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Centro de Estudos Ferreira de Castro ÀS ENTIDADES DE LISBOA E SINTRA «Nunca pedi nada à minha pátria, nunca pedi ou jamais recebi qualquer favor ou amparo oficial. Hoje, porém, faço-lhe uma solicitação, ao mesmo tempo a primeira e a última; é tal, e morrerei com a esperança de que não me será negado. Peço às entidades de Lisboa e de Sintra das quais a anuência dependa, peço às entidades existentes no momento da minha morte ou às que lhe sucedam, se aquelas não me derem deferimento, que autorizem a realização da derradeira vontade que expresso aqui. Tendo escrito a maior parte da minha obra em Sintra, onde tanto sonhei e trabalhei, eu desejaria ficar ali para sempre, entregue à protecção da sua poesia inesquecível e da sua beleza inefável. Desejaria ficar sepultado à beira duma dessas poéticas veredas que dão acesso ao Castelo dos Mouros, sob as velhas árvores românticas que ali residem e tantas vezes contemplei com esta ideia no meu espírito. Ficar perto dos homens, meus irmãos, e mais próximo da lua e das estrelas, minhas amigas, tendo em frente a terra verde e o mar a perder de vista – o mar e a terra que tanto amei. Para a efectivação deste desejo conforta-me saber que ele não é unicamente meu, que há muitos precedentes, em Portugal e no estrangeiro, de escritores, de poetas, de compositores e de outros artistas, mesmo de individualidades particulares, que foram inumadas em sítios por eles preferidos para repouso definitivo. Sem pretender igualar-me aos seus méritos, salvo no amor à natureza e em especial a Sintra, lembro-me de alguns neste momento. Lembro-me de Sibelius, num bosque de Helsínquia; de Taine, em frente ao lago de Annecy, também entre árvores; de Rousseau, no parque de Ermenonville, onde jazeu longos anos, num cenário muito mais belo do que esse sombrio e dramático Panteão de França, onde, mais tarde, o encerraram. Recordo-me ainda de Verhaeren, no cais do Porto de Saint-Amand, na Bélgica; de Malaparte, numa colina da cidade de Prato, na Itália; de Chateaubriand, no Grand Bo, na Bretanha; de Castro Guimarães, no seu jardim de Cascais, além daqueles que desejaram e ficaram sepultados em igrejas, como Gomes Teixeira e Alfredo Pimenta, ou nas capelas de suas casas, como António Correia de Oliveira e o amador de arte Ricardo Espirito Santo Silva. Se me for concedido aquele derradeiro lugar, eu desejaria que o meu caixão ficasse colocado dentro dum quadrilongo de cimento, coberto com placas de granito cimentadas e por cima uma camada de terra onde as ervas rasteiras vivessem livremente. Desejaria também que não houvesse nenhum atributo fúnebre, nada que recordasse a morte, mas apenas, ao

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Centro de Estudos Ferreira de Castro

ÀS ENTIDADES DE LISBOA E SINTRA

«Nunca pedi nada à minha pátria, nunca pedi ou jamais recebi qualquer favor ou amparo oficial. Hoje, porém, faço-lhe uma solicitação, ao mesmo tempo a primeira e a última; é tal, e morrerei com a esperança de que não me será negado. Peço às entidades de Lisboa e de Sintra das quais a anuência dependa, peço às entidades existentes no momento da minha morte ou às que lhe sucedam, se aquelas não me derem deferimento, que autorizem a realização da derradeira vontade que expresso aqui. Tendo escrito a maior parte da minha obra em Sintra, onde tanto sonhei e trabalhei, eu desejaria ficar ali para sempre, entregue à protecção da sua poesia inesquecível e da sua beleza inefável. Desejaria ficar sepultado à beira duma dessas poéticas veredas que dão acesso ao Castelo dos Mouros, sob as velhas árvores românticas que ali residem e tantas vezes contemplei com esta ideia no meu espírito. Ficar perto dos homens, meus irmãos, e mais próximo da lua e das estrelas, minhas amigas, tendo em frente a terra verde e o mar a perder de vista – o mar e a terra que tanto amei. Para a efectivação deste desejo conforta-me saber que ele não é unicamente meu, que há muitos precedentes, em Portugal e no estrangeiro, de escritores, de poetas, de compositores e de outros artistas, mesmo de individualidades particulares, que foram inumadas em sítios por eles preferidos para repouso definitivo. Sem pretender igualar-me aos seus méritos, salvo no amor à natureza e em especial a Sintra, lembro-me de alguns neste momento. Lembro-me de Sibelius, num bosque de Helsínquia; de Taine, em frente ao lago de Annecy, também entre árvores; de Rousseau, no parque de Ermenonville, onde jazeu longos anos, num cenário muito mais belo do que esse sombrio e dramático Panteão de França, onde, mais tarde, o encerraram. Recordo-me ainda de Verhaeren, no cais do Porto de Saint-Amand, na Bélgica; de Malaparte, numa colina da cidade de Prato, na Itália; de Chateaubriand, no Grand Bo, na Bretanha; de Castro Guimarães, no seu jardim de Cascais, além daqueles que desejaram e ficaram sepultados em igrejas, como Gomes Teixeira e Alfredo Pimenta, ou nas capelas de suas casas, como António Correia de Oliveira e o amador de arte Ricardo Espirito Santo Silva. Se me for concedido aquele derradeiro lugar, eu desejaria que o meu caixão ficasse colocado dentro dum quadrilongo de cimento, coberto com placas de granito cimentadas e por cima uma camada de terra onde as ervas rasteiras vivessem livremente. Desejaria também que não houvesse nenhum atributo fúnebre, nada que recordasse a morte, mas apenas, ao lado da campa invisível, um bloco de granito cavado em forma de banco, voltado para a vereda; um banco onde pudesse descansar quem por ali subisse ao castelo ou andasse, em erradios passos, comungando com a poesia de Sintra, como milhares de vezes eu andei. Não pretendia nenhuma inscrição. Mas se alguma for precisa, como admitiu o Dr. Álvaro Salema, ao ler o embrião deste documento, peço que seja limitada às palavras “Escritor Ferreira de Castro”, discretamente gravadas nas costas do banco. Assim não haverá no local qualquer ambiente funerário. Hoje, vinte e cinco de Fevereiro de mil novecentos e setenta, com intensa emoção estou a escrever e a ver nitidamente aquele banco, a vê-lo como se ele já estivesse lá. E grandemente me comove a esperança de que os homens do meu país lhe darão realidade.

Lisboa, 25 de Fevereiro de 1970.»

Extraído de “In Memoriam de Ferreira de Castro”, Arquivo Bio-Bibliográfico dos Escritores e Homens de Letras, Cascais, 1976, pp. 213, 214.

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