conceitos de Sigmund Freud sobre a obra de Machado

    de Assis, transformando-a em objetos de anlise e estudo, para o entendimento do

    funcionamento psquico. Dom Casmurro servir de modelo para corroborar as

    teorias psicanalticas a respeito do cime.

    3.1 Psicanlise em Extenso

    Obras literrias podem ser vistas como meras e irrelevantes fices. No

    entanto, so desperdiadas grandes oportunidades de conhecer e explorar as

    vicissitudes de cada personagem, deixando de enxerga-los como possibilidade real

    de qualquer ser humano. Segundo Freitas (2001), no discurso do personagem

    encontra-se a linguagem do desejo inconsciente, tornando-a compreensvel

    sutileza do seu subjetivo, o que possivelmente no difere, em nada, de um homem

    comum.

    A psicanlise que tenta estender seus limites tericos difundindo-se em

    outros campos como a literatura e a filosofia denominada psicanlise em extenso.

    Para Freitas (2001), essa psicanlise, atravs de seu dilogo, procura se aproximar

    das produes da cultura e de outras vertentes do saber cientfico.

  • 29

    A psicanlise em extenso poder ao se aproximar das produes dos escritores, proporcionar diferentes leituras interpretativas, examinando os textos da literatura, desligados de seus autores. Ela oferecer uma interpretao em extenso a uma interpretao j dada pelo autor ao criar seu personagem (FREITAS, 2001, p. 26).

    Atravs da psicanlise aplicada, a psicanlise em extenso, at mesmo os

    segredos e enigmas da arte podem ser desvendados, no apenas para os

    psicanalistas, como para alguns tericos da literatura. O que torna evidente esse tipo

    de anlise, a considerao de que um de seus sustentculos justamente a

    pressuposio do inconsciente, esse OUTRO indesvendvel diretamente, oculto

    retrico (PESSANHA apud Brazil, 1992, p.11),

    Esta tentativa de atualizao do pensamento psicanaltico, nos situando entre psicanlise e literatura, pretende chegar a se valer da literatura para dizer a importncia dos conceitos psicanalticos na explicao do sentido e no enriquecimento da literatura, isto , no enriquecimento da cultura pela interpretao psicanaltica que ilustra o sentido da sublimao na arte. (BRAZIL, 1992, p. 13).

    O uso da interpretao psicanaltica, a j mencionada psicanlise em

    extenso, tem como objeto o coletivo e as produes da cultura, alm de poder ter

    alguma influncia sobre o social e o cultural. A psicanlise em extenso mais livre

    por no estar presa ao tempo, a nenhuma oportunidade de interpretao, e nem

    necessitar se reconhecida como estratgia (BRAZIL, 1992).

    Tambm para Bakthin (1970), a literatura no deveria ser estudada limitada a

    uma determinada poca, como em sua contemporaneidade, pois o mundo da

    literatura ilimitado tal qual o mundo da cultura, aos quais so permitidos uma gama

    de sentidos. Restringir a aplicabilidade de tais obras sua poca de criao fechar

    as portas para novas interpretaes. Ele salienta ainda, que a literatura por ser um

    fenmeno muito complexo e a pesquisa literria uma cincia ainda jovem, no pode

    ser valorizado por uma metodologia qualquer. A diversidade de procedimentos

    justificada e indispensvel, desde que dem provas de seriedade e descubram

    novos aspectos no fenmeno literrio, bem como contribuam para aprofundar sua

    compreenso.

  • 30

    A psicanlise em extenso vem cumprir o que Bakthin (1970) props, usando

    obras literrias, analisando e explorando-as de forma jamais feita antes. No

    processo de sua vida pstuma, a obra se enriquece de novos significados de um

    novo sentido; a obra parece superar a si mesma, superar o que era na sua poca de

    sua criao (BAKTHIN, 1970, p. 365).

    3.1.1 Freud e a Arte da Literatura

    incontestvel que Freud era um profundo conhecedor e admirador da

    literatura, pois em toda sua obra encontram-se menes e citaes de diversos

    autores, como Shakespeare, Goethe, Homero e Sfocles, este ltimo, dramaturgo

    grego de quem tirou inspirao para criar a tese do complexo de dipo. A prpria

    psicanlise est intimamente ligada a essa arte desde o seu nascimento. Ele

    aproveitava as falas dos personagens para exemplificar suas idias, porque j havia

    percebido que todo grande escritor, em suas obras, fazia de seu personagem um

    porta-voz do desejo inconsciente (FREITAS, 2001, p. 33).

    No se pode negar que os textos freudianos contm uma originalidade estilstica que se recusa a este legado de linguagem da cultura cientfica do seu tempo, reivindicam a forma narrativa prpria fico e fundam a relao entre psicanlise e literatura, dando um novo sentido atividade interpretativa da subjetividade (BRAZIL, 1992, 34).

    Brazil (1992) pontua tambm que Freud desenvolveu um estilo que mantm o

    valor da retrica, alm da argumentao e da persuaso narrativa, mantendo-se no

    contexto de suas descobertas. Tal estilo lhe rendeu a comparao de um de seus

    casos clnicos a uma grande obra da literatura moderna por parte de Steven Marcus,

    crtico literrio. Seu estilo narrativo e argumentativo, resultando em textos quase

    poticos, mereceu a Freud o prmio Goethe da literatura por explorar o valor

    expressivo da lngua.

    Lendo o discurso de Freud dedicado ao Prmio Goethe, fica evidente o quanto ele valorizava a literatura e os poetas, e no por acaso, se dedicou ao longo de sua vida, a fazer comentrios e interpretaes sobre a literatura universal (FREITAS, 2001, p. 14).

  • 31

    3.2.2 Freud e Machado de Assis

    Machado de Assis foi um homem que, do mesmo modo que Freud, privilegiava enormemente os grandes mestres da literatura, tais como Shakespeare, Goethe, Dostoievski, dentre outros (FREITAS, 2001, p. 15).

    Embora contemporneos, e com a mesma paixo pela literatura, tudo indica

    que Assis no conheceu as obras de Freud, ainda sim, h quem afirme que os

    personagens Machadianos so perfeitos exemplos das teorias de Freud. Assis relata

    algumas das nuanas da vida interior de tal forma que poderiam ter sido alvo de

    interpretao do prprio inventor da psicanlise.

    Machado, provavelmente, no programou as personalidades de suas histrias a partir da psicologia, no entanto, sua narrativa to verossmil e p-no-cho, que por meio dela poder-se-ia fazer uma cincia da tipologia psquica dos seres humanos, partindo-se da sua fico em direo realidade (TRIPICCHIO, 2001, p. 33).

    Machado de Assis, contando com intuio, talento e conhecimento

    grandiosos na criao da psicologia de seus personagens, antecipou aspectos

    estudados apenas posteriormente por Sigmund Freud. Machado tinha o

    pensamento psicanaltico, anterior prpria psicanlise (FREITAS, 2001, p. 70).

    Segundo Freitas (2001), Roberto Schwartz, um crtico literrio afirmou em

    1982, numa mesa redonda, que o autor brasileiro em 1800 dizia coisas que Freud s

    diria 25 anos depois.

    3.2 Anlise da obra

    A utilizao da literatura pode ser considerada, assim, um meio de se valorizar os conceitos da psicanlise, no sentido de mostrar a condensao do personagem apresentada por um autor, como uma obra criativa que abre a possibilidade da leitura das matrizes da subjetividade (FREITAS, 2001 p. 48).

    Baseado em Freud e em interpretaes de outros psicanalistas, iniciaremos,

    agora, a anlise de uma obra de Joaquim Machado de Assis, focando sempre o

    tema do presente trabalho, que trata do cime. Dom Casmurro (1889) um clssico

    da literatura brasileira que aborda o assunto de forma significativamente exemplar

    para algumas das teorias de Freud. Dom Casmurro , nesse sentido, um

  • 32

    documento clnico-literrio precioso pelo seu realismo e veracidade (TRIPICCHIO,

    2001, p. 51).

    A anlise do discurso dos personagens machadianos pode mostrar, com a

    utilizao dos conceitos psicanalticos, sua natureza universal, uma vez que essas

    repeties inconscientes simbolizam as inmeras formas de estar no mundo. Esta

    anlise permitir novas leituras interpretativas, apresentando seus personagens

    atravs da tica psicanaltica como exemplos do que a sociedade exige, como

    disfarce, para o desejo inconsciente se expressar (FREITAS, 2001, p. 49).

    3.2.1 Dom Casmurro

    Bentinho nico filho, pai falecido aos trs anos e me com preocupaes e

    cuidados extremos, o que era reforado pelo insucesso de uma gestao anterior.

    Para que tudo corresse bem na gestao de Bento, D. Glria, sua me, o prometeu

    ao sacerdcio. O menino cresceu sem uma presena masculina suficientemente

    forte para exercer a funo paterna, visto que Machado de Assis no apresenta, no

    texto, algum homem com participao relevante que pudesse ocupar essa funo de

    suplncia ao pai. Aos quinze anos, Bento ouve uma conversa em que Jos Dias,

    que era um agregado da famlia, e sua me em que o primeiro chama a ateno da

    segunda sobre a possibilidade de um namoro entre Bento e Capitu, a vizinha. Com

    que ento eu amava Capitu, e Capitu a mim? [...] Tudo isso me era agora

    apresentado pela boca de Jos Dias, que me denunciara a mim mesmo. (ASSIS,

    1889, p. 18). Bento precisou ouvir da boca de outra pessoa para tomar

    conhecimento de um envolvimento emocional com Capitu. Ele no entrou em

    contato com seus sentimentos sozinho. Essa uma grande diferena entre Bento e

    Capitu, ela decidida, ambiciosa e pobre, enquanto Bento rico, mas tambm

    tmido, pudico, covarde, que alm de ter personalidade imaginativa, apresenta

    sexualidade tardia.

    Bento vai para o seminrio e em um dia de folga, ao passear na rua, v as

    pernas de uma senhora que usava saia e ligas, quando ela cai no cho. A partir

    desse momento, seus devaneios sero repletos de pernas e saias.

  • 33

    Dali em diante, at o seminrio, no vi mulher na rua, a quem no desejasse uma queda; a algumas adivinhei que traziam as meias esticadas e as ligas justas... Tal haveria que nem levasse meias... Mas eu as via com elas..., [...] Todas as que eu encontrara na rua, mostravam-me agora de relance as ligas azuis; eram azuis. De noite sonhei com elas [...] eram belas, umas finas, outras grossas, todas geis como o diabo. (ASSIS, 1989, p. 96).

    Bento chega a comparar as batinas dos padres no seminrio s saias, e a

    afirmar que as batinas lembravam-lhe a queda da senhora na rua. Segundo Freitas

    (2001), essa passagem mostra as pulses sexuais de Betinho, que por um lado

    provocavam um desejo incontido no rapaz, por outro, encontravam a represso

    decorrente da educao religiosa e pela criao da me. Bento, aps o episdio da

    queda da senhora, passa a ter fantasias erticas que ele mesmo condena, o que o

    impossibilitava de organizar-se psiquicamente. [...] com as mos presas em volta de

    mim, faziam um vasto crculo de saias, ou, trepadas no ar, choviam ps e pernas

    sobre minha cabea. [...] No dormi mais, rezei padre nossos, ave-marias e credos

    [...] (Assis, 1989, p. 96). Ele estava sendo educado para ser padre, apesar de no

    ser o seu desejo. O erotismo preside a vida do rapaz, contudo, as representaes

    da me e da Igreja vo forjando um quadro neurtico de certa gravidade (FREITAS,

    2001, p. 132). Em contrapartida, sobre suas tentaes, na primeira visita que recebe

    de Jos Dias, logo pergunta por Capitu e ouve como resposta: "Tem andado alegre,

    como sempre; uma tontinha. Aquilo enquanto no pegar algum peralta da

    vizinhana, que se case com ela [...]".(ASSIS, 1889, p. 103). Surge a sua primeira

    mordida de cime. Enquanto ele chorava todas as noites, ela andava alegre. fcil

    evocar o que foi denominado por Freud (1922) como cime por projeo, se Bento

    pensa em mulheres de saia, Capitu poderia tambm pensar ou namorar algum

    peralta. No mbito do imaginrio, onde o parceiro tomado pelo espelho do Outro,

    o cime vem denotar as prprias intenes do sujeito. Ele atribui ao outro o que quer

    para si (QUINET, 2003).

    A segunda mordida de cime foi quando presenciou um flerte entre Capitu e

    um cavalheiro. Nesse momento, Bento abatido pelo cime competitivo, que foi

    designado por Freud (1922) como normal, que abrange o luto antecipado pela perda

    do objeto amado, pela humilhao narcsica, pela hostilidade contra o suposto rival e

    auto-recriminao por se responsabilizar pela perda do outro (QUINET, 2003). Bento

    associa este ltimo episdio ao comentrio anteriormente feito por Jos Dias.

  • 34

    Bentinho no tem coragem de procurar Capitu para esclarecer suas dvidas, e mais

    uma vez nele predomina a fantasia sobre a realidade. Bento comea a imaginar

    quais peraltas lhe representariam perigo, mas no encontra nenhum. Ele ento se

    recorda de alguns peraltas que olhavam para Capitu e da sensao que tais olhares

    lhe despertava: to senhor me sentia dela, que era como se olhassem para mim

    [...]. (ASSIS, 1989, p. 103). Percebe-se, a, um pensamento projetivo de Bento

    sobre Capitu, expressando sua auto-referncia para estmulos externos

    (TRIPICCHIO, 2001).

    Freitas (2001) diz que, inicialmente, Bento estava preso a dois amores, Capitu

    e a me. Esses dois amores eram mulheres flicas e que o mantinham submisso.

    Como se percebe: [Capitu] Novamente me intimou que ficasse (ASSIS, 1889, p.

    68), e eu me tornei o filho submisso que era (ASSIS, 1889, p. 73). Apesar de no

    querer ir para o seminrio, no consegue opor-se sua me. Vida de padre muito

    bonita [...]. Eu gosto do que a mame quiser (ASSIS, 1889, p. 79). Bento era um

    garoto medroso, covarde e indeciso. Para ele a liberdade no poderia ser

    conquistada, mas deveria ser oferecida pelo acaso. Certa vez fora buscado no

    seminrio para ver sua me que fora acometida por uma doena e, em algum

    momento do caminho, tivera um certo pensamento: Mame morta, acaba o

    seminrio (ASSIS, 1989, p. 89). Tal pensamento, apesar do sentimento de culpa

    que se segue, mostra como Bentinho fraco e incapaz de tentar solucionar seus

    prprios problemas. Palavras de Capitu: Voc h de ser sempre uma criana! [...]

    um homem que no cresceu (ASSIS, 1889, p. 159).

    A passividade do rapaz o leva, muita vez, a no ser sujeito de sua prpria vida, ele no interfere no destino, apenas sofre a sua ao aleatria. assim que ele vai montando um percurso que desembocar num adulto frgil, melanclico e delirante (FREITAS, 2001, p. 133).

    Mais uma vez, a fala de Jos Dias, ao descrever a essncia de Capitu atravs

    de seus olhos como de cigana oblqua e dissimulada (ASSIS, 1889, p. 32),

    desperta em Bentinho fantasias. E foi, ao analisar o olhar de sua amada com o

    intuito de examin-lo para constatar se era realmente de cigana dissimulada, que

    Bento os definiu com olhos de ressaca.

  • 35

    Retrica dos namorados, d-me uma comparao exata e potica para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. No me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo o que me d idia daquela feio nova. Traziam no sei que fluido misterioso e energtico, uma fora que arrastava para dentro, como uma vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para no ser arrastado, agarrei-me s outras partes vizinhas, s orelhas, aos braos, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas to depressa buscava as pupilas, a onda que saa delas vinha crescendo, cava e escura, ameaando envolver-me, puxar-me e tragar-me (ASSIS, 1889, p. 54).

    Dias depois de ter sido aprisionado pelos olhos de ressaca, acontece o

    primeiro beijo entre Bento e Capitu. Eu sou homem (ASSIS, 1889, p. 58). Essas

    palavras foram ditas aps esse primeiro beijo entre os dois. Ele sentiu-se homem

    por ter beijado uma mulher. somente por essa via do reconhecimento imaginrio

    que Bentinho pode se situar na partilha dos sexos (QUINET, 2003, p.200). No

    entanto, para Freud, como j foi dito no captulo anterior, para o menino sair do

    dipo ele precisa renunciar ao desejo para com a me e se identificar com o pai e

    aceitar a diferena sexual. Depois dessa aceitao, ele deve assumir uma posio

    masculina ou feminina. Como j vimos, Bentinho nunca teve uma figura masculina

    que pudesse exercer essa funo paterna. D. Glria, sua me, era superprotetora, j

    tinha traado o destino do filho desde antes do seu nascimento. a que entra

    Capitu como um objeto que o fora a uma identificao ao pai edpico agente da

    castrao pela via da proibio. Ele convidado a uma escolha exogmica,

    contrariando as pretenses endogmicas da me (FREITAS, 2001, p. 131).

    No seminrio Bento conhece Escobar que logo lhe conquista a confiana e a

    amizade vai crescendo. Apesar de no ser feliz no seminrio, ele se afeioou quela

    vida. Os padres gostam de mim, os rapazes tambm, e Escobar mais do que os

    rapazes e os padres (ASSIS, 1889, p. 107).

    Foi descrito, tambm, no capitulo anterior, que para Freud (1922) o cime

    normal no necessariamente justificado por uma infidelidade. Esse cime pode ser

    originado no complexo de dipo e, para algumas pessoas, pode ser experimentado

    bissexualmente.

  • 36

    [...] um homem no sofrer apenas pela mulher que ama e odiar o homem seu rival, mas tambm sentir pesar pelo homem, a quem ama inconscientemente, e dio pela mulher, como sua rival. (FREUD, 1922, p. 237).

    Escobar se torna melhor amigo e confidente de Bentinho, conhecendo

    inclusive segredo do amor dele por Capitu. Ele foi o terceiro na troca de cartas entre

    mim e Capitu(ASSIS, 1889, p. 95). Certa vez, devido a grande facilidade aritmtica

    de Escobar, Bento entusiasma-se com o amigo quando este faz rapidamente o

    clculo total da renda dos aluguis de D. Glria e abraa-lhe no ptio. Fiquei to

    entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que no pude deixar de

    abra-lo. Era no ptio; outros seminaristas notaram nossa efuso; um padre que

    estava com eles no gostou (ASSIS, 1889, p. 148). Ao fim da primeira visita de

    Escobar casa de Bento, quando a me deste est doente, Capitu percebe a

    grande estima do vizinho para com o visitante e pergunta ao presenciar a despedida

    calorosa e afetuosa deles: Que amigo esse tamanho? (ASSIS, 1889, p. 118).

    Anos depois, Escobar, o melhor amigo de Bento, casa-se com Sancha, a melhor

    amiga de Capitu, o que estreita ainda mais o lao entre os dois casais.

    A soluo encontrada para tirar Bento do seminrio foi colocar l um

    substituto para ele. Dona Glria, sua me, aceitou, pois dessa forma, custeando os

    estudos de uma criana pobre e com vocao, ela pagaria sua promessa e daria um

    padre para a igreja. Bento cresce e vai estudar, regressa aps cinco anos Bacharel

    em Direito. Durante os cinco anos que esteve fora, Escobar foi o terceiro na troca de

    cartas entre Bento e Capitu. O tempo que ficaram afastados no os esfriou e

    casaram-se pouco depois do retorno de Bento. Tiveram um filho, Ezequiel, depois

    de anos de casados. Moram ao lado de Escobar e Sancha e a filha do casal,

    Capituzinha. Para Quinet (2003) as duas famlias viviam em espelho, formando um

    sexto de dois trios. Tudo corria bem, se no fosse a vigilncia de Bento sobre a

    esposa. Casados, o cime de Bentinho se intensifica e conseqentemente suas

    ruminaes. Cheguei a ter cimes de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa,

    qualquer homem, moo ou maduro, me enchia de terror ou desconfiana (ASSIS,

    1889, p. 118). Nem o casamento, nem o sucesso profissional como advogado, nem

    o filho aliviou as angstias de Bento Santiago. Vrios acontecimentos alimentavam

    seu cime: o esquecimento de Capitu, do prego que costumavam ouvir quando

  • 37

    crianas e que fora jura de amor daquela poca; tambm a indisposio de Capitu

    em acompanhar Bento pera, por no se sentir bem, e encontra-la aparentemente

    bem, junto de Escobar, e na sua casa, ao retornar antecipadamente por estar

    preocupado com a esposa, gera-lhe mais dvida sobre dvida (ASSIS, 1889, p.

    179). Qualquer pequeno fato tem grande repercusso para Bento.

    Rodo pelos cimes, Bento se interessa, mesmo que seja no dio, cada vez mais, mais pelo homem, sob as vestes de um possvel rival, do que por sua prpria mulher. Os perodos de acalmia que seguiam s dvidas movidas pelos cimes no existem mais. A angstia da suspeita permanente. No h dialtica entre confiana e a desconfiana a suspeita destruiu toda e qualquer despreocupao s restam o terror e a desconfiana (QUINET, 2003, p. 203-204).

    A forma como Jos Dias, o j apresentado agregado da famlia, tratava

    Ezequiel, chamando-lhe sempre de o filho do Homem (ASSIS, 1889, p. 180),

    incomoda Capitu, que tenta corrigir o menino em suas imitaes, como a maneira de

    andar do agregado e a forma de olhar e mover a cabea de Escobar. Bento,

    posteriormente, toma as imitaes de Ezequiel como uma prova da paternidade de

    Escobar, e no resultado de convivncia.

    Quinet (2003) usa o artigo sobre os mecanismos da homossexualidade, do

    cime e na parania de Freud (1922), para enquadrar os cimes de Bentinho no

    paranico, uma vez que este toma como material observvel, indicaes

    insignificantes e inconscientes da esposa, no sendo observvel pelos outros e que

    lhe representaria traio. Bento diz: Capitu gosta de ser vista e o meio mais prximo

    para tal fim ver tambm e no h ver sem mostrar o que v (ASSIS, 1889, p. 110).

    Bento, portanto, no s justifica seu cime como considera Capitu culpada, uma vez

    que o outro que lhe desperta cime est em todo lugar.

    O delrio de cimes de Bentinho comea a se cristalizar. A viso que Bento

    tem de Capitu, a de mulher de todos os homens, completa, a quem nada falta,

    como ele mesmo diz: Mulher por dentro e por fora, mulher direita e esquerda,

    mulher por todos os lados, e desde os ps at a cabea (ASSIS, 1889, p.125).

    Dessa forma, inventando uma mulher que no existe, ele se aniquila e abre uma

  • 38

    lacuna, como Bento acredita. A suspeita gira em torno da proposio Ela os ama,

    que ainda no tem carter de certeza delirante (QUINET, 2003).

    No que se tornou a ltima noite das duas famlias reunidas, na casa de

    Escobar, o anfitrio gaba-se por ter bceps capazes de vencer o mar em ressaca.

    Escobar fala para Bentinho: preciso nadar bem, como eu, e ter pulmes, disse

    batendo no peito, e estes braos; apalpa (ASSIS, 1889, p. 184). Na manh seguinte

    Escobar morre afogado. No velrio de amigo, Bento recorda-se do momento em que

    apalpou o brao de Escobar e complementa sua lembrana: Apalpei-lhe os braos,

    como se fossem os de Sancha. Custa-me esta confisso, mas no posso suprimi-la;

    era jarretar a verdade (ASSIS, 1889, p. 184). Na noite anterior, ele fora tomado por

    uma fantasia de seduo e de conquista de Sancha. Dali mesmo busquei os olhos

    de Sancha, ao p do piano; encontrei-os em caminho. Pararam os quatro e ficaram

    diante uns dos outros [...] (ASSIS, 1889, p. 183). E no final da mesma noite: tornei

    a falar com os olhos dona da casa. A mo dela apertou muito a minha, e demorou-

    se mais que o de costume (ASSIS, 1889, p. 183).

    Esta cena importante, no tanto pelo apalpar dos braos de Escobar, mas pelo contedo ertico de que investida a manipulao, projetada agora em Sancha por quem Bento est momentaneamente interessado. O mecanismo projetivo, como defesa do ego, uma constante na personalidade de Bento e grande parte da formao de seu cime disso resulta (TRIPICCHIO, 2001, p. 49).

    O mesmo autor acrescenta que, a sensibilidade de Bento um recalque,

    aspecto defensivo do ego. Essa represso impede que ele tome conscincia de sua

    inclinao homoertica pelo melhor amigo. A suposta verdade ento, que se faz

    consciente, no caso o interesse de Bento por Sancha, mascara a verdade de fato,

    que est enraizada no seu inconsciente, que se trata do desejo homo-afetivo por

    Escobar. O fato de Bento negar o seu desejo homossexual, no admitir essa pulso

    inconsciente, no perceb-la conscientemente, faz o quadro agravar-se (FREITAS,

    2001, p. 136). Quando Bento fantasia a conquista de Sancha, acreditando ver nos

    olhos e sentir no aperto de suas mos, sinais de promessa e estmulo suas

    esperanas, ele evidencia impulsos de infidelidade.

  • 39

    Este mecanismo faz Bento julgar, na cena do olhar ao corpo de Escobar por Capitu, ser tambm uma demonstrao de infidelidade, levando ao cime projetado, fundido-se s tendncias zelosas de Bento, que deflagram a ecloso do cime delirante, atravs de uma percepo patologicamente distorcida (TRIPICCIO, 2001, p. 32).

    ao ver Capitu amparar Sancha, tentando afastar a amiga do corpo do

    defunto, que Bento observa a diferena entre o choro de sua esposa e dos outros

    presentes. [...] S Capitu, amparando a viva, parecia vencer-se a si mesma. [...]

    Capitu olhou alguns instantes para o cadver to fixa, to apaixonadamente fixa,

    que no admira lhe saltassem algumas lgrimas poucas e caladas. [...] Momento

    houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viva [...] (ASSIS,

    1889, p. 188/189).

    O perseguido vai buscar algum apoio na realidade para a construo do seu delrio.Bento usa os olhos de ressaca para apoiar sua certeza delirante [....]. Ele no encontra a via de sublimao do seu desejo homossexual, fica perseguido pela vertente inconsciente da sua instncia crtica, ou melhor, do seu superego, e vai ento recorrer a dois mecanismos de defesa: a negao e a projeo. Capitu que ama! (FREITAS, 2001, p.136, grifo do autor).

    Bento que j estava em construo delirante, passa para a certeza delirante.

    Desta cena do velrio forma-se o axioma da parania de cimes: Ela o ama, que

    podemos completar com Ela me trai designando o lugar de objeto ao sujeito

    delirante (QUINET, 2003, p. 206). Essa foi a terceira mordida de cime.

    O Outro do cime Escobar, o amigo morto, (...), Bento no procura uma occular proof: ele a encontra. A prova material do delito o prprio olhar objeto puntiforme e vanescente , cuja consistncia real e material para Bento eleva-o a objeto causa do cime. (...) Como no h provas de infidelidade, Bento a encontra no olhar e a angustiante dvida se torna torturosa certeza (QUINET, 2001, p.205, grifo do autor).

    Aps a morte de Escobar, Bento passa a andar cada vez mais aborrecido e

    mergulhado em melancolia. Chega a planejar suicdio. A parania do cime lhe est

    de tal forma incorporada, que ele se torna cada vez mais frio e rude com Capitu e

    transforma o filho em documento da traio. Bento afasta Ezequiel, mandando-o

    para um colgio interno com intuito de melhorar a situao. Como coloca Quinet

    (2003):

  • 40

    Escobar, seu duplo mais forte que ele mesmo, eu ideal, dava-lhe suporte imaginrio que, nessa relao das duas famlias em espelho, permitia-lhe sustentar-se como um pai. Uma vez quebrado o espelho, Bento delira e o amigo se torna o Outro absoluto (...). Bento ver no filho a rplica do amigo, cujo luto impossvel. Bento entra no mais negro desespero aspirado pela idia da morte sua prpria morte. (p. 207).

    Bento vai assistir pea de Shakespeare, Otelo, fixa-se na morte de

    Desdmona e observa: (Isso tudo) por um simples leno (ASSIS, 1889, p. 201). Ao

    voltar para casa, enquanto prepara o veneno para o suicido, Bento pensa em

    Desdmona justificada. Pensar em Desdmona e no em Capitu, foi um

    mecanismo de defesa de Bentinho que, atravs de um fenmeno inconsciente

    chamado deslocamento, procurou alivio nos smbolos. Desdmona representa,

    ento, a pessoa real que gera ansiedade, no caso, Capitu (TRIPICCHIO, 2001, p.

    48). O segundo impulso suicida cortado pela entrada de Ezequiel gritando pelo pai,

    e transformado em impulso assassino contra seu prprio filho. Chamem-me embora

    assassino; no seria eu que os desdiga ou contradiga; meu segundo impulso foi

    criminoso (ASSIS, 1889, p. 204). O filho Ezequiel torna-se tambm um rival na

    disputa pelas intenes maternas. Morto Escobar, Ezequiel toma o seu lugar como

    representando do adultrio Materno (FREITAS, 2001, p. 137). Convencido de que

    Ezequiel no seu filho, quando Capitu entra no escritrio, Bento lhe afirma: Ele

    no meu filho! (ASSIS, 1889, p. 205). Ela responde: Pois at os defuntos! Nem

    os mortos escapam aos seus cimes (ASSIS, 1889, p. 206).

    Um pai tem que funcionar como um organizador da subjetividade, e a Bento lhe faltava a experincia; o seu pai no texto um tanto desaparecido, morreu cedo. Ficou o filho nico de mame, da qual nunca pde efetivamente, no sentido psquico, se afastar. Esta a hiptese para as suas dificuldades matrimoniais e a escolha homossexual inconsciente que vai provocar o cime projetivo (FREITAS, 2001, p. 135).

    Capitu e o filho so isolados por Bento, fazendo-os se mudar para Sua. A

    soluo final um puro mecanismo de anulao e regresso como defesa do ego

    (TRIPICCHIO, 2001, p. 39). Bento volta a ver o filho anos depois. Capitu j estava

    morta, mas o cime no. A visita inesperada de Ezequiel leva-o de volta ao seu

    mundo de fantasmas. O filho morreu pouco depois do ltimo encontro com o pai,

    como o mesmo desejara. Em algum momento da conversa entre os dois, Bento

    pensa antes lhe pegasse a lepra... (ASSIS, 1889, p. 214) e conta-nos depois que

  • 41

    no houve lepra [...] onze meses depois, Ezequiel morreu de uma febre tifide

    (ASSIS, 1989, p. 215).

    No final da narrativa, Bento Santiago, o Bentinho, j apelidado de Dom

    Casmurro, vive s, sem parentes ou amigos. Todos j morreram. Ele constri uma

    nova casa, rplica da casa onde cresceu. O meu fim evidente era atar as duas

    pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescncia. Pois, senhor, no consegui

    recompor o que foi nem o que fui (ASSIS, 1889, p. 218).

    fase de indefinio do cime e simples expanso do sistema delirante, segue-se a de sua sistematizao, com o aparecimento de percepes delirantes. Bento cai no mundo dos fantasmas, da melancolia, dos impulsos suicidas e homicidas, transforma-se num homem novo [despersonalizao] e seu mundo tambm [desrealizao], com o esvaziamento afetivo, a incapacidade de criar novos laos amorosos, a esquisitice e a bizarrice do comportamento. Conserva, porm a relativa capacidade de recompor seu passado (TRIPICCHIO, 2001, p. 45).

    3.2.2 Consideraes

    3.2.2.1 Ligao com a Infncia

    Foi demonstrado no capitulo anterior, que a infncia tem papel fundamental

    na formao psquica de qualquer pessoa. Percebeu-se que o relacionamento com

    os pais marcam, desde a infncia, positiva ou negativamente, e em diferentes nveis

    de profundidade.

    Quando o sujeito volta para trs, diante de um obstculo muito grande, de

    uma decepo muito forte ou de uma deciso muito significativa, toda a energia que

    foi acumulada para solucionar tal tarefa flui de volta e torna a preencher os leitos da

    infncia, obsoletos e esquecidos.

    Quando por exemplo, a sorte no amor vai mal, ele volta para trs e procura uma amizade sentimental ou uma falsa religiosidade. Se o decepcionado for um neurtico, ele volta mais ainda para trs e se apega a relacionamentos infantis que ele nunca abandonou de todo e aos quais tambm o normal est preso por mais de uma corrente: o relacionamento com o pai e a me (JUNG, 1998, p. 295).

  • 42

    A citao cima, de Jung (1998), concorda com o pensamento Freudiano, de

    que o neurtico nunca abandona seus relacionamentos infantis e sempre se volta a

    eles. Verifica-se o mesmo em diferentes falas da obra, quando, por exemplo, a

    construo de uma casa idntica de sua infncia e a referencia que Dom

    Casmurro faz a seus pais ao descrever o quadro deles. [...] Tenho ali na parede o

    retrato dela, ao lado do marido, tais quais na outra casa. A pintura escureceu muito,

    mas ainda da idia de ambos (ASSIS, 1889, p. 212).

    Bento Santiago visto como uma pessoa sem iniciativa em toda a obra.

    Qualquer ao comanda inicialmente pela me, depois por Capitu diria que as

    negociaes partiram de mim; mas no, foi ela quem as iniciou (ASSIS, 1889, p.

    172). No entanto, no final que ele toma iniciativa em decorrncia da sua

    construo delirante do adultrio.

    Mas, na verdade, a iniciativa visa, no caso, uma falsa liberdade, j que, premido por um supergo sdico, gozar na posio do desamado, do rejeitado, dando vazo ao seu masoquismo, nessa posio masoquista, feminina, que ele vai se encontrar, no futuro como resultado de todo um processo de castrao, do qual foi vtima (FREITAS, 2001, p. 133).

    3.2.2.2 Posicionamento Feminino

    Meyer (1958, citado em FREITAS, 2001) discutia a posio feminina de

    Bentinho, por ser ele o plo feminino da relao com Capitu. A posio masculina

    era dela, pela sua ascendncia sobre Bentinho, uma de suas caractersticas mais

    importantes. Para o autor, Capitu era profundamente viril por ter uma energia

    intorcvel, pelo senso de ao, pela audcia, por ser conquistadora e no

    conquistada. Capitu era Capitu, Isto , uma criatura mui particular, mais mulher do

    que eu era homem (ASSIS, 1889, p.94). Como Freitas coloca em suas prprias palavras: Capitu sempre comanda a ao, est na posio masculina no sentido

    freudiano da atividade, em oposio passividade, posio feminina de Bentinho

    (FREITAS, 2001, p.129).

  • 43

    3.2.2.3 Sobre o Delrio do Personagem

    O delrio de cimes baseia-se na transformao da relao amorosa do casal

    em uma relao triangular. sobre o rival que introduzido na relao amorosa,

    que so projetados ressentimento e dio acumulados pelas frustraes, que sofre ou

    sofreu, o delirante ciumento. Uma vez cristalizado o delrio, o delirante organiza uma

    srie de provas, de pseudoverificaes, de falsas lembranas, como

    interpretaes delirantes de falsos reconhecimentos. O romance delirante aborda

    todas as suas peripcias (...) e o delirante contra-ataca custa de todos os meios ou

    de todos os estratagemas que lhe inspira a clarividncia que abre seus olhos

    (1981 EY apud TRIPICCHIO, 2001, p. 49).

    Para Tripicchio (2001), o surgimento da percepo delirante altera a

    personalidade de forma mais profunda, o que acontece com Bento quando se torna

    convicto da semelhana fsica do filho com seu amigo. A partir de ento, uma

    inatingvel rede de conexes oriundas de interpretaes delirantes formada com

    base em vivncias falseadas. Constata-se tal afirmativa quando Bento pede que o

    leitor reconhea que uma j estava dentro da outra como a fruta dentro da casca

    (ASSIS, 1889, p. 107), ao se referir Capitu menina e Capitu adltera. Resfriada a

    atividade delirante, a alterao final se d com o isolamento, a inviabilidade de

    novas ligaes amorosas, e por fim, a casmurrice.

    A posio pior com referncia ao cime pertencente terceira camada, o tipo delirante verdadeiro. Este tambm tem sua origem em impulsos reprimidos no sentido da infidelidade, mas o objeto, nestes casos, do mesmo sexo do sujeito. O cime delirante o sobrante de um homossexualismo que cumpriu seu curso e corretamente toma sua posio entre as formas clssicas da parania. Como tentativa de defesa contra um forte impulso homossexual indevido, ele pode, no homem, ser descrito pela frmula: Eu no o amo; ela que o ama! Num caso delirante deve-se estar preparado para encontrar cimes pertinentes a todas as trs camadas, nunca apenas terceira (FREUD, 1922, p. 273, grifo do autor).

    Considerando as teses de Freud, constata-se que Bento adoece de um

    incontestvel e progressivo delrio de cime. Foi justamente para manter-se fiel

    melhor amiga, primeira namorada e nica esposa que Bentinho constri o seu deliro.

    A construo psquica da suspeita de ter sido trado foi a forma encontrada pelo seu

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    inconsciente para no realizar, ele prprio, a traio, de exercer e praticar o seu

    amor por Escobar. Uma vez tornando-se consciente da infidelidade dela, e

    ampliando-a, mantinha a sua inconsciente (FREUD, 1922, p. 241). Foi, portanto,

    admitindo os impulsos de traio em Capitu, que se fez possvel a construo de

    seu sintoma, tomando em considerao o conhecimento que o neurtico costuma ter

    do inconsciente do outro.

    A partir da constituio progressiva do delrio de cimes, constamos a existncia em Dom Casmurro dos trs tipos de cimes descritos por Freud (1922), o projetivo, o competitivo e o delirante, que sempre se encontram, segundo ele, presentes no caso da parania (QUINET, 2003, p. 206).

    Mediante todas essas pontuaes, percebe-se que a obra de Machado de

    Assis revelou-se um documento clnico literrio, devido consistncia e densidade

    psicolgica de Dom Casmurro, sendo perfeitamente aplicveis s teorias

    psicanalticas. Em seguida, apresentar-se- algumas concluses acerca da

    temtica abordada.

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    4. CONCLUSO

    O desenvolvimento deste trabalho teve por objetivo utilizar os conceitos

    psicanalticos como instrumento de anlise, tomando como objeto de estudo uma

    obra literria.

    O interesse partiu, inicialmente, da surpresa na constatao dos efeitos desse

    sentimento to ambguo e que, a princpio, parece irracional. Tamanha surpresa

    despertou a curiosidade em conhecer a fragilidade e as razes que levariam algum

    a se desestruturar to significativamente em decorrncia de um amor.

    As dvidas despertadas pela histria de Dom Casmurro foram devidamente

    esclarecidas atravs da teoria abordada neste trabalho. Embasado na teoria

    psicanaltica de Freud, pode-se inferir que se ele tivesse utilizado o caso que serviu

    como base para o presente trabalho, este poderia tambm ter contribudo para a

    formulao de suas teorias acerca do cime.

    A teoria freudiana mostrou que, no caso do cime, o inconsciente atua como

    regulador, recalcando o que ele quer esconder e demonstrando o que quer ou o que

    consegue deixar transparecer, ou ento, o que escapa a barreira do recalque. Alm

    do mais, discutiu-se a grande importncia dos primeiros relacionamentos da

    infncia, e seus reflexos no surgimento desse sentimento que, aparentemente, surge

    como resultado de uma ameaa atual, mas que na verdade, a revivncia de um

    primeiro trauma infantil do passado repercutindo no presente.

    Diante da questo proposta, e aplicando a teoria freudiana na obra

    machadiana, foi possvel concluir que o cime revela mais do que se imagina sobre

    o ciumento. A parania desse tipo de individuo segue uma lgica prpria, que busca

    proteg-lo de suas angstias, de seus verdadeiros desejos, suas frustraes e

    recalques.

    A psicanlise mostrou-se aplicvel no nica e exclusivamente s pessoas,

    mas tambm arte e sua produo. Abre-se a um leque de inumerveis opes de

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    produes e materiais. Faz-se crer, inclusive, que esse tipo de anlise pode refletir,

    direta e consideravelmente, no indivduo, at mesmo naquele que desconhece

    teorias psicolgicas, resultando, por exemplo, em uma auto-anlise e constatao

    da complexa teia na qual se forma o delrio, presentes nos casos mais graves do

    cime. Isso seria possvel partindo do pressuposto de que para Freud, na anlise, o

    sujeito deve refazer sua histria, atravs da compreenso da mesma.

    Esse trabalho despertou a vontade de continuar a explorar e analisar outras

    obras literrias sob luz da psicanlise, desvendando novos mistrios, novas

    histrias, novos personagens. Ao esmiuar e destrinar cada fala, cada atitude, cada

    deciso, pode-se compreender os porqus enraizados no inconsciente, to

    profundamente escondidos.

    Fica claro que, diferentemente da grande discusso levantada pela

    mencionada obra de Machado de Assis, a traio no discutida em momento

    algum neste trabalho. Apesar da relevncia, a traio de fato, no

    desencadeadora de um processo delirante que resulta em cime. Foi constatado

    que o cime patolgico tem origem profundamente enraizada no inconsciente e que

    por ser um processo interno, independe da parceira (o). possvel, com isso, dizer

    que Bentinho provavelmente no teria um caminho muito diferente do que teve se

    houvesse se casado com outra mulher.

    destacado agora, um aspecto no encontrado em nenhuma outra anlise

    da obra, mas considerado relevante. A ressaca do mar, inicialmente mencionada

    como uma metfora para definir o olhar de Capitu, a mesma que desperta o cime

    de Bento ao ver a esposa perdida em seus prprios pensamentos ao observar o

    mar. Em sua posio passiva, Bentinho no conseguiu dominar Capitu, com seus

    olhos de ressaca, mas Escobar com sua fora e postura diferente, enunciava seu

    prazer e sua capacidade de desafiar o mar bravio, o mesmo mar em ressaca que o

    tragou e o levou morte. Se Escobar conseguiu realmente dominar o mar ou o olhar

    de Capitu, no se sabe, mas poderia ser essa percepo das diferenas entre os

    dois que despertou o interesse homo-afetivo em Bentinho.

  • 47

    Aproveita-se o ensejo para confessar que a primeira idia era analisar duas

    obras, e no apenas uma; idia que foi abandonada com o desenvolvimento deste

    trabalho. Entretanto, retomado aqui, esse interesse para fazer consideraes a

    respeito de conexes entre essas obras. Otelo, de Shakespeare um clssico da

    literatura e que demonstra o tormento do cime levado s ltimas conseqncias e

    merece, inclusive, algumas menes por parte de Machado de Assis em Dom

    Casmurro. O cime de Otelo implantado por uma terceira pessoa em quem

    confiava. Iago, demonstrando sempre sua falsa fidelidade ao mouro, traa um plano

    maquiavlico no qual Otelo mergulha de cabea. As intrigas de Iago fazem Otelo

    acreditar na suposta traio de sua esposa, Desdmona, o que o leva a assassin-

    la. Cruzando as duas histrias, constata-se que o