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Educ. foco, Juiz de Fora, v. 13, n. 2, p. 31-44, set 2008/fev 2009 AS CRIANÇAS, SUAS INF˜NCIAS E SUAS HISTŁRIAS: MAS POR ONDE ANDAM SUAS GEOGRAFIAS? * 1 Jader Janer Moreira Lopes ** Resumo Este texto busca contribuir com os trabalhos contemporâneos que se esforçam para romper com as visões adultocêntricas relativas às crianças, buscando colocá-las em lugares diferentes dos que, tradicionalmente, têm sido destinados a elas em nossa sociedade. Mas o faz de um ponto específico: o da Geografia. Nessa perspectiva, busca fazer aproximações entre os conceitos chaves sistematizados dentro da ciência geográfica, ao longo de suaconstituiçãoepistemológicaedireciona-osparaolharas crianças, suas infâncias e as interações com os espaços, num campo que tem sido chamado de Geografia da Infância. Palavras-chave: Geografia da Infância. Criança. Espaço. Abstract This text searchs to contribute with the works contemporaries who if strengthen to breach with relative traditions visions of children, being searched to place them in different places of that, traditionally, they have been destined they in our society. But it makes it of a specific point: of the Geography. In this perspective, searchs to inside make approaches between the concepts keys systemize of geographic science, throughout its constitution and directs them to look at the children,itsinfanciesandtheinteractionswiththespace,in a field that has been called Geography of childhood. * Este texto faz parte da pesquisa desenvolvida junto ao Núcleo de Pesquisa, Exten- são e Estudo de Crianças de 0 a 6 anos, intitulada “Produção do território brasi- leiro e produção dos territórios de infância: por onde andam nossas crianças?” A pesquisa contou com bolsa PIBIC/CNPQ, financiamento da FAPERJ e apoio da PROPP/UFF.

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Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 31-44, set 2008/fev 2009

AS CRIANÇAS, SUAS INF˜NCIAS E SUAS HISTŁRIAS: MAS POR ONDE ANDAM SUAS GEOGRAFIAS? *1

Jader Janer Moreira Lopes**

ResumoEste texto busca contribuir com os trabalhos contemporâneos que se esforçam para romper com as visões adultocêntricas relativas às crianças, buscando colocá-las em lugares diferentes dos que, tradicionalmente, têm sido destinados a elas em nossa sociedade. Mas o faz de um ponto específico: o da Geografia. Nessa perspectiva, busca fazer aproximações entre os conceitos chaves sistematizados dentro da ciência geográfica, ao longo de sua constituição epistemológica e direciona-os para olhar as crianças, suas infâncias e as interações com os espaços, num campo que tem sido chamado de Geografia da Infância. Palavras-chave: Geografia da Infância. Criança. Espaço.

AbstractThis text searchs to contribute with the works contemporaries who if strengthen to breach with relative traditions visions of children, being searched to place them in different places of that, traditionally, they have been destined they in our society. But it makes it of a specific point: of the Geography.In this perspective, searchs to inside make approaches between the concepts keys systemize of geographic science, throughout its constitution and directs them to look at the children, its infancies and the interactions with the space, in a field that has been called Geography of childhood.

* Este texto faz parte da pesquisa desenvolvida junto ao Núcleo de Pesquisa, Exten-são e Estudo de Crianças de 0 a 6 anos, intitulada “Produção do território brasi-leiro e produção dos territórios de infância: por onde andam nossas crianças?” A pesquisa contou com bolsa PIBIC/CNPQ, financiamento da FAPERJ e apoio da PROPP/UFF.

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Keywords: Geography of childhood. Children. Space.

ResuméCe texte cherche contribuer avec les travaux à des contemporains qui s’efforcent pour rompre avec les visions traditionalle aux enfants, en cherchant les placer dans des places différentes de ce qui, traditionnellement, ont été destinés à elles dans notre société. Mais il le fait d’un point spécifique: la de Geographie. Em cette perspective, cherche faire des approches entre les concepts clés systématisés à l’intérieur de la science géographique, au long de sa constitution et les dirige pour regarder les enfants, leurs enfances et les interactions avec l’espace, dans un champ qui a été appelé de Géographie de l’Enfance. Mots-clés: Géographie de l’Enfance. L´enfants. L´espace.

A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de lou-ça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, quando o vi, e se uma parte do caso remo-to não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, bri-lhante e esguia, permaneça por eu a ter comunicado a pesso-as que a confirmaram. Assim não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela, corroborada por indivíduos que lhe fixaram conteúdo e forma.

Graciliano Ramos em Infância

O local é dividido em duas partes: uma destinada às crian-ças menores e outro às maiores. No espaço das crianças de 5 a 6 anos, existem árvores, um tanque de areia, um brinquedo de ma-deira, chamado de vai-e-vem – uma tábua longa, presa no meio e em cada ponta um assento, onde posicionam-se as crianças que, usando as forças das pernas, sobem e descem, num movimento de balança –, nas árvores existem pontes montadas de cordas e madei-ras, além de gangorras.

Um grupo de criança brincava subindo nas árvores, gan-gorreando penduradas nas cordas, até que uma delas disse: “Aqui tem um portal” – referia-se à passagem formada entre a ponte de madeira e o chão, um espaço estreito, o qual, para passarem, deve-

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riam arrastar-se. E foi o que fizeram, uma após outra, enfiaram-se embaixo da ponte e “chegaram num outro lugar”. Uma delas gri-tou: “precisamos de um mapa”, outra respondeu: “aqui tem um”, e pegou uma tampa de uma panela que por ali estava.

Essa observação foi recolhida num pátio de uma escola. Em suas brincadeiras as ações coletivas das crianças remetem para atuações no espaço e nos atributos que o formam, inclusive em sua representação: são tampas que se configuram como mapas, passa-gens que se abrem para outros mundos, objetos que tomam outras funções e uma infinidade de possibilidades vivenciadas entre pares e que demonstram formas singulares junto aos seus espaços.

Nos últimos anos um novo olhar sobre as crianças e suas in-fâncias tem sido sistematizado em diversas áreas do conhecimento. Os estudos da Sociologia da Infância, da Antropologia da Infância, Psicologia do Desenvolvimento, entre outras, têm contribuído para a emergência de um novo paradigma, novos ângulos de se perceber e compreender as crianças e suas ações frente ao mundo em que se inserem, mas uma de suas facetas tem sido constantemente negada: as interações entre as crianças e seus espaços.

Em trabalhos anteriores (Lopes e Vasconcellos, 2005) te-mos refletido sobre a infância como um espaço de embate entre os diferentes agentes e setores que buscam trazer as crianças para suas áreas de influências, o que coloca essa categoria na condi-ção de território, onde diferentes grupos, instituições e outros se aproximam, afastam, dialogam, conflituam na produção de sabe-res (e poderes) relativos às crianças e suas infâncias.

Esses embates têm gerado diferentes paradigmas ao longo da história da infância que se desdobram em diferentes implicações e atuações. Segundo Sarmento (2005)

“em todas as épocas, todas as sociedades construíram ideias e imagens sobre seus membros de idade mais jovem, as quais se constituíram como modos funcionais de regulação das relações inter-geracionais e de atribuições dos diferen-tes papeis sociais.” (p. 23).

Para esse autor (idem), um traço que tem acompanhado a infância é a sua compreensão na perspectiva da negatividade, ins-crita desde a palavra latina, é o in-fans, o que não fala, e perpetuan-do-se em outros momentos históricos: é a idade da não razão, é a

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idade do não trabalho. E, mais recentemente, frente às mudanças contemporâneas que têm alardeado para alguns o desaparecimento da infância (por exemplo, Postman, 1999) é a idade não-infância.

Poderíamos agregar, ainda, às suas reflexões mais uma ne-gatividade: a do espaço e do tempo, a noção de uma infância per-cebida como sujeitos “a-topos”, ou seja, de lugar nenhum, como sujeitos a-temporais, de tempo nenhum.

A infância, portanto, tem sido percebida muito mais pela sua ausência, pela sua incompletude, do que pela sua presença, concepção que se espraia em várias dimensões sociais e materiali-za ações em diversos campos, como na área da educação.

Essa perspectiva de ver a criança e de conceber a infância nega seu papel de sujeito social, nega a existência de suas histórias e geografias, nega suas possibilidades de construção, de ação e de diálogo na produção dos espaços e tempos em que se inserem e a coloca na condição de sujeito passivo e, portanto, passível de rece-ber ações que vêm dos outros que compõem seus cotidianos.

Esse texto é fruto de reflexões de pesquisas, construídas ao longo de minha trajetória acadêmica, e objetiva contribuir com os tra-balhos que se esforçam para romper com as visões adultocêntricas re-lativas às crianças, buscando colocá-las em lugares diferentes dos que, tradicionalmente, têm sido destinados a elas em nossa sociedade. Mas o faz de um ponto específico: o de minha formação em Geografia.

Isso significa dizer que busco fazer aproximações entre o arcabouço teórico pertinente ao pensamento geográfico e os estu-dos mais contemporâneos sobre as crianças e suas infâncias. Nessa perspectiva, temos trabalhado com conceitos chaves sistematizados dentro da ciência geográfica, ao longo de sua constituição episte-mológica e direcionando-os para olhar as crianças e suas interações com o espaço, num campo que temos chamado de Geografia da Infância1. Portanto, as crianças, a infâncias e suas vivências espaciais são as temáticas pertinentes desse texto.

Iniciei essa reflexão trazendo uma vivência cotidiana de crianças num pátio escolar. Gostaria de continuá-la trazendo uma outra descrição, que representa uma unidade de Educação Infantil de uma cidade específica do país:

“A unidade de educação infantil ocupa uma grande área no bairro, um prédio em forma retangular está fincado no centro do terreno, cercado por muros e grades, o que pos-sibilita às pessoas que passam pela rua, onde essa se situa,

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observarem o que ocorre em seu interior. Dentro da estru-tura está presente um pátio para refeição, as salas de ativi-dades diversas, a cozinha, banheiros, salas administrativas e outros equipamentos; nas paredes penduradas diversas imagens de personagens da mídia, onde os mais comuns são os personagens da Disney”. No lado externo, em todo o seu entorno, há uma grande área livre, destinada para as atividades recreativas das crian-ças. Em um de seus cantos, há grandes brinquedos de plás-tico, como escorregadores, uma boa parte é cimentada e ou-tras com a presença de grama ou areia. Numa parcela desse espaço, uma organização espacial se destaca em meu olhar, pois apresenta um jardim muito bem cuidado, onde estão presentes uma série de objetos, entre eles aparecem bonecos de gesso, que repetem uma boa parte das figuras existentes no interior do prédio. Além disso, alguns pedaços de árvores cortados ajudam a compor o local, constituindo uma tentati-va de ordamento na configuração daquela paisagem.”

(Observação cotidiana, 2006)

Essa transcrição nos remete para um dos conceitos da Ge-ografia que é o de paisagem. Para HOLZER (1997, p. 81):

A geografia tem um termo que me parece muito mais rico e apropriado para seu campo de estudo. Esta palavra incorpo-ra ao suporte físico os traços que o trabalho humano, que o homem como agente, e não como mero espectador, imprime aos sítios onde vive. Mais do que isso, ela denota o potencial que um determinado suporte físico, a partir de suas caracterís-ticas naturais, pode ter para o homem que se propõe a explo-rá-lo com as técnicas de que dispõe. Este é um dos conceitos essenciais da geografia: o conceito de “paisagem”.

Segundo Santos (2004, p. 103):

Paisagem e espaço não são sinônimos. A paisagem é um conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. O espaço são essas formas mais a vida que as anima.

E continua: “A paisagem se dá como um conjunto de ob-jetos reais-concretos. Nesse sentido a paisagem é transtemporal,

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juntando objetos passados e presentes, uma construção transver-sal.” (idem, p. 103). Tentando marcar as diferenças entre espaço e paisagem , o autor utiliza um exemplo que as explicita:

Durante a guerra fria, os laboratórios do Pentágono chegaram a cogitar a produção de um engenho, a bomba de nêutrons, capaz de aniquilar a vida humana em uma dada área, mas preservando todas as construções. O presidente Kennedy afinal renunciou a levar a cabo esse projeto. Senão o que na véspera seria ainda espaço, após a temida explosão seria apenas paisagem. Não temos melhor imagem para mostrar a diferença entre esses dois conceitos. (idem, p. 106)

Maximiniano (2004, p. 90) afirma que

(...) como objeto de interesse da pesquisa, a paisagem pode ser entendida como o produto das interações entre elemen-tos de origem natural e humana, em um determinado espa-ço. Estes elementos de paisagem organizam-se de maneira dinâmica, ao longo do tempo e do espaço. Resultam daí feições e condições também dinâmicas, diferenciadas ou repetidas, o que permite uma classificação, ao agrupar-se os arranjos similares, separando-os dos diferentes. No todo forma-se um mosaico articulado. Esse processo poderá ser tão detalhado ou amplo, quanto o interesse do observador.

Essas afirmativas nos levam a algumas considerações. A primeira delas é o fato de que a paisagem, as formas presentes na superfície terrestre, são reveladoras, numa primeira instância, das relações espaciais ocorridas em determinados grupos sociais, pois elas “guardam” em suas materialidades os processos que animam as sociedades. Santos (1988) nos lembra que, se o tempo se esvai e se constitui como história, sua materialidade pode ser percebida nas configurações que permanecem no espaço. A paisagem é, explicita-mente, o encontro do espaço e do tempo.

Ampliando as idéias dos autores aqui expressos, podería-mos dizer que as marcas sócio-espaço-temporais se fazem presen-tes também nos corpos das pessoas, o que evidencia a perspectiva vygotskyana da plasticidade do biológico e de sua condição sócio-cultural. Os corpos se configuram também como paisagens, cujas marcas e formas portam histórias, geografias....traços societais.

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Assim as paisagens, as formas que configuram as diferentes sociedades, apesar de materialmente edificadas e estaticamente for-madas e percebidas sempre na presença de alguém, são dimensões básicas que desvelam os processos sociais, através de seus objetos, de suas funções, dos arranjos que as compõem. Podemos inferir as dinâmicas que constituem temporalmente e espacialmente um grupo social, pois o “simples fato de existirem como formas, isto é, como paisagem, não basta. A forma já utilizada é coisa diferente, pois seu conteúdo é social. Ela se torna espaço, porque forma-con-teúdo.” (Santos, 2004, p. 109).

Ao observarmos essa paisagem edificada numa parcela do espaço da unidade de educação infantil na descrição anterior, perce-bemos nela uma forma que transcreve uma concepção de infância. Está posta aí a produção de uma paisagem que guarda objetos e significados que remetem para o mundo infantil, são os artefatos de infância. Mas ao observarmos suas funções, as ações que aí se desenvolvem, vemos um espaço estruturado e organizado não para as crianças, apesar de ser um espaço “dito de criança”, mas um ter-ritório, mais precisamente um território de infância.

Essa afirmação nos leva à necessidade de distinção de um outro conceito chave da Geografia que é o de território e à sua associação com a ideia de infância, para chegarmos à noção do que nomeamos de “territórios de infância”.

Para Souza (1995, p. 78-9) a ideia de território está sempre traspassada pela noção de poder, em suas palavras:

O território (...) é fundamentalmente um espaço defi nido e delimitado por e a partir de relações de poder. A questão primordial, aqui, não é na realidade, quais são as características geoecológicas e os recursos naturais de uma certa área, o que se produz ou quem produz um dado espaço, ou ainda quais as ligações afetivas e de identidade entre um grupo social e seu espaço. Estes aspectos podem ser de crucial importância para a compreensão da gênese de um território ou do interesse por tomá-lo ou mantê-lo (...) mas o verdadeiro Leitmotiv é o seguinte: quem domina ou infl uencia e como domina ou infl uencia esse espaço? Este Leitmotiv traz embutida, ao menos de um ponto de vista não interessado em escamotear confl itos e contradições sociais, a seguinte questão inseparável, uma vez que o território é essencialmente um instrumento de exercício de poder: quem domina ou infl uencia quem nesse espaço e como?

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Haesbaert (2004) explicita que a diversidade conceitual sistematizada ao longo da constituição da palavra território serve de indícios para desvelar o jogo de interesses aí presente. O autor atenta para origem latina do termo: “(...) territorium em latim, é derivada diretamente do vocábulo latino terra, e era utilizada pelo sistema jurídico romano dentro do chamado jus terrendi (...), como pedaço de terra apropriado, dentro dos limites de uma determina-da jurisdição político-administrativa” (p.32). Ao desdobrar a noção do “jus terrendi” romano, comenta que este se confundia com o “direito de aterrorizar” e declara a grande proximidade etimológica presente entre terra-territorium e terreo-territor.

Essa acepção acabou por constituir-se, inicialmente, uma perspectiva tradicional e materialista, calcada nos recursos naturais presentes em um determinado espaço; onde o território teria, neces-sariamente, uma aproximação com suas bases físicas e que, associa-das a outros atributos (como as atividades políticas, por exemplo), estabeleceria a existência de três dimensões que o identificariam: dominação, área, limite.

A íntima associação entre território e política remete, ine-vitavelmente, para a associação entre território e estado-nação, que seria a marca fundamental da organização espacial do mundo mo-derno. A superfície terrestre seria um contíguo encontro de dife-rentes estados-territórios, delimitados por suas fronteiras e limites, gerenciados por seus governos e legislações, organizados a partir das interações econômicas, comerciais ou políticas, que estabelece-riam uma ordem mundial. Essa ordem variaria no tempo, definida a partir das amarrações geopolíticas e determinadas com a emergên-cia de diferentes pólos de poder.

Esse modelo de organização territorial também se faria pre-sente em outros níveis ou dimensões do espaço, repetindo-se o pa-drão em diferentes escalas, como a de estados internos ou províncias de um país, ou núcleos urbanos formalizados como território a partir de suas prefeituras e câmaras municipais.

Os processos identitários seriam responsáveis pela coesão interna das fronteiras, a partir de estabelecimento de regras, símbolos, linguagens e visões de mundo comuns. Esses implicariam as demar-cações de alteridades, constituindo limites entre diferenças, reforça-dos pela diversidade existente nos demais territórios, o que tornaria possível o processo de territorialização, de identificação e o sentido de pertencimento para todo o grupo. Nessa perspectiva, muitas ve-

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zes, a ideia de identidade cultural se encontraria com a de identidade nacional, estadual ou até mesmo municipal, dependendo da escala de interesses envolvidas, portanto, de uma identidade territorial.

Lefevbre (1978) aponta a importância do estado, especial-mente o estado capitalista, como um dos agentes hegemônicos na produção do espaço. Organizado segundo a lógica do capital, ges-tado para sua reprodução e manutenção, estender-se-ia também no plano das representações.

Apesar da associação entre identidade e estado-nação, tal acepção não pode ser reduzida a esse estreito encontro, pois a ela-boração de identidades nem sempre está colada à de um território oficialmente existente; há processos de rupturas, distanciamentos e diferentes inserções nos espaços.

A produção do espaço envolve, portanto, a produção de diferentes territórios, que se encontram, se sobrepõem, se divergem e que existem em diferentes escalas e características, indo desde os territórios oficialmente estabelecidos, como as fronteiras nacionais, estaduais e/ou municipais, às configurações subjetivas dos diversos grupos que nelas habitam.

Os territórios têm, assim, em suas materialidades, um ca-ráter semiótico na medida em que se estabelecem como símbolos, e devem ser analisados como uma teia de significados que, ao ser construída por um determinado grupo social, também o constrói. Assim, falar em identidade territorial não significa circunscrever-se aos limites oficialmente estabelecidos nos documentos legais pre-sentes em uma determinada parcela espacial, mas também nos pro-cessos de subjetivação existentes entre as pessoas, seus traços com-partilhados nos grupos sociais e nos espaços a que pertencem.

Haesbaert e Limonad (1999, p. 10) sintetizam essas ideias ao afirmarem que a noção de território deve partir dos seguintes pressupostos:

. primeiro é necessário distinguir território e espaço (ge-ográfico); eles não são sinônimos (...) o segundo é muito mais amplo que o primeiro.. o território é uma construção histórica e, portanto, social, a partir das relações de poder (concreto e simbólico) que envolvem, concomitantemente, sociedade e espaço geográ-fico (que também é sempre, de alguma forma, natureza);. o território possui tanto uma dimensão mais subjetiva, que

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propomos dominar de consciência, apropriação subjetiva ou mesmo, em alguns casos, identidade territorial, e uma dimen-são mais objetiva, que propomos denominar de dominação do espaço, num sentido mais concreto, realizada por instru-mentos de ação política-econômica.Esse espaço tornado território pelas relações de apropriação e dominação social é consituído ao mesmo tempo por pontos e linhas redes e superfícies ou áreas zonas2.

Partindo das ideias expostas até aqui e relacionando-as com as ideias de criança e infância, podemos afirmar “que toda crian-ça nasce num certo momento histórico, num certo grupo cultural, num certo espaço, onde estabelece suas interações sociais e cons-trói sua identidade” (Lopes e Vasconcellos, 2005, p. 39).

Os diferentes feixes culturais presentes em cada sociedade tornam a infância um construto social, uma representação existente nas diferentes sociedades, demarcando assim uma diferença entre infâncias e crianças; se entendemos as crianças como sujeitos reais, que possuem histórias e geografias, e que portanto são portadoras de cultura e a infância como uma representação social, podemos inferir que:

(...) toda criança é criança de um local; de forma cor-respondente, para cada criança do local existe também um lugar de criança, um lugar social designado pelo mundo adulto e que configura os limites da sua vivência; ao mesmo tempo toda criança é criança em alguns locais dentro do local2, pois esse mesmo mundo adulto destina diferentes parcelas do espaço físico para a materialização de suas infâncias. (Lopes e Vasconcellos, 2005, p. 39)

Assim, na produção de seu espaço, as sociedades constroem formas (configurações materiais), cujas funções seriam destinadas para suas crianças. Há, portanto, na configuração das paisagens, na estrutura ou organização espacial, locais destinados para as crian-ças, gestados por diferentes agentes produtores do espaço e que só podem ser compreendidos a partir das representações de infâncias que pré-existem nessas sociedades. Porém:

As crianças, ao apropriarem-se desses espaços e lugares, re-configuram-nos, reconstroem-nos e, além disso, apropriam-

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se de outros, criando suas territorialidades, seus territórios usados. A isso chamamos territorialidades de crianças, das geografias3 construídas pelas crianças. (idem)

É nessa perspectiva que podemos falar em territórios de in-fância, pois a construção da noção de infância em cada sociedade envolve sempre um conjunto de negociações, de embates, de apro-ximações e rupturas que implica a ação das crianças, dos adultos, das instituições, dos diversos segmentos sociais presentes em um grupo, que fazem da infância seu espaço de atuação e representação.

A necessidade de uma distinção epistemológica entre crian-ças e infâncias, entre territórios de infância e territórios de crianças, nos coloca diante da ideia da ideia de espaços de infância e espaços de crianças, e de suas existências enquanto metáforas constantemente ma-terializadas nos encontros estabelecidos entre o mundo adulto e o das crianças, e nas tênues fronteiras que as diferenciam dos territórios.

Isso se dá porque na produção dos territórios, dos espaços, as crianças constantemente subvertem a lógica do ordenamento pro-posto. A transcrição a seguir ilustra essa situação:

Esse espaço é constantemente observado pelas serventes da creche como forma de impedir o acesso das crianças a ele. Porém, as rotinas cotidianas que recaem pesadamente sobre essas funcionárias (tais como limpeza, preparação de alimentos, entre outros) abrem “brechas”, oportunidades imperdíveis para as crianças o tomarem como seus lugares, seus espaços, seus territórios...como ocorreu num dia em que três meninos e uma menina, aproveitando que não ha-via ninguém por perto, brincaram entre as estátuas de cerâ-mica, entre os tocos de madeira, que se transformaram em várias coisas, criando passagens, rotas a serem desafiadas. Mas o mais interessante aconteceu quando uma das crian-ças encontrou no meio da grama um esquife para irrigação. Rapidamente os outros conseguiram achar o local onde esse era aberto...e foi o que aconteceu...muita água jorrando por todos os lados...as crianças molhavam-se e não podiam conter os gritos...o que chamou a atenção dos adultos e le-vou ao fim da brincadeira e da apropriação daquele espaço. (nota recolhida em novembro de 2006)

A produção da espacialidade imbrica interações sociais que, constantemente, fogem ao controle do ordenamento pre-

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viamente pensado e pressuposto na lógica do planejamento, aos objetivos previamente pensados e elaborados, pois a produção do espaço nos remete à própria condição de humanização e de sua condição dialética, onde é constante a ideia de movimento.

É nesse sentido que as crianças, ao negociarem suas infâncias com o mundo adulto, fazem-no de forma situada, localizada, tornando-se potenciais agentes produtores de espaços, de lugares e territórios.

É nesse sentido que as corriqueiras expressões (Lopes e Vasconcellos, 2005) como “lugar de criança é na escola” ou “a rua não é lugar de criança” e outras do gênero, ao delimitarem espacial-mente o que os adultos definem por territórios destinados ou ve-dados para as crianças, são constantemente subvertidas, reescritos, reordenados, demonstrando que as crianças são sujeitos ativos na sociedade e atuam em todas as suas dimensões.

Na Educação Infantil e em outras séries da Educação Básica tem sido comum pensar o arranjo espacial como a única dimensão importante de reflexão nos processos sócio-educativos, evidenciando-se ideias do tipo: basta mudar a organização dos móveis, das cadeiras como garantia de alteração dos processos que nesse espaço ocorrem. Limitar-se a essas máximas significa cair numa perspectiva geográfica do século XIX, conhecida por escola determinista, negada no pensamento geográfico contem-porâneo, cujos seguidores defendiam o seguinte princípio básico: os atributos da superfície terrestre determinariam as caracterís-ticas sócio-culturais dos povos. Nessa perspectiva desenvolve-ram-se noções que se estendem até hoje em nossas subjetividades contemporâneas, tais como a concepção do clima e das formas de relevo de um lugar determinarem a indolência ou não de um povo, sua passividade ou suas tendências guerreiras.

Se a organização dos artefatos no espaço é uma faceta im-portante na compreensão dos processos sociais, não podemos nos limitar a ela apenas. Assim, compreender as crianças e suas inte-rações com o espaço, vai muito além dos seus atributos físicos e naturais e da sua ideia de palco para as ações. Mas deve-se envolver todas as dimensões aqui expressas4, percebendo-as como autores na produção da paisagem e na constituição dos territórios.

Na epígrafe que abre esse texto Graciliano Ramos fala da presença de indivíduos que participam de suas memórias de infân-cia e o ajudam a construir lembranças de lugares e objetos, a fixar, imprimir representações, formas e conteúdos. A Geografia é uma

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As crianças, suas infâncias e suas histórias:mas por onde andam suas geografias?

Educ. foco, Juiz de Fora,v. 13, n. 2, p. 31-44, set 2008/fev 2009

ciência que, numa instância mais elementar, tem sua configuração na ideia da “presença”. Na presença de “um” que, inicialmente, contemplava e descrevia a superfície terrestre e seus atributos e que, lentamente, desvelava a existência de formas e de “outros” que ocu-pavam essas formas. Na presença de “um” e de “outros” que agora buscam compreender a configuração das paisagens, dos territórios, dos lugares, da diversidade de espaços que se encontram, se afastam e constituem a superfície terrestre e de como esses “uns e outros” participam desses processos. Na presença de “um” e de “outros” que participam de nossa subjetivação e humanização e suas me-diações espaciais. Ver as crianças como mais um (constantemente percebida como outro) que participa nesse processo, na elaboração dessas dimensões sócio-espaciais, não negar sua condição cultural é, sem dúvida, uma das grandes contribuições que nossa ciência pode trazer para o estudo das crianças e suas infâncias.

Notas

1 Utilizo o termo “temos”, por ser um trabalho que compartilho com outras pes-soas, mais especificamente, com os membros do NUMPEEC, além, claro, de meus alunos e orientandos de graduação e pós-graduação.

2 Grifos dos autores.3 Grifos dos autores.4 E outras aqui não tratadas, como a noção de lugar, por exemplo.

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Jader Janer Moreira Lopes

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