as faces da carranca - corrigido

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AS FACES DA CARRANCA Por Eduardo Gomes, Nilzete Brito e Tito Souza Um close no rosto esbranquiçado e logo surge um olhar de vermelhidão atípica. A boca em forma de arco torna evidente todos os grandes dentes caninos desta figura assustadora. Assim como nos filmes de vampiro, as carrancas ganharam aspectos semelhantes aos dos personagens desses trailers de terror. Dissociadas das barcas ao longo do século XX, as carrancas passaram a ter novos significados para o povo ribeirinho. A começar pelos remeiros que buscavam uma explicação sobrenatural para os naufrágios e encalhes. Eles também acreditavam em duendes, lobisomem, Nego d´ Água, Mãe d´ Água e no minhocão, e para se proteger, atribuíam às carrancas o papel de afugentar as criaturas que habitavam o rio. Na tradição que envolve as carrancas, arte e crendice se misturam. Enquanto algumas pessoas lhes atribuem poderes mágicos, como o de espantar os olhares invejosos, outras as consideram apenas como peças de adorno. Existem ainda os que fazem o uso da escultura com as duas finalidades, como é o caso da funcionária pública Fátima Santos. Em sua casa há três carrancas, em diferentes versões e tamanhos. “Elas servem para evitar mau-olhado, mas eu também uso como enfeite”, revela. A professora especialista no estudo destas caras de pau, Elizabeth Moreira, afirma que no início as carrancas possuíam apenas as formas de animal e de gente, constituindo uma só figura. No entanto, com o passar do tempo, surgiu outra linhagem de carranca, as chamadas carrancas-vampiro, que são uma espécie de evolução que ocorreu nas peças. Os artesãos passaram a aumentar os dentes das figuras, modificar a farta cabeleira, transformando também os tons claros de sua madeira. “A língua vermelha, os olhos vermelhos. Para mim, essa questão

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AS FACES DA CARRANCA

Por Eduardo Gomes, Nilzete Brito e Tito Souza

Um close no rosto esbranquiçado e logo surge um olhar de vermelhidão atípica. A boca em forma de arco torna evidente todos os grandes dentes caninos desta figura assustadora. Assim como nos filmes de vampiro, as carrancas ganharam aspectos semelhantes aos dos personagens desses trailers de terror.

Dissociadas das barcas ao longo do século XX, as carrancas passaram a ter novos significados para o povo ribeirinho. A começar pelos remeiros que buscavam uma explicação sobrenatural para os naufrágios e encalhes. Eles também acreditavam em duendes, lobisomem, Nego d´ Água, Mãe d´ Água e no minhocão, e para se proteger, atribuíam às carrancas o papel de afugentar as criaturas que habitavam o rio.

Na tradição que envolve as carrancas, arte e crendice se misturam. Enquanto algumas pessoas lhes atribuem poderes mágicos, como o de espantar os olhares invejosos, outras as consideram apenas como peças de adorno. Existem ainda os que fazem o uso da escultura com as duas finalidades, como é o caso da funcionária pública Fátima Santos. Em sua casa há três carrancas, em diferentes versões e tamanhos. “Elas servem para evitar mau-olhado, mas eu também uso como enfeite”, revela.

A professora especialista no estudo destas caras de pau, Elizabeth Moreira, afirma que no início as carrancas possuíam apenas as formas de animal e de gente, constituindo uma só figura. No entanto, com o passar do tempo, surgiu outra linhagem de carranca, as chamadas carrancas-vampiro, que são uma espécie de evolução que ocorreu nas peças. Os artesãos passaram a aumentar os dentes das figuras, modificar a farta cabeleira, transformando também os tons claros de sua madeira. “A língua vermelha, os olhos vermelhos. Para mim, essa questão das cores tem muito a ver com os vampiros do cinema. Ela foi evoluindo para essa associação vampiresca”, explica.

Os significados da carranca variavam de acordo com o contexto sócio-cultural que a envolviam. Para os remeiros, possuir uma carranca significava uma forma de ostentação. No início, apenas os barcos maiores possuíam um exemplar em formato de figura de proa. A professora Elizabeth relata que para os que acreditavam no misticismo da peça, quanto mais assustadora fosse a carranca, maior seria o seu poder.

A especialista defende que o valor dado ao objeto depende do significado que lhe atribuem, seja pela proteção, pelo exótico ou por uma estima meramente decorativa. Em seu livro, Elizabeth Moreira tenta explicar essa ambigüidade entre o horror e a exaltação das carrancas. “Como entender essa receptividade das carrancas pelo publico? Não será esse exagero carnavalesco o motivo de sua aceitação?” questiona a pesquisadora.

Consideradas símbolos da cultura ribeirinha, as carrancas atraem os olhares curiosos dos turistas que chegam ao Vale do São Francisco. De acordo com o artesão Josenildo da Silva, a procura pelas figuras é frequente. “A carranca é uma tradição dos ribeirinhos em Juazeiro e Petrolina. Quem vem de fora quer levar uma carranca do São Francisco como lembrança”, explica o artista. No meio das artes, essas peças foram ganhando novos sentidos, e de forma criativa ganhou destaque em outros tipos de materiais. Um

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exemplo disso é a artesã Ana das Carrancas que se destacou pela particularidade de produzir carrancas com barro, quando só existiam exemplares feitos em madeira.

O tempo passa e mãos continuam a esculpir com excelência os olhos esbugalhados e os dentes caninos avantajados que estão sempre à mostra. A carranca hoje é um símbolo da região do vale do São Francisco e pode ser encontrada em pontos de destaque nas cidades ribeirinhas, como também na bandeira de Juazeiro, mostrando a representatividade que a peça de arte tem para a cidade. Este é um símbolo que traz em si a história da região e que deve ser preservado, para que outras gerações conheçam o passado e a cultura presente no vale do São Francisco.

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