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As encruzilhadas da j moda sustentável À semelhança da indústria da carne ou do plástico, também a moda começa a surgir sob os holofotes da sustentabilidade. E a visão está longe de ser perfeita. Em resposta, marcas, fábricas, universidades e consumidores questionam o fabrico e iniciativas que apelam ao consumo desenfreado em dias como a Black Friday. Procuram soluções para um puzzle, cujas peças ainda estão muito desordenadas Por Mara Gonçalves e Vera Moutinho

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  • Asencruzilhadasda jmodasustentável

    À semelhança da indústria dacarne ou do plástico, tambéma moda começa a surgir sob osholofotes da sustentabilidade.E a visão está longe de serperfeita. Em resposta, marcas,fábricas, universidades econsumidores questionam ofabrico e iniciativas que apelamao consumo desenfreadoem dias como a Black Friday.Procuram soluções para umpuzzle, cujas peças ainda estãomuito desordenadas

    Por Mara Gonçalves e Vera Moutinho

  • A excepçãodas botas, tudo o

    que Gonçalo Silva traz vesti-do foi comprado em lojas de

    roupa em segunda mão. Háum ano que deixou de comer

    carne, evita os plásticos. JáMaria Monteiro confessa terarmários cheios de roupa.

    Chegou a ter uns 15 calções praticamente todosiguais, mas de cores diferentes e parece-lhedemasiado difícil um dia renunciar por com-pleto àfastfashion, ainda que já se tenha aper-cebido de que está "a alimentar uma série de

    comportamentos com os quais não se identifi-ca", como más condições de trabalho ou o des-

    perdício de roupa. Foi por isso que RaquelSantos e Carolina Duran passaram a evitar oscentros comerciais. Sentem-se culpadas de cadavez que cedem à tentação da roupa bonita ebarata das grandes marcas.

    Os quatro são alunos da licenciatura de De-sign de Moda da Faculdade de Arquitectura daUniversidade de Lisboa. Estão a estudar paraum dia trabalharem numa indústria que, co-meçam agora a perceber, é uma das mais ne-fastas do planeta, com grandes impactos anível ambiental e social. Ao mesmo tempo, fa-zem parte da geração na vanguarda da lutapelo clima, encorajada por activistas comoGreta Thunberg e movimentos como o Extinc-tion Rebellion. A "emergência climática", elei-ta palavra do ano pelos dicionários Oxford,começa a alastrar-se às diferentes áreas do con-sumismo. Depois da guerra ao plástico e das

    preocupações com a alimentação, os holofotes

    apontam agora ao que vestimos. E no que àsustentabilidade diz respeito, a indústria damoda está longe de ser perfeita.

    De acordo com um relatório da Quantis, em-

    presa ligada à sustentabilidade ambiental, "oimpacto da indústria nas alterações climáticasaumentou 35% entre 2005 e 2016, impulsiona-do por mudanças nos materiais utilizados, noshábitos de consumo e nos locais de produção".Em 2016, o sector têxtil representava cerca de"6,7% dos impactos globais no clima", liber-tando o equivalente a "3290 milhões de tone-ladas de CO2" para a atmosfera. A Quantisprevê que o valor cresça 50% nos próximosdez anos, se nada for alterado.

    Mas há outros factores a ter em conta: o usode pesticidas no cultivo de fibras naturais comoo algodão (10% a 20% do total), a poluição derios e afluentes provocada pelo uso de solven-tes e de tintas ao longo do ciclo de produção(um quinto da poluição industrial das águas),ou os microplásticos libertados no oceano du-rante as lavagens, antes e depois de a roupachegar ao armário (35%), recorda um estudoda McKinsey & Co. publicado este mês. En-

    quanto a produção de algodão secava o marde Arai (Cazaquistão/Uzbequistão), a vida dealguns rios na China, na índia e no Bangladeshmorria consumida pelos produtos químicosdescarregados pelas fábricas de têxteis.

    Depois é preciso não esquecer o impactosocial de uma indústria tão globalizada queinterfere na economia de quase todos os paísesdo mundo (enquanto produtores e consumi-dores), nomeadamente países como o Bangla-desh, a índia ou o Paquistão, onde se concen-tra a maioria das fábricas, com parco escrutínioao nível das condições de trabalho (e de res-peito pelo meio ambiente). Segundo o índiceGlobal da Escravatura para 2018, o vestuário

    surge em segundo lugar no top 5 dos produtosimportados pelos países do G2O sob o risco deterem sido produzidos em ambientes de escra-vatura moderna.

    Imaginemos todas as operações realizadasno fabrico de uma T-shirt de algodão. É neces-

    sário cultivar e colher o algodão, transformá-lo em fio, depois em tecido, talvez tingir ouestampar, fazer os acabamentos, confeccionara T-shirt, embalá-la e transportá-la até à loja."Para custar três euros significa que alguémna cadeia está a perder. E muito. E, normal-mente, não é por causa [da qualidade] domaterial, é por causa da pessoa que fez aque-la peça", resume Graziela Sousa, professorade Design de Moda na Faculdade de Arquitec-tura. "Os três euros não pagam sequer otransporte. Como é que podemosachar que alguém ainda ga-nhou alguma coisa? Supos-tamente são 18 cêntimos,não faz sentido ne-nhum."

    Catástrofes como a der-rocada do Rana Plaza em2013, que matou mais demil trabalhadores e feriuoutros 2500, trouxeram"um mediatismo gigante"às más condições laboraisvividas nas fábricas ondese produz "milhões depeças para as grandesmarcas áefastfashiondo Ocidente", recordaSalomé Areias, coorde-nadora da Fashion Re-volution em Portugal,movimento que nas-ceu após a tragédiapara alertar para osproblemas laboraisda indústria (da faltade segurança aosbaixos salários, dotrabalho infantil à

  • desigualdade de gé-nero). No entanto,o problema persis-te. No final de Ou-tubro, um trabalhode investigação doWall Streetjournaldescobriu à vendana Amazon roupaproduzida em fá-bricas banidaspor outros reta-lhistas norte-americanos pornão cumpriremcondições míni-mas de segu-rança. E lançouo alerta: a pres-são da concor-rência dos sitesgeneralistas de ven-das online, como a Amazon, pode estar a pôrem causa os esforços feitos para mitigar o pro-blema e traz obstáculos acrescidos à respon-sabilização e transparência ao longo da cadeiade fornecimento.

    Excesso de peças no guarda-roupa"Não há volta a dar", garante Mário MatosRibeiro, professor de Design de Moda e coor-denador do curso na Faculdade de Arquitec-tura. "Embora a indústria demore algumtempo a ser toda circular, é o único caminho

    que temos." A sustentabilidade já era tema

    de algumas aulas. Foi por influência do cursoque Raquel, Carolina e outros colegas, agorano segundo ano da licenciatura, criaram ainiciativa Res-ser, com palestras e workshopssobre os impactos e alternativas àfastfashion.Mas este ano, pela primeira vez, a sustenta-bilidade vai ser o tópico orientador de todaa licenciatura.

    Para quem se estreia nos bancos da facul-dade, isso significa ver documentários comoo True Cost e o Blueriver, estudar a evoluçãoda moda e os seus impactos sociais, culturaise económicos ao longo da história e, sobretu-do, confrontar-se com os seus próprios hábi-tos de consumo. Um dos primeiros trabalhosconsistiu em fazer um levantamento de todoo guarda-roupa: contar o número de peçasque tinham, escolher 12 para vestir naquelasaulas durante todo o semestre (ou 18, casoincluíssem roupa em segunda mão), detalhardados sobre cada peça como a marca, o pre-ço, o custo da mão-de-obra ou os materiaisutilizados e, por fim, traçar-lhes o itinerário,da origem ao consumidor.

    "Acho que tinha 140 [peças], mais ou me-nos. Agora só poder usar 18 é um bocado es-tranho, mas faz-se", conta Gonçalo Silva, en-quanto desenha umas franjas de cabedal parao exercício de upcycling. Têm de transformaruma velha T-shirt com restos de tecidos paracriar uma peça de roupa nova. Maria Montei-ro contou 77 peças no armário, mas confessater muito mais . Há quem tenha chegado ->

  • às 500. Para Inês Simões, professora da ca-deira de mestrado Sustentabilidade e Moda,é fundamental que os alunos compreendam"porque é que somos atraídos para comprar,comprar, comprar". E que percebam "quetodos nós temos excesso de peças no nossoguarda-roupa" porque, apesar de algumasainda estarem em bom estado, entretanto já"fomos atraídos por outras". "Se como con-sumidor não começar a perceber este dilema,como é que posso contribuir, como designer,para solucionar o problema?"

    Os volumes da indústria são avassaladores.De acordo com um estudo publicado pelaMcKinsey em 2016, "a produção de vestuárioduplicou de 2000 para 2014", ano em que ul-trapassou, pela primeira vez, 100 mil milhõesde peças produzidas, "o equivalente a quase14 peças por cada ser humano". "Afastfashiontem sido um segmento particularmente fortee uma fonte de crescimento invejável para al-

    gumas empresas. Ao comprimir os ciclos de

    produção e ao apresentar designs sempre ac-tualizados, as empresas têm incentivado osconsumidores não só a expandir os seus guar-da-roupas, como a actualizá-los rapidamente",resumia o relatório. A Zara, apontava, lança24 colecções por ano, enquanto a H&M apre-

  • senta entre 12 a 16, "actualizando-as semanal-mente". Num espaço de 15 anos, "o númerode peças compradas por ano pelo consumidorcomum subiu 60%", mas este fica com elas"cerca de metade" do tempo. E, no caso áafastfashion, "é estimado que mais de metade sejadescartado em menos de um ano".

    Segundo um outro relatório da FundaçãoEllen MacArthur, apenas 20% da roupa des-cartada é recolhida para ser reutilizada ou re-ciclada. O resto acaba em aterros ou é incine-rado - tanto aquilo que é deitado fora peloconsumidor, como o que sobra nas lojas. Em

    Julho, a polémica estalou quando foi revelado

    que a Burberry tinha destruído roupas, aces-sórios e perfumes não vendidos no valor de 28milhões de libras (33 milhões de euros) no anoanterior, somando um total de 90 milhões delibras (100 milhões de euros) em artigos des-truídos ao longo dos últimos cinco anos.

    Para Inês Simões, "é quase irrelevante falarde sustentabilidade, se nós, enquanto consu-midores, não percebermos que contribuímos

    para a insustentabilidade". E que temos umapalavra a dizer. "Não é só a indústria que podetomar conta do assunto. Somos nós, enquan-to consumidores, que temos de participarneste processo."

    Governos e marcas tomam posiçãoNos últimos anos, tem-se assistido a uma vi-ragem. No final de 2018, na Conferência das

    Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas,foi lançado o Fashion Industry Charter forClimate Action, um compromisso para a neu-tralidade carbónica em 2050, assinado por89 das maiores empresas do sector. Poucodepois, dez agências da ONU uniam-se naAliança para a Moda Sustentável. E em Agos-to, durante a reunião do G7, a Kering (empre-sa proprietária de marcas como Gucci, YvesSaint Laurent ou Balenciaga) liderou um novo"fashion pact" promovido por Emmanuel Ma-cron, com o objectivo de reduzir o impactoambiental da indústria.

    Os governos também começam a tomar po-sição. Em Junho, o Parlamento francês aprovouuma nova medida que proíbe a destruição deartigos de moda não vendidos e obriga fabri-cantes e retalhistas a doar, reutilizar ou reciclaros excedentes (medida a ser executada até2023). Já a Alemanha lançou em Setembro a

    iniciativa "Botão Verde", a primeira etiquetasustentável do mundo a ser criada por um go-verno. Em Portugal, a Quercus defende a cria-

    ção de uma ecotaxa. "As marcas deviam pagaruma taxa ambiental por cada peça que colocamno mercado pelo impacto que a peça vai ter alongo prazo não só na sua produção, comodepois quando se transformar num resíduo",afirma Carmem lima, coordenadora do Centrode Informação de Resíduos da Quercus. O va-

    lor, acrescenta, deveria depois "reverter emcampanhas de sensibilização".

    Quanto às marcas, a sustentabilidade estáestampada um pouco por todo o lado, dos sitesàs etiquetas e à publicidade. Segundo a McKin-

    sey, "embora o número total de peças feitascom materiais sustentáveis no mercado de mas-sas permaneça baixo, é cinco vezes maior do

    que há dois anos" . De acordo com o Wall StreetJournal, os principais grupos da indústria estãoa contratar especialistas em sustentabilidade,incluindo a Kering, a PVH (proprietária de mar-cas como Tommy Hilfiger e Calvin Klein), a H&Mou a Inditex (dona da Zara, da Massimo Dutti,da Bershka, Pull&Bear, entre outras).

    Em Junho, a Zara anunciou que vai passar autilizar apenas "tecidos 100% sustentáveis".Até 2025, todo o algodão, por exemplo, seráorgânico, reciclado ou produzido no âmbitoda Better Cotton Initiative, uma organizaçãonão governamental que trabalha com agricul-tores recorrendo a práticas social e ambiental-mente mais sustentáveis. Garante ainda quetodas as lojas serão eco-eficientes até ao finaldo ano. Já a H&M foi uma das primeiras a anun-ciar medidas ligadas à sustentabilidade, lan-

    çando a primeira colecção Conscious em 2011e, dois anos depois, uma iniciativa de recolhade roupa para doação ou reciclagem nas lojasda marca. Em duas décadas, o grupo transfor-mou-se na segunda maior empresa da indústriada moda, com uma produção a rondar três milmilhões de peças por ano.

    O grupo anunciou recentemente que todosos produtos vendidos serão feitos de materiaisreciclados ou sustentáveis até 2030. Actual-mente, as fibras recicladas correspondem acerca de 0,018% do total. O objectivo é tornartoda a operação circular, ou seja, que no finaltudo possa ser reutilizado ou decomposto. Paraisso, a fundação criada pelo grupo está a tra-balhar num sistema de reciclagem capaz deseparar os diferentes tipos de fio dos tecidos

    compostos. Está também a apostar no segmen-to da roupa em segunda mão: prepara-se paralançar um projecto-piloto em Estocolmo nas

    próximas semanas e é accionista maioritáriona Sellpy, uma plataforma de vendas online,diz Nuria Ramirez, directora de sustentabili-dade do grupo para a Península Ibérica. "Paraatender às necessidades de quase 10 mil mi-lhões de pessoas que existirão no mundo em2050, precisaremos de crescimento contínuotambém no futuro, mas tem de ser feito dentrodos limites do planeta."

    Colecções de fachadae "sustentabilidadezinhas"Mas será esta uma tendência passageira ou umaverdadeira mudança de paradigma? Para Sa-lomé Areias, as grandes marcas resumem-se aoferecer o que os consumidores lhes pedem.

  • "Se procuram fibras mais ecológicas, peças quepossam ser recicladas, fibras compostáveis, asmarcas vão dar exactamente isso, mas não têmconsciência moral sobre a sustentabilidade."

    É por isso que a coordenadora da FashionRevolution em Portugal fala de "sustentabi-lidadezinhas" para classificar o que tem sidofeito pelas principais empresas da indústria.E dá o exemplo da utilização de garrafas PET.As parangonas anunciam plástico reciclado,mas a etiqueta revela que apenas 20% dacomposição utiliza este material, misturadocom elastano ou algodão, o que dificulta aposterior reciclagem da peça. "Estamos atrazer o problema de outra indústria para anossa sem resolver nada desta." E o maisprovável é que tenha sido feita "no Bangla-desh ou na China".

    Somam-se as vozes que acusam as marcasde usarem a sustentabilidade como uma fer-ramenta de marketing, sem apostarem numaverdadeira transformação dos modos de fun-cionamento e dos modelos de negócio, ochamado "greenwashing". "Passam este con-ceito só porque é uma tendência, mas nãoestão a fazer coisas éticas, estão só a passara ideia de que o estão a fazer", acusa RaquelSantos. "Acho incoerente [algumas marcas]terem uma colecção normal, nada ecológica,e outra colecção com práticas ecológicas",denuncia Gonçalo Silva. Revela que "não sepreocupam e que fazem uma colecção qua-se de fachada".

    Segundo o relatório da organização ambien-talista Stand.earth, por exemplo, publicado noinício de Novembro, apenas duas das 45 mar-cas avaliadas anunciam um compromisso decombate às alterações climáticas em linha coma meta de I,5°C estabelecida pelo Acordo deParis (Levi Strauss & Co. e American EagleOutfitters). Das restantes, 17 assumem poucoou nenhum compromisso nesse sentido. E aFashion Revolution revela que "apenas 55%das marcas publicam anualmente a pegadacarbónica das suas fábricas e só 19,5% publicamessa informação relativamente à cadeia de for-necimento".

    "Às marcas áefastfashion não lhes interessaserem sustentáveis. Interessa-lhes mostrar quesão sustentáveis", defende Salomé. Sempreque uma marca se anuncia como sustentável,surgem mil perguntas, diz. "É sustentável por-que poupa água? Porque usa materiais que não

    Ser e parecer"Às marcas de fastfashion não lhesinteressa serem sustentáveis.Interessa-lhes mostrar que sãosustentáveis", diz Salomé Areias,coordenadora da Fashion Revolutionem Portugal (em cima).Gonçalo Silva, aluno de Design de

    Moda da Faculdade de Arquitecturade Lisboa (à direita), tem 140 peçasde roupa mas comprometeu-se ausar só 12 durante um semestre

    têm impacto nos solos? Ou nos rios? Não usaquímicos? Ou os trabalhadores que fazem oproduto recebem um ordenado mínimo e con-seguem ter um crescimento intelectual, cria-tivo e autónomo na sua vida? Ou é porque [amarca] não maltrata ou envolve animais?" Atónica é quase sempre nas questões ambien-tais. Raramente se publicitam medidas de me-lhoria das condições de trabalho ou de reduçãodas quantidades de produção.

    Fastfashion sustentável?A sustentabilidade "tem uma complexidadegigante". E é impossível atingir os 100%, por-que "a transformação de uma matéria-primano que quer que seja tem sempre um impacto".Por isso, Salomé Areias é taxativa: "Falar em

  • fastfashion sustentável é um absoluto parado-xo." O modelo de negócio destas marcas, des-creve, baseia-se em três grandes pilares: "Pro-duzir a maior quantidade possível, o mais de-

    pressa possível, ao mais baixo custo possível.""Nunca vamos conseguir um modelo de negó-cio destes onde quer que seja que não esgoteabsolutamente os recursos, sejam laborais,sejam matérias-primas."

    Pelo contrário, Cristiana Costa, fundadorada Nãz, uma marca de moda sustentável por-tuguesa, acredita que não só é possível existirfastfashion sustentável, como são essas as mar-cas que "têm capacidade para mudar" a indús-tria. "São elas que mandam nisto. Têm dinhei-ro para realmente fazer moda sustentável,fazer investigação." É "utópica" a ideia de "ir

    a uma [loja do grupo] Inditex, comprar umaT-shirt de algodão, usá-la dois anos, devolvê-laà Inditex, eles reciclarem e voltarem a fazeroutra?" É. Mas não é impossível.

    Anne-Ro Klevant Groen, da Fashion forGood, defende que é necessário contar comtodos os intervenientes. "Precisamos de mudara indústria como um todo e qualquer passo nadirecção certa é um bom passo." A plataforma,criada há três anos em Amesterdão, procuraincentivar uma "mudança sistemática na in-dústria da moda", promovendo a ligação entreas empresas e a inovação. Uma das iniciativas

    passa pelo museu interactivo sobre a indústria

    que tem como objectivo educar o consumidor.No final da experiência, é entregue um planopersonalizado a cada participante para o apli-car na sua vida diária.

    Para Cristiana Costa, está aqui "o verdadeiro

    poder do consumidor". "As marcas não vãomudar de um momento para o outro porquequerem ser amigas do ambiente. Vão mudar

    porque os consumidores querem ser amigosdo ambiente." Porque lhes traz lucro. É nestemomento que as vozes que acusam as grandesmarcas de greenwashing se levantam. Mas étambém neste ponto que se encontram con-sensos.

    Enquanto uns acreditam que a mudança deparadigma pode ser feita dentro do modelo de

    negócio áafastfashion e outros defendem quesó é possível à margem desta ou com umatransformação completa da indústria, ninguémrecusa o papel do consumidor. É ele quem tem"poder para os empurrar" nesse caminho.

    Consumidores atentosOs consumidores dão sinais de estarem cadavez mais atentos à problemática. Se em 2018a sustentabilidade já surgia entre as tendên-cias mais procuradas na plataforma de pes-quisa de roupa Lyst, mas em último lugar,este ano o conceito esteve na dianteira dosinteresses dos consumidores, aliado a umacrescente preocupação com causas sociais e

    ambientais. As pesquisas que incluíram pa-lavras-chave relacionadas com sustentabili-dade "aumentaram 75% relativamente ao anopassado, com uma média de 27 mil pesquisaspor mês sobre moda sustentável", lê-se norelatório publicado este mês. A hashtag #sus-tainablefashion já conta com mais de cincomilhões de publicações no Instagram.

    Segundo um estudo da Global Fashion Agen-da, "75% dos consumidores inquiridos vêema sustentabilidade como extremamente impor-tante ou muito importante". E cerca de 48%da Geração Z entrevistada (nascida a partir de1995) diz já ter trocado uma marca por outracom base em preocupações sociais e ambien-

    tais, contra 28% dos baby boomers (nascidosentre os anos 1940 e 1960). No entanto, apenas7% dos inquiridos vêem na sustentabilidade ocritério-chave para a compra. E, alerta a McKin-

    sey, "apenas uma minoria está disposta a pagarmais por produtos sustentáveis": 31% na Gera-

    ção Z e 12% na faixa dos baby boomers.A preocupação com a sustentabilidade está

    a aumentar, mas ainda raramente se traduz na

    compra. Uma das razões está na diferença de

    preço. "Habituámo-nos a um preço que é im-

  • possível existir num mundo justo", argumentaCristiana Costa. "Nós pagamos oito ou noveeuros pela confecção de um par de calças [emfábricas portuguesas], fora tecidos, fechos, bo-

    tões, sessões fotográficas para chegar aos con-sumidores. Isso posto ao lado de 1 ou 1,50 euros

    que as fast fashion pagam no Bangladesh... Nun-ca vamos conseguir [competir] porque essepreço é irreal. É inexistente.

    " É por isso ->

    que Graziela Sousa não acredita que seja pos-sível "vermo-nos livres do consumo na fastfashion". "Com os orçamentos das famílias etudo o que nos inunda em termos de informa-

    ção nunca será totalmente possível que todoo consumo seja assim tão consciente."

    Outra das razões, aponta a McKinsey, está na"falta de clareza na informação e nas ferramen-tas disponibilizadas". Os consumidores nãosabem ao certo o que significa sustentabilidadeou como identificar marcas sustentáveis.Da transparênciaao consumo conscienteNos últimos anos, têm surgido vários projec-tos que procuram ajudar o consumidor a na-vegar o labirinto da sustentabilidade, atravésdo cruzamento dos dados fornecidos pelasempresas e da avaliação de critérios, comoas aplicações móveis Good on Vou ou Buycott.Mas Salomé avisa que não existem soluçõesimediatas. "Os consumidores querem umareceita em dez passos sobre como podem sermelhores e dormir à noite." Pedem-lhe listas

    de marcas sustentáveis, mas "nunca pensamna opção antes da compra" .

    Para a coordenadora da Fashion Revolution,esse tem de ser o primeiro passo. Reduzir. Com-

    prar menos. Comprar o necessário. E, de pre-ferência, em segunda mão. Este é, aliás, umdos sectores a registar um crescimento maisacentuado na indústria têxtil e um relatório daThredUp estima que o mercado de roupa emsegunda mão ultrapasse afastfashion em me-nos de dez anos. Aos 18 anos, Gonçalo Silva

    garante que "só compra em segunda mão".Mas confessa que o que mais o atrai nestas lo-jas é o factor preço e, uma vez que nunca sabeo que vai encontrar, muitas vezes acaba porcomprar aquilo de que não precisava, em vezdaquilo de que ia à procura. Mas é uma formade "evitar a produção de mais e mais". Nisso,afastfashion acaba por ser uma vantagem,contrapõe Maria Monteiro. "Se queres umascalças, encontras. Se não há numa loja, há nou-tra. Ou encomendas online."

    Para Maria, a vaga da moda sustentável pa-recia ser apenas mais uma causa entre tantas.Uma tendência. E essas, por norma, "vão evêm". Agora já não tem tanta certeza - prin-cipalmente depois dos trabalhos sobre o temana faculdade. "Definitivamente, quando entrei

    para o curso, não tinha nem um décimo daconsciência sobre sustentabilidade. E acho

    que, se calhar, a grande maioria das pessoastambém não tem." Quando estudou as possí-

  • veis soluções, percebeu que "não era fácilmudar". Mas acredita que é preciso ir dandoesse passo. "À medida que nos vamos infor-mando, inevitavelmente queremos tornar-nosmais assim, porque percebemos que, se ca-lhar, é o que faz mais sentido. Ou é o caminhoao qual nos queremos juntar, porque achamos[ser] o mais correcto ou moralmente maisaceite."

    Para Salomé, o importante é não esquecerque a moda responde a "necessidades bási-cas do ser humano" de protecção, mas tam-bém de identidade, auto-estima, pertença ede expressão da criatividade individual. "Éa nossa primeira linguagem antes de falar."A forma mais imediata como mostramos aosoutros quem somos. Por isso, diz, a compra"não tem nada de racional"- mesmo que ànossa frente esteja uma prateleira de camisasem segunda mão ou umas calças produzidasde forma sustentável. "O que podemos fazeré assumir que há esse lado emocional. Estou

    sempre a comparar com a compra de comi-da. Se admitirmos que estamos com fomequando entramos no supermercado, é mui-to mais fácil contermo-nos a comprar deter-minadas coisas."

    Uma vez que a sustentabilidade "não é quan-

    tificável", dado não existirem critérios co-mummente aceites, a Fashion Revolution apon-ta agulhas à transparência. No índice publica-do anualmente pela organização, todas asmarcas de moda com lucros acima dos 500milhões de dólares por ano surgem numa ta-bela classificativa, ordenadas por níveis detransparência. Adidas, Reebok, Patagonia, Es-

    prit e H&M surgem no top 5, com pontuaçõesacima dos 60% (marca ultrapassada pela pri-meira vez desde que o estudo é realizado). Amaioria revela intenções, estratégia, lista defornecedores, salários e certificados, mas "háum défice gigante de transparência face ao im-

    pacto, aos resultados".Ainda assim, Salomé Areias acredita que "é

    a transparência que nos vai levar à sustentabi-lidade" . O mais importante é que as empresasrevelem o que fazem, "não importa o quê".Porque, defende, esse é o único caminho paraa tomada de consciência dos consumidores,para que exista um consumo consciente doimpacto que cria nos trabalhadores que pro-duziram a peça e no meio ambiente. "Só quan-do tivermos uma sociedade consciente dasdecisões que toma é que vamos ter uma socie-dade ideal. Seja que decisões forem."

    [email protected]