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  As duas morte s de Elis Regin a  Há 33 anos morria, com uma mistura do consumo de cocaína e álcool, a maior cantora do Brasil. Com apenas 36 anos de idade e uma obra repleta de canções clássicas e grandes interpretações, nem mesmo sua segunda morte   a condenação moral por parte da sociedade conservadora   eclipsou sua importância como mito da música brasileira. Elis em show na década de 1960  Na manhã de 19 de janeiro de 1982 o brasileiro tinha o seu almoço interrompido por uma trágica notícia, a cantora Elis Regina estava morta! Emissoras de rádios e televisão interromperam a programação normal para cobrir a tragédia. Elis Regina, 36 anos, no auge da sua vitalidade, com uma carreira de sucesso longe de se esgotar, morria de parada cardíaca no seu apartamento nos Jardins, em São Paulo. A notícia comoveu o Brasil, tendo uma repercussão que surpreendeu muita gente, já que a cantora tinha um público restrito, um repertório denso, apesar de vários sucessos de g rande alcance popular. Pobres, ricos, intelectuais, gente humilde, todos choraram Elis Regina. O Brasil vestiu-se de luto. À tarde, o corpo da cantora foi levado para o Teatro Bandeirantes, onde uma multidão de pessoas fazia uma gigantesca fila na porta, esperando o momento de prestar uma última

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  • As duas mortes de Elis Regina H 33 anos morria, com uma mistura do consumo de cocana e lcool, a maior cantora do

    Brasil. Com apenas 36 anos de idade e uma obra repleta de canes clssicas e grandes

    interpretaes, nem mesmo sua segunda morte a condenao moral por parte da sociedade

    conservadora eclipsou sua importncia como mito da msica brasileira.

    Elis em show na dcada de 1960

    Na manh de 19 de janeiro de 1982 o brasileiro tinha o seu almoo interrompido por uma

    trgica notcia, a cantora Elis Regina estava morta! Emissoras de rdios e televiso

    interromperam a programao normal para cobrir a tragdia. Elis Regina, 36 anos, no auge da

    sua vitalidade, com uma carreira de sucesso longe de se esgotar, morria de parada cardaca no

    seu apartamento nos Jardins, em So Paulo.

    A notcia comoveu o Brasil, tendo uma repercusso que surpreendeu muita gente, j que a

    cantora tinha um pblico restrito, um repertrio denso, apesar de vrios sucessos de grande

    alcance popular. Pobres, ricos, intelectuais, gente humilde, todos choraram Elis Regina. O

    Brasil vestiu-se de luto.

    tarde, o corpo da cantora foi levado para o Teatro Bandeirantes, onde uma multido de

    pessoas fazia uma gigantesca fila na porta, esperando o momento de prestar uma ltima

  • homenagem. A fila estender-se-ia noite dentro, sendo ainda visvel s 5 horas da manh do dia

    20. Diante do grande fluxo de pessoas, a famlia chegou a pedir polcia que retirasse a

    multido espalhada pelos palcos do teatro, mas a me, dona Ercy, abriu mo de velar a filha

    mais intimamente, cedendo o lugar da famlia para os fs. Admiradores e amigos, aglomerados

    nos palcos do teatro, entoaram msicas da cantora, despedindo-se com Est Chegando a Hora

    (Rubens Campos Henrico), momento de maior emoo.

    No dia seguinte, mais de mil pessoas juntaram-se ao cortejo fnebre, percorrendo lentamente

    as ruas da capital paulista, conduzindo o corpo de Elis Regina at o cemitrio do Morumbi,

    onde foi enterrado ao som de Cano da Amrica, cantada pela multido: Qualquer dia,

    amigo, a gente vai se encontrar. Era a ltima homenagem ao dolo morto.

    Ainda a recuperar-se da comoo da tragdia, o Brasil foi surpreendido, 48 horas depois, pela

    notcia de que a causa da morte tinha sido ingesto de cocana. Os resultados do laudo

    ecoaram pelo pas. A famlia, na esperana de preservar a imagem da cantora, negou

    veementemente o laudo. Eram criadas teorias da conspirao envolvendo o namorado da

    cantora Samuel Mac Dowell Figueiredo e o mdico que emitira o laudo, o obscuro Harry

    Shibata.

    Iniciava-se a caa s bruxas, tendo como resultado a difamao da cantora. A imprensa no se

    limitou a informar as causas de to sbita morte, mas a fazer uma condenao moral velada

    da vida de Elis Regina. O Brasil tornou-se moralista. Assim, aps a comoo, as lgrimas e o

    enterro dramtico, iniciava-se a depredao da imagem. Elis Regina teve em 1982, duas

    mortes, a morte fsica, que lhe tirou a vida, levando milhares de brasileiros s lgrimas; e a

    morte moral, promovida por uma imprensa preconceituosa de um pas de costumes

    hipcritas. Com o passar do tempo, o mito superou s duas mortes, e Elis Regina continuou

    mais viva do que quando respirava, cantava e emocionava o Brasil, transpirando sangue nos

    palcos.

    Dias difceis

    Os ltimos momentos de vida de Elis Regina foram tensos, com discusses ao telefone e

    regados de lcool e droga. Aps a separao do msico Csar Camargo Mariano, a cantora

    passou por um perodo de romances fugazes, at que estabeleceu uma relao slida com o

    advogado Samuel Mac Dowell, com quem construiu planos de casamento.

  • Elis Regina iria entrar em estdio nos prximos dias, para gravar o seu novo disco, j com

    repertrio definido. Jantou com amigos msicos e com o namorado. Nada fazia crer que ela

    vivia os seus ltimos momentos. No fim da noite, j os amigos tinham ido embora, discutiu

    com Samuel Mac Dowell. Despediram-se em clima de rancor, embora o advogado negasse

    futuramente qualquer rusga.

    Com a briga, a cantora entrou em depresso, bebendo toda a noite. Sem dormir, pela manh

    atendeu a um telefonema do namorado, ps-se ento, a discutir com ele. Enquanto falava,

    consumia Campari e cocana, at que o seu corao no suportou. Elis Regina silenciou a voz,

    no s ao telefone, como para a vida. Diante do silncio repentino, Mac Dowell, do outro lado

    da linha, percebeu que alguma coisa de muito grave acontecera.

    Deixou o seu escritrio e rumou para o apartamento da cantora. Foi encontr-la trancada no

    quarto, sem responder aos chamados. Desesperado, derrubou a porta do quarto,

    encontrando-a cada, com o telefone fora do gancho.

    Elis Regina foi levada de txi para o Hospital das Clnicas, mas j estava sem vida. Aos 36 anos

    de idade, Elis Regina de Carvalho Costa, uma das maiores cantoras do Brasil, encerrava a sua

    carreira. Deixava trs filhos e vrios lbuns. Morria a mulher, nascia o mito.

    Passado o primeiro impacto da morte da cantora, era hora de preparar a cerimnia final e

    prestar-lhe a ltima homenagem. Naquele instante uma enorme dvida pairava no ar, o que

    levara uma mulher jovem e de uma vitalidade estonteante a ter uma parada cardaca? Por que

    a mdica que a recebera no Hospital das Clnicas no pde ou no quis, fornecer o atestado de

    bito, dizendo-se impossibilitada de afirmar ter sido morte natural? E ainda, diante desta

    dvida, porque o cadver foi remetido para o Instituto Mdico Legal (IML) para ser

    autopsiado? Para os preparativos do adeus, as perguntas foram proteladas, mas no

    esquecidas.

    Como local da ltima homenagem cantora, foi decidido que o velrio seria no Teatro

    Bandeirantes, no centro de So Paulo, palco do seu mais famoso show, Falso Brilhante, de

    1976. Seria aberto para familiares e amigos, mas o corpo ainda l no chegara, e uma grande

    multido fazia fila na porta do teatro, espera de poder dar o ltimo adeus ao dolo. A fila no

    parou de crescer, mantendo-se at o dia seguinte, quando seria o enterro.

  • Imagem do enterro da cantora

    Em uma ltima homenagem, ficou estabelecido que a cantora vestiria em seu repouso final,

    uma camiseta com a bandeira do Brasil, que no centro trazia escrito Elis Regina no lugar da

    frase Ordem e Progresso. A camiseta de malha fora confeccionada para o show Saudades do

    Brasil, de 1980, mas a cantora tinha sido proibida pela censura militar de us-la durante o

    espetculo, que considerara um acinte bandeira nacional.

    Feitos os devidos preparativos, o corpo de Elis Regina chegou ao Teatro Bandeirantes tarde.

    Entre a tarde do dia 19 e a manh do dia 20 de janeiro, mais de 25 mil pessoas acederam ao

    velrio da cantora, entoando msicas do seu vasto repertrio. O corpo seguiu do centro de

    So Paulo para o cemitrio do Morumbi. Mil pessoas acompanharam a cerimnia. Entre

    aplausos e os versos de Cano da Amrica (Milton Nascimento Fernando Brant), Elis Regina

    foi enterrada.

    O mdico errado

    Dois dias depois, os rumores de que a morte da cantora tinha sido provocada por drogas

    espalharam-se pelo pas. Samuel Mac Dowell e a famlia de Elis Regina, tentaram evitar que lhe

    fosse feita autpsia, tentando preservar a sua imagem. Esta recusa em esclarecer os fatos,

    contribuiu para que se aumentassem as suspeitas de uma morte obscura.

    Tambm as ltimas palavras de Elis Regina ao telefone com Samuel Mac Dowell, suscitaram a

    imaginao de todos. A briga entre o casal s seria revelada muito tempo depois. Persistindo

    as dvidas de que a cantora no morrera de causa natural, no se podia emitir um atestado de

    bito, e por lei, a autpsia tornava-se obrigatria.

  • Entrava em cena a figura do mdico Harry Shibata, que declarava ter sido ingesto de

    barbitricos ou cocana com lcool a causa da morte de Elis Regina, descartando a hiptese de

    morte natural. Uma dvida punha em questo o laudo de Shibata, se cocana era ingerida

    diluda em lcool, j que tradicionalmente era aspirada pelo nariz.

    Mas o que pesou realmente foi a credibilidade do legista. Harry Shibata entrou para a histria

    brasileira como colaborador do regime militar e da tortura que se praticou na poca. Para

    justificar as mortes nos calabouos da ditadura, mdicos legistas forneciam falsos laudos que

    apontavam morte natural, jamais tortura.

    Harry Shibata foi um desses legistas, tendo assinado o histrico laudo da morte do jornalista

    Vladimir Herzog em 1975, que atestava suicdio e no morte por tortura. Na poca, Samuel

    Mac Dowell foi um dos advogados que condenaram a Unio pela morte de Herzog,

    escancarando a farsa assinada por Shibata.

    Preconceito e hipocrisia

    Na tentativa de defender Elis Regina, vrios amigos, entre eles Edu Lobo, diziam que o laudo

    de Shibata era uma vingana a Samuel Mac Dowell, o que levantou grande polmica na poca.

    Apesar da contestao do laudo, os estragos na imagem da cantora morta tinham sido feitos.

    Um pernicioso processo moralista assolou o Brasil, trazendo uma tempestade sem fim de

    preconceito contra a memria de Elis Regina, atingindo inclusive aos seus filhos, ento

    crianas, que tinham que ouvir o escrnio dos colegas da escola.

    Diante desta difamao e depredao de memria, os amigos mais prximos da cantora

    partiram em sua defesa. Jair Rodrigues pediu pela preservao dos filhos da amiga, foi

    televiso defend-la com arroubos de emoo, apontando o dedo para muitos no meio

    artstico que se drogavam e ningum dizia nada.

  • As declaraes do cantor criaram polmicas, e vrios famosos sentiram-se ameaados,

    iniciando contra ele o tradicional patrulhamento ideolgico, responsvel pelo fim de tantas

    carreiras no pas. Mas Jair Rodrigues no se intimidou, defendendo a inocncia da amiga em

    relao s drogas at o fim.

    Henfil, outro grande amigo de Elis Regina, defendeu-a no programa TV Mulher, da Rede Globo,

    onde tinha o quadro TV Homem, no qual apresentava os seus desenhos de animao. Na

    defesa, ele apresentou um quadro em que se propagava a difamao de Elis Regina pela

    imprensa, sempre com o tema da cocana como pano de fundo, no meio da difamao, uma

    mulher do povo abraava a fotografia da cantora, enquanto que se ouvia a voz da mesma a

    cantar Maria, Maria (Milton Nascimento Fernando Brant). A mensagem era clara, enquanto a

    imprensa difamava Elis Regina, o povo brasileiro abraava o seu mito e mostrava o seu amor e

    dor diante da perda.

    A verdade

    Mas as contestaes e afirmaes de que Elis Regina no costumava usar drogas no se

    sustentaram por muito tempo, to pouco a teoria da conspirao que envolvia Harry Shibata e

    Samuel Mac Dowell foi adiante. O laudo final, divulgado pelo delegado Geraldo Branco de

    Carvalho, assinado pelos legistas Chibly Hadad e Jos Luiz Loureno, deixou claro, no cadver

    autopsiado tinha sido encontrado lcool etlico e cocana, o que lhe revelava embriaguez e

    estado txico, que em combinao tinham sido letais. Alm dos trs legistas citados, a

    autpsia foi feita tambm, pelo mdico da famlia, lvaro Machado Jr.

    Confirmada a verdadeira causa da morte, vrios depoimentos comearam a surgir, apontando

    que nos ltimos tempos Elis Regina consumia em excesso lcool e drogas. Que experimentara

    cocana e maconha em uma viagem aos Estados Unidos, um ano antes da sua morte.

    Contraditoriamente, Elis Regina foi a careta que morreu de overdose.

    O Fantstico, TV Globo, levou ao ar o clipe da msica Me Deixas Louca (A. Manzonero Paulo

    Coelho), que a cantora gravara especialmente para tema de Luiza (Vera Fischer), personagem

    central da novela Brilhante, de Gilberto Braga, estreada nos ltimos meses de 1981 em horrio

    nobre, somente aps a sua morte. O programa justificou que o clipe, ltima gravao da

    cantora, feita em 3 de dezembro de 1981, no tinha ido antes ao ar por no ter agradado

    direo da emissora, que considerou a cantora visivelmente entorpecida.

  • Elis nos anos 60

    Visto depois da morte, o clipe emocionou e percebeu-se que o estado etreo de Elis Regina

    corria do sublime ao desespero, no s anunciava o fim da mulher, mas ao grito de um ser

    humano denso, que se explicava somente atravs da sua arte.

    Sua trajetria

    Elis Regina, carinhosamente chamada de Pimentinha pelos amigos, gacha nascida em 17 de

    maro de 1945, atirou-se cedo ao mundo da msica. Aos 11 anos j se apresentava no

    programa de rdio Clube do Guri, em Porto Alegre. Aos 16 anos, em 1961, j tinha o seu

    primeiro lbum gravado, Viva a Brotolndia. J longe de Porto Alegre, Elis Regina ganhou o I

    Festival de Msica Popular Brasileira da TV Excelsior, em uma interpretao monumental de

    Arrasto (Edu Lobo), onde movimentava os braos como um moinho de ventos selvagens. Era

    a cantora na sua essncia.

    Continuou emocionando o Brasil com grandes sucessos. Em vida no vendeu muitos discos,

    enquanto Maria Bethnia e Gal Costa chegavam ou ultrapassavam as 500 mil cpias, o ltimo

    lbum em vida, Elis, vendeu pouco mais de 52 mil cpias. Mesmo com pouca vendagem, era

    uma das cantoras mais bem pagas no palco, alm de assediada por msicos e emissoras de

    televiso, estando sempre presente na mdia de ento ou em trilhas de novelas. Elis vendeu

    mais discos depois de morta, e at hoje, a nica cantora brasileira que nunca deixou de ter

    os seus lbuns comercializados em perodo algum.

    O impacto da morte de Elis Regina pde ser sentido pela comoo que trouxe milhares de

    pessoas ao seu velrio e enterro. A perda da cantora em 1982 deixou um grande vazio na

  • MPB, justamente quando esta voltava a ter grande fora no cenrio poltico e social da nao.

    A abertura poltica possibilitou a volta da cano de protesto, tirando das gavetas muitas das

    que foram censuradas.

    No lbum Elis, Essa Mulher (1979), a cantora gravava a msica O Bbado e a Equilibrista (Joo

    Bosco Aldir Blanc), que se iria tornar o hino da Anistia. No grande show de MPB, o primeiro

    programado depois do atentado bomba do Rio Centro, em 1981, que se daria poucos dias

    aps a sua morte, o momento programado para ela cantar foi preenchido pela apresentao

    de Joo Bosco, com a sua fotografia ao fundo.

    O vazio deixado por Elis Regina na histria da MPB criou o mito, que por sua vez apagou para

    sempre o perodo que se seguiu revelao das causas da sua morte. Perodo negro da

    histria da intolerncia no Brasil. Hoje parece confuso um momento como este, mas altura,

    utilizar drogas no regime militar representava o que havia de mais vil na sociedade repressiva

    e hipcrita de ento.

    Essa mesma represso aos entorpecentes levou Gilberto Gil e Rita Lee priso em 1976. O

    Brasil de 1982 ainda trazia os resqucios do preconceito que levou distintas senhoras de famlia

    s ruas, de rosrios nas mos, em 1964, a abraar o golpe militar. Quase trs dcadas depois

    da morte de Elis Regina, ficou na lembrana apenas o carinho e a tristeza do povo brasileiro

    diante da trgica perda da cantora. A sua segunda morte, movida pelo preconceito ao p que a

    matou, foi totalmente apagada, ficando apenas na memria daqueles que viveram o drama na

    poca. Elis Regina, a mulher, deu passagem para o mito, perfeito e intocvel na extenso da

    sua voz e do seu talento.

  • As duas mortes de Elis Regina