as crônicas de pindorama cap 1 a 5

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 As Crônicas de Pindorama

Livro 1

Piná ou O Despertar da Escuridão

Por R.B. Montenegro

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Introdução

Estimado leitor desta gigantesca epopeia tupiniquim, devo gentilmenteavisar que tens em mãos uma obra de um magníco teor histórico e cultural para

o nosso tão grande país.Uma obra que por muito pouco não esteve prestes a ser esquecida, jo-

gada ao léu da história nacional, transformando em uma derrocada a aventuradescrita nas páginas seguintes.

 Tens contigo a descrição de fatos e acontecimentos que não estarão pre-sentes em nenhuma enciclopédia ocial. Nenhum autor dedicará linhas para asaventuras desta narrativa. O medo e o misticismo religioso envolvem a mente

das pessoas e elas esquecem voluntariamente suas origens, suas raízes, que estãotão intrinsecamente ligadas a esta terra varonil quanto uma criança está ligada àmãe pelos mais ternos e absolutos laços.  Os fatos chegaram a este que te fala pelas mais diversas fontes. Eu pró-prio, devo dizer com orgulho, estive presente em algumas ocasiões descritas nahistória, em outras, porém, os acontecimentos foram a mim narrados direta-mente por seus participantes, que se portaram com galhardia ante as mais cruéis

ameaças. Dei-me o trabalho – como forma de retribuir tudo o que esta terra fezpor mim – de reunir todos os fatos e episódios da história em uma ordem cro-nológica táctil, facilitando ao leitor o processo de compreensão das peripéciasaqui descritas e dando-lhe a oportunidade de conhecer a história não contada dePindorama.

Desejo-te uma boa leitura e falo diretamente aos mais céticos, que dirão,em tom de escárnio, que tudo não se passa de uma lenda, que lendas não são

nada mais do que verdades contadas com ligeiras nuances de mentira.

 A. D. de AlbuquerqueBarão D’el Rey 

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Prólogo

  Está escuro, mas ele nunca teve medo da escuridão. Está frio, mas o frio

nunca lhe causou problemas. Chove torrencialmente, mas os pingos d’água quelhe encharcam o corpo e a alma não o atormentam. A oresta está particular-mente traiçoeira aquela noite, mas ele a conhece como a palma de sua mão e nãoimporta quão traiçoeira ela esteja, nunca será perigosa para ele. Ela sempre foi àsua casa. Quando as crianças da aldeia o importunavam devido à cor de sua peleou de seus olhos, era nela que ele se refugiava. Quando precisou de coragem paradeclarar seu amor por Anayá, foi o canto dos pássaros e o cheiro do mato que o

encorajou. Quando a morte levou seu pai foi o chão da oresta que engoliu suaslágrimas. E, por m, quando os portugueses e os tabajaras invadiram sua aldeia,matando homens, mulheres, velhos e crianças, foi a oresta que o escondeu.

 – Malditos. – um murmúrio quase inaudito saiu de sua boca. Um sussur-ro imperceptível, em uma língua desconhecida, mas que não tornava desconhe-cido o ódio que aquela palavra carregava.

 – Malditos sejam todos! – Dessa vez, um brado carregado de ira irrom-

peu dos seus lábios, assustando de tal modo a coruja de uma árvore próximaque a coitada resolveu levantar voo e encarar a tempestade, fugindo para longedele e do seu ódio. – Malditos sejam os portugueses, malditos sejam os tabajaras.Malditos!  A cada grito o tom de sua voz aumentava, mas a chuva cumpria elmen-te o seu papel em abafá-los. A raiva que martelava seu peito apertava seu coraçãode um jeito impossível de descrever.

 – E malditos... – Ele parou e um arquejo terrível ouviu-se na orestaquando suas pernas fraquejaram. Estivera fugindo nos últimos três dias, se afas-tando o máximo que podia de toda aquela destruição. Não comera, não beberae nem parara para descansar nesse período. O ódio o movia e agora, impossívelde controlar o ódio ou a dor, deixou o corpo cair no chão, os joelhos batendo

 violentamente numa mistura de terra, água e folhas em decomposição. Com asmãos enterradas naquela mistura e respirando com diculdade, chorou. Masaquele não foi um choro comum. Em cada lágrima que escorria por seu rostopálido e misturava-se à chuva, um pouco de sua alma se derramava. O amor porsua mulher e suas duas lhas, que junto com o seu pai, foram os únicos em toda

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a sua vida que não tinham-no rejeitado. A dor da perda, infringida por seu pró-prio povo. Seu próprio povo.

 – Meu próprio povo. – Repetiu as palavras com diculdade, entre so-luços. – Os potiguaras, meu próprio povo. – O tom de sua voz não era mais

carregado de tristeza, mas o ódio retornara ao seu lugar. – Malditos sejam todoseles.  Dias antes, quando ainda era alguém importante em sua tribo, quandoo título de pajé de todos os potiguaras e representante da Ordem de Jamé aindaera seu, um conselho acontecera. Um conselho de guerra.

 – Não podemos lutar. – Ele dissera, assentado na roda dos anciões. –Perderemos.

 – O que um covarde como você entende da guerra? – Perguntara Jandir Acir, o novo cacique, um homem que particularmente o detestara durante todaa vida.

 – Não entendo de guerra, mas entendo dos conselhos de Ibiá, a mãe Terra. Entendo dos conselhos daqueles que nos guardam. E eles dizem queperderemos. – Em vão ele tentara argumentar. Todos no conselho pareciamconcordar com Jandir Acir.

  – Covardes não serão tolerados! – decretara o novo cacique, por m.  – Maldita seja a alma de Jandir Acir! Maldita mil vezes! – O grito foi maisagudo do que o dos demais, mas o barulho da tormenta ainda assim conseguiuabafá-lo. Lembrava de cada uma das palavras que vieram depois. “Tomem amulher dele”, decretara o cacique. “Usem-na no meio da aldeia, de todas as for-mas possíveis, para que todos vejam que ele é um covarde e não fará nada paraimpedi-los. Tomem as lhas pequenas dele...”, Jandir Acir continuou e após uma

pausa dramática deu a sentença: – E matem-nas.O silêncio seguira a declaração do cacique, que voltou a falar:

 – A não ser, é claro, que o pajé queira me enfrentar...O riso e a zombaria seguiram a nova declaração do cacique. Jandir Acir

era o maior guerreiro da aldeia e talvez de todos os potiguaras e ele, o pajé, TeçáMair, era, bem... um covarde. A sentença estava determinada e seria cumprida.

Ele gritara, claro. Depois tentara, inutilmente, lutar. Mas quando a pri-meira lança tocara seu peito, pressionando a carne e fazendo-o sentir uma dorna, prenúncio de morte, a terrível verdade fora revelada. Ele era, no m das

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contas, um covarde. Não impedira a morte das lhas, não impedira a violação doamor de sua vida. Ninguém tentara ajudá-lo, nem mesmo em honra à memóriado seu pai. Aparentemente, ele não era digno de usar o manto do grande AraíObajara. Fora banido para sempre do convívio dos potiguaras. Era um covarde,

o mais inútil deles e mesmo seus conhecimentos de Jamé não o ajudaram, pois amagia não costuma ajudar aqueles que não merecem e o seu verdadeiro eu nãomerecia qualquer ajuda.

 – Queria ter matado Jandir Acir mil vezes. – Ele chorou, espalhandolama com as mãos sobre seu corpo nu. As cenas da destruição de sua aldeia,perpetrada pelos portugueses em aliança com os tabajaras um dia depois do seubanimento dominaram-lhe a mente. Não vira pessoalmente, mas em espírito.

Ocas queimadas, corpos queimados, almas perdidas. Todos mortos. Jandir Acirentre eles. – Queria tê-lo matado mil vezes. Mas zeram esse trabalho por mim. Por

isso, eu amaldiçoo a sua alma, Jandir Acir, por todas as artes obscuras, por todosos demônios da criação, por todos os seres do mal e pelo próprio Jurupari, euamaldiçoo a sua alma e a de todos aqueles que me destruíram! Que sofram parasempre a perdição e que nunca encontrem descanso com seus ancestrais. Que

nunca se alegrem com o canto dos pássaros ou com o barulho das fontes deáguas, que o perfume das ores eternas nunca possa encantá-los e que Nhande-ruvuçú os condene ao mais cruel dos tormentos!

 – Nhanderuvuçú não pode ajudá-lo. – A voz que lhe falou soou fria, gra- ve e impessoal, mas havia algo em seu tom carregado de um sentimento que, nacompreensão dele, só se assemelhava a uma coisa: o mal. Ele conseguiu ouvi-lapor cima de todo o barulho da tempestade, que continuava caindo em torrentes

ao seu redor. Olhou e viu, auxiliado por um relâmpago que brilhou ao longe, queestava em uma pequena clareira no meio da selva, que a tempestade castigava aoresta com força redobrada e que, a sua frente, a apenas alguns passos de dis-tância, havia um ajuntamento de sombras e escuridão como nunca dantes tinhapresenciado. Era do meio dessas sombras, que lhe cercaram completamente eque lhe encobriram a visão do interior da oresta a sua volta, que parecia vir a

 voz. – Nhanderuvuçú não se preocupa com seus lhos menores e pequenos

como você, Teçá Mair. Ele favorece os grandes e imponentes, como Jandir Acir. – A voz seguia um ritmo, uma melodia, que incidiu sobre os ombros de Teçá

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Mair como mãos poderosas que o empurraram para baixo, fazendo-o prostrar-sediante das sombras, numa posição de submissa adoração.

 – Eu, ao contrário... – continuou a voz. – Benecio os fracos, os indefe-sos, os rejeitados. Você é um deles, Teçá Mair?

Ele quis dizer que não, que era forte, corajoso e valente, quis erguer acabeça e gritar de maneira violenta, demonstrando toda a coragem que possuía,mas nada disso formava o seu verdadeiro eu. E aquela voz, aquela voz misterio-sa, fria, impessoal e má, sim, aquela voz era má e ela conhecia o seu verdadeiroeu. Começava a ter suspeitos pensamentos sobre quem era o dono daquela voz.

 – Você é um deles, Teçá Mair? Um rejeitado? Um fraco? – Sou...

 – Há ódio em seu coração. Há desejo de vingança. Eu posso aquecer achama em seu peito até que toda Pindorama seja queimada por ela.Ele desejava isso. Desejava ardentemente vingar-se contra todos os que

lhe tinham feito mal. Mostrar a eles, sejam potiguaras, tabajaras ou portugueses,sejam homens ou deuses, que ele, Teçá Mair, era forte e corajoso e que ele, TeçáMair, era o mais poderoso de todos os pajés.

 – Eu posso lhe dar isso. – Repetiu a voz. – Posso lhe dar a vingança que

deseja e torna-lo o mais poderoso de todos os pajés... – A voz pareceu ler seuspensamentos com a facilidade que só um deus teria. – Você quer isso? – Sim. – não havia mais hesitação em sua voz. – Perfeito. Dê-me agora, sem hesitar, a sua alma e adore-me pelo meu

 verdadeiro nome e o que você deseja será seu. – Seu verdadeiro nome? – Meu verdadeiro nome. Você o conhece.

Conheço?  Teçá pensou e a resposta se agigantou em sua mente, os pen-samentos se conrmaram e uma onda de alegria e medo percorreu todo o seucorpo. Sim, conheço. 

Sim, conhece. A voz misteriosa falou em seus pensamentos. Agora dê-me suaalma e adore-me pelo meu nome. 

 – Sim, meu senhor. – Teçá falou, erguendo a cabeça e olhando rme-mente em direção às trevas que o cercavam. Seu corpo já não doía mais e o ódioem seu coração queimava mil vezes mais forte. Sabia o que fazer e o que dizer.Não tinha mais dúvidas. Então fez.

 – A mim ela foi dada e eu a dou a quem bem quiser. – suas palavras ecoa-

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ram por toda a oresta. As trevas deixaram-no e concentraram-se em um únicoponto a sua frente e ele pode ver que a tempestade tinha nalmente cessado porcompleto em toda a oresta. – Cedo a ti o meu corpo e a minha alma. Use-oscomo bem entender. – mais uma pausa e nalmente falou, de olhos fechados,

num tom baixo e sereno de adoração: – Eu o adoro hoje e sempre, senhor Jurupari. – Então Teçá abriu os

olhos e as trevas o invadiram por completo.

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Capítulo um

Um visitante na noite

 

 Annabel Dias de Albuquerque deu um longo suspiro ao deixar o corpocansado cair de maneira desajeitada sobre sua cama de feno e penas. Trinta enove dias depois, podia nalmente dizer que estava deitada em uma cama de

 verdade. Não é coisa fácil para uma menina de apenas doze anos de idade eacostumada com os luxos de uma casa nobre numa metrópole europeia, passartrinta e oito dias dentro de um enorme galeão viajando entre dois continentes.

Ela sorriu, um riso pueril e inocente, sincero, enquanto pensava sobre o

seu primeiro dia naquele novo país. Brasil. Até o nome era estranho, diferente,misterioso, sedutor. Filipeia, a sede do governo na capitania da Paraíba, o pontomais oriental do Novo Mundo, como lhe dissera seu pai.

 Tinha recebido a notícia com um entusiasmo fora do comum. Novida-des a encantavam, quase tanto como aventuras. E não havia aventura maior doque essa. “Nos mudaremos para o Brasil”, seu pai dissera à mesa, com o tomsério de quem não admite questionamentos. Esse não era o tom comumente

usado por Gaspar Dias de Albuquerque. Ele o guardava para ocasiões especiais.No geral, seus quase oito palmos1 de altura, ombros largos e braços fortes, peleamorenada e barba escura e espessa transmitiam uma inexorável sensação deforça e nobreza, que era totalmente destruída no exato momento em que abriaum sorriso, por menor que esse sorriso fosse. Gigante gentil, esse foi o apelidoque Annabel dera ao pai quando tinha cinco anos e desde então sua opiniãosobre ele permanecia a mesma. Um gigante gentil. Então, o tom de voz usado

por Gaspar em seu anúncio indicava que algo muito sério havia acontecido. Elanão se importava, iriam para o Brasil e, se todas as coisas incríveis que ouvirasobre a nova colônia fossem verdades, teria a vida mais incrível que uma meninapoderia sonhar.

Sua mãe não gostou da ideia, algo que não a surpreendia. Amélia era umamulher magra, levemente mais alta que a maioria das mulheres, com um rostoanguloso e lindos olhos verdes, que Annabel herdara, por sinal. Após o seu trigé-

1 Palmo: antiga medida de comprimento, equivale a 22 centímetros. No decorrer do livro, será usada para medida de pequenas alturas, como uma parede ou a altura de uma pessoa e para determinar o comprimento de obje-tos.

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simo aniversário ela ainda conservava sua beleza original, mesmo depois de trêsgestações. Porém o que mais a distinguia era o seu gênio, que era, digamos assim,forte o bastante para vencer quase todas as discussões que tinha com Gaspar.Quase todas, pois aquela fora uma discussão que Amélia não conseguiu vencer.

 – Foi ordem do rei, mulher, ponto nal. – Gaspar falou, ainda mais irre-dutível. – Partiremos em cinco dias.

E assim a família Dias arrumou as malas, empacotou todos os seus per-tences e numa ensolarada manhã de verão em Lisboa, embarcaram no galeãoSanta Edwiges rumo à Filipeia. Era 4 de agosto de 1590.

 Annabel sorriu mais uma vez, correndo os olhos pelos detalhes de rendaespanhola no dossel da cama, lembrando-se da viagem. Uma viagem mais interes- 

sante que qualquer outra que já z , pensou. Não que ela tenha viajado muito emsua vida, é verdade. Mas as viagens para o interior do seu país natal e mesmo a viagem que zera a Paris, França, não chegavam aos pés de atravessar o ocea-no Atlântico rumo ao outro lado do mundo. Trinta e oito dias em um galeão,um dos maiores da frota comercial portuguesa, por sinal. Quase cem pés2 decomprimento, setecentas toneladas3, quatro mastros, quarenta canhões e porõescapazes de transportar o seu próprio peso em carga. Um enorme monstro de

madeira. Foi uma grande uma aventura essa viagem , pensou. O vento batia em meu rostono convés e, para qualquer lado que olhasse, só havia água. Mas não se compara a aventura deviver aqui, nessa terra incrível. As árvores, maiores do que qualquer outra que já tenha visto.

 As comidas, os animais. Tudo nesse lugar é mágico.  – Vai ser uma aventura. A maior de todas. – Disse baixinho, deixando

sua voz expressar seus pensamentos, enquanto o sono batia a sua porta, anal,desembarcaram pela manhã e ela gastou o resto do dia arrumando o seu novo

quarto. Após o jantar, servido cedo, logo após o lusco-fusco, sua mãe mandouela e o irmão para a cama e não admitiu oposição. Annabel pensou em formularum protesto, mas sabia que estava cansada o suciente para não querer fazernenhuma outra coisa. Não estava nem mesmo disposta a ler ou escrever em seudiário naquela noite. Queria dormir, pois o dia seguinte lhe reservava muitasaventuras. Tinha uma cidade inteira para conhecer, um rio maravilhoso para se

2 Pé: medida linear inglesa, equivale a aproximadamente 30,5

centímetros. Usada para tamanho de grandes objetos ou como medida dealtura.3 Tonelada: antiga medida de peso, equivalente a 793 quilogramas.

 Não confundir com a tonelada atual, que equivale a mil quilogramas.

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banhar e muitas novas amizades para fazer.Então, à medida que sua mente divagava pelas aventuras que viveria no

novo lar, lentamente o sono abriu a porta e se achegou completamente. Seusolhos se fecharam enquanto olhava a luz prateada do luar que invadia o quarto

através da janela e da porta, deixadas abertas para que o vento pudesse circularlivremente. Aquele era um país tropical e os portugueses não estavam muitoacostumados ao calor. Ela adormeceu com a brisa suave da primavera brasileiralhe afagando os cabelos escuros e a pele cor de oliva.

Sonhou. Não com a viagem, ou com as aventuras que viveria no Brasil;tampouco com sua família ou qualquer outro rosto conhecido. Foi um sonhodiferente, intenso, quase real. Estava deitada em uma cama, pronta para dormir.

 Abriu os olhos, ainda sonhando e percebeu que estava novamente em Lisboa,no seu antigo quarto. Bem, não era pra eu estar aqui... Pensou, olhando para o seuantigo quarto, onde tudo parecia estar um pouco diferente. A sua volta, via queaparentemente todos os objetos estavam em seus lugares, da maneira exata emque se encontravam na noite em que seu pai contou sobre a viagem para o Brasil.Porém, um arrepio, como se uma mão fria percorresse toda a sua espinha, aper-tando e apertando, lhe causou uma sensação estranha, assustadora. Tinha algo

muito errado, podia sentir. Então, fez o que lhe pareceu mais natural e tentouse levantar. Não conseguiu, estava paralisada. Nenhum único músculo do seucorpo se movia. Ela girava os olhos tentando enxergar outras coisas ao redor eao mesmo tempo se via na cama, do alto, presa pelas cobertas, como se tivessedeixado seu corpo e pertencesse agora a uma outra dimensão. Uma terrível sen-sação, de verdade. Não conseguia se mover, nem gritar e a cada segundo passadoseu desespero apenas aumentava. Tentou dizer a si própria que aquilo era apenas

um sonho, que estava em segurança em sua nova casa no Brasil, mas não adian-tou muito e o medo cresceu, bem como a sensação de que alguma coisa estavarealmente errada. Estava insuportável continuar ali.

Foi então que Annabel sentiu. Subitamente, percebeu: ele estava ali. Algoou alguém muito sombrio e poderoso, uma presença terrivelmente assustadora,embora ela não pudesse explicar ao certo, transformou aquele terrível pesadeloem algo ainda pior. Sentiu que o invasor estava agora sobre ela, com suas mãosinvisíveis apertando sua garganta, estrangulando-a. Ele a levantou com apenasuma das mãos, como se ela não passasse de uma boneca de pano e arremessouseu corpo contra a cabeceira da cama, fazendo suas costas doerem de um jeito

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totalmente novo para ela. Nunca tinha experimentado uma dor assim. As mãos voltaram ao seu pescoço e, instintivamente, ela levou as mãos à garganta, lutan-do desesperadamente para se libertar. Não estava mais paralisada, porém todoo esforço que fazia era em vão. Podia sentir os nós dos dedos do misterioso

agressor, cada vez mais apertados em volta do seu pescoço, mas nada que zesseadiantava, não conseguia se soltar. Foi quando ela percebeu que não estava maissonhando.

Parecia que a cortina de um teatro havia se levantado, bem à sua frente. Viu que estava de volta à Filipeia, na cama de feno e penas de sua nova casa.Havia passado a tarde desfazendo as malas e ido dormir poucas horas antes pen-sando nas aventuras que viveria no Brasil. Por um momento, achou que aquele

pesadelo fora apenas um sonho ruim, o pior de sua vida, mas antes que pudessepensar em qualquer outra coisa, a mesma presença maligna do sonho estava asua volta, com as mãos fechando-se num aperto mortal em volta do seu pesco-ço. Mas agora não era um sonho, era bem real. Tão real que podia sentir o ar seesgotando dentro do seu corpo, à medida que os segundos passavam e ela nãoconseguia respirar.

Num ato de defesa, levou as mãos ao pescoço e tentou, repetidas vezes,

se libertar do agressor misterioso. Mas era inútil. Lutava desesperadamente ten-tando se soltar, debatia-se na cama esperando fazer algum barulho que pudesseacordar os pais, mas não conseguia nenhum resultado efetivo, pois ele, fosse oque fosse ou quem fosse, a mantinha bem presa em suas mãos. Tentou rezar empensamento, mas não lembrou direito de nenhuma oração. As palavras simples-mente lhe fugiam. A única coisa que sua mente conseguia dizer era “Pai nosso queestais no céu, me ajuda...”. Pensou nos pais e no irmão. Nunca mais os veria. Não

correria pelas ruas com Alfonso, não o ensinaria a ler. Jamais voltaria a Lisboapara rever seus velhos amigos, não exploraria mais as maravilhosas belezas eos mistérios sombrios das terras brasileiras e tampouco faria amizade com ascrianças índias que ali moravam. Esse pensamento a abalou. Sentia que a dor emseu pescoço não a incomodava mais e baixou as mãos num sinal de rendição,entregando-se ao seu destino. Um sono tranquilo começou a se apoderar dela,não um sono comum como o que sentimos antes de dormir ou depois de um diade trabalho ao sol, mas aquele sono que nos dá a estranha sensação de que não

 vamos mais acordar. Foi nesse exato momento que ela começou a se perguntarse seria aquela a sensação da morte.

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Só que os segundos passaram, transformaram-se em minutos e ela per-manecia viva. As mãos ainda estavam em seu pescoço, mas não apertavam tãoforte quanto antes; parecia que a coisa – ou o ser que sobre ela estava – não de-sejava mais a sua morte. Estava apenas lhe prendendo, como se a encarasse lon-

gamente. Podia ouvir o que parecia ser uma respiração, pesada e entrecortada,bem próximo ao seu ouvido. Girava a cabeça e olhava para todos os lados, masnão conseguia enxergar nada. A escuridão se insinuava lentamente no quarto ea luz da lua se apagara, como se as janelas e as cortinas tivessem sido fechadas,ou pior, como se toda a luz do mundo houvesse sido roubada. Aquelas eram,sem dúvida alguma, as mais densas trevas que já presenciara. E ela não estavagostando nada daquela experiência.

 – “Ashee hou oyuré, Piná...” – A voz era grave, carregada de ódio e tris-teza e sussurrava lentamente ao seu lado, não aplacando em nada o medo que elasentia. As palavras eram estranhas, era uma língua muito diferente de todos osidiomas que Annabel já ouvira, mas, de maneira tão misteriosa quanto a próprianatureza de tudo o que estava acontecendo ali, lentamente o signicado das pa-lavras foi clareando em sua mente.

 – “Piná, eu sei quem você é.” – foi o que disse a voz; neste átimo, tão

misteriosamente como havia começado, o ataque terminou. A luz da lua voltoue ela enxergou novamente o quarto ao seu redor. Sentou-se na cama de um pulo,puxando o ar como uma louca, as mãos agarradas ao pescoço, procurando seacalmar enquanto lutava contra sua vontade real de gritar, chorar e correr. Nofundo, sabia que a probabilidade de seus pais acreditarem em sua história eratão pequena que nem valia a pena perder seu tempo e o deles. Amélia e Gaspardiriam que tudo tinha sido apenas um pesadelo.

 Eu sei muito bem que não foi um pesadelo. As marcas doloridas em seu pesco-ço e a dor em suas costas deixavam claro que não fora apenas um sonho ruim.Ela levantou sentindo-se tonta e olhou para a cama onde uma grande marca in-sinuava que seu medo tinha sido tão intenso que o corpo reagira de uma maneiranatural, porém vergonhosa. Não fazia xixi na cama desde os quatro anos. Seucorpo estava completamente molhado de suor, quando retirou a comprida cami-sola de linho e as anáguas. Fraca e trôpega, caminhou cambaleando até a portado quarto que dava para a enorme varanda que circundava todo o primeiro an-dar da casa. O vento tocou sua pele como um abraço macio e gelado, que a aju-dou a acalmar-se. Pôs novamente as mãos em volta do pescoço, que ainda doía

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muito e sentiu as marcas dos dedos do seu agressor. Foi tudo de verdade e ainda vaipiorar, pensou. Na verdade, a pior parte ainda está por vir.  Como explicaria aos pais aorigem daquelas marcas vermelho-arroxeadas? Dicilmente eles acreditariam nahistória de um agressor invisível. Não, era uma história mirabolante demais para

qualquer pessoa acreditar. Ela própria não acreditaria se alguém lha contassem. Voltou para o quarto depois de alguns instantes e enrolou o corpo nu

em um dos lençóis, que não estava molhado e foi até a parte da frente da casa,andando pela varanda pé ante pé, num esforço para não fazer nenhum barulho.Passou pelo quarto dos pais, que dormiam com a porta e as janelas abertas, talcomo ela. Lá fora, na frente da casa, o soldado enviado pelo governador estavaa postos, em frente ao portão; ele vestia cota de malha e estava armado com

mosquete, lança e segurava uma corneta para ser usada em caso de perigo. Ou-tros três soldados estavam na rua, igualmente armados e de prontidão na frentede outras casas. Dicilmente uma pessoa entraria ou sairia dali sem ser vista poralguém.

 Não, não foi uma pessoa.  O pensamento correu sua mente e rmou-secomo uma certeza. Um espírito? Um demônio?  Os pensamentos voavam pra lá epra cá enquanto ela voltava ao seu quarto. Eu quase morri. Mas o que quer que tenha

sido decidiu não me matar. Ele poderia, eu sei. Senti que estava morrendo, mas não morri. Uma pausa nos pensamentos para despojar-se do lençol e procurar uma roupamais apropriada para vestir. E o que raios ele queria dizer com “Piná, eu sei quem você é”?  

 Não tinha nenhuma ideia, por menor que fosse; estava assustada, com o corpofraco, o pescoço dolorido e não tinha a mínima vontade de voltar para a cama.

 Abriu a porta do quarto com o máximo de cuidado, enrolou-se nova-mente no lençol e saiu na ponta dos pés até o corredor onde havia um grande

móvel de madeira com uma lamparina de óleo acesa. O relógio mecânico quetinham cava no andar de baixo e não tinha como descer as escadas sem acordara cidade inteira. Nunca vira escadas tão barulhentas quanto as daquela casa. Nãotinha como precisar que horas eram, então decidiu acender a vela e voltar para oquarto. Sabia que não conseguiria mais dormir e resolveu que passaria o resto danoite lendo. Isso mesmo, Annabel tinha livros. Dezenove volumes, todos muitograndes e pesados, mas ela não se importava com isso. Tinha plena consciênciade que ler não era algo comum para uma criança pobre de sua idade e se algofazia Annabel agradecer aos céus todos os dias por seu pai possuir algumas pos-ses, esse algo era a oportunidade da leitura. Foi o próprio Gaspar quem ensinou

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a Annabel as primeiras letras e a matriculou em uma pequena escola próxima àsua casa em Lisboa, quando ela já tinha idade suciente para estudar. A escolade Lisboa era mantida por freiras da Ordem de Santa Clara e ensinava meninasde origem nobre a ler e escrever, em português, latim e grego, além de algumas

operações matemáticas. Um pouco de literatura e muito ensino religioso com-punham o restante do conteúdo das aulas. A paixão de Annabel pela leitura sefortaleceu nesse período e ela costumava armar que não sabia o que faria semseus livros e o seu pequeno diário.

Com a vela acesa nas mãos, ela acendeu outras duas e partiu para otrabalho pesado. Trocou os lençóis da cama e virou o colchão, o que exigiuum esforço quase sobre-humano, dadas as condições físicas em que ela se en-

contrava. Mas, depois de alguns bons minutos de luta, ela conseguiu. Lavou-secom a bacia de água que Raquel, uma das criadas, tinha levado para o quarto ecolocou anáguas limpas e um vestido simples de linho que se ajustava bem aoseu corpo magro e que lhe pareceu mais apropriado para o calor que fazia noBrasil. Escolheu um de seus lenços e o amarrou em volta do pescoço para es-conder as marcas vermelhas que caram após o ataque. Ela já tinha usado lençosdaquela forma muitas vezes e sabia que a mãe não reclamaria. Pelo menos não

no primeiro ou no segundo dia e ela esperava que as marcas sumissem rápido,pois após dois ou três dias de lenço em volta do pescoço, com certeza Améliacomeçaria a suspeitar de algo. Esperou o dia amanhecer sentada em sua mesa deleitura, tentando se entreter com algum livro, mas os livros não foram capazesde entretê-la. Cada palavra que lia embaralhava-se em sua mente e todos os seuspensamentos voltavam-se para o ataque que sofrera e o medo a assaltava maisuma vez. O menor barulho vindo da rua, um estalo nas tábuas do assoalho ou

simplesmente o som do vento balançando as folhas das árvores, qualquer coisaera suciente para fazê-la tremer. O coração disparava, suas mãos gelavam e elalevava imediatamente as mãos ao pescoço. Tinha certeza de que não sobreviveriaa uma segunda experiência como aquela. Então, depois de mais algumas tenta-tivas, abandonou os livros, tirou os sapatos e cou andando de um lado para ooutro, esperando o tempo passar.

Porém, o dia amanheceu, belo como sempre e os raios do astro rei in- vadiram o quarto, sem que nada de estranho ou misterioso voltasse a ocorrer.Pouco antes do amanhecer, quando o céu ainda variava entre o azul escuro eoutros tons mais claros, alguns pássaros começaram a cantar de maneira tímida

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e tão logo o sol nasceu o céu já estava tomado pela maior variedade de aves que Annabel já tinha visto na vida. Havia uma grande árvore no quintal de sua casae provavelmente alguns milhares de ninhos por lá, a julgar pelo barulho que ospássaros faziam. Uns cantavam de uma maneira muito bonita, outros apenas

gorjeavam de maneira confusa, mas não deixava de ser interessante observaresse espetáculo da natureza. Um deles, preto e com um enorme bico amarelopousou perto dela, no parapeito de madeira da varanda e cou encarando-a deum jeito muito esquisito, como se quisesse que ela lhe desse alguma coisa. An-nabel não tinha nada para dar ao pássaro; então, depois de alguns instantes, ele

 voltou para o céu. Ela sorriu e pensou que aquele espetáculo dos pássaros eramais uma coisa incrível no seu novo lar e que sua chegada ao Brasil poderia ter

sido perfeita, não fosse a visita que recebera durante a madrugada.Se Annabel soubesse o que estava por vir, talvez tivesse implorado ao seugigante gentil para ter cado em Portugal.

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Capítulo dois

Um novo amigo

Seus pais acordaram pouco depois das seis da manhã e ela já estava namesa quando eles desceram com Alfonso. Na verdade o relógio mecânico na salamarcava cinco horas da manhã quando Annabel desceu, após ouvir um barulho

 vindo da cozinha. Francisca e Raquel já estavam de pé, preparando o café damanhã e ela resolveu ajudá-las com o trabalho, apesar das reclamações da mulhermais velha.

 – A sinhazinha patroa não devia de car ajuda não. – Francisca falou,

com um ar severo e cansado. Ela aparentava sempre esse ar severo e cansado e Annabel julgou que ela deveria ter uns quarenta anos, embora algumas pequenasrugas abaixo de suas sobrancelhas indicassem alguns anos a mais. – A sinhá suamãe vai reclamar.

 – Ela não precisa saber que eu vos ajudei, não é? Além do mais, que malpode haver? – Annabel respondeu, com ar ligeiramente petulante.

 – A sinhora sinhazinha não entende. – Francisca retrucou, disposta a

 vencer a discussão. – Nós somos escravas e a sinhá sua mãe não quer a sinhazi-nha em nossa companhia. Escravas . Annabel cou pensando naquele termo. Quando conhecera as

duas mulheres, no dia anterior, percebera o olhar desagradável que sua mãe dis-pensara a elas. E houve também o episódio no cais. Quando desembarcaram,um escravo de pele tão negra quanto a noite ajudara Annabel a sair da canoa.Ela o agradeceu graciosamente, causando indignação em Amélia, que disse ris-

pidamente que não se agradece a escravos. Annabel não entendia o porquê, poispara ela se agradece qualquer pessoa que lhe ajuda, seja criado ou nobre, brancoou preto. É uma questão de gentileza e respeito. Em Lisboa, eles tinham pessoasque os serviam. Oito, para ser mais exato. Porém lá não eram escravos e simcriados. É certo que ela sabia o que era um escravo, mas nunca tinha visto umde verdade, até chegar no Brasil. Os criados de sua casa eram tratados de formadiferente e especial. Seu pai sempre os pagava por seus serviços, embora nãotanto quanto mereciam e eles moravam permanentemente com eles, quase comose fossem membros da família. Os escravos no Brasil pareciam não ter qualquertipo de direito. Talvez fosse devido à cor de sua pele, sempre muito negra.

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 – Isso não está certo, eu digo. A senhora minha mãe está equivocada. – Annabel respondeu de maneira ainda mais ousada, para desespero de Francisca. – Não deveríamos tratar as pessoas de maneira inferior só por causa da cor desua pele. A cor da pele não determina quem somos.

 – A sinhazinha tem uns pensamento muito diferente dos outros sinhôse sinhás que servi. – Francisca falou, resignada, percebendo que não sairia vito-riosa daquela discussão.

Raquel, a mais jovem das duas, apenas sorria daquilo tudo e Annabelpercebeu que a jovem gostava de sua companhia, o que a deixou muito feliz eainda mais determinada em seu propósito.

 – Em Portugal, eu era muito próxima das criadas e pretendo ser amiga

de ambas, certo? – Ela argumentou mais uma vez. – Tudo bem, sinhazinha Annabel. Faça como desejar. – Francisca secalou e voltou aos seus afazeres. E foi assim que Annabel cou ajudando nacozinha, enquanto preparavam o café.

Conversou por algum tempo com Raquel, uma jovem que, na opinião de Annabel, tinha o mais belo sorriso do mundo. Raquel não era tão negra quantoo escravo da balsa, mas ainda assim era bem mais negra que Annabel, que tinha

a pele cor de oliva. A jovem contou a Annabel que o seu verdadeiro nome eraBeka, tinha dezessete anos de idade e que Raquel foi um nome dado pelos por-tugueses quando a trouxeram para o Brasil. Os cabelos de Raquel chegavam-lhena cintura e estavam amarrados em um penteado diferente, que Annabel achouestranho na primeira vez que viu, apesar de muito bonito. Era a primeira vezque via um penteado como aquele e sabia que era quase impossível que algumadama da nobreza em Portugal zesse aquele tipo de corte no cabelo. Era como

se cada o de cabelo da jovem fosse uma única trança, como pequenos chicotesque caiam sobre os ombros até sua cintura. Raquel era mesmo uma moça muitobonita.

Francisca não estava interessada em conversar, mas disse, a contragosto,que seu nome verdadeiro era Anayá, embora não usasse esse nome havia muitotempo.

 – E por que vós mudastes de nome? Como vieram para o Brasil? Porque se tornareis escravas? Alguém lhes dá algum pagamento? – Annabel era,como toda criança, curiosa e o era mais que a maioria das crianças, tinha mui-tas perguntas, mas Francisca não tinha intenção de respondê-las. Raquel queria

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conversar e responder todas as perguntas de Annabel, mas Francisca disse, numtom um pouco mais severo que o habitual, que o café não se fazia com conversa,então, para tristeza das duas novas amigas, as conversas encerraram-se. Annabelentão passou a ajudá-las em silêncio e quando seus pais desceram para a mesa, a

refeição já estava totalmente pronta.Comeram mingau de aveia com pedaços de manga dentro dele, um pão

de milho recém saído do forno, com manteiga batida naquela manhã. Frutasque eram completamente novas para eles, três tipos diferente de chá, além deum suco de laranja, que ela adorava. O café da manhã estava tão delicioso quequase a fez esquecer o desespero da noite anterior. Como imaginara, não houveperguntas sobre o lenço em seu pescoço.

 Após o café, pediu permissão para ir passear e conhecer outras crianças.Estava ansiosa para começar a explorar a cidade e fazer novas amizades. Talvezsair e passear pela cidade, podendo conhecer outras crianças de sua idade a aju-dasse a esquecer o pesadelo da noite que passou. O olhar que sua mãe lhe dirigiuquase fez Annabel desistir da aventura, porém, foi Gaspar quem falou primeiro,permitindo o passeio, apenas com a ressalva de que não fosse sozinha para aparte baixa da cidade. Amélia a fez prometer três vezes que não iria sozinha para

a parte baixa e perigosa da cidade, mesmo ela já tendo feito a mesma promessaa Gaspar e que não falaria com estranhos. Annabel não via nada de perigoso naregião do cais e sabia que não se faz novas amizades não falando com estranhos,mas não queria contrariar sua mãe, então balançou a cabeça concordando, ape-sar de saber que seria impossível cumprir essa promessa, pelo menos a segundaparte dela.

Saiu de casa feliz pela permissão que tinha conseguido e deu um animado

bom dia ao soldado que cochilava junto ao portão, apoiando-se tranquilamentena lança, após a noite de vigia. Ele se assustou, enxugou a baba que escorria docanto da boca com a manga do gibão e se levantou depressa, com medo de quealgo estivesse acontecendo. Annabel o certicou de que estava tudo bem.

 – Me desculpe, pequena senhorita. – O homem falou, após estar devida-mente acordado. – Eu acabei cochilando. Na verdade, eu esperava que viessemme render no nal do turno, logo depois do sol nascer, mas é evidente que meucompanheiro está atrasado.

 – Não tem importância. – Ela respondeu. – Tu chegastes a ouvir algoestranho acontecendo na noite passada? Vistes alguém passar por aqui?

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 – Não, senhorita. A noite passada foi tranquila, como são quase todas asnoites. Apenas o barulho das corujas e nada mais.

 – Obrigado. – Disse Annabel, sem saber se devia se sentir melhor oupior, pois aquilo apenas conrmava a natureza sobrenatural do ataque que so-

frera. – Tenha um bom dia, senhor. – Tenha um bom dia também, senhorita. – O soldado se curvou em uma

mesura e ela seguiu seu caminho.O sol já estava alto e o clima era agradável quando ela começou a ca-

minhar pelas ruas de Filipeia. As pessoas pareciam estar acordadas havia muitotempo, mesmo que ainda não fossem nove horas da manhã. Andavam de umlado para o outro com um ar apressado, como se houvesse muito a ser feito. Os

armazéns estavam abertos, as construções já seguiam a todo vapor e os soldadosfaziam seus treinamentos matinais na grande praça em frente ao prédio do Go- verno. Ela foi andando para lá, em direção à igrejinha, do outro lado da praça.

 – Já se decidiu sobre o macaco, senhorita? – A voz fez ela se virar, assus-tada. Deu de cara com um menino de sua altura e apenas um ou dois anos mais

 velho. O garoto carregava um pequeno e simpático macaquinho no seu ombroesquerdo. Annabel buscou na memória os acontecimentos do dia anterior. Taci,

esse era o nome do menino. E sim, ele tentara lhe vender um macaco no cais.De todas as propostas que recebera dos vendedores ao pôr os pés em terras bra-sileiras, aquela com certeza fora a mais esquisita. Quem iria querer comprar ummacaco? Bem, ela queria, mas tinha certeza absoluta de que sua mãe não cariasatisfeita com isso.

 – Bom dia, senhorita Annabel. – O garoto continuou a falar. Guaçu--Guaçu, o pequeno macaco, estava aninhando em seus ombros. Conforme ele

mesmo dissera a Annabel, Guaçu-Guaçu era um nome tupi, a língua dos índios esignicava grande-grande, ou grandalhão, o que era, obviamente, uma belíssimapiada, já que o macaco não devia ter muito mais que um palmo. – Já decidiu se

 vai comprar o macaco? – Não há nenhuma chance de eu criar um macaco em casa. Mesmo um

macaquinho tão pequeno e gracioso como este que vós carregais. – Ela admitiu,após se acalmar do susto que Taci lhe causara. – Eu acho que mamãe iria preferirme trancar no quarto para sempre, a deixar que eu tivesse um bichinho desses.Eles são muito engraçados e graciosos, eu sei, mas só vou poder olhá-los.

 Taci fez um muxoxo.

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 – É uma pena. – Ele disse. – O macaco seria um bom companheiro e tupoderia ensiná-lo muitas coisas.  Annabel concordou, apesar de não conseguir imaginar que tipo de coi-sas realmente úteis poderia ensinar a um macaco, em especial a um macaco tão

pequeno. – Tu não gostaria de segurá-lo? – O menino perguntou, se referindo ao

seu próprio macaco, Guaçu-Guaçu. – Ele gostou da senhorita e já que não vaiter nenhum macaco, podia ser amiga dele. O que acha?

 Taci estendeu a mão para ela, segurando o macaquinho, que parecia ani-mado em ir para o colo de Annabel. Ela relutou um pouco, mas estendeu a mãode volta e Guaçu-Guaçu correu pelo seu braço, indo se aninhar em seu ombro e

começando a mexer em seus cabelos. Ele gostou mesmo dos meus cabelos... O peque-no macaco era engraçado e não parecia nem um pouco perigoso. – Venha, vamos andando para o rio. – Taci a chamou. – Não posso. – Por quê? – Prometi aos meus pais que não iria sozinha para a parte baixa da cida-

de.

 – E vais manter a promessa. – Ele respondeu, com um sorriso bobo norosto. – Não vais sozinha, eu e Guaçu-Guaçu vamos com você. Annabel se deixou pensar um pouco sobre o que o menino acabara de

falar. Não tinha visto a coisa por esse ângulo, embora soubesse muito bem quequando seus pais disseram que ela não fosse sozinha para a parte baixa da cida-de, em outras palavras, o que eles estavam dizendo era que ela não deveria ir demaneira nenhuma para a parte baixa da cidade, mas, na lógica de uma criança e

ela adorava usar essa lógica quando lhe era útil, se estivesse acompanhada porum novo amigo, poderia ir livremente e não estaria desobedecendo. Bem, essa éuma maneira muito boa de se pensar , concluiu.

 – Bem, suas palavras são cheias de razão, eu acho. – Ela respondeu, porm, com um sorriso no rosto. – Apesar de que não acredito que minha mãeaceite essa lógica, se eu contar para ela.

 – Ué? Então não conte! – O garoto falou com um ar tão debochado e en-graçado que ela não pôde deixar de rir. Juntou-se a ele no riso, gargalhando bemalto, chamando a atenção das pessoas que passavam ao redor. Quando já estavacando envergonhada, Taci a puxou e começaram a correr em direção à trilha

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que levava ao cais, lá embaixo. Passaram pela enorme cruz de madeira que cavabem no meio da praça numa carreira que assustava quem os via. O macaquinhohavia pulado do seu ombro e corria no chão ao lado deles. Só pararam de correrquando já estavam na trilha, totalmente cansados e esbaforidos. Pode-se dizer,

com justiça, que apenas Annabel estava totalmente cansada e esbaforida, porqueo garoto índio não demonstrava quase nenhum sinal de cansaço.

 – Tu corre bem pra uma menina, principalmente uma dama. Vamos cor-rendo até lá embaixo? – Taci propôs, com o mesmo sorriso debochado, vendoo cansaço dela.

 – Ficastes louco? Tu queres que eu morra, por acaso? – De jeito nenhum, senhorita. Eu estava só brincando. Não dá pra descer

correndo mesmo, é muito íngreme. Em alguns lugares, a pessoa simplesmentenão conseguiria parar e daria de cara com uma árvore. Tu não vai querer que issoaconteça, nem eu.

 – Não. Claro que não desejo que algo assim aconteça. – Muito bem. Então a senhorita pode se apoiar em mim, se quiser. E cui-

dado para não escorregar. – Taci falou, ao começarem a descida. Ela gentilmenterecusou a mão do menino, apenas para perceber depois que seria impossível des-

cer sem ajuda. O solado liso do seu sapato não colaborava e sozinha ela não iriaconseguir chegar até o cais sem levar alguns bons tombos, então segurou comuma das mãos nos ombros de Taci e com a outra levantou a barra do vestido,para evitar um tropeção indesejado.

 Taci estava sem camisa e ela pode ver sua pele morena, que não era tãomorena quanto a das outras crianças índias e era muito mais clara que a doshomens da balsa, mas mesmo assim era quase tão morena como a dela, porém

bronzeada pelo sol. Seus cabelos eram lisos e caíam-lhe sobre os ombros atépouco acima da altura das costelas, como se nunca tivessem sido cortados. Acor também era diferente. Não era preto como o cabelo dos índios, mas umcastanho claro, quase louro, tal como a cor dos próprios olhos do menino. Seurosto era anguloso e seu nariz no parecia ter sido feito sob medida para a suaface. Magro, Taci vestia uma calça preta esfarrapada, que via-se que fora feitapara alguém muito maior do que ele e que só não caia revelando-lhe as vergo-nhas pois uma corda lhe servia de cinto. Estava descalço, assim como todas asoutras crianças que Annabel encontrara no cais. Como eles tinham praticamentea mesma altura, não era difícil para ela se apoiar em seus ombros. Seguiram em

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silêncio por algum tempo, até que ela reuniu coragem suciente para perguntar: – Onde tu moras, Taci? Teus pais não acham ruim que ques andando

sozinho por aí? – Eu moro por aí e por ali. – Taci respondeu, ao sorrir para ela mais uma

 vez. – E eu não tenho pais, então quase ninguém liga para o que eu faço ou oque não faço.

 – Como assim? Por acaso és órfão? – Minha mãe morreu durante a Conquista e meu pai, bem... Eu nunca

conheci meu pai. Lembro que minha mãe dizia que ele era um francês de cabeloslouros, mas é a única coisa que eu sei dele.

 – Perdoe-me. Meus sentimentos. – Foi o que Annabel conseguiu pensar

e dizer. Imaginou que essa fosse a coisa certa a se falar quando encontrasse umórfão. Era o segundo órfão que encontrava em poucos dias e estava começandoa car experiente nesses assuntos.

 – Não precisa. – Taci respondeu, olhando para ela com aparente tran-quilidade. – Não conheci meu pai, então não me importo com ele. Também nãogostaria de conhecê-lo. Minha mãe, eu queria que estivesse viva, mas não temossempre o que queremos.

 – E por que a sua mãe morreu? Tu dissestes que ela morreu na Conquis-ta? – Annabel ouvira seu pai conversando com um dos marinheiros do naviosobre a Conquista. Aparentemente, a capitania da Paraíba estava infestada defranceses e Portugal precisou de cinco tentativas para expulsá-los. Os francesesse aliaram aos índios potiguaras. Na quinta e denitiva excursão, os portuguesesse aliaram aos índios tabajaras, inimigos de longa data dos potiguaras. Os fran-ceses foram expulsos, os potiguaras destruídos e a expedição cou conhecida

como Conquista. Ela foi liderada por Frutuoso Barbosa, o então governador doterritório. – Isso mesmo. – Taci falou. – Ela era potiguara e os tabajaras não gostam

dos potiguaras e vice-versa. Acho que algum tabajara a matou. – Não estavas com ela? – Não. – Dessa vez uma expressão de tristeza se insinuou no rosto do

garoto. – Ela me mandou correr para a oresta e me esconder. Tive sorte em tersido achado pelo padre Estevão. Se tivesse sido achado por um português ou umtabajara, eu provavelmente estaria morto.

 – Então tu és potiguara e vive entre os tabajaras e os portugueses? Tu

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não os odeia? – Annabel perguntou. – Se alguém matasse a minha família, eu nãoconseguiria viver com eles. Provavelmente os odiaria para sempre.

 – Eu odiava, mas depois deixei de odiar. Padre Estevão cuidou de mime me deixou viver na casa dos padres. Acho que ele gostaria que eu me tornasse

padre, um dia. Mas isso não é pra mim. Padres não se casam! – O menino riualto. – Ele me disse também que eu sou brasileiro e que devia esquecer a rivali -dade entre os tabajaras e os potiguaras. E foi assim que eu fui vivendo. Hoje eunão odeio mais e todos me tratam como tratariam a qualquer criança órfã.

 – E como é esse tratamento? – Às vezes bom, às vezes ruim. Às vezes me dão comida, às vezes me

batem. Embora tenham me batido menos ultimamente.

 Annabel sentiu um pouco de pena do garoto. Não devia ser fácil perdera mãe tão cedo, nunca ter conhecido o pai e ainda por cima ver seu povo serdestruído. Taci parecia ser um bom garoto e ela cou verdadeiramente triste porele. Achou que poderiam ser bons amigos.

 – A vida não deve ser fácil para vós. – Às vezes é, às vezes não. Como para todo mundo. – Nem todo mundo... – Annabel pensou nas crianças da corte, os lhos

da nobreza. A vida não parecia ser difícil para eles. Parou por um instante e lem-brou que ela própria fazia parte desse grupo de crianças. Não era justo. Uns terdemais e outros ter tão pouco. Mudaria isso, se pudesse.

 – Não importa, minha vida é assim. – Taci deu de ombros. – Às vezesdurmo na mata, quando vou caçar. Mas a maior parte do tempo eu durmo nacasa dos padres. Eles têm um orfanato para crianças potiguaras e tabajaras queperderam os pais na guerra. Eles nos dão comida e ensinam coisas. Lá eu aprendi

a falar português e a ler e escrever em português e latim. – Tu sabes ler e escrever? – Agora ela estava muito surpresa. – Sim. E falo francês muito bem. – Como? – Minha mãe sabia falar francês. Acho que ela aprendeu com meu pai,

ou algum outro francês que ela conheceu. E ela me ensinou, assim como o tupi. – O tupi é a língua dos índios, não é? – Isso mesmo. – Ele respondeu. – Existem muitas línguas diferentes

entre si, mas quase todas as tribos falam um tipo de língua tupi. – Seu nome...

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 – É um nome tupi. Signica inseto.Ele riu ao dizer o signicado do próprio nome e mais ainda ao explicar

o porquê de sua mãe chamá-lo assim. – Quando eu era bebê, eu era muito pequeno e meu choro parecia um

zumbido de inseto. Então minha mãe me chamou de Taci Guaraciaba, o insetode cabelos louros.

 Annabel não conseguiu segurar o riso. – Me desculpe, oh, me desculpe. – Ela ainda estava rindo quando falou.

 – Não é minha intenção ofender-te. – Todos riem quando eu conto o signicado. – Ele disse, sem demons-

trar irritação. – Quando contei meu nome e o signicado ao padre Estevão, ele

cou horrorizado e quis mudar meu nome para Alberto, mas eu não gostei econtinuei me chamando de Taci. – Por quê? Alberto é um bonito nome. – Pode até ser, mas é um nome estrangeiro. O padre Estevão pode dizer

o que quiser, mas eu sou metade índio. Quero car com meu nome de índio. – Como quiser, inseto de cabelos louros. – Ela disse, em tom de brin-

cadeira e sorriu, mas percebeu que não devia ter dito isso no instante seguinte.

 Taci fez uma carranca e desceu correndo a trilha, deixando-a sozinha. Ele sim-plesmente desapareceu na mata e Annabel cou ali, sozinha, parada, sentindo-secomo uma tonta. Ela começou a chamá-lo em voz alta, pedindo desculpas, semsaber o que fazer. Estava numa das partes mais íngremes da trilha e tinha quasecerteza de que levaria um belo tombo ao continuar. Também tinha certeza deque haviam descido mais da metade do caminho e não estava muito disposta a

 voltar.

 – Tudo bem! – gritou, depois de alguns minutos, já sentindo-se comraiva. – Não preciso de você para chegar ao cais. Posso descer muito bem, nãohá perigo! – Ela disse, esforçando-se para soar corajosa, mas imediatamente selembrou da noite anterior e toda a sua coragem desapareceu. Deu o primeiropasso, apenas para escorregar na lama da trilha no passo seguinte. Teria sido amaior queda de sua vida, se Taci não tivesse surgido milagrosamente do nada e asegurado, segundos antes que ela batesse com as costas no chão.

 – Onde tu estavas, por acaso?! – Annabel estava com raiva pelo susto quehavia tomado e sua primeira ação foi gritar com ele.

 – Na mata, ué! – Aquele sorriso debochado a deixava realmente irritada.

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 – E, a propósito, de nada. – O quê?! – De nada. Já estou adiantando a resposta, para quando a senhorita me

agradecer.

 – Agradecer pelo quê? – Ora! – Taci quis parecer contrariado, mas não conseguiu segurar o ar

de riso. – Por te salvar de uma boa queda. Por te livrar de se estatelar no chão! –Ele falou e soltou uma gargalhada tão alta que fez doer os ouvidos de Annabel,mas o riso acabou por contagiá-la e logo ela estava gargalhando também.

 – Muito bem, obrigado. Agora nunca mais me assuste desse jeito. – Como quiser, senhorita. – O garoto sorriu novamente e ela não conse-

guiu distinguir se ele estava lhe gozando ou apenas sorrindo.Continuaram a descida, desça vez com Taci ao lado de Annabel, segu-rando seu braço. Passaram pela parte mais íngreme e em pouco tempo haviamchegado ao m da trilha e avistaram as casas de taipa à beira do rio.

 – Chegamos! – Taci gritou, correndo na frente e virando-se para chamá--la. – Chegamos, senhorita Annabel!

 A parte baixa de Filipeia pareceu a Annabel muitíssimo mais atraente do

que qualquer outro lugar na cidade. A maioria das crianças estava por lá e pareceque as aventuras também. Não havia muitas construções por ali, mas ela nãoestava interessada em prédios. Um pequeno quartel cava ao lado do Forte deNossa Senhora das Neves e era construído de madeira e taipa. Ela o vira no diaanterior, quando a canoa deslizava pelas águas do rio Sanhauá, trazendo-a juntocom a família para o cais, pois o galeão não era capaz de manobrar num rio tãoestreito. O Santa Edwiges cara ancorado no rio Paraíba, um rio muito maior

e mais profundo que o Sanhauá. Além do quartel, dois armazéns que serviamcomo depósitos para as cargas recém chegadas pelo rio dividiam o espaço da pe-quena praia com uma dúzia de casas de taipa e algumas outras cabanas de palha.Havia também uma taverna que servia como pensão, destino obrigatório para osmarinheiros recém-chegados.

Na parte baixa de Filipeia, moravam principalmente os índios conver-tidos e caboclos. Os portugueses que moravam por ali eram todos de origemduvidosa e a maioria viera de Portugal por exílio, como pena por crimes come-tidos contra a Coroa. Mas Annabel não se importava com isso. A parte baixa deFilipeia fervilhava com uma vida alegre e colorida. Havia cachorros por todos

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os lados, galinhas, macacos, pássaros de vários tipos e cores, pequenos roedoresque corriam para lá e para cá e um bicho estranho, grande, o qual ela pensou setratar de um tipo de porco, mas depois Taci lhe disse que se tratava de uma capi-

 vara, um bicho muito comum naquelas terras. Os cheiros se misturavam, criando

uma enorme confusão de aromas. Carne frita, lama e outros odores mais difíceisde se identicar dominaram as narinas de Annabel. Havia também o rio, o me-lhor de todos os locais e foi pra ele que Taci e Annabel se dirigiram correndo. Odia estava apenas começando e eles queriam aproveitar ao máximo.

 Apesar do seu jeito brincalhão, Taci não voltou a assustá-la. Eles brinca-ram bastante naquele dia e o garoto apresentou Annabel a várias outras criançase ela fez mais novos amigos do que teria imaginado e não viu o tempo passar.

Comeram frutas que tiraram das árvores e pão que conseguiram num dos arma-zéns à beira do rio. Quando Gaspar a encontrou, o sol já ia próximo do poente ea tarde chegava ao nal. Annabel estava com a água do rio na altura dos joelhos,a barra do vestido completamente molhada e brincava de arremessar pedras emum pequeno bote de madeira que estava na água.

É claro que Annabel ouviu um sermão daqueles na hora do jantar.Pela vontade de Amélia, Gaspar teria dado uma surra em Taci por ter levado

Annabel para o rio e deixado a menina de castigo durante um mês. MasGaspar era mais piedoso e no fnal, não houve surra para Taci e o castigo de

Annabel se resumiu a uma semana sem sair de casa. O dia foi tão bom queela mal podia esperar para o castigo acabar e voltar a explorar e brincar comTaci e com as outras crianças. Foi tão incrível que ela se esqueceu durante amaior parte do tempo de tudo o que acontecera na madrugada passada. Masa noite tinha chegado novamente e ela não sabia quais mistérios e terrores aaguardavam.

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Capítulo três

 As marcas no pescoço

  Naquela noite, não houve pesadelos ou assombrações. A verdade é que Annabel quase não conseguiu pregar os olhos durante mais de cinco segundossem acordar assustada. Foi para a cama cedo, logo após o jantar, por ordem dospais. Uma semana sem sair de casa, esse era o castigo por ter ido brincar no riocom Taci.

Quando se deitou, com o quarto mergulhado na escuridão, tendo apenasa luz da lua que entrava pelas janelas abertas, pois as velas haviam sido cons-

cadas por seu pai e isso também fazia parte do castigo, cou pensando sobrecomo o seu dia havia sido. Tinha explorado, conhecido outras crianças, feitonovos amigos. O castigo não fora tão ruim como poderia ter sido e ela sorriu noescuro, percebendo que estava feliz. O sono e o cansaço tomaram conta do seucorpo e da sua mente e ela quase adormeceu. Porém, quando seus olhos já co-meçavam a se fechar e sua mente já estava distante, ela se levantou da cama numsalto. O coração estava acelerado, seu corpo todo tremia e ela estava tão suada

como uma chaleira no fogo. A lembrança do ataque da noite anterior estava ali,tão viva e tão forte quanto o próprio ataque. Não estava disposta a passar portudo aquilo novamente. Silenciosamente foi até o corredor e percebeu que seuspais ainda estavam lá embaixo, na sala, conversando. Fazia pouco tempo quesubira para dormir e ela calculou que não passavam das oito horas da noite.

 – Vai ser uma longa noite... – Ela murmurou, enquanto agarrava e levavapara o quarto um atiçador de lenha, que tinha encontrado no corredor embaixo

de uma pequena escrivaninha, uma peça de ferro puro de quatro palmos de com-primento. Estava disposta a revidar, caso fosse atacada novamente.  Ficou deitada durante muito tempo, andou de um lado para o outro noquarto e na varanda, tentou ler sob a luz da lua, o que se provou impossível e eladesistiu, foi até o corredor várias vezes e em todos esses momentos sua menteia para lá e para cá, tentando achar uma resposta racional para tudo o que tinhaacontecido na noite anterior. Sem sucesso. Até que, nalmente, o cansaço a ven-ceu. Mesmo assim, só conseguiu adormecer de verdade depois das quatro horasda manhã, quando o sol já surgia, os pássaros já cantavam e ela havia concluídoque o que quer que a tenha atacado na noite anterior não repetiria a dose naquela

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noite. O atiçador não seria mais necessário por enquanto.  Quando acordou o sol já estava alto e passava das nove horas da manhã.Sua mãe tinha vindo acordá-la, pois achou que ela já havia dormido tempo de-mais. Annabel se levantou assustada e por muito pouco não revelou que passara

a noite em claro. Se conteve e fez o melhor que pôde para esconder as olheirase o cansaço. Também por muito pouco sua mãe não viu as marcas vermelhasdo seu pescoço, pois embora ela tivesse tirado o lenço para dormir, o recolocarapouco antes de adormecer denitivamente, o que a salvou. Lavou o rosto cinco

 vezes, antes de descer para o desjejum. Comeu pouco e foi logo para o quarto,disposta a ler, mas não conseguiu terminar nem a primeira página e adormeceunovamente.

Dessa vez quem a acordou foi Raquel, já ao meio-dia.  – Senhorita, senhorita Annabel acorde. – A jovem disse com ar grave. –Sinhazinha, seus pais a estão chamando para o almoço.  – Ora, mamãe, me deixe dormir. – Annabel respondeu, sonolenta. – Nãopreguei os olhos durante quase toda a noite, me deixe dor...  Ela não terminou a frase. Deu um pulo e já estava de pé, em cima dacama. Raquel estava rindo.

  – Não precisa se preocupar, sinhazinha. Não sou a sinhá sua mãe. – Ra-quel lhe dirigiu um sorriso de cumplicidade. – Não vou contar que você passoua noite acordada.

 Annabel suspirou aliviada.  – Eu realmente achei que fosse minha mãe... Não queria ouvir outrosermão hoje.

 – Não se preocupe. Às vezes eu também passo a noite em claro. Fico

pensando em coisas, coisas da minha terra natal. – Raquel pareceu triste, masmudou sua expressão no momento seguinte, quando percebeu as marcas nopescoço de Annabel, pois o lenço que cobria o pescoço da menina tinha caídoquando ela se levantou bruscamente. – Oh, senhorita! O que aconteceu com seupescoço? Quem fez essa crueldade com você?  A primeira reação de Annabel foi levar as mãos ao pescoço procurandoo lenço. Ele não estava lá. Olhou para a cama apavorada e o encontrou caídosobre os lençóis.

 – Eu... Ele... meu pescoço... Foi... – As palavras simplesmente não saiam. – Deixe-me ver, senhorita.

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  Annabel se sentou na cama enquanto Raquel a examinava. A jovem sol-tou um “oh!” ao olhar mais de perto e pegou um pequeno espelho para que

 Annabel também pudesse ver. As marcas estavam mais vermelhas do que no diaanterior.

 – Senhorita Annabel, seus pais sabem disso? Quem fez isso com a se-nhorita? Isso são marcas de dedos, como se alguém a tivesse agarrado pelo pes-coço. Quem fez isso queria te matar, senhorita.  Annabel deixou o corpo cair na cama e por um segundo achou que fossecomeçar a chorar. Não tinha respostas às perguntas de Raquel. Ou melhor, tinhaas respostas, mas não sabia como ela ou mesmo seus pais poderiam ajudá-la.

 Tentou enganar Raquel, dizer que fora uma queda, mas o tempo que passou

servindo aos senhores portugueses tornaram Raquel uma jovem esperta demaispara ser enganada tão facilmente. – Não foi nada, tu não precisas te preocupar, Raquel. – Annabel disse

por m e procurou parecer convicta. – E também não deves contar nada aosmeus pais, certo? Em uma semana não vai restar marca alguma e tudo vai carbem. E não vai acontecer de novo, eu prometo.  – Senhorita... – Raquel ainda tentou argumentar. – Um ataque assim não

pode car impune. Se alguma criança fez isso, ou algum adulto, a senhorita nãoprecisa ter medo. Vai car tudo bem. Seu pai falará com o governador.Mas Annabel sabia que o governador não podia fazer nada, então orde-

nou, pediu, chorou e implorou que Raquel não contasse nada aos seus pais. Nom, Raquel concordou, com a promessa de que, se acontecesse novamente, amenina lhe contaria imediatamente. Então, a jovem criada desceu rapidamenteaté a cozinha, de onde trouxe uma pomada de aloe vera  e cânfora  e com ela fez uma

massagem no pescoço de Annabel. – Ai... Ai! – Annabel choramingou, enquanto Raquel massageava seupescoço, que, segundo seus cálculos, agora doía dez vezes mais do que na noitedo ataque. – Mamãe perguntou por mim?  – Sim, a sinhá perguntou pela senhorita. E eu disse que a senhorita esta-

 va trocando o vestido, antes de descer.Raquel ajudou Annabel a colocar um vestido branco, simples e com de-

talhes em renda e um lenço azul celeste em volta do pescoço. A massagem trou-xera um grande alívio ao pescoço dolorido e ela se sentiu melhor. Desceu paraalmoçar com o ânimo renovado.

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  O apetite também parecia estar renovado e Annabel comeu bastante,talvez para compensar o pouco que comera no café. Um bom pedaço de umempadão de porco que Francisca havia feito, ensopado de feijões pretos, batatasassadas com orégano e azeite, uma farofa de cebolas e mandioca, que era uma

raiz típica do Brasil e suculentos pedaços de manga como sobremesa. Ela comeutanto que seus pais se surpreenderam com seu apetite e embora não tenham fei-to nenhum comentário, a surpresa cou evidente nos olhares que eles lhe davam,a cada nova porção de comida que ela colocava no prato.

Passou a tarde do sábado deitada na cama, lendo e escrevendo em seudiário. Ainda não tinha escrito nada desde sua chegada ao Brasil. Durante a

 viagem o diário era o seu principal passatempo e ela encheu suas páginas com

relatos detalhados sobre cada marinheiro do Santa Edwiges, em especial sobreFernão, um jovem galanteador, de sorriso fácil e natureza gentil. Escreveu tam-bém sobre as belezas e agruras de uma travessia tão longa e fez alguns pequenosdesenhos. Agora, precisava atualizar suas aventuras com os relatos de seu pri-meiro dia no Brasil, com o ataque misterioso que sofrera, com as novas amizadesque zera no rio, com as histórias de Taci e seu macaquinho e com as impressõesque tivera de sua nova casa.

 A casa tinha a fachada pintada de azul, um azul que lembrava a cor docéu ao entardecer. O piso térreo era construído em alvenaria ao passo que o pri-meiro andar fora construído totalmente em madeira. Um pequeno muro feito depedras e pintado de branco separava a rua de um pequeno jardim que havia naentrada. Amplas varandas rodeavam a casa no andar de cima. Não era o palacetede três andares com pátio interno que eles tinham em Lisboa, mas era confortá-

 vel e aconchegante.

Escreveu até anoitecer. Quando a noite chegou, trouxe com ela o medoe novamente Annabel cou acordada o máximo que conseguiu, mas pegou nosono pouco depois da meia-noite. Dormiu um sono tranquilo, sem sonhos.

Na manhã do dia seguinte, um domingo, seus pais permitiram que elasaísse de casa para ir à igreja. Seria a primeira missa a que assistiriam no Brasil.Saíram cedo de casa, Amélia e Gaspar na frente, trajes nobres e braços dados,

 Annabel atrás, junto ao seu irmão, Alfonso, um garoto de pele clara e cabelosclaros herdados de Amélia e um gênio tão forte quanto o da mãe. Mas ele e An-nabel se davam bem, pois ele a amava desesperadamente em seus cinco anos deidade. Raquel ia entre eles, carregando um grande sombreiro de palha, que os

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protegia do sol. Annabel protestara contra aquilo, mas Amélia fora enfática. Nãoqueria Alfonso queimado do sol.  Alcançaram a praça principal e Annabel pode observar mais uma vez ecom mais atenção a cidade. Filipeia não poderia diferir mais de Lisboa. Devia ser

umas mil vezes menor, a julgar pela quantidade de ruas. Lisboa tinha incontá- veis ruas, ao passo que Filipeia havia apenas oito. Nove, se contar a rua da partebaixa. Nenhuma delas era calçada; então, andava-se no barro batido no verão ena lama no inverno. Porém, por todo lado construções fervilhavam. A grandepraça era na verdade um enorme terreno aberto, uma clareira em formato dequadrado, com aproximadamente três ou quatro milhas4 de cada lado. A igrejacava defronte à praça, próximo à trilha que levava ao cais. Era uma capelinha

construída de taipa, com as paredes pintadas de branco e uma cruz de madeirabanhada a ouro no alto de sua pequena torre. Essa era a Igreja de Nossa Senhoradas Neves, a catedral da capitania da Paraíba. Atrás da igreja, havia algumas casasque serviam de suporte para a paróquia. A uma distância de setecentos passos5 da igrejinha, uma nova construção se erguia, essa, porém, era construída empedra e alvenaria.  – Olhem, crianças! – disse Gaspar, apontando para a construção à medi-

da que cruzavam a praça e se aproximavam da igreja. – Será o Mosteiro de SãoBento. A ideia da obra foi dos frades beneditinos, que chegaram por aqui no iní-cio do ano. O terreno para a construção foi doado pelo governador, a pedido doabade José Maria. A Igreja envia os recursos e o Bispo e o abade supervisionama obra. Dizem que cará pronto em dois anos. Creio que ambos se casarão nelecom grande pompa, quem sabe.  Annabel não tinha nenhum interesse em se casar no mosteiro. Desde

pequena não fora uma criança muito religiosa e também não via motivo para secasar com “grande pompa”.Eles haviam acabado de passar pelo monumento no meio da praça, um

imponente monumento de pedra com uma cruz de madeira ainda mais impo-nente em cima dele e as insígnias do governo português cravadas na rocha. Abase da cruz, construída em pedra, era enorme, chegando a vinte palmos de al-tura. A própria cruz era também um espetáculo à parte. Trinta palmos de altura,

4 Quando o termo “milha” for utilizado para distâncias terrestres, eleequivale a aproximadamente 1.609 metros.5 Passo – passo singelo, antiga medida, equivale a mais ou menos 2

 pés, ou cerca de 61 cm.

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esculpida a partir de um único tronco de árvore, envernizada com o mesmo ver-niz utilizado nos navios e com a inscrição “Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum ” feitaem ouro. Filipeia se organizava em volta daquela praça e daquele monumento.

 Ali, não havia crianças seminuas correndo em volta deles e os cheiros

eram bem mais simples e fáceis de identicar. Terra molhada e o aroma da matae da cana-de-açúcar dominavam o ar. Ela também não viu cachorros correndo,ou galinhas, ou qualquer outro bicho. De animais, Annabel viu apenas os cavalosde uma imponente carruagem à frente do quartel central do exército portuguêsna Paraíba, um prédio baixo que cava escondido pelos altos muros reforçadosde quinze pés de altura.  À direita do quartel, estava a sede do governo, de longe o maior prédio

de toda a cidade. Um grande edifício de três pavimentos, construído de alvenariae madeira, pintado de azul, com janelas e portas pintados com um tom vermelhoescuro. O prédio era bonito e a lembrava de algumas das construções encontra-das em Lisboa.

 À medida que a porta da igreja se aproximava, a vontade de Annabel desair correndo pela trilha em direção ao rio aumentava, mas ela se conteve comopôde. Não conseguiria nada de bom fugindo e o castigo terminaria em poucos

dias. Em breve estaria explorando e correndo, bem longe da parte alta de Fili-peia, que não tinha nada de interessante na sua opinião. A pequena capela de Nossa Senhora das Neves estava lotada. Cem pes-

soas se aglomeravam nos bancos rústicos e nos corredores da igreja para assistirà missa, presidida pelo bispo Altamir Monteluso com o auxílio dos padres Este-

 vão e Francisco.Na igreja, Annabel viu Taci novamente. Ele estava na frente, abaixo do

altar, com um grupo de outros garotos, todos vestidos como acólitos, que eraalguém que já fora batizado, que zera a primeira comunhão e que auxiliavaos padres nos serviços da igreja. Vestiam uma túnica de linho vermelho e umasobrepeliz branca, também de linho e traziam um colar de ta preta em voltado pescoço, com uma cruz de madeira na ponta do colar, que caia até a alturado umbigo. Eles formavam um tipo de coro e cantavam um hino em latim. Elapuxou pela memória todas as missas que participara em Lisboa, então decidiuque nunca tinha ouvido o hino, mas a melodia e a letra eram tão bonitas que elase deixou levar pelo clima celestial que tomou conta da pequena igrejinha.

 – Dori me, interimo adapare, dori me... – O coro de meninos cantava,

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com vozes em uníssono e devidamente anados. – Ameno, ameno, lantire lanti-remo, dori me. – Eles continuaram e a plateia, em silêncio respeitoso, observava.

 A escola das clarissas serviu para alguma coisa , Annabel pensou, ao ouvir o coro can-tar. O latim que aprendera a falar uentemente na escola a ajudou a compreen-

der a letra da música, que era, por sinal, realmente muito bela.

 Minha dor,Renova-me.

 Minha dor, Ameniza, ameniza.

Liberta, liberta-me 

 Minha dor...

 Ameniza a dor,

 Ameniza minha dor,

 Ameniza minha dor...

  Annabel foi arrebatada em seus pensamentos para um lugar de paz, onde

seu pescoço não doía, não havia ataques misteriosos durante a noite, onde suamãe a deixava criar um lindo macaquinho de estimação e ela, Alfonso, Raquel e Taci, exploravam as maravilhas de uma oresta encantada.

Mas o hino não durou para sempre e a voz rouca do arcebispo a trouxede volta. Ela olhou para o lugar onde o coro havia se posicionado ao término dohino e viu que Taci acenava efusivamente para ela enquanto murmurava algumaspalavras. Porém, ela não era tão boa em ler lábios quanto era em compreender

latim e ela pôde apenas tentar imaginar o que o menino índio tinha falado e sede fato era tão importante quanto parecia ser. Pensou em procurá-lo ao nal damissa, mas ao sair da igreja ela logo viu que seria impossível. Foi cercada porum enorme grupo de pessoas, que queriam cumprimentar a família chegada dePortugal – Annabel achou que todas as pessoas da cidade queriam falar com eles,o que é um exagero, mas ela costumava ser exagerada. – Ela foi apresentada aoslhos das famílias mais importantes da cidade. Não eram muitos, anal Filipeianão era uma grande cidade, mas quase todos eles pareceram à Annabel criançasmuito esnobes, justamente o tipo de crianças que ela costumava evitar quandomorava em Portugal. Simpatizou apenas com Alice, a doce menina que era lha

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do padeiro Manoel, tinha a mesma idade e que com ela partilhava o gosto porbrincar na parte baixa da cidade. Mas Alice era a única simpática às aventuras de

 Annabel. Todas as outras crianças faziam aulas de canto, oratória e outras coisasque eram imensamente chatas quando comparadas às brincadeiras que as espera-

 vam no rio. Annabel cou pensando que talvez o fato de aquelas crianças seremtão chatas foi o que zera sua mãe gostar tanto delas e manifestar verdadeiroentusiasmo com a ideia de que a lha manteria amizade com elas.

 Annabel não queria ser amiga de nenhuma daquelas crianças, exceto Ali-ce. O que ela realmente queria era ir para casa e se livrar de todo aquele montede panos que lhe cobriam o corpo. Estava usando o mesmo vestido azul queusara quando desembarcara do galeão, três dias antes. Não quisera ir com ele,

mas sua mãe tinha insistido, como sempre. Então, quanto mais rápido se livrassedo vestido e pudesse tomar um banho, melhor. A única vantagem do vestido eraque os enfeites e detalhes que ele tinha na gola cobriam quase todas as manchas

 vermelhas em seu pescoço. Elas ainda doíam, mas com menor intensidade, gra-ças às massagens que Raquel fazia. Estavam menos vermelhas também e logosumiriam completamente, assim ela esperava.

Conseguiram se livrar dos cumprimentos e chegar em casa pouco antes

do meio-dia. O almoço já estava pronto, mas ele podia esperar. Para Annabel,um banho era mais importante. Após o banho, Raquel aplicou-lhe outra mas-sagem com a pomada milagrosa de aloe vera  e cânfora e ajudou-a a colocar umlenço branco no pescoço e a prender o cabelo. Ela agora estava refrescada e con-fortável, vestida simplesmente de linho. Podia nalmente sentar-se para comer.

 Após o almoço, seus pais iriam fazer uma visita à casa de um de seusnovos amigos, Fabrício, um espanhol fabricante de tapeçarias, mas que, no Bra-

sil, se dedicara ao comércio da cana de açúcar. Alfonso iria dormir sua sonecada tarde e Annabel decidiu que após escrever alguma coisa em seu diário aquelamanhã, um descanso lhe cairia bem.

Quando terminou de escrever e decidiu dormir um pouco, seus pais játinham saído há alguns minutos. Estava muito calor – como quase sempre emFilipeia – e ela tirou o lenço do pescoço. Seus pais só retornariam à noite, Alfon-so estava dormindo, Raquel conhecia seu segredo e Francisca quase nunca subiaao primeiro andar. O vermelho das manchas estava mais tênue, conforme ela viuno espelho e apesar de ainda estarem visíveis, apenas quem chegasse um poucomais perto ou tivesse o olhar muito aguçado conseguiria enxergar as marcas dos

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dedos em seu pescoço. Estava quente demais para car com aquele lenço e elaplanejava acordar antes do sol se pôr, o que evitaria qualquer susto trazido poruma repentina chegada dos pais.

 Annabel mal tinha colocado o lenço na penteadeira, próximo à cama,

quando foi surpreendida por um grito vindo da porta que dava para a varanda. Virou-se o mais rápido que pôde e gritou ao se deparar com um garoto semcamisas e descalço, parado na soleira da porta, com o braço direito estendido,apontando para as marcas em seu pescoço. Então era isso que ele queria me dizer na

igreja , ela pensou, após segurar o grito que escapara indevidamente de sua gar-ganta. Taci viera lhe fazer uma visita.

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Capítulo quatro

 As primeiras revelações

 A cena era engraçada. O menino índio parado na porta do quarto, como braço estendido e a menina portuguesa, com as mãos levantadas, assustada,ambos aos gritos. Porém o grito de Annabel durou menos que cinco segundos,quando se lembrou do soldado de guarda em frente à sua casa.

 – Cale a boca, vamos, faça silêncio logo! Pares com esses gritos de louco! – Ela ordenou para Taci, tentando não falar muito alto. – Tem um soldado nafrente da nossa casa e com certeza ele te ouviu!

Ela já podia ouvir passos apressados subindo a escada. Devia ser Raquel. – Rápido, para debaixo da cama! – Annabel ordenou e o garoto não pen-sou duas vezes e correu tão depressa quanto pôde.

Raquel abriu a porta e Annabel percebeu que a jovem estava realmenteassustada. Queria saber o que havia acontecido e o porquê dos gritos. A sorte de

 Annabel foi que, como a jovem nunca a ouvira gritar, não pôde distinguir os seusgritos dos gritos histéricos de Taci. Annabel contou três vezes a história de um

macaco preto na varanda e Raquel, apesar de não parecer totalmente convenci-da, concordou em deixar a menina sozinha e avisar ao soldado lá embaixo quenão havia acontecido nada demais.

 Após se passarem uns bons minutos desde que a escrava se fora, Anna-bel disse para Taci sair de baixo da cama.

 – Jurupari! – foi a primeira coisa que o menino disse ao se levantar, aindameio sem fôlego e com um ar cansado e grave, como se aquela palavra fosse algo

muito importante ou, pior, algo muito perigoso. – Como entrastes aqui? O que queres? E o que diabos quer dizer jurupa-ri? – Annabel fez três perguntas, aumentando o nível de irritação na voz a cadauma delas.

 – Calma, calma, calma. – Taci recobrou o fôlego e a calma. – Uma per-gunta de cada vez e eu respondo todas, senhorita.

 – Muito bem. Como entrou aqui? – Isso foi fácil. – Ele respondeu, com um sorriso debochado no rosto.

 – Voando... – Burros não têm asas. – Annabel falou ainda mais irritada.

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 – Calma, senhorita, não precisa ofender. – Estou calma, mas não quero gracinhas. Não depois do susto que você

me deu. E ainda por cima, me zestes mentir novamente para Raquel. Se nãoquiseres ir embora voando varanda abaixo, é melhor que me digas a verdade.

 Taci lhe deu um sorriso ainda mais debochado. – Tudo bem, senhorita. Não se exaspere. A grande árvore nos fundos

de sua casa se junta às da casa de trás, que se juntam com as da outra casa e daoutra e da outra. É tudo uma questão de subir na árvore certa e ir passando degalho em galho.

 – Então viestes até aqui pulando de galho em galho? – Ela não pareciamuito crédula. – Como um macaco?

 – Isso mesmo, senhorita. Guaçu-Guaçu caria orgulhoso. – Ele inou opeito, cheio de orgulho e Annabel teve que segurar o riso. – Muito bem. Digamos que eu acredite na tua história. Que você chegou

aqui de galho em galho. Agora, o que você quer? – Ora, bolas. – Agora Taci parecia realmente ofendido. – Não posso nem

 visitar uma amiga? E eu lhe avisei hoje pela manhã, na igreja. – Ah, então quando falou era isso que estava dizendo? Por acaso tu sus-

surrastes em algum idioma misterioso? Antigo saxão, talvez? – Não, não, não. Falei em alto e bom português. Sinto muito se a senho-rita não conseguiu interpretar meus sinais.

 Annabel se sentou na cama, emburrada. Taci sentou ao seu lado. – Sinto muito, senhorita. Devia ter avisado melhor. Admito que não é

comum chegar na casa de alguém pela varanda do primeiro andar. – Ainda bem que reconheces. – Ela disse, ainda contrariada, mas com

um ligeiro ar de riso. – Agora, o que quer dizer jurupari? E por que estavas apon-tando para o meu pescoço?O sorriso que Taci costumava manter no rosto desapareceu tão rápido

como um piscar de olhos. – Nada demais, senhorita, não se preocupe. Não quis lhe assustar e peço

perdão. Annabel tinha apenas doze anos, mas na maioria das vezes sabia distin-

guir muito bem quando mentiam para ela. – Eu sugiro que me contes a verdade, garoto. – Ela disse e cou em pé,

encarando Taci com toda a seriedade que conseguiu demonstrar. – Ou vais real-

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mente voltar para casa voando.O garoto não levou a sério as ameaças, não sorriu ou fez troça. Conti-

nuou sério. – A verdade pode não lhe agradar, senhorita.

 – Eu decidirei se ela me agrada ou não, não achas? – É justo. Lhe direi a verdade se também me disseres. Temos um trato? Annabel pensou por alguns instantes antes de responder. Queria saber

o que jurupari signicava e mesmo que tivesse que contar a verdade ao meninoisso não seria problema. Ele era índio, em parte e talvez soubesse algo que pu-desse explicar o que havia acontecido na noite do ataque.

 – É justo. Temos um trato. – Ela respondeu.

 – Muito bem. – Ele falou, mais sério do que antes. – Me diga, como vocêconseguiu essas marcas no pescoço? – Uma queda. – A resposta escapuliu de sua boca e era mais inverossímil

do que qualquer outra que pudesse inventar. – Está mentindo, qualquer um perceberia, é impossível uma queda deixar

essas marcas. Vamos, diga-me a verdade. Você foi atacada, não foi?Ela não tinha escolha. Se quisesse tirar a verdade do menino, não poderia

dar outra coisa que não a verdade. – Sim. Foi um pequeno incidente. – Foi seu pai? Sua mãe? A simples sugestão de que seus pais poderiam ter feito algo assim com

ela a deixou cheia de repugnância. Ela não se dignou a responder e Taci percebeupelo olhar de Annabel que a resposta era negativa.

 – Muito bem, não foram seus pais. Foi alguma outra criança, um escravo

talvez?  Annabel balançou a cabeça negativamente e começou a andar de umlado para o outro, nervosa. Taci soltou um sorriso forçado e viu que era hora defalar a verdade.

 – A senhorita teve um sonho, não foi? – Ele falou, após alguns segundosde silêncio. – Sonhou que era estrangulada no sonho por um ser invisível e derepente percebeu que não estava sonhando. Foi isso que aconteceu?

 Annabel balançou a cabeça, dessa vez conrmando. As terríveis sensa-ções da noite do ataque estavam vívidas em sua memória e o pavor a invadiunovamente. Sentou-se ao lado de Taci, tremendo. O garoto segurou suas mãos

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carinhosamente, procurando confortá-la. Ficaram em silêncio por alguns instan-tes, até que ela se acalmou o suciente para perguntar:

 – Como você sabe? É simplesmente pelas marcas em meu pescoço? – Sim. Apenas Jurupari deixa essas marcas.

 – Jurupari? – Ela não entendia. – É uma pessoa? Um demônio? – Um demônio? – Taci sorriu novamente. – Não, senhorita. Não existem

demônios. Não como você os conhece. Padre Estevão tentou me enganar comessas histórias. Disse que os anjos maus eram os demônios e que eram eles quenos assustavam. Disse que o Jurupari também era um demônio. Mas eu não medeixei enganar. Jurupari não é um demônio, ou um anjo mau.

 – E o que ele é, anal? – Ela estava amedrontada e impaciente.

 – Ele é o mal, Anna. – Ele a chamara assim pela primeira vez quandobrincavam próximo ao rio e ela tinha gostado. Seu pai a chamava assim às vezes. – Ele é o mal. – Taci repetiu. – A escuridão. É um dos lhos do grande Nhan-deruvuçú. Ele é o rebelde, aquele que nos cala.

 – Não entendo... – Ela só entendia o medo que estava sentindo, aumen-tado ainda mais pela descrição de Taci.

 – Ele entra em nossos sonhos e nos dá pesadelos. Ele se alimenta do

medo que sentimos, mas nem sempre foi assim. Um dia ele já foi bom e se ali-mentava apenas dos bons sonhos. Mas essa é a verdade. Ele deixou a maldadedominar seu coração e agora nos dá pesadelos e muitas vezes, alguns dessespesadelos são tão fortes que a sua vítima morre, sem conseguir respirar. Eu já

 vi essas marcas em dois índios e um deles era um garoto potiguara, que era meuamigo. Fomos caçar e dormimos e quando acordei ele estava morto ao meu lado,com essas mesmas marcas no pescoço.

 – Tem certeza que ele sempre mata as suas vítimas? – Não sempre, mas tenho certeza de que algumas delas são escolhidaspara morrer. Na maioria das vezes, a pessoa apenas sonha que está sendo es-trangulada. Eu mesmo já tive um sonho assim. Mas se você percebe que estáacordado, fora do sonho e está sendo atacado, é porque ele te escolheu.

 – E como foi que eu sobrevivi? – Annabel perguntou, apesar de já ter aresposta para essa pergunta. “Piná, eu sei quem você é” , a voz misteriosa ainda estavaem sua cabeça. Ela fora confundida com alguém, alguém importante, que essedeus dos pesadelos não queria ou não podia matar.

 – Eu não sei, senhorita. – Taci se levantou e começou a andar pelo quar-

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to. – Nunca ouvi falar de alguém que tivesse sobrevivido a um ataque do Juru-pari. Mas eu sou apenas um garoto índio. Talvez a senhorita deva perguntar issoa um pajé.

 – E o que seria um pajé?

 – O pajé é o médico e o sacerdote da tribo. É como o padre, entende? – Mas o padre nem sempre é médico. – Ela retrucou. – Eu sei. Mas o pajé é. Annabel não ia discutir sobre as habilidades de um pajé, anal, nunca

tinha conhecido um. – Anna, eu não sei como você sobreviveu a esse ataque. Eu só consigo

pensar em uma coisa.

 – O quê? – Qualquer coisa que a ajudasse a resolver aquele mistério seriaútil. – O Jurupari não quis matar você. Ou talvez não pôde. – Não quis? Não pôde? – Anna, você ouviu algo durante o ataque? Alguma voz? Ele lhe falou

alguma coisa? – Taci fez a pergunta com um ar tão sério e com um olhar tão sin-cero que Annabel se sentiu tentada a contar-lhe toda a verdade. “Piná, eu sei quem

você é” . Talvez o menino índio pudesse lhe ajudar na resolução desse mistério. Talvez. Provavelmente não resolveria nada, anal, como Taci mesmo dissera, eleera só um garoto.

 – Não. – Ela respondeu por m, se esforçando para se manter calma enão revelar a mentira.

Ele a encarou durante algum tempo. – Não aconteceu mais nada, eu juro.

O garoto então balançou a cabeça, como se estivesse satisfeito, mas An-nabel sentiu que ele não acreditou completamente. – Muito bem, eu não sei mais nada. O que eu sabia, lhe contei. Só posso

desejar que isso não aconteça mais. – Eu desejo isso em dobro! Eu sei bem pelo terror que passei! Não sei

se sobrevivo a uma segunda vez. – Annabel sorriu e Taci se juntou a ela no risoe o clima que estava tenso tornou-se um pouco mais ameno. – Ele pode quererme matar da próxima vez.

 Taci sorriu e eles caram calados por algum tempo. – Minha mãe costumava falar de crianças que eram escolhidas pelos deu-

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ses. – Taci quebrou o silêncio. – Crianças as quais os deuses se manifestavamdesde que eram bem pequenas e que foram escolhidas para realizar alguma gran-de missão. Elas se tornariam os heróis e heroínas, dos quais ouvimos falar naslendas e contos.

 – O que estás a dizer com essa história? Que eu sou uma dessas criançasescolhidas?

 – Não sei, Anna. – Ele sorriu. – Talvez. – O quê? – A ideia pareceu absurda demais para ela acreditar. Só conhe-

cia um deus e não deuses e não achava que tivesse sido escolhida por Ele paranada. – Eu, escolhida?

 – E por que não? Me escute com atenção: Na sua primeira noite no

Brasil, você foi atacada pelo Jurupari. E ele a deixou viver! Nunca ouvi falar dealguém que tenha sobrevivido a um ataque do Jurupari! Não a um ataque assim.Se a pessoa apenas sonha é uma coisa, mas se é atacado não costuma sobreviver.Porém, como eu disse, sou apenas um garoto índio de treze anos, não sei demuita coisa.

 – Isso tudo não quer dizer que eu seja uma escolhida, seja pelos deusesou por quem for! – Ela protestou.

 – Tem razão! – Taci respondeu e o sorriso debochado voltou ao seu ros-to. – Talvez seja apenas um senhorita muito sortuda!Ela sentiu vontade de bater nele, mas se controlou o máximo que pôde.

 Apesar de suas ideias serem totalmente estranhas, ele não tinha culpa. Escolhida pelos deuses, ele deve estar brincando, pensou. Em primeiro lugar, não existem deuses, existe

Deus. É verdade que eu não sou muito fervorosa, mas eu acredito. E não acho que Ele meescolheria para alguma missão especial. Ainda assim, o ataque terrível que sofrera tinha

sido bem real e estava guardado na memória, de onde provavelmente jamais sai-ria. O Brasil tinha alguma coisa de diferente, de mágico, de aterrorizador. – Pindorama é uma terra de encantos e mistérios, senhorita. – Taci pare-

ceu adivinhar seus pensamentos. – Alguns índios dizem que ela é um organismo vivo, um deus em todas as suas faces. E esses mistérios e encantos podem semostrar muito perigosos.

 – Eu senti isso na pele. – Ela completou, séria. – Me desculpe. – Taci pareceu sem jeito. Anal, Annabel tinha mais ex-

periência com seres sobrenaturais do que ele jamais tivera ou almejara ter. – Não tem importância. Então está me dizendo que existem monstros e

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espíritos do mal nessas terras? – Monstros piores do que nossa imaginação consegue inventar. Lobiso-

mens e assombrações, Jurupari e outras coisas mais. – Lobisomens? Estás me dizendo que posso encontrar um lobisomem

por aqui? – As histórias de terror que sua tia Lusimar lhe contava quando aindaestava em Lisboa vieram-lhe à mente.

 – Apenas em noite de lua cheia, senhorita. E você não vai querer encon-trar um deles por aí.

 – Há mais de um? – Ela quase não deixou ele terminar de falar. – Sim, Anna. Vários foram amaldiçoados e toda virada de lua se trans-

formam.

 – Toda virada de lua? Como assim? – Os lobisomens só estão assim, como bestas, durante o período emque a lua está completamente cheia. Isso só dura duas ou três noites. Durante orestante do mês, ele é um homem normal.

 – E eles são... hum... perigosos? – Era a pergunta que mais importava eque ela quisera fazer desde o começo da conversa.

 – Sim, Anna. Quando um homem se transforma em lobisomem se torna

muito perigoso. Torna-se uma terrível besta, parte homem, parte lobo, com gar-ras de quase meio palmo de comprimento e caninos capazes de furar uma arma-dura. Aposto que um lobisomem mete medo no guerreiro mais corajoso. Porém,quando são homens, a maioria é mais calmo, apesar de já ter ouvido a história deum deles que foi mais perigoso como homem do que como lobisomem.

 Annabel não conseguia imaginar como um homem poderia ser mais pe-rigoso do que uma besta selvagem com garras de quase meio palmo de compri-

mento. De qualquer jeito, não estava disposta a tentar descobrir. Queria distânciade homens perigosos, lobisomens e deuses que lhe estrangulavam durante osono. Era outro tipo de aventura que a zera querer vir morar no Brasil.

Eles conversaram durante mais um tempo e ela procurou mudar ao má-ximo o assunto da conversa. Falaram sobre as brincadeiras no rio, as outrascrianças e os animais da oresta. Por m, ela mandou que ele fosse embora, poisestava escurecendo e logo seus pais estariam de volta. Ele foi, mas prometeu vol-tar no dia seguinte, apesar da leve insistência de Annabel para que ele não zesseisso. Meus pais podem aparecer , ela dizia e minha mãe vai querer bater em você . Mas Tacinão se importava, talvez por perceber que no fundo Annabel desejasse vê-lo e

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respondia que se a dona Amélia quisesse bater nele, teria que escalar em árvorestão rápido quanto ele fazia, o que ele duvidava que fosse possível.

 – Eu vou, senhorita. – Ele disse, com seu costumeiro sorriso brincalhão,antes de desaparecer entre os galhos da grande árvore nos fundos da casa. – Mas

 volto. E não se preocupe, pois comigo tu estarás segura contra qualquer assom-bração!

 Que presunçoso que ele é!, pensou, quando já havia retornado ao seu quarto.Presunçoso ou não, era bom ter um amigo, principalmente um amigo corajoso,que vinha visitá-la pulando através das árvores. Ela nunca tivera um amigo fran-cês ou um amigo índio e agora tinha um amigo brasileiro, que era metade índio emetade francês, o que era triplamente excitante! O menino conhecia os segredos

mágicos do Brasil e o pouco que ele sabia poderia ajudá-la a entender mais sobreas coisas que ela ainda não compreendia, mas que precisava, caso quisesse semanter viva naquela terra cheia de mistérios. Atacada por um deus dos pesadelos emmenos de uma semana aqui! Não é qualquer um que vive uma aventura como essa. Na ver-dade, ela não conhecia ninguém que pudesse se gabar de algo assim. Taci disseraque ele próprio não conhecia ninguém que tivesse sobrevivido a um ataque do

 Jurupari. Talvez ela fosse mesmo especial de alguma forma e seria bom ter um

amigo que pudesse ajudá-la a entender que forma era essa.  – É, é bom ter um amigo. Mesmo um amigo presunçoso e implicantecomo tu és, Taci... – Annabel deixou o corpo cair esparramado sobre a cama.Não dormira nem um pouquinho e o sono estava chegando. Teria tempo desobra para dormir durante a semana que passaria de castigo.

 A semana, ao contrário do que ela pensou que aconteceria, passou-serapidamente, mesmo com o castigo. Ela ajudava Raquel e Francisca nas tare-

fas domésticas pela manhã, apesar das reclamações de Amélia, que dizia queisso não era do feitio de uma senhora. Mas Annabel não se importava com asranzinzices de sua mãe e como o pai havia permitido, ela passava a manhã nostrabalhos domésticos. À tarde, esperava a visita de Taci, que sempre aparecia por

 volta das quatro horas e ia embora pouco antes do sol se por. Por duas vezes,ela teve que escondê-lo antes que sua mãe entrasse no quarto. Em uma delas, omenino teve que passar quase meia-hora no guarda-roupa, antes que Annabel

 viesse libertá-lo, após Amélia ter ido embora e já ser seguro ele sair. Mas o medoda descoberta e o clima de clandestinidade deixavam as visitas ainda mais inte-ressantes e ele a visitou todos os dias até o nal do castigo. As conversas saíram

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dos temas misteriosos e assustadores e passaram para temas mais intrigantes, na visão de Annabel. Falavam sobre a fauna e a ora do Brasil, as crianças mestiçasdo rio e as aventuras que teriam juntos assim que o castigo dela terminasse.

O ataque do Jurupari ia pouco a pouco se tornando uma memória dis-

tante, graças à rotina que estava adquirindo e a amizade de Taci, que cava cadadia mais forte. Ainda assim, em algumas noites, ela acordava assustada, com umaestranha sensação de sufocamento e se levantava em desespero, procurando oatiçador de lenha ao lado da cama, apenas para descobrir que era só uma impres-são ruim. Ela dizia a si mesma que o pior havia passado, que o Jurupari devia teralguém mais importante para atacar e que, fosse quem fosse, Piná não devia serassim tão importante para ele. Mas, vez ou outra, a frase ainda ressoava dentro

de sua cabecinha. “Piná, eu sei quem você é” , ela ouvia-o falar e era como se a fraseestivesse sendo constantemente repetida, dia após dia, vez após vez, até que elase esquecesse e voltasse a brincar sossegada.

Não ousou contar essa parte da história a Taci. Para ela continuava ummistério indecifrável. Não fazia ideia de quem poderia ser Piná e de como conse-guira entender uma língua tão estranha quanto a que o Jurupari tinha usado parafalar com ela. Talvez Taci pudesse ajudá-la a desvendar esse mistério, mas, como

não tinha certeza, escolheu o silêncio. Uma parte dela se sentia arrependida pormentir e estava inclinada a contar a verdade ao amigo, porém a outra – a maisprudente, talvez – pensava que alguns segredos não devem ser compartilhados.E ela não estava disposta a compartilhar esse segredo, enquanto não obtivesseuma resposta satisfatória para ele. Como ainda não tinha essa resposta, cava emsilêncio sobre o assunto e mesmo que sua língua coçasse para falar a cada vezque via Taci, ela se mantinha rme.

No domingo seguinte, Annabel assistiu à missa acompanhada dos paise do irmão, vestida confortavelmente em um vestido de seda verde-claro, quecontrastava muito bem com sua pele morena. Não usava lenço no pescoço, poisas manchas já haviam desaparecido completamente. Na manhã seguinte estarialivre do castigo. Seu pai havia lhe arranjado uns calções de algodão e um sapatode couro e camurça, apesar dos protestos veementes de Amélia. Assim ela estariamais confortável quando fosse sair para suas explorações e brincadeiras e seriamuito mais fácil ajudar nas tarefas domésticas com aquele tipo de vestimenta,do que com os vestidos chiques que as pequenas senhoritas da corte usavamcostumeiramente. Ela deveria usar os calções apenas com um camisão de linho,

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mas Amélia resmungou tanto que Annabel concordou em usá-los por baixo do vestido, quando fosse sair para brincar. É melhor só um pouco de conforto doque nada, pensou.

Mas tão logo saiu de casa na manhã da segunda-feira, ela tratou de en-

sacar o vestido por dentro dos calções e prender o cabelo, fazendo um tipo derabo-de-cavalo. Quem olhava de longe poderia facilmente confundi-la com ummenino.

Encontrou Taci na esquina e logo eles se juntaram a Alice, a lha do pa-deiro. Alice era uma menina pálida, magra, com grandes olhos verdes que pare-ciam sempre com vontade de chorar, mas, apesar de parecer sempre doente, seuespírito era totalmente o oposto e ela poderia ser tão animada e disposta quanto

 Taci em seus dias mais alegres. Os três passaram a manhã explorando todosos cantos da parte alta de Filipeia, porém uma manhã não foi suciente e nosdias seguintes eles repetiram a expedição, até que Annabel estivesse totalmentefamiliarizada com a pequena cidade. Passaram pelo quartel, pelo grande prédiodo governo, pela igreja, por todos os armazéns – Taci e Alice zeram Annabeldecorar o nome de cada um deles e os principais produtos que vendiam – e tam-bém pelas hortas e pomares mantidos próximos à entrada da oresta. Andavam

a manhã inteira, pois saiam de casa pouco depois das oito horas e ao meio-diajá estavam totalmente cansados. Annabel percebeu que o melhor horário parabrincadeiras e explorações era mesmo pela manhã. O sol após a hora do almoçoera insuportável e só pensar em brincar no sol e no calor da tarde já a deixavacansada.

Depois que Annabel conheceu a parte alta de Filipeia como a palma desua mão – ou quase! – Eles foram para o rio. Seu pai criara algumas regras para

as suas saídas, inclusive as idas à parte baixa da cidade. Se saísse para brincar demanhã, à tarde ajudaria nas tarefas e se dedicaria à leitura e à escrita. Padre Es-tevão – o gentil sacerdote que cuidava do orfanato – várias vezes ajudara Taci,que tinha a aparência tão jovem que Annabel pensou que ele tivesse a idade deRaquel, quando, na verdade, o padre tinha vinte e cinco anos; ele havia lhe em-prestado alguns livros, a pedido do seu pai e duas vezes por semana, à tarde, elaaprenderia francês com o padre Gêneville, um francês baixinho e gordo, masque, com sua fala mansa, seu olhar gentil e seus trejeitos engraçados conquistoua simpatia de Annabel desde a primeira vez em que se encontraram. As idas parao rio estavam liberadas, desde que ela fosse acompanhada de Alice, que também

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gostava de brincar no rio e sempre que ia, seu irmão mais velho a acompanhava. Annabel não simpatizou muito com o rapaz quando o conheceu e depois

que ele passou a acompanhá-los ela passou a simpatizar ainda menos. O jovemManoel III – pois o pai e o avô também se chamavam Manoel – era o que pode

ser chamado de um rapaz sem sal e ela descobriu que ele também podia serperigoso. O rapaz era quieto e tímido em seus dezoito anos de idade, magro epálido como Alice e com os mesmos olhos verdes. Porém, algo em sua aparênciao tornava ameaçador. Seu olhar, diferente do de Alice, era totalmente inexpres-sivo e era difícil identicar o que o menino estava sentindo. Não era afeito aconversas ou a brincadeiras, mas Annabel percebera que ele sempre a observava,principalmente enquanto ela tomava banho no rio com as outras crianças. A

água molhava seu vestido, colando-o em seu corpo e realçando a forma dos seuspequenos seios, ainda em formação. O vento muitas vezes fazia seus mamilosenrijecerem e ela reparou que nesses momentos um pequeno sorriso se formavano canto da boca de Manoel, embora seus olhos mantivessem a mesma inex-pressividade. Isso a incomodava bastante. Nenhum homem tinha olhado paraela dessa maneira e ela não entendia por que o rapaz fazia isso. Havia inclusiveoutras meninas mais velhas, que também tomavam banho com eles no rio, que

cavam sempre com os seios expostos, sem a parte de cima da roupa, seios quena opinião de Annabel, eram muito maiores e mais belos que os seus. E o olharque Manoel lhe dava não era um olhar que elogiasse sua beleza, como ela já viraseu pai fazer, ao olhar para sua mãe. Era um olhar que a incomodava, chegandoaté a amedrontá-la.

Depois de alguns dias, com os olhares se repetindo, Annabel cou tãoincomodada que acabou contando a Taci, que imediatamente se ofereceu para

dar uma surra em Manoel III, o que ela prontamente rejeitou. Sabia que o maisprovável era que Taci apanhasse e não queria que ele sofresse por causa dela.Então ela passou, na semana seguinte, a diminuir suas idas ao rio e car mais naparte alta da cidade, sempre inventando uma desculpa diferente. Vez ou outra,quando estava com muita coragem ou muito calor, ela e Taci escapuliam até o riopara um banho rápido com as outras crianças. Ela se sentia muito mais à vontadesem o irmão de Alice por perto. Taci nunca cava olhando para os seus seios ese o fazia, fazia de maneira tão disfarçada que ela não percebia. Na verdade, Tacicava muito mais entretido olhando as meninas mais velhas, o que causava em

 Annabel, para sua própria surpresa, uma pequena pontada de ciúmes, embora

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pensasse no garoto índio apenas como um amigo, o seu melhor amigo.E assim eles passavam seus dias, onde Annabel se dividia entre as es-

capulidas ao rio, as brincadeiras na praça, as aulas de francês, as missas e o traba-lho doméstico. Taci, quando não estava com ela, estava caçando ou ajudando o

padre Estevão nas rotinas da igreja. Setembro se foi, outubro chegou e a vida de Annabel se tornou cada vez mais rotineira. Não que ter uma rotina fosse ruim,especialmente com a rotina que possuía. Estava no Brasil havia apenas um mês,mas já sentia que vivera ali toda a sua vida. O ataque do Jurupari? Era apenasuma memória cada vez mais distante em sua mente. Não acordava mais assusta-da à noite, pois estava tão cansada no nal do dia, que dormia como pedra. Se asmarcas do ataque do deus dos pesadelos não tivessem assombrado seu pescoço

por uma semana, ela provavelmente diria que não passara de um sonho ruim.Mas foi real, embora esse sentimento de realidade desvanecesse a cada novo diaem Filipeia. A única coisa que ainda permanecia viva em sua mente era a frase“Piná, eu sei quem você é” , embora ela ainda não houvesse encontrado alguém capazde lhe explicar o signicado.

Seu pai havia começado a trabalhar na contabilidade de um armazém,enquanto o governador não lhe dava uma nova função. O fato de o governa-

dor não o receber, sempre adiando suas entrevistas, deixava Gaspar realmenteaborrecido e Annabel nunca vira seu pai tão carrancudo e irritado como estavaultimamente, mesmo com o trabalho no armazém. Era como se algo o pertur-basse profundamente, ela sentia, mas Gaspar não costumava compartilhar o quesentia com outras pessoas, mesmo que essas pessoas fossem os seus familiaresmais chegados.

O pequeno Alfonso estava adorando tudo no Brasil e só por brincadeira,

 Annabel costumava irritá-lo dizendo que voltariam para Portugal. O meninochorava e esperneava, dizendo que não queria voltar. Até mesmo Amélia ia aospoucos se integrando à nova rotina e passava as tardes fora de casa, visitando asoutras senhoras da cidade. Às vezes, eram as senhoras que a visitavam e Annabelpercebeu que a vida social de sua mãe estava bem mais agitada em Filipeia doque jamais estivera em Lisboa. Todos iam se acostumando as suas rotinas e ànova vida no Brasil, quando uma notícia mudou o rumo de suas histórias parasempre. Notícia essa que Annabel descobriu de uma forma verdadeiramenteinimaginável.

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Capítulo cinco

Um encontro na foresta

  Em uma manhã de terça-feira, já no nal de outubro, com os dias can-do cada vez mais quentes, Annabel e Taci estavam em mais uma de suas andan-ças por Filipeia. O menino estava tentando convencê-la a se tornar uma mestreexploradora e isso signicava escalar e andar entre as árvores como ele própriofazia. Vai ser útil pra você, senhorita , Taci repetia.  Apesar da insistência de Taci, Annabel não via utilidade em pular deárvore em árvore e invadir a casa das pessoas, então tentou argumentar com ele,

mas o garoto estava irredutível.  – Você só se tornará uma mestre exploradora se zer isso, Anna. Temque andar entre as árvores e entrar em uma casa sem ser percebida.

 – Isso vai fazer de mim uma ladra, não? – Retrucou, procurando parecerbrava. Não queria que ele descobrisse o seu medo. Quando mais nova, ela cos-tumava ter pavor de altura.  – Não, claro que não. A senhorita só vai ser uma ladra se pegar algo de

lá e car pra si, não é?  Ela pensou um pouco e viu que não tinha muita escolha. Se não enca-rasse o desao, Taci com certeza riria dela e tê-la em pouca conta. E ela nãogostava de ser passada para trás. Ninguém pode me ver... O segredo é ser invisível, como o

 Jurupari. Não era a melhor comparação que podia fazer, mas foi a primeira queveio em sua cabeça, afnal, o deus dos pesadelos era o único ser invisível que

conhecia. Havia se decidido. Reuniu toda a coragem que encontrou e disse aTaci, com toda a frmeza que lhe era possível:

  – Me diga o local e o que tenho que fazer. – A casa do governador. A coragem de Annabel desapareceu ainda mais rapidamente do que ha-

 via surgido. – O quê? Estás louco?!

  – Não precisa gritar, senhorita. – Taci riu e se afastou para trás, desvian-do-se do tapa que ela deu em seu braço. A mão de Annabel ainda roçou em suapele. – Ah e também não precisa me bater, Anna.  Ela estava muito brava com ele, mas conseguiu se conter.

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  – Você realmente acha que vou entrar na casa do governador?  – E por que não? Eu mesmo já entrei lá duas vezes.  – Mentiroso! – Ela gritou novamente e por pouco não bateu nele maisuma vez.

 – Covarde!O grito de Taci foi como uma echa envenenada no orgulho de Anna-

bel. Aquilo inamou ainda mais sua raiva e ela decidiu que iria, sem se importarcom o que pudesse acontecer. Virou-se e caminhou em direção à oresta, parainiciar sua missão.

 – Boa sorte! E traga algo para provar que conseguiu! – Taci gritou ao vê-la caminhar em direção às árvores.

  A casa do governador era o grande prédio azul de três pavimentos, omaior da cidade, que servia também como sede do governo da capitania daParaíba. Era cercado por muros de quinze palmos de altura nos fundos e naslaterais, com espigões de ferro armado por cima do muro, de meio palmo decomprimento, um aviso medonho para os desavisados de que não era uma boaideia tentar invadir aquele prédio. Nos fundos do prédio, havia um jardim malcuidado, que não fazia jus à beleza da propriedade. O prédio era bonito e bem

construído, mas o jardim parecia ter sido totalmente esquecido. O mato cresciaem todo o quintal e duas pequenas palmeiras cresciam tortas junto ao jardim. Ao lado das palmeiras e próximo à parede da casa, crescia uma enorme árvore,um jacarandá com quase quatrocentos pés de altura, cujos galhos se entrelaça-

 vam com as árvores da mata virgem, por cima do muro e iam até uma janela noprimeiro andar, por onde supostamente Annabel deveria entrar. Para conseguirentrar no prédio, ela teria que andar pela mata até próximo ao muro dos fundos,

onde subiria em uma das árvores e de lá passaria através dos galhos até o jacaran-dá, indo por m para dentro da casa do governador, de onde voltaria com umarelíquia que comprovasse o seu feito.

 – Então, parece que vou ser mesmo uma ladra... – Ela resmungou, en-quanto subia com diculdade em uma árvore que cava próximo ao muro. Al-cançou um galho mais alto e apoiou os pés no tronco da árvore, fazendo forçapara subir. Sequer subira em um simples arbusto em Portugal e agora estavaescalando uma árvore enorme. Taci lhe ensinara o básico sobre a escalada emárvores, e, de tudo o que ele lhe havia ensinado, a única coisa que conseguia selembrar naquele momento era a parte sobre não cair. Não vou cair, não vou cair , ela

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repetia a cada palmo que subia. Finalmente chegou a um ponto de onde podiaavistar os galhos que usaria para a travessia e todo o quintal da casa do governa-dor.  Viu o jardim mal cuidado, tão sujo que nem parecia mesmo um jardim

de verdade. Talvez um dia, muito no passado, esse jardim tenha sido bonito, ela pensou. A janela através da qual entraria estava completamente aberta e o galho que iapraticamente até dentro da casa era grande o suciente para suportar seu peso.

 Viu os ganchos de ferro em cima do muro e viu os dois soldados que faziam aronda. Ficou estática, como se o tempo tivesse parado. Taci não havia lhe avisa-do que haveria soldados.

 – Como pudestes ser tão estúpida, Annabel Dias de Albuquerque? –

Resmungou baixinho, irritada. – É claro que haveria soldados, é a porcaria dacasa do governador!  Ficou pensando no que deveria fazer. Se voltasse sem nada, sem nemtentar, seria para sempre uma covarde aos olhos de Taci. Se prosseguisse e fossedescoberta, caria de castigo pelo resto de sua vida e era provável que tivesse al-guma complicação para o seu pai. Mas, havia sempre a possibilidade do sucesso.Os guardas lá embaixo não pareciam muito interessados em olhar para as árvo-

res. Na verdade, eles estavam entretidos com alguma conversa muito animadae interessante, a julgar pelo tanto que riam. Não vão nem perceber quando eu passar por cima deles. Vou ser invisível e num instante entro e saio. Vai ser fácil, tentou se tran-quilizar. Essa sua tentativa não funcionou muito bem, sua coragem estava indoembora e ela sabia que se não se colocasse em movimento logo, provavelmentenão iria mais conseguir se mover. Ficaria parada ali por um longo tempo, atédescer e voltar para casa, envergonhada.

Deu um passo, depois outro, se apoiando nos galhos e chegando maisperto do muro. Surda ao que acontecia ao redor, totalmente concentrada na suamissão, ela se aproximou cautelosamente dos galhos nais da árvore que estavae se preparou, respirando fundo, para passar até os galhos do jacarandá que ca-

 vam logo acima do muro e um pouco fora da propriedade. Os guardas estavamlá, em sua conversa animada, quando um barulho vindo da oresta os colocouem estado de alerta. Annabel também ouviu o som. Parecia um grito desespe-rado, como se alguém estivesse sendo atacado e seu corpo tremeu da cabeçaaos pés. Num instante, todas as lembranças do ataque do Jurupari estavam emsua mente, vivas e assustadoras. Ficou estática e seu corpo começou a tremer.

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 Tentou se concentrar novamente, mas não conseguiu, pois sua mente ia e vinha,pensando no barulho da oresta e em outras coisas assustadoras. O que nem elaou os guardas sabiam era que o grito assustador que ouviram era na verdade oguincho característico de uma espécie de macaco, que faziam esse som especi-

camente no ritual de acasalamento. Talvez se Annabel soubesse disso não teriacado como estava, totalmente congelada pelo medo e teria enm prosseguidoem sua missão. Mas ela não sabia do macaco na oresta e em vez de continuaradiante, permaneceu ali, parada, petricada, confusa, sem saber o que fazer. Foiquando uma coisa estranha aconteceu, algo quase tão estranho quanto o ataquedo Jurupari.

Se num instante ela estava estática na árvore, no segundo seguinte esta-

 va caminhando pelos galhos do jacarandá, em direção à janela aberta. Mas eracomo se não fosse ela, Annabel, quem estivesse caminhando. Ou melhor, eraela, embora não sentisse isso. Foi como se o seu corpo houvesse cado invisível,ou, o que seria ainda mais estranho, se sua mente tivesse deixado seu corpo. Asimagens e cores eram confusas e ela sentia frio. Chegou a pensar que tinha mor-rido e que aquilo era a vida após a morte. Entrou na casa do governador pelajanela e tudo parecia tranquilo e silencioso. Começou a caminhar, mas não ouvia

o som dos próprios passos. Havia entrado em uma espécie de antessala, um cô-modo estreito e comprido. Lá tinha uma pequena mesa redonda e uma cadeiraao lado da mesa, próximo à janela. À frente, havia uma porta que parecia levar aocorredor e do lado esquerdo de onde ela estava havia outra, que provavelmentedeveria ser a porta principal de um escritório ou algo assim. Ela ainda estavaprocurando entender o que estava acontecendo, quando uma escrava vestida debranco entrou na antessala, carregando uma bandeja de prata com um bule de

chá e algumas xícaras em cima. Annabel gritou e gritou de novo, mas não conseguiu ouvir o som daprópria voz. A escrava aparentemente também não lhe notou, pois abriu a outraporta e entrou tranquilamente no cômodo, como se nada tivesse acontecido.

 Annabel então achou que estava tremendo, mas não tinha certeza. Olhou paraas próprias mãos, cuja imagem se rmava e desvanecia no segundo seguinte.

 Aquela não era uma sensação muito boa. Começou a pensar que estava realmen-te morta, quando a escrava abriu novamente a porta e saiu do cômodo, durantetempo suciente para que ela pudesse ser vista. Mas a escrava foi embora semfazer qualquer menção de tê-la visto. Porém, isso não importava mais, pois nos

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segundos em que a porta estivera aberta, Annabel pôde ouvir uma voz que lheera muito bem conhecida e vinha lá de dentro. Era a voz de Gaspar, seu pai.

O tom de voz que ele usava ao falar deixou Annabel preocupada e elase esqueceu de todo o resto. Desejava apenas saber o que aigia seu pai naquele

momento. Por mais de um mês ele pleiteara uma audiência com o governador,tendo sido rejeitado vez após vez. Agora que parecia que ele nalmente tinhaconseguido essa audiência, parecia que as coisas não estavam indo muito bem.

Ficou pensando em como entrar no cômodo sem ser percebida, o quelhe pareceu impossível, visto que ao abrir a porta atrairia a atenção de quemquer que estivesse lá dentro. Porém, enquanto pensava, viu-se do lado de dentro,como num passe de mágica. Foi como se misteriosamente ela tivesse atravessado

a parede e pulado para dentro do escritório do governador. Estou denitivamentemorta , pensou, sou um fantasma . Porém, qualquer divagação sobre ser um fantasmafoi imediatamente substituída pela preocupação com o tema da conversa queescutou ali.

O escritório do governador era amplo e havia grossos e escuros tapetescobrindo todas as paredes. Algumas estantes, a maioria vazia, também faziamparte da decoração e se viam alguns livros aqui e ali. Havia uma grande mesa de

carvalho diretamente à frente da porta e atrás dessa mesa, empertigado em suacadeira, estava Frutuoso Barbosa, o governador da capitania da Paraíba. Annabeljá o vira na igreja e o reconheceu assim que entrou. Ela logo percebeu que ele eraum homem diferente.

Não era um homem muito alto, não passando de oito palmos de altura. Tinha uma pequena barriga sobressalente, que cava ainda mais visível quandoestava sentado. Longos bigodes negros pendiam de sua face, até a altura do pes-

coço, apesar dos poucos cabelos que possuía já estarem completamente esbran-quiçados. Não estava usando a tradicional peruca dos nobres, talvez pelo calorque fazia ali. Sua pele era parda, não tão branca como a de Amélia, por exemplo,mas também não era tão morena quanto a de Gaspar e ele estava bronzeado pelosol. O governador Frutuoso tinha um ar real, imponente, acentuado pelo ricogibão negro que vestia, decorado com os de ouro e pelos dois grandes anéispreciosos que usava nos dedos anelares de ambas as mãos. Apesar do porteimponente, ele mantinha uma expressão amargurada no rosto, e, quando falava,não revelava um grande dom para a oratória. A gura de Frutuoso dominou-lhea atenção por apenas cinco segundos, pois ela viu que, sentado em frente à mesa

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de Frutuoso, estava seu pai, com um olhar angustiado e cansado na face. – Governador, vossa mercê tem de entender. Foi apenas uma vez. – Gas-

par falava, em um tom de quem tentava se desculpar.  – Ladrão uma vez, ladrão para sempre, Gaspar. Ou tu vais me dizer que

não zeste uso do ouro da Coroa? Vais me dizer que não trouxe um baú cheiodas malditas moedas do rei para cá? Vais me dizer que não fugiu quando teveoportunidade? Vais me dizer que não planejava comprar uma fazenda de cana--de-açúcar com ele? Vais me dizer que não faria novamente, se tivesses a chance?Poupe suas desculpas, elas não funcionam para mim. Tu deverias ter sido enfor-cado pelo que zestes em Portugal, mas conseguistes fugir, pois tem um malditoprimo no conselho do rei. Os outros ladrões foram enforcados, todos eles e eu

recebi uma carta do rei ordenando que o executasse. O rei em pessoa! O malditoFilipe de Espanha, aquele puto, escreveu para mim para pedir a tua cabeça! Ah,tu deves ter sido muito descuidado e deverias pagar por isso. – Frutuoso falavasem parar, levantando a voz em alguns momentos, mudando a entonação emoutros e parecendo ameaçador em todos eles. Ele fez então uma longa pausae se endireitou na cadeira, apoiando um dos braços em cima da mesa. – Agorame escute, Gaspar. Preste atenção ao que estou lhe oferecendo aqui. Eu estou

lhe dando uma oportunidade única, de manter sua cabeça e a sua família. Bastafazer o que já sabes, o que já estás acostumado. Quero te colocar no comandodaquela fazenda, fazendo o que foi combinado e nos tornando ricos, Gaspar!Ricos! Agora me diga: é melhor ser um rico desonesto ou um homem honestosem cabeça? Me diga? O que será que sua esposa dirá, hum? – Frutuoso fez maisuma pausa, como se quisesse dar tempo para Gaspar pensar e esperando umaconrmação de que o homem tinha realmente entendido tudo o que ele havia

acabado de falar. – Como sairás daqui hoje, senhor Gaspar? Como um homemmorto, ou como um homem livre, um sócio em um negócio lucrativo?  – Senhor governador... – Gaspar implorou. – Tenha piedade. Devolva--me o baú e podemos dividi-lo.  – Eu não irei devolver uma única moeda! – Frutuoso bateu a mão namesa com força, irritado. – Tu és um ladrão, Gaspar e a menos que continuessendo um ladrão para mim, sairás dessa sala a caminho da força, me entendestes?  Annabel ouviu tudo aquilo com uma mistura de sentimentos. Medo, tris-teza e raiva dominavam sua cabecinha infantil. O que estava anal acontecendoali? As palavras ladrão e execução ressoavam em sua cabeça repetidas vezes,

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assim como a imagem desesperada e triste do seu pai e o olhar ameaçador dogovernador. Ela não prestou atenção em mais nada do que foi dito, pois suamente estava tão confusa que as imagens se misturavam a sua frente, como seela sumisse e voltasse, andasse por todos os cômodos da grande casa do gover-

no, cruzasse com pessoas que não a viam, gritasse sem ser escutada e chorasselágrimas que não saiam. Era como se ela tivesse mesmo se transformado em umfantasma, que se dissipava na neblina para não mais existir.

No instante seguinte, ela estava caindo. Com corpo, alma, tudo. Estavade volta à árvore, de onde parecia que nunca tinha saído e se desequilibrara.Estava caindo de costas, em direção ao vazio. Que não seja nos espigões, que não sejanos espigões , era a única coisa em que conseguia pensar. Dois segundos depois,

o chão recebeu seu corpo com um baque surdo. Não caíra nos espigões, masno chão, fora da casa do governador. Suas costas estavam doloridas, seu braçoesquerdo parecia quebrado e ela sentiu que havia um corte no lado esquerdo desua barriga, causado talvez por um galho que estava no chão. Achou que estavasonhando, mas a dor era real demais para ser um sonho. Sua mente divagava emilusões fantasmagóricas, que iam e vinham, percorrendo a casa do governadoraté parar em um grande escritório, onde dois homens conversavam. Como irá sair

daqui hoje, senhor Gaspar? Como um homem morto, ou como um homem livre, um sócio emum negócio lucrativo? Ela ouviu o governador dizer e então as ilusões desaparece-ram e ela percebeu que tudo o que vira e ouvira havia acontecido de verdade.

Estava muito fraca para pensar em tudo aquilo e no momento só queriasair daquela oresta. Socorro, tentou gritar, mas a voz falhou. Tentou se levantar,mas a dor dos ferimentos foi tão forte que fez sua cabeça girar e antes que pu-desse fazer qualquer outra coisa, Annabel desmaiou.

 Taci a encontrou quase uma hora depois e ela ainda estava desacordada.Por sorte, os soldados que estavam de guarda na residência do governador inter-pretaram o barulho da queda de Annabel como outro dos barulhos da orestae o ignoraram. Quando Taci a acordou, foi como se ela estivesse saindo de umsonho ruim e confuso, um grande pesadelo, na verdade. Mas assim que tentou sesentar, a dor em sua cabeça, seu braço, suas costas e sua barriga lhe mostraramque tudo era bem real. Taci andava de um lado para o outro, com as mãos na ca-beça, perguntando como poderia ajudá-la, onde estava doendo e se ela conseguiase levantar.

O galho, que agora estava no chão, havia perfurado as costas de Annabel

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e saído em sua barriga, mas só havia atingido pele e gordura, milagrosamenteevitando qualquer órgão vital. Um pouquinho mais para a direita e o galho te-ria perfurado o intestino de Annabel, fazendo-a morrer lenta e dolorosamente.Quando Taci viu o ferimento que o galho causara cou ainda mais desesperado

e ela precisou acalmá-lo pois o menino estava falando tão alto que era bem pos-sível que os guardas do governador os ouvissem.

 – Taci, você precisa ir buscar ajuda. – Ela falou, depois de tentar se le- vantar sem sucesso pela terceira vez. – Estou muito fraca para me levantar, meubraço está doendo muito. Acho que está quebrado. E esse corte... Ai.... Ai.... –Ela gemeu baixinho, mas fez o possível para parecer calma, embora a dor fosseforte o suciente para fazê-la gritar.

 – Quem eu chamo? – Taci perguntou, um pouco mais calmo.  – Meu pai... – Annabel respondeu de pronto, mas veio em sua mente alembrança da conversa que ouvira e mudou de ideia. – Minha mãe... – Amélianão era a melhor opção e ela detestava Taci. – Raquel! Chame Raquel, ela vaisaber o que fazer. Mas não diga nada sobre o que eu estava fazendo...

 Taci não precisava ser avisado duas vezes. Mal Annabel terminou de falare ele saiu em disparada pela oresta, deixando-a sozinha novamente.

Como irá sair daqui hoje, senhor Gaspar? Como um homem morto, ou como umhomem livre, um sócio em um negócio lucrativo?  As palavras não lhe saíam da cabeça.Seu pai, o homem em quem ela mais conava em todo o mundo, o homem queela tinha como exemplo de bondade e honestidade tinha roubado dinheiro daCoroa portuguesa. Ela não conseguia acreditar que algo dessa natureza pudesse,de alguma forma, ser verdade. Preferia acreditar que imaginara tudo aquilo, eramais fácil, mais simples. Era mais fácil acreditar que havia cado petricada de

medo na árvore, por causa dos guardas e enquanto isso tinha imaginado todasessas histórias. Imaginou que havia se tornado um fantasma, que havia vagadopela casa do governador e que ouviu a conversa entre ele e o seu pai. Quandosaiu da sua imaginação, perdeu o equilíbrio e caiu. Simples assim.

Só que Annabel sabia que nada era tão simples quanto pudesse parecer. Após o ataque do Jurupari ela tentou usar essa mesma desculpa para acalmar suamente. Não funcionou antes, tal como não funcionava agora. Foi tudo muitoreal para ser apenas um sonho. Ela cou com as marcas do ataque do Jurupari,ouviu as vozes dos homens que conversavam e sentiu o cheiro do chá que a es-crava trouxe para eles. Chá de camomila, isso mesmo! Se tivesse qualquer dúvida,

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perguntaria ao seu pai se ele havia estado na casa do governador naquela manhãe o questionaria a respeito do sabor da bebida.

Se tudo aquilo que viveu foi mesmo verdade, algo muito estranho estavaacontecendo. Não virei um fantasma, pois não morri. O que aconteceu?  Ela não tinha

resposta.Mexeu-se um pouco, tentando encontrar uma posição em que a dor não

fosse tão forte e tentou encostar-se nas raízes da árvore, mas a dor a impediu.Precisou de muito controle para segurar o grito, pois não queria que os soldadosa ouvissem. O braço havia inchado e estava um pouco escuro, numa mistura de

 vermelho e roxo, na altura do pulso. Deve estar quebrado, ela pensou.  Maravilha!Doze anos em Lisboa e nunca quebrei um único osso e com pouco mais de um mês aqui consigo

arranjar um braço quebrado. Que sorte a minha!  Olhou para o ferimento na barriga e por alguns momentos pensou emarrancar o galho com a mão que ainda estava boa, mas cou com medo da dorque sentiria. Se só de tocar no galho já sentia uma dor quase insuportável, nãoquis pensar no que aconteceria se ela resolvesse removê-lo. Desistiu. O jeito eraesperar Taci chegar com Raquel. Taci, o inseto de cabelos louros, o explorador, oamigo dos macacos, o órfão. Raquel, a escrava dos dentes mais lindos do mundo,

a amiga das pomadas milagrosas. Eles dois eram os únicos amigos de verdadeque ela tinha ali em Filipeia. As outras crianças de posses a rejeitavam pois ela seassociava com as crianças do rio. Alice era a única que brincava com ela e aindaassim não estavam mais tão amigas. Já as crianças do rio brincavam com ela, mastambém não mantinha laços fortes de amizade com eles. Apenas Taci e Raquelpareciam entendê-la completamente.

 Eles estão demorando, pensou. Não que estivessem de verdade. Apenas cin-

co minutos tinham se passado desde a saída do menino e ele não ousaria ir pelaporta da frente para avisar Raquel. Isso signicaria enfrentar a ira de Amélia edar explicações sobre o que fazia ali. Então foi escalando as árvores e passandode galho em galho, como sempre fazia. Por isso pareceu a Annabel que estavamdemorando, quando na verdade não estavam. O tempo passa mais devagar quandoestamos feridos e sozinhos na oresta. 

Ela não conseguia mais ouvir os guardas conversando no quintal do go- vernador, apesar de estar próximo ao muro. Talvez tenham entrado para almoçar .O pensamento apenas a deixou mais confusa. Quanto tempo tinha se passadodesde que subira na árvore? Ela se lembrou que eram quase dez horas da manhã

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quando saíram para brincar, mas não lembrava ou sentia que houvesse passadotanto tempo, a ponto de já estarem na hora do almoço. Ficou pensando sobreisso, mas pensar a deixava cansada e um sono tranquilo foi aos poucos invadin-do sua mente. Ela lutou contra ele, pois sabia que não poderia dormir. Dormir

piorava consideravelmente as coisas. – Não posso dormir, não posso dormir. – Ela repetiu em voz alta, lutan-

do para se manter acordada. Precisava esperar a ajuda chegar. Sua cabeça giravae ela pensou que fosse desmaiar novamente. Foi quando sentiu uma estranhasensação, como se alguém a observasse. Lembrou do Jurupari e apanhou umpedaço de galho que estava próximo a ela. Dessa vez estava disposta a lutar.Não ia se entregar tão fácil. Se apoiou com as costas na árvore e aos poucos foi

se levantando, até conseguir car em pé com um esforço quase sobre-humano.Com o braço quebrado junto ao corpo e segurando rme o galho queempunhou como espada na mão direita, ela desaou o que quer que estivesse naoresta a aparecer e enfrentá-la.

 – Apareça! Vamos, apareça! – A cada desao que fazia ela sentia sua for-ça diminuir. – Verás que não sou tão covarde assim...

Sem qualquer tipo de barulho, uma criatura rolou da oresta e saltou a

sua frente, como se zesse cambalhotas no chão. Annabel reuniu o resto de suasforças e levantou o galho para um único e desesperado ataque. A criatura olhou--a curiosa. Na verdade, ela descobriu que a “criatura” se tratava de uma criança,uma criança estranha, é verdade, mas ainda uma criança. Era uma menina, comuns oito anos de idade talvez, que tinha a pele ainda mais branca que a de suamãe, estava completamente nua e tinha estranhas guras pelo corpo, como ta-tuagens negras que formavam os mais diferentes tipos de ores.

Os seus olhos eram diferentes de tudo o que Annabel já tinha visto, poiseram totalmente negros, mais escuros que breu e os seus cabelos arrastavam pelochão, em tranças nas e mortais, com navalhas aadas nas pontas. Os cabelos damenina se mexiam como se tivessem vida própria e pareciam serpentes ágeis emortais. Então, a menina se moveu tão rápido que Annabel quase não enxergouquando as tranças mortais do cabelo da pequena criatura, com suas pequenas eaadas navalhas nas pontas, arrancaram o galho de sua mão e o transformaramem uma centena de pequenos pedaços de madeira. Annabel deixou o corpo cairpesadamente no chão. Parecia que a dor havia ultrapassado todos os estágios su-portáveis, mas ela ainda teve forças para agarrar uma pedra e arremessá-la contra

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a pequena menina, apenas para vê-la despedaçar-se da mesma maneira com queo galho o havia sido.

 Agora vou morrer , foi o único pensamento que saiu de sua mente. Nãotinha mais forças para se defender e mesmo que zesse isso seria inútil contra

as tranças aadas e o poder sobrenatural de sua agressora. Quis tentar virar fan-tasma, como suspostamente zera pouco tempo antes, porém não tinha forçaspara isso também e nem sabia como. Fechou os olhos e esperou o ataque nal.Mas ele não veio e Annabel abriu os olhos, surpresa. A criatura estava lá, comseus olhos negros como a noite xos nela. Como num passe de mágica, ela rolouem direção à Annabel, deixando, atrás de si, um rastro do que pareceu ser umanévoa branca. Agachada a sua frente, com as longas tranças balançando para um

lado e para o outro como perigosas serpentes, cujo som do toque das navalhasnas pontas lembrava o barulho do retinir do aço, a estranha menina parecia aindamais assustadora.

 Annabel achou que a pequena criatura fosse matá-la, mas a menina ape-nas se aproximou dela e olhando xamente em seus olhos, falou com uma vozinfantil e misteriosa, na mesma língua estranha que ela ouvira da boca do Juru-pari:

 – Eu sei que não és covarde, senhora. Nem poderás ser, pois a grandenoite se aproxima. Precisarás de toda a tua coragem se quiseres enfrentar osperigos que virão.

 – Perigos? Quais perigos? – Se Annabel tinha cado surpresa por con-seguir entender o que o Jurupari falara, então sua surpresa naquele momentofoi innitamente maior, pois além de compreender o que a menina havia falado,quando ela própria abriu a boca as palavras não saíram em português, mas no

mesmo idioma misterioso falado pela menina e pelo Jurupari. – Lembre-se: o medo é uma ilusão. – A estranha menina ignorou com-pletamente todas as suas perguntas. – Domine o medo, ou ele irá lhe dominar.

 A grande noite se aproxima e a salvação para os homens está na sua coragem. – Na minha coragem? Como assim? Volte aqui! – suas palavras agora fo-

ram ditas novamente em português e ela viu a menina rolar e desaparecer na o-resta tão misteriosamente como tinha surgido. Mais uma vez não entendia nadae precisava desesperadamente de algumas respostas. Tentou se levantar, mas es-corregou e caiu sobre o braço esquerdo, que estava quebrado. A dor foi tão forteque a fez desmaiar novamente. Não sabia quanto tempo se passara, pois quando

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acordou já era noite alta. Estava escuro, apesar de algumas velas estarem acesas. Annabel olhou em volta e viu que estava em casa, no seu quarto, deitada em seucolchão de feno e penas, com seus pais ao lado da cama. Tinham-na banhadoe alguém a vestira com uma grande camisola branca. No seu braço esquerdo,

havia algum tipo de tala na altura do pulso e havia também um curativo sobre oferimento em sua barriga, assim como outro curativo na nuca, apesar de que elanão se lembrava de ter machucado a cabeça.

 Ao ver que ela havia acordado, seus pais lhe cercaram de carinhos eperguntas, e, como não sabia nada do que havia acontecido após o seu segundodesmaio, limitou-se a dizer “Eu caí”   e adormeceu novamente, em parte pelomedo de tudo o que havia acontecido naquele dia estranho, em parte devido ao

remédio que o médico lhe tinha dado.