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AS FUNÇÕES DA LITERATURA NA VISÃO DE TZVETAN
TODOROV E A IMPORTÂNCIA DA LEITURA
Francine Bystronski Puchalski*
Professora responsável: Rita Lenira de Freitas Bittencourt
RESUMO: O propósito deste trabalho é discutir as múltiplas funções da arte literária, apontadas por Tzvetan
Todorov em seu livro A literatura em perigo. O destaque exclusivo é para o capítulo “O que pode a literatura?”.
Tal estudo tem como finalidade apontar a importância do hábito da leitura com base nas funções do texto
literário. Será realizada, pois, uma análise baseada nas premissas utilizadas por Todorov e algumas observações
sobre as visões literárias de C.S. Lewis e J.R.R. Tolkien. Primeiramente, será ressaltada a capacidade de
transformação que a literatura exerce nos seres humanos, bem como o poder expressivo desta arte no tocante à
imaginação e à subjetividade do leitor. Logo após, o tema tratado dirá respeito aos conhecimentos sobre as
ciências humanas que a literatura proporciona. Também haverá uma abordagem sobre a questão da livre
interpretação de uma obra, realizada pelo leitor. Posteriormente, será trabalhada a questão da evolução intelectual
que o hábito da leitura enseja e, por fim, será discutida a maneira como os alunos devem ser encorajados pelos
professores a conhecer e desfrutar o universo literário. PALAVRAS-CHAVE: leitor, funções, hábito da leitura. RESUMEN: El propósito de este trabajo es discutir las múltiples funciones del arte literario, nombradas por
Tzvetan Todorov en su libro La literatura en peligro. El relieve exclusivo es el capítulo “Lo que puede la
literatura?”. Este estudio tiene como finalidad señalar la importancia del hábito de la lectura a través de las
funciones del texto literario. Se hará un análisis basado en las premisas utilizadas por Todorov y algunas
observaciones sobre las visiones literarias de C.S Lewis y J.R.R Tolkien. En primer lugar, será resaltada la
capacidad de transformación que la literatura ejerce en los seres humanos, así como el poder expresivo de este
arte en relación a la imaginación y subjetividad del lector. Después, el tema en cuestión se referirá a los
conocimientos sobre las ciencias humanas que la literatura proporciona. También habrá un abordaje sobre la libre
interpretación de una obra, hecha por el lector. Posteriormente, será trabajada la cuestión de la evolución
intelectual que da lugar al hábito de la lectura y, por fin, tendrá espacio una discusión sobre la manera como los
alumnos deben ser alentados por los profesores a conocer y disfrutar el universo literario. PALABRAS CLAVE: lector, funciones, hábito de la lectura.
1 Apresentação
Ao longo da história da humanidade, o poder fascinante da arte impressiona por sua
estética e valor cultural. Tal poder mostra-se tão significativo que se sobrepõe a ideologias
* Graduanda em Letras pela UFRGS. E-mail: [email protected].
políticas e sociais vigentes. A obra de arte, através de sua força expressiva e única de
manifestar-se, denuncia tanto as misérias e preconceitos da realidade, quanto deixa
transparecer o que há1 de belo e louvável no que é real e humano. Esse poder artístico provoca
o questionamento do senso comum e pode ocasionar uma mudança no pensamento coletivo da
sociedade de toda uma época. Assim é a arte e, por conseguinte, a literatura.
2 Poder de transformação e capacidade expressiva
A literatura, por sua vez, é geradora não só de uma transformação no nível do
pensamento coletivo, mas também, e, principalmente, no plano da individualidade. Todorov
(2009), mostra o exemplo de John Stuart Mill, que, “insensível a toda a alegria (...)” (Todorov,
2009, p.73) passa a encarar a vida sob um novo viés ao encontrar consolo nos poemas do
escritor inglês William Wordsworth:
Eles me pareceram ser a fonte na qual eu podia buscar a alegria interior, os prazeres
da simpatia e da imaginação que todos os seres humanos podem compartilhar (...).
Eu precisava que me fizessem sentir que há na contemplação tranqüila das belezas da
natureza uma felicidade verdadeira e permanente. (Todorov, 2009, p. 74).
Através dessa situação, a função da literatura como portadora de redescobertas sobre o
mundo mostra todo o seu valor. A qualidade de transportar o leitor através de mundos
imaginários e possíveis é altamente compensadora, especialmente quando aquele se dá conta
do quão vasto e inexplorável é o seu mundo, e o quanto ele ainda pode ser ampliado,
enriquecido e construído por cada vez mais novas descobertas, juntamente à apropriação de
idéias e sentimentos alheios que lhe são também próprios. Quanto a este último aspecto,
Todorov relata sua própria experiência:
(...) não posso dispensar as palavras dos poetas, as narrativas dos romancistas. Elas
me permitem dar forma aos sentimentos que experimento, ordenar o fluxo de
pequenos eventos que constituem minha vida. Elas me fazem sonhar, tremer de
inquietude ou me desesperar. (Todorov, 2009, p. 75-76.)
3 Os conhecimentos proporcionados
1*Graduanda em Letras pela UFRGS. E-mail: [email protected]
Além de toda essa gama de emoções que o universo literário permite vivenciar, este
mesmo universo mostra que é possível viajar, mentalmente, tanto no tempo como no espaço.
A obra-prima do escritor gaúcho Érico Veríssimo, O Tempo e Vento, dividida em O
Continente (1949), O Retrato (1951) e O Arquipélago (1962) é um excelente exemplo do que
podemos chamar de literatura de cunho histórico, pois sua leitura proporciona uma “viagem”
no tempo, na qual os eventos narrados e a trajetória das personagens se ligam a
acontecimentos históricos relevantes da formação do Rio Grande do Sul. O leitor, logo, ao
entrar em contato com esse tipo de obra, não só se vê envolvido pelos surpreendentes dramas
humanos, mas também pela maneira como o contexto histórico influencia as vidas das
personagens e complementa de forma intensa e decisiva os rumos da narrativa. Nesse sentido,
é notável como a literatura, além do simples prazer da leitura, ainda oportuniza conhecimentos
históricos à bagagem cultural do leitor. Ainda sobre a capacidade de ensinar da literatura,
Todorov ressalta:
(...) pode-se dizer que Dante ou Cervantes nos ensinam tanto sobre a condição
humana quanto os maiores sociólogos e psicólogos e que não há incompatibilidade
entre o primeiro saber e o segundo. (Todorov, 2009, p. 77.)
Naturalmente, é possível afirmar que o aprendizado de outras ciências humanas através
da literatura ocorre de uma maneira mais espontânea, pois o literário recorre à intuição e à
sensibilidade do leitor, colocando-o em um plano em que o mesmo possa identificar-se com
determinadas situações e assim assimilar os conhecimentos transmitidos, associando-os a
diferentes aspectos de sua própria vida.
Assim, conforme se dá a interação entre uma obra e o seu leitor, podem ocorrer
diversas interpretações diferentes sobre os eventos narrados, uma vez que cada indivíduo
costuma reagir às experiências relatadas conforme as suas próprias experiências. É importante
ressaltar que uma obra literária não é um texto que discorre a fim de verdades absolutas ou
idéias exatas. A respeito disso, Todorov afirma:
Ao dar forma a um objeto, um acontecimento ou um caráter, o escritor não faz a
imposição de uma tese, mas incita o leitor a formulá-la: em vez de impor, ele propõe,
deixando, portanto, seu leitor livre ao mesmo tempo em que o incita a se tornar mais
ativo. (Todorov, 2009, p. 78.)
4 O contato entre a obra e o leitor
De uma forma bastante esclarecedora, o autor inglês J.R.R Tolkien, no prefácio de O
Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel (1954), explica e nomeia o que ele considera ser a
livre interpretação do leitor e o que seria uma intenção mais restritiva do autor ao escrever
uma obra:
Gosto muito mais de histórias, verdadeiras ou inventadas, com sua aplicabilidade
variada ao pensamento e à experiência dos leitores. Acho que muitos confundem
”aplicabilidade” com “alegoria”; mas a primeira reside na liberdade do leitor, e a
segunda na dominação proposital do autor. (Tolkien, 2009, p. XIII.)
O autor, pois, ao conceder essa liberdade imaginativa ao leitor, lhe presta uma grande
contribuição para o aumento de sua criatividade, instigada e desenvolvida de acordo com o
desenrolar dos acontecimentos na obra. Dessa maneira, através da narrativa, o leitor não só
passa a conhecer novas perspectivas do que “a vida poderia ser”, mas também a conceber
novas formas de interpretação do mundo, colocando sua própria imaginação a serviço desse
propósito.
Em literatura, conforme se dá o encontro do leitor com as personagens, a oportunidade
de estar em contato íntimo com os sentimentos do outro possibilita aceitar as suas limitações,
bem como compreender mais profundamente a natureza humana e suas implicações. Pode-se
dizer que essa aproximação do leitor com a interioridade complexa dos seres humanos é, por
diversas vezes, mais facilmente possível através da obra literária do que até mesmo na vida
real. Afinal, como revela Todorov:
Conhecer novas personagens é como encontrar novas pessoas, com a diferença de
que podemos descobri-las interiormente de imediato, pois cada ação tem o ponto de
vista do seu autor. (Todorov, 2009, p. 80-81.)
Ou seja, o conhecimento de novas personagens amplia a visão de mundo daquele que
lê, colocando-o em contato com indivíduos multifacetados, sendo cada um peculiarmente
diferente na personalidade, nos hábitos e na forma como realiza suas escolhas. São essas
individualidades, curiosamente distintas umas das outras, que terminam por constituir um todo
único e indivisível: a essência da natureza humana. E o leitor, como bom entendedor de sua
própria essência, logo toma consciência disso.
5 O incentivo à leitura
Tamanha é a grandeza e a amplitude de novas perspectivas que a literatura traz, que é
fundamental o interesse pelo objeto literário ser estimulado desde a mais tenra idade. É
também importante ressaltar que o hábito da leitura é mais facilmente adquirido através das
livres escolhas do leitor. Com isso, o papel fundamental dos pais e dos professores, em um
primeiro momento, seria somente encorajar a prática diária da leitura, até que esta prática
adquirisse uma condição de hábito constante na vida das crianças e dos adolescentes.
O incentivo à leitura não pode ser limitado, isto é, não pode ser restritivo, ditando ao
jovem o que ele deve ler e o que ele não deve ler. O gosto pela literatura infanto-juvenil, por
exemplo, não exclui a possibilidade do gosto pela leitura dos clássicos adultos,
posteriormente. Com muita propriedade, o escritor irlandês C.S Lewis discorre a sua
experiência a respeito do assunto em Três maneiras de escrever para crianças, uma espécie de
epílogo para a sua mais notável obra infantil, intitulada As Crônicas de Nárnia (1956). Lewis,
então, deixa claro o seu ponto de vista:
Hoje em dia, já não gosto somente de contos de fadas, mas também de Tolstói, Jane
Austen e Trollope, e chamo isso de crescimento; se tivesse precisado deixar de lado
os contos de fadas para apreciar os romancistas, não diria que cresci, mas que mudei.
(Lewis, 2010, p. 744.)
O que se destaca aqui, portanto, é o crescimento intelectual. Esse processo, que atinge
todos os aspectos da existência humana, só é enriquecedor a partir do momento em que se
valoriza a evolução pela qual qualquer indivíduo precisa passar, antes que o aperfeiçoamento
intelectual finalmente atinja níveis mais elevados. Assim, o hábito da leitura deve ser
persistentemente incentivado em nosso meio, “desde os Três Mosqueteiros até Harry Potter”
(Todorov, 2009, p. 82), como bem diz Todorov. Dessa maneira, o poder da arte literária
aumenta, o hábito da leitura se intensifica e o ganho intelectual do leitor só tende a crescer
cada vez mais.
REFERÊNCIAS
BORDINI, Maria da Glória e ZILBERMAN, Regina. O tempo e o Vento. História, Invenção e
Metamorfose. Porto Alegre: Edipucrs, 2004.
LEWIS, C. S. As Crônicas de Nárnia. Três maneiras de escrever para crianças. Trad. Paulo
Mendes Campos. São Paulo: Martins Fontes - 2ª edição, 2009.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. Rio de Janeiro: Difel, 2009.
TOLKIEN, J. R. R. O Senhor dos Anéis. A Sociedade do Anel. Trad. Lenita Maria Rímoli
Esteves. São Paulo: Martins Fontes - 2ª edição, 2000.