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As cores, os cheiros e os sabores de uma infância feliz Memórias Autora: Luciane Mari Deschamps 2015

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As cores, os cheiros e os sabores de uma infância feliz

Memórias

Autora: Luciane Mari Deschamps

2015

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Minhas irmãs Márcia e Selma, minha sobrinha Cláudia e eu.

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Falar da infância é resgatar um momento da vida da gente que

costumo dizer que foi bom, porque conseguimos extrair dele tudo o que

nos deixou tristes ou que, pelo menos, nos aborreceu e não foi perfeito,

ideal.

A infância, para alguns, é um período adocicado de boas

lembranças. E é desse jeito que vejo esta fase da minha vida e posso

contar os dias felizes de quando ainda era menina, sem consciência do

resto do mundo. O meu mundinho se resumia ao quintal da minha casa,

ao caminho da escola, ao pátio do colégio onde estudava e à sala de

aula. Meu mundo era tão pequeno quanto eu e "minha história era mais

bonita que a de Robison Crusué", como versou Drummond.

Lembro os amigos das casas vizinhas Edilson, Julinho e

Raquel; duas coleguinhas de escola, a Lindamir e a Leci, e a minha

sobrinha Cláudia. Nós brincávamos no terreno de casa ou nas estradas

da redondeza onde inventávamos os brinquedos e criávamos muitas brincadeiras. Lembro as minhas irmãs um

pouquinho mais velhas do que eu, a Márcia e a Selma, que se faziam de professoras e me ensinavam o bê-á-

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bá. Graças a estas aulinhas nas escadas da ária, cheguei à primeira série já alfabetizada. E tudo isso espichava

as horas dos dias que pareciam ser longas e gostosas.

Nas noites quentes de verão, o calor e a luz da lua cheia nos seguravam na rua até mais tarde.

Pulávamos corda e brincávamos de pegador ou esconde-esconde. No inverno serrano e frio de rachar, o

escurecer antecipado da noite nos empurrava muito cedo para dentro de casa, para frente do fogão à lenha,

quente e acolhedor como colinho de mãe. Ali, comíamos pinhão ou polenta frita na chapa; observávamos horas

a fio o crepitar do fogo na lenha que teimava em arder em brasa. Ficávamos enroladas em ponches e

cobertores, calçadas com grossas meias e com as bochechas avermelhadas pelo calor.

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Quando o inverno se aproximava e ia secando a vegetação, o capim do lado da casa virava objeto de

brinquedo também. No início das tardes, juntávamos galhos e maços de capim para fazer cabanas de índio. A

montagem era a mais divertida das tarefas. E a brincadeira não acabava aí. Encerávamos uma canoa de

coqueiro para escorregar com ela barranco abaixo. Era uma gritaria só. No final da algazarra, a pele estava toda

lanhada pelo capim seco e ardia durante o banho, o que não impedia no dia seguinte de repetir a

grande façanha!

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O meu irmão Djalma e seus amigos faziam rolimãs. Os meninos eram bem mais aventureiros do que eu!

Se esse meu irmão resolvesse escrever sobre a infância dele, com certeza teria muito mais o que contar.

Os rolimãs eram carrinhos feitos de madeira, com rodinhas de ferro e usados para descerem a estrada de

chão em frente a nossa casa, fazendo a curva da casa dos Padilha. O barulho das rodas e a gritaria da gurizada

colocavam a vizinhança em pavorosa.

Na rua, recordo-me dos bolinhos feitos de massa de barro,

pintados de cal e enfeitados com flores de pessegueiro; dos dias que

arrancávamos os pés de mandioca só para ver a raiz saindo da terra

fofa e cheirosa. Também me recordo da plantação de milho do lado de

casa que, na nossa imaginação, virava o labirinto do Minotauro (um de

nós era o tal monstro que ficava escondido para pegar os outros).

Havia um balanço no quintal que embalava a mim e à minha

sobrinha por muitas horas enquanto minha mãe lavava a roupa da casa

e ensinava canções de roda ou serenatas do tempo em que ela era

moça; do rádio ligado perto da porta da cozinha na estação Guarujá

AM.

Lembro ainda do cheiro da chuva na poeira da estrada, do cheiro

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da água doce do rio que passava bem perto de casa... Sim, lembranças cheirosas de uma infância alegre

e inesquecível.

Criança que brinca solta pelos pastos e quintais, inventando histórias e travessuras, quando chove,

parece bichinho do mato preso na jaula, agitado como quê. Minha mãe dizia que criança em dias de

chuva acabava levando algumas palmadas. Haja paciência para aturar tanta agitação e bagunça dentro do

velho casarão de madeira que naquela época já precisava de reformas, mas havia sido abandonado por quem

o construiu!

Casa da infância em Videira, SC

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Nos dias chuvosos, dentro de casa mesmo, também era possível brincar: montar casinhas de

bonecas em um dos quatro quartos; soltar barquinhos de papel na água da calha só para vê-los presos em

algo mais adiante; fazer teatro em cima da grande cômoda do quarto da mãe com as roupas e maquiagem das

irmãs mais velhas que estavam trabalhando; inventar barracas com lençóis e colchas sobre as camas e

cadeiras; pular nos colchões de mola; esperar a fornada de pão sair só para comer as fatias quentinhas com

margarida derretida (Hum! Ainda sinto o cheiro do pão assando!); correr com meias no chão de madeira

encerada para abrir o lustro (também sinto o cheiro da cera passada todas as sextas-feiras, depois do almoço,

pelas gurias, a Márcia e a Selma); assistir "O Sítio do Pica-pau Amarelo", o seriado do Minotauro, na TV em

preto e branco, sentada no sofazinho bem perto da telinha (Essa menina parece cega! Tá sempre grudada na

TV! Senta direito, guria! Parece um grilo! — gritava a mãe lá da cozinha).

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E esperar o próximo capítulo da novelinha da Escrava Isaura e morrer de ódio do Leôncio; apaixonar-se

pelo romance dos personagens do Tarcísio Meira com a Glória Menezes; chorar escondida dentro do guarda-

roupa ao ler o conto de fadas da Menina dos Fósforos; brincar com a Léssi, nossa cachorrinha pequinês; chupar

uvas; comer bolachas caseiras...

Outra coisa que me empurrava para dentro de casa sem eu questionar era o tal do Corpo Santo (ou o

Belebão como alguns o chamavam)! O nome dele era de menos!

O problema estava no medo que sentia quando diziam que ele

estava pela cidade. Um homem que, segundo os mais velhos,

carregava as criancinhas em um saco enorme. Isso seria o meu

maior pesadelo! Já pensou eu ficar sem a minha família, sem a

minha mãe? Um dia, eu o vi pela fresta da ária, passando na rua.

Nunca senti tanto medo na vida! Quem era na verdade eu não sei

até hoje. O que guardei na lembrança daquele dia foi a minha

imagem vestindo uma calcinha rosa, de renda. Eu

estava abaixada, escondida atrás do parapeito da varanda, com o

coração descompassado e palpitando forte. Estava assustada,

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morrendo de medo de que o tal homem me visse ali e me levasse embora, dentro de um grande saco sujo e

marrom.

Os ciganos, ao chegar à cidade, acampavam próximo ao campo de futebol. Eles eram outro terror que

assombrava minha imaginação pueril. Diziam as más línguas e os preconceituosos que os ciganos podiam nos

levar se não obedecêssemos aos pais, no meu caso, à mãe. O campo ficava bem no caminho de volta para

casa. Era inevitável não passar pelas barracas coloridas, cheias de pano e panelas penduradas, pelas mulheres

de saias compridas, arrastando nos pés; de pulseiras douradas nos braços e cabelos longos até a cintura. Ser

carregada para morar solta pelo mundo, em barracas de lona, seria a coisa mais horrível para mim.

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Criança não para quieta nunca. Até quando não tínhamos nada mesmo para fazer, nadinha de nada

mesmo, ficávamos horas olhando o trabalho do trator da prefeitura arrumando a rua de terra que passava em

frente a nossa casa que ficava numa esquina. Sentávamos na soleira da ária e ali ficávamos, com cara de tédio,

vendo o ir e o voltar da patrola, do trator ou de qualquer máquina que estivesse trabalhando.

Lá fora, uma única vez, brincamos de patinar no barro! Ficamos sujos, muito sujos! E a lembrança daquele

dia foi tão boa que dura até hoje como se fosse uma grande aventura! Só que esta fora com a autorização de

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minha mãe que, naquele dia, estava boazinha, boazinha! E que, da porta, ficou rindo das nossas palhaçadas

no barro. Depois, banho! Com muita água, esponja e sabão!

No quintal, tínhamos uma casinha de bonecas onde ficávamos hoooras arrumando loucinhas, armários,

brinquedos. Era nosso passatempo favorito. Chegávamos a perder a noção do tempo naquele espaço tão

pequeno, feito pelas mãos hábeis de minha mãe que provou ser filha do carpinteiro Tomé Marimbondo. Lembro

de que construiu nossa casinha no dia 6 de janeiro, bem no aniversário dela. Nós buscamos as ripas numa

madeireira perto de casa e ela pregara uma por uma, fazendo as

paredes, as portas e as janelas. Virou o Clube das Meninas, mas

alguns meninos podiam entrar com convite. Coisas da idade! A fase

do grupo da Luluzinha e do Bolinha! Todos passamos por isso.

A infância também tem sabores, cores e cheiros (e amores

secretos!). Todas as vezes que degusto uvas, imediatamente vem à

lembrança os parreirais e os porões da casa dos Lira, onde íamos

comprar cestas e cestas de uva. Tínhamos uma que cabiam exatos

oito quilos e que enchia a gaveta da geladeira. Dezembro e janeiro eram os meses em que a uva era farta. Era

tanta, que a mãe fazia suco e doce com a sobra. Dava para enjoar. Nesse mesmo período, a pera, o figo e o

pêssego sobravam também para fazer as compotas e os doces.

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Minha mãe era mulher da cidade que fora morar na serra para acompanhar o marido. Lá teve que

aprender a fazer muitas receitas e as conservas em vidro foi uma delas. Sempre que um legume ou fruta estava

na safra e barateava, minha mãe entrava em ação (e toda a família para ajudar, é claro!): comprava uma boa

quantidade para colocar nos vidros. A máquina de moer carne servia para moer o figo que viraria doce; o

grande tacho, a enorme pá; a grande quantidade de açúcar (o cheiro do doce borbulhando na panela e mexido

de vez em quando pela grande pá ainda vem à memória!); os vidros sendo fervidos numa enorme panela para

serem esterilizados ou pegar pressão na borracha... De um ano para o outro, nas festas do Natal ou da Páscoa,

abríamos algumas das compotas para nos deliciarmos com as receitas da dona Edite. Como isso era marcante!

Tanto o momento de prepará-las quanto o momento de degustá-las. O resultado de todo esse trabalhão ficava

exposto nas prateleiras da cozinha, onde vidros e mais vidros de compotas de todos os sabores e cores

compunham um arco-íris de delícias.

A massa branca do pão crescendo sobre a pia da cozinha e coberta pelo pano de prato alvo é também

outra lembrança gostosa de ter. Às vezes, sem que a mãe visse, metia o dedo lá no fundo, só para ver o buraco

se formar e se fechar sozinho. Ficava maravilhada com o fato de a massa crescer daquele jeito. Nem sabia do

tal de fermento. Para mim, era mágica mesmo! Adorava quando sobrava uma quantidade para fritar. Hum, que

gostoso! A rotina do pão era quase todos os dias. A família era grande e a produção era constante. Os pães

velhos viravam pudim-de-pão. Nada se perdia. Até as cascas (de pão, frutas, verduras e legumes) eram dadas

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aos porcos que mais tardes viravam linguiças e salames. O problema que tudo isso era fruto de muito trabalho

para os adultos. Como eu ainda era criança, apenas me fartava com os resultados.

Sexta-feira não tinha desculpas: era dia de faxina pesada! Tudo tinha que ser mais limpo do que o normal.

A rotina da semana se alterava. Cadeiras para cima; tapetes para lavar; passar a palha de aço, o pano úmido e

a cera no chão de madeira, depois lustrá-lo com blusas velhas de lã até refletir os móveis, para isso tínhamos

um escovão pesado, feito de ferro e com um cabo de

madeira nobre e tão forte que nunca se quebrou;

passar óleo de peroba nos móveis (taí outro cheiro de

infância!); esfregar o banheiro; tirar o pó das soleiras

das janelas... Parecia que o Papa ia chegar! Mas era

só sexta-feira!

Os varais estavam carregados de lençóis

azulados pela pedra de anil (ainda sinto o cheiro do

sabão em pedra da Perdigão no tanque que parecia enorme ou nas mãos de minha mãe). Se tivesse chovido,

envolta do poço artesanal, os calçados lavados no tanque ficavam secando.

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Nas vésperas do Natal, a faxina era muito mais rigorosa. Aí se incluía lavar as paredes por fora e por

dentro, já que não podíamos pintar a casa. Tudo parecia funcionar tão bem! Naquela época, chegava a pensar

que o tempo não passava e que nada estava mudando.

As festas natalinas e da Páscoa eram momentos de muita alegria, agitação da piazada e... trabalho para

os adultos, pois, além da limpeza da casa, tinha-se outros preparativos: o das carnes que seriam assadas; dos

amendoins que seriam feitos no açúcar e colocados em cartuchos de papel; das sobremesas (da famosa torta

de bolacha!) e de toda a comilança para aquele povaréu. O cheiro do pepino cru me lembra até hoje a salada

servida naqueles dias festivos. O gosto do guaraná me remete à alegria em torno da mesa farta e barulhenta.

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Montar a decoração de Natal foi sempre um capítulo à parte da minha história de guria. Minha mãe

guardava, em caixas, as bolinhas de vidro coloridas que enfeitariam a árvore de Natal escolhida e posta dentro

de uma grande lata de tinta, forrada com papel brilhoso. Tudo era enfeitado com papéis dourados, festões,

algodões, luzinhas coloridas do pisca-pisca e muitas bolas de cores e formatos diferentes. Eu não sei o que

acontecia, mas, em minhas pequenas mãos, as bolinhas sempre se quebravam! Nestes dias, ouvíamos

músicas natalinas em discos de vinil.

.

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Como eu disse ser criança também é lembrar amores secretos. Eu tive um que durou muito tempo. Era

um menininho que estudava na minha sala de aula. O piá nem falava comigo, só queria brincar com os outros

meninos e correr pelo pátio da escola todo suado. Acho

que ele nem sabia da minha existência! Vá lá! Mas eu

morria de amores por ele. O nome? Sei ainda... Mas vai

continuar sendo o segredinho da menininha que está lá na

minha infância, pois aquela guriazinha não quer que eu

conte para ninguém, viu?

Meus irmãos mais velhos já trabalhavam fora, por

isso meu contato com eles não era frequente. Lembro as

pilhas de discos que eles colecionavam e ouviam; a

maioria de rock, sucessos dos anos sessenta e trilha

sonora de novelas. Os rapazes costumavam colar nas

paredes do quarto deles fotos de mulheres de revista,

usavam cabelos Black Power e calças pantalonas (boca-

de-sino). Minhas irmãs mais velhas tinham um monte de cremes e maquiagens da Avon e da Helena Rubinstein

que tentavam esconder da gente, mas não conseguiam. Ah, tudo era muito cheiroso e tão feminino!

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Ficar doente significava tomar chá de limão com mel e Melhoral. Argh! Eu odiava aquele cheiro e tomava

por obrigação. Tinha também o chá feito das cascas da laranja que eram secas nas laterais do fogão à lenha. E

outros chás que minha mãe fazia que eu nem sei de que ervas eram! Eu gostava mesmo de chá de casca de

maçã, mas esse não era medicinal e pouco se servia. Eu vivia

com as amígdalas inflamadas, com febre e nariz entupido! Vivia

com Vick para expectorar. O cheiro forte do eucalipto de que é

feita essa pomada também é recordação das minhas noites febris

e mal dormidas da infância.

Às vezes, as minhas doenças eram tão repetitivas que

parecia coisa de outro mundo, então, minha mãe me levava na

dona Senhorinha para benzer. Essa mulher vivia numa casa bem

simples, na beira do rio, próximo ao campo de futebol. Lembro-me

apenas de que, no quintal dela, havia uma fonte com uma caneca

de alumínio bem ariada e brilhosa, presa a um arame para quem

quisesse beber da água fresquinha.

A vida é muito rápida e frágil. Infelizmente, só me dei conta disso agora, aos quarenta e três anos. A

primeira etapa da vida é a infância e a adolescência. Quando criança, o tempo parecia não existir. As noites que

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dividiam os dias, na infância, só existiam para eu descansar das brincadeiras. O amanhecer era a chance

de acordar para uma nova brincadeira com os amigos. Na adolescência, meu mundo foram meus sentimentos,

meus amores e amigos, minha história com o outro que começava a surgir. Nessa primeira etapa da vida, fui

bem feliz. Sei que é normal colorirmos nossas lembranças com as cores que queremos. Então, quero dizer que

minha infância foi um lindo arco-íris, com muitas cores, sabores e cheiros. Uma história com personagens

maravilhosos e atuantes, que tornaram minhas memórias únicas e especiais. Agradeço muito a presença de

minha mãe em todos os momentos da minha vida, pois, sem ela, meu viver não teria todo esse colorido e essa

alegria.

Obrigada, mãe, porque você existiu em minha vida e deu sentido a ela!!!

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No Rosto de uma Mãe Olhos de mãe Seguem cada passo de filho Segura firme Cada tropeço Cada resvalo Cada escorregão Cada desequilíbrio Cada tombo Cada arranhão! Olhar de mãe cura tudo! Cura a dor do corpo Cura a dor de amor Cura a dor da saudade Cura a dor da perda Cura as dores da paixão Cura as dores do coração! Cura as feridas da alma! Olhar de mãe

é mão que afaga filho pequeno filho moleque filho arteiro filho sozinho filho crescido filho já velho filho distante filho ingrato filho inquieto! Olhar de mãe É leite materno Em qualquer tempo da vida Que sacia o filho encostado em seu peito, Fazendo-o ninar... No rosto de uma mãe, Há sempre o carinho e o acalento Que não se encontra em nenhum lugar!

Autora: Luciane Mari Deschamps

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Flashes de minha mãe (Luciane Mari Deschamps)

Ainda menina, ouvia as mesmas histórias que ela sempre contava, recordando os tempos de sua juventude. Minha mãe

cantava serestas e cantarolava enquanto lavava a roupa toda da família. Ouvia a mesma estação de rádio todas as manhãs e dizia

que era uma maneira de estar perto dos parentes distantes. Trabalhava muito, quase não parava. Tinha enxaquecas constantes

que a faziam adoecer, tomar remédio e colocar um pano de álcool na cabeça. Chorava pelos pais já falecidos. Falava do meu avô

que fazia uma casa em três dias. E contava que aprendera com ele a desentortar pregos.

Estendia os lençóis nos varais e xingava quando este arrebentava e fazia com que tivesse que lavar tudo de novo. Tomava

café preto, diante da janela da cozinha, com os olhos esverdeados perdidos no horizonte e os pensamentos pra lá de longe.

Ficava muito brava com quem a desobedecesse ou desse uma resposta mal dada. Às vezes, se impunha diante dos filhos com a

fala mais alta, com a ameaça do rabicho do ferro ou com uma surra bem dada. Era corajosa e não tinha medo dos barulhos

noturnos que representavam perigo, pelo contrário, saía na rua escura à caça de que ou quem com um machado na mão.

Cuidava de todos os cachorros e gatos da casa. Vivia limpando aqui, lá e acolá, parecia uma máquina movida à eletricidade.

Comia o arroz recém-cozido, de colher, dentro de uma xícara, só para “fazer uma paradinha” antes do almoço. Costurava nossas

roupas, inventava vestidos, shorts e frentes-únicas. Demonstrava gostar do tempo em que tinha que uniformizar a filharada para o

desfile de Sete de Setembro. No início das aulas, organizava tudo para nada faltar, encapava os cadernos com plásticos verdes ou

azuis e separava lápis, canetas, réguas e borrachas para todos.

Nas noites quentes de verão, costumava sentar para contar as histórias de mistérios de seus parentes e contava os fatos

como verídicos. Amassava o pão para as intermináveis fornadas que alimentariam a tropa por um ou dois dias. Fazia polenta na

panela de ferro. Sapecava pinhão na chapa do fogão a gás. Cozinhava como ninguém! Falava com o chiado de Três Riachos no

meio dos italianos e alemães e era chamada por alguns de portuguesa. Forte e ativa. Guerreira e mãe de dez filhos. Sozinha. Sem

parceria para educar e orientar os filhos. Apagou-se como mulher e ficou apenas como mãe e avó, servindo sempre. Foi presente,

constante, atuante, ativa, prestativa, especial e amou cada filho seu de um jeito único.