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67 Guerra, Matos, Marques e Santos: As cooperativas e as modalidades contemporâneas de direito… Cooperativismo e Economía Social, nº 35 (2012-2013), pp. 67-90 AS COOPERATIVAS E AS MODALIDADES CONTEMPORÂNEAS DE DIREITO À CIDADE Paula GUERRA Socióloga, Professora Auxiliar do Departamento de Sociologia e investigadora do Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto [email protected] Fátima Loureiro de MATOS Geógrafa, Professora Auxiliar do Departamento de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto [email protected] Teresa Sá MARQUES Geógrafa, Professora Associada do Departamento de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto [email protected] Mónica SANTOS Socióloga, Doutoranda em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto [email protected] 1. ENQUADRAMENTO É traço comum de toda a estrutura social o constante movimento dos seus elementos, ocasionando processos de recomposição incessantes e, nessa medida, a estrutura urbana não escapa a esse movimento de devir constante. Seguindo de perto a perspetiva defendida por François Ascher, situamo-nos numa linha que tende a «considerar a cidade como complexa e não só como complicada», postulando «que ela funcione tendo na base lógicas e racionali-

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67Guerra, Matos, Marques e Santos: As cooperativas e as modalidades contemporâneas de direito…

Cooperativismo e Economía Social, nº 35 (2012-2013), pp. 67-90

As CoopeRAtivAs e As modAlidAdes ContempoRâneAs de diReito à CidAde

PaulaGUERRASocióloga, Professora Auxiliar do Departamento de Sociologia e investigadora do

Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do [email protected]

FátimaLoureirodeMATOSGeógrafa, Professora Auxiliar do Departamento de Geografia da Faculdade de

Letras da Universidade do [email protected]

TeresaSáMARQUESGeógrafa, Professora Associada do Departamento de Geografia da Faculdade de

Letras da Universidade do [email protected]

MónicaSANTOSSocióloga, Doutoranda em Sociologia pela Faculdade

de Letras da Universidade do [email protected]

1. enQUAdRAmentoÉ traço comum de toda a estrutura social o constante movimento dos

seuselementos,ocasionandoprocessosderecomposiçãoincessantese,nessamedida,aestruturaurbananãoescapaaessemovimentodedevirconstante.SeguindodepertoaperspetivadefendidaporFrançoisAscher,situamo-nosnumalinhaquetendea«consideraracidadecomocomplexaenãosócomocomplicada»,postulando«queelafuncionetendonabaselógicaseracionali-

Guerra, Matos, Marques e Santos: As cooperativas e as modalidades contemporâneas de direito…

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dadesmúltiplaseventualmentecontraditórias;queformeumsistemaaberto;queosseusequilíbriossãoinstáveis;quevariaçõesligeiraspodemengendrarmudançasconsideráveis;queasevoluçõessãogeralmenteirreversíveis»1.

Situandomelhoraquestão,partilhamosdopontodevistadequemdefendequeas«regiõesganhadoras»2 continuamaserasregiõesurbanas,namedidaemquesedesenrolanelasamaiorpartedosquotidianos.Comefeito,aszonasurbanastêmvindoaacumularaolongodostemposumariquezaeumadiver-sidadedeserviços,funçõeseobjetosquelheconferemumlugarcentralnosmodosdevidaatuais.Nãoobstanteessarelativariquezaecentralidade,essesprópriosespaçossãorecompostoscontinuamente,dando-lhesnovoscontor-nosefazendoadvirnovasconfigurações,oquedefinitivamentepõeacidadenumaencruzilhadacomplexacomourbano.Consubstanciandoestepontodevista,OriolBohigasargumentaqueacidadeéonossoprimeirorecursoeanossa única possibilidade, justificando-se dizendo que, «se eu penso que acivilizaçãoatualéespecificamenteurbana,éporquetudooqueéimportante—apolítica,aciência,acultura,aarte,todasasatividadeshumanas—estácondicionadopordadosespecificamenteurbanos»3.Emsuma,ascidadeseosseusprolongamentossãoporexcelênciaoscenáriosondesedesenrolaanossacivilização4.

1 -FRANÇOISASCHER,Metapolis – acerca do futuro da cidade, Oeiras, Celta Editora,1998,p.141.

2 -AexpressãoédeGeorgesBenkoeAlainLipietz(orgs.),As Regiões Ganhadoras: distritos e redes. Os Novos Paradigmas da Geografia Económica, Celta Editora,Oeiras, 1994.

3 - ORIOLBOHIGAS,ementrevistaregistadanapublicação,OdileFilion(org.),La Ville – Six interviews d’architectes à la occcasion de l’exposition «La Ville» au Centre Georges Pompidou,Paris,PublicationsduMoniteur,Paris,1994,p.9.

4 - As reflexões aqui feitas decorrem de uma releitura atual de projetos deinvestigaçãolevadosacabopelasautoras:PAULAGUERRA,“OBairrodoCercodoPorto:cenáriodepertenças,deafectividadeedesimbologias”,Sociologia – Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, N.º 12, 2002; FÁTIMALOUREIRODEMATOS, A habitação no Grande Porto. Uma perspectiva geográfica da evolução do mercado e da qualidade habitacional desde finais do séc. XIX até ao final do milénio,Porto:FaculdadedeLetrasdaUniversidadedoPorto,2001;eTERESASÁMARQUES(coord.),Plano Estratégico da Habitação Política de Habitação,Porto:CEGOT,2008.

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Amodernidade temditadouma intensa recomposiçãodo tecidourbano.Essarecomposição,ínsitaaotecidourbano,configuraduasfacetasfundamen-tais: a espacial e a social.Assim sendo, neste artigo, iremos privilegiar osprocessosderecomposiçãosocialeespacialquetêmcomopanodefundoevetorfundamental,oespaçodehabitaçãourbana,nomeadamente,ahabitaçãodecorrentedaaçãocooperativa.Acomplexidadeinerenteàanálisedestefenó-menosocialimpõesérioslimitesàpretensãodeesgotar,poragora,todasasvertentesanalíticaspossíveisemtornodeumaabordagemsociológicadaque-lesprocessos sociaisedasdimensõesque incorpora.Assim,centraremosanossa análise na existência, à escala portuguesa, de uma reivindicação aodireitoàcidadefundadanomovimentocooperativodeconstruçãodehabi-tação.

Como processo de transformação contínua, a recomposição urbana temvindo a revestir-se de algumas dimensões fundamentais. A primeira dasdimensões/eixosdeanálisederecomposiçãosocialeespacialdotecidourbanocentra-senoquemuitosapelidamdefragmentaçãoaceleradadasformasurba-nas.Talequivaleàemergênciadetendênciascadavezmaissegregadorasnaestruturaçãodoespaçourbanolevandoàexistênciadeumacidaderetalhadaespacialmenteepoucocoesasocialmente.Muitosautoresfazemcorrespon-deraestafragmentação,osurgimentodeuma«sociedadearquipélago»5,umaespécie demetáfora de um espaço pautado por uma ordem descontínua eatéisoladofaceaosdemais,contrariandoosprincípiosqueestiveramnasuagénese,istoé,delugardetrocas,deencontros,depassagensmúltiplas6.

Não iríamos tão longe,mas vale a pena lembrar que as sucessivas cli-vagensterritoriaisesociaistêmvindoaprojetarnoterrenoumacidadenãosódual,masumarededezonasurbanascontíguassemqualquerrelaciona-mentoterritorialousocialentresi.Nestecontexto,vemostambémemergiroquepoderemoschamardeespaços«legítimos»e«ilegítimos»7dentrodesta

5 -Cf.JEANVIARD,La Société d’Archipel – ou les territoires du village global, Ed.del’Aube,Paris,1994.

6 -Vd.AA.VV.,“Banlieues…Intégrationouexplosion?”,Panoramiques,Vol.II,n.º 12, 1993.

7 - Entendemos por espaços legítimos, os espaços apropriados por grupossociaisportadoresde recursoseconómicos, sociaiseculturaismaisabundantes;osespaços ilegítimos são, inversamente, ocupados por grupos sociais portadores demenores recursos emgeral, e cuja capacidadede apropriação (afirmação) se tornaconsequentementemenor.

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cidadeurbanizada,cujaprincipalfontedediferenciaçãoésocialesimbólica,istoé,relaciona-secomprincípiosdecorrentesdeumacrescentepolarizaçãosocialedistânciaclassistaprofunda,quesetraduzemdemodoconcretonasdesigualdadessociaiscrescentesdopontodevistadeescalaentremodosdevidaeconsequentescapacidadesdeapropriaçãodoespaçosocialdacidade8. Sebemqueaimagemdegrandescidadesondeseviverianoreinodeumamisturasocialcompletaquerdopontodevistasocialoufuncionalestejamaisassociada a umamitologia de uma comunidade aldeã doque a referênciashistóricasconcretas9,devemosteremcontaqueocrescimentodasurbesfoimodificando progressivamente a natureza e a escala a que se efetivam assegregaçõescombinandoespecializaçõesespaciais,funcionais,sociaisjamaispercecionadasnocursodahistória10.

Neste sentido, o desafio que se coloca hoje à cidade prende-se com a«capacidadedecontrariaras tendênciasdeumacadavezmaiorsegregação sócio-espacialqueocustodosbensurbanosestáaprovocar».Estedesafiotemsemdúvidaumaraizeconómica,masésobretudodeíndolesócio-política«porqueoprimadodaeconomiaestáadestruir,cadavezmaisacapacidadedeconvivência sócio-espacialgerandoformasaltamentesegregadasdeocupaçãoterritorial.»11. Esteprocessodesegregaçãonãoproduzajustaposiçãosimplesdeterritóriossociais,mascontrariamente,asuaimbricaçãocadavezmaiscomplexa,dandouma visibilidade acrescida às diferenças sociais que os trespassam.A face

8 -Aproblemáticadapolarizaçãosocialdascidadestemdesencadeadoumnúmerocrescente de debates interdisciplinares, nomeadamente, ao nível da economia, dasociologia, da geografia e do urbanismo. Dentro deste debate podemos salientaros contributos de: MANUEL CASTELLS, The Informational City. Information Technology, Economic Resctruturing, and the urban-regional process,BasilBlackwell,Oxford,1994-1989;J.H.MOLLENKOPF/MANUELCASTELLS(eds.),Dual City: restructuring New York, Russel Sage Foundation, NewYork, 1991; e finalmente,ALBERTMARTENS/MONIQUEVERYAEKE(coord.),La Polarisation Sociale des Villes Européennes,Ed.Anthropos,Paris,1997.

9 - Tal como refere YVES GRAFMEYER, “Regards sur la segregation”, inJ.BRUN/C.REIN(orgs.),La Ségrégation dans la Ville,Ed.L’Harmattan,Paris,1993,p.85-117edomesmoautor“Laségrégationspaciale”,inSergePaugam(dir.),L’Exclusion, l’État des Savoirs,ÉditionsLaDécouverte,Paris,1996,p.209-207.

10 - Cf. FRANÇOISASCHER,Metapolis – acerca do futuro da cidade, Celta Editora,Oeiras,1998,p.81-96.

11 - EDUARDO VILAÇA / ISABEL GUERRA, “Degradação do parquehabitacional”,Sociologia - Problemas e Práticas, n.º 15, 1994, p. 81.

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maisvisíveldesteprocessoéconstituídapelaemergênciaemquasetodasascidadeseuropeiasdopós-guerra,degrandesbairrosdecarizditosocialvoca-cionados para classes sociais desfavorecidas percepcionados exteriormentecomoespaçosde«medo»,de«miséria»,de«desorganização»,de«perigo»edepobreza,erepresentadosinteriormente,comoespaçosdeestigmatização,demarginalizaçãoede«destituição»,oumesmo,de«desafiliação»12.

Aimagemexterioreinteriordestesespaçosaproxima-osdeumaespéciede«não-lugares»talcomoosdefineMarcAugé,naprecisamedidaemque«seumlugarpodedefinir-secomolugarde identidade,espaçorelacionalehistórico;umespaçoquenãopodedefinir-secomoespaçodeidentidade,nemcomorelacionalnemcomohistórico,definiráumnãolugar.»13. Estaposiçãoradicalizadadeanáliseprende-secomaassunçãodequeumacidadenãopodeser considerada unicamente comoumconjunto funcional, capaz de gerir eordenarasuaprópriaexpansão,mastemdeserassumidacomoumaestruturasimbólicaportadoradeumconjuntodesinaisedereferentesquepermitamoestabelecimentoderelaçõesentreasociedadeeoespaço.14Énesteesforçoquese insereomovimentocooperativodeconstruçãohabitacionalquenospropomos analisar.

2. CidAde, diReito à CidAde e desigUAldAdes

Aformaçãodeumacidade,nestesentido,implicaaproduçãodeumléxicosimbólicoquecaracterizeeidentifiqueoquadroimaginéticoeosvaloresdereferênciadosseushabitantes.Adimensãosimbólicadacidadenãoéumfactoestranhoàvidasocialeàsexperiênciasquotidianasdosseushabitantes,pelocontrário,relacionam-senuma«duplahermenêutica».Porumlado,osimbo-lismourbanorepresentaumpontodereferênciaqueestruturaecondicionademuitosmodosasatividadessociais,entrandoprofundamentenosprocessosquedefinemas identidadesdosatoressociais.Poroutrolado,asatividadesepráticassociaiseasconstantesinteraçõesdesenvolvidasnessequadrocon-

12 - A expressão é de ROBERT CASTEL, “De l’indigence à l’exclusion, ladésafiliation–precaritédutravailetvulnerabilitérelationnelle”, inJ.DONZELOT(dir),Face à l’Exclusion – le modèle français,Ed.Esprit,Paris,1993.

13 -MARCAUGÉ,Los “No Lugares” – espacios del anonimato. Una Antropología de la Sobremodernidad,Barcelona,GedisaEditorial,Barcelona1995,p.83.

14 - Tal como defendeMANUEL CASTELLS,Problemas de Investigação em Sociologia Urbana,Lisboa,EditorialPresença,Lisboa,1994.

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tribuemparaproduzirereproduzir,estruturarereestruturarasimbólicaeaformaurbana.

Nesteâmbito,assumeparticularrelevânciaoaumentoquantitativoequa-litativodosexcluídosdaenacidadeurbanizada15.Considerandoqueotermoexclusão social recobre sobretudoumcarácter processual, seria importantesalientarqueaparticularvulnerabilidadeasituaçõesdecarência—nãosóeco-nómica—abrangentedeumconjuntocadavezmaiordeindivíduos,conduz--nosarepensarestetermoeaterparticularmenteemcontaassuasincidênciasemterritóriourbano.Umdosaspetosparticularmenteimportantesdaexclusãosocialprende-secomoacentuardeumacrisecrescentedecidadania.16 Desta maneira,oshabitantesurbanos—comparticularincidência,osdosgrandesaglomeradoshabitacionais—perdempaulatinamenteosentimentodosseusinteressescoletivoseacapacidadedesemobilizarememtornodeprojetoscomuns.Aestepropósito,atentemosaoquenosdizJ.M.CarvalhoFerreiraaoafirmarque«atéàdécadadesetenta,erapossívelconstruiranálisesdosmovimentossociais,namedidaemqueasreivindicaçõesdiscorriamda“criseurbana”,aqualseassociavaaperíodosdecontinuidadesocial.[…]Asacçõescolectivasidentificavamasnecessidadessociaisaossistemasderepresenta-çãosocialatravésdeproblemasconcretos:habitação,espaçosdelazer,infra--estruturascolectivasevidaassociativa…»17.Sendoexemplar,aestetítulo,recordaramobilizaçãoefetuadaemtornodasAssociaçõesdeMoradoresnoperíodo imediato ao 25 de abril de 197418. N.Teotónio Pereira refere que

15 -Cf.A.TEIXEIRAFERNANDES,“Formasemecanismosdeexclusãosocial”,Sociologia - Revista da Faculdade de Letras do Porto,vol.I,sérieI,1991,pp.9-66;J.FERREIRADEALMEIDA,“Integraçãosocialeexclusãosocial.Algumasquestões”,Análise Social,vol.XXVIII,n.º123-4,1993;J.FERREIRADEALMEIDAeOutros,Exclusão Social. Factores e tipos de pobreza em Portugal, Celta Editora, Oeiras,1992.

16 - CLAUDEJACQUIER,“Lacitoyennetéurbainedanslesquartierseuropéens”,inJoelRoman(ed.),Ville, Exclusion et Citoyenneté - Entretiens de la Ville II,Paris,Ed.Esprit,Paris,1993.

17 - J.M.CARVALHOFERREIRA, “Marginalidade emovimentos sociais noscontextosurbanos”,inEstruturasSociaiseDesenvolvimento,ActasdoIIICongressoPortuguêsdeSociologia,Lisboa,EditorialFragmentos/APS,Lisboa,1993,p.984.

18 -Veja-seHELENAVILAÇA,“Asassociaçõesdemoradoresenquantoaspectoparticulardoassociativismourbanoedaparticipaçãosocial”,in Sociologia – Revista da Faculdade de Letras do Porto,ISérie,Vol.IV,1994,p.49-96.

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nessa época, «o entusiasmo era transbordante.As populações, cansadas depromessasedeumavidaemcondiçõesinfra-humanas,viamchegarodiaemquepodiamterumaverdadeiracasaparahabitar;ostécnicosviamrealizadaapossibilidadedeumaafirmaçãodirectadointeressesocialdasuaprofissão,libertosdepeiasburocráticas,dehierarquiasautocráticasedeesquemasabs-tractos,metendoprofundamenteasmãosnamassa»19.

Aprecarização do estilo de vida de significativas franjas da população,nãopodendoacederadeterminadospadrõesdebem-estaredequalidadedevida,temtraduçãodiretanavidaquotidiana,nomeadamentenadeterioraçãodaidentidadesocioculturaldessesgrupossociais.Hojeemdia,aparticipaçãodaspopulaçõesnadefesadosseusinteressesedireitosparecetersidosubsti-tuídapeloalastramentodefenómenospluraisdeexclusõessociais.

Éaindanasgrandesconcentraçõeshabitacionaisquepersistemcumulati-vamenteosmaioresestrangulamentosnoqueconcerneaosdireitosàcidade,aoalojamento,aoemprego,aosserviços,àculturaeàqualidadedevidaurbanaeàcidadania.Aexclusãoprende-se,ainda,comumaausênciadedignidademultiformenamedidaemqueexistemmuitasformasdesesentireserperce-cionadocomodignohabitantedeumacidade,tantasquantasasdistribuiçõesdocapitaleconómico,cultural,socialesuascombinatóriasoditem.Agrandequestãopareceseradenãoseconseguirintegraçãoemtecidossocialmentediferenciados, transformando-se assim, a desintegração urbana20 de que seouvefalartantoemdesintegraçãosocialecívica.

19 -N.TEOTÓNIOPEREIRA,Tempos, Lugares, Pessoas, Ed.Público,Lisboa,1997,p.33.OmesmoautorreferequeestamovimentaçãoqueteveporbaseoSaal(ServiçodeApoioAmbulatórioLocal)«Baseava-senumafilosofiadeintervençãodoEstadoemquesecriticavaimplicitamenteosmeiosconvencionaisatéentãousadoscompoucoou nenhum sucesso na resoluçãodo problemada habitação, nomeadamente no querespeitavaàeliminaçãodebarracaseilhas.Estafilosofiaestavaentãonaordemdodianosmeiostécnicosinternacionais,ligadaaexperiênciasnoTerceiroMundo,especialmentenaAméricaLatina.Pressupunha-sequeoprotagonismodasacçõesadesenvolvereradesempenhadopelasorganizaçõespopularesdebase,tendoaintervençãodoEstadoumpapeldeapoiosupletivo,emboraindispensável.Osverdadeirosmotoresdoprocessoeramainiciativaeodinamismodaspopulações»,p.32.

20 - Isto porque na maior parte das vezes, quando se ouvem referências àdesintegraçãourbana,parecemexistirnessesdiscursosduasopacidadesfundamentais:porumlado,a(in)consciênciadequenãoexistedesintegraçãourbanasemtermosemlinhadecontaosverdadeirosprodutoresdourbanoeporoutro,anãoperceçãodequequalquerprocessodedesintegraçãoporquesocialédiversoepluriforme.

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A acrescentar a tudo isto, saliente-se a heterogeneidade das populaçõesexcluídas, tornando-as avessas a categorizações ou tipologias sociológicasstrictu sensu, comobem refereDidierLapeyronnie«todas as combinaçõesestãoabertas»21.Nestecaso,ograndedesafioquesecolocaéodainserçãonamedidaemque«inserirédevolverumamargemdeescolhaaindivíduosque pensam nada ter a esperar da integração, confrontando as instituiçõescomformasdeexpressãodessesgrupossociaisgerandomediaçõesentreosrecursosdasinstituiçõeseasnecessidadesdosindivíduosegrupos»22. Neste sentidoeindomaislonge,podemosdizerqueaintegraçãoimplicaumpro-cessoquesegundoaterminologiadeAnthonyGiddenssepoderiaapelidarde«dualidadedaestrutura».Porquepressupõeumadinâmicadeinserção,enãodeassimilaçãosocial,comoumprocessoquefacilitaoacessoporpartedosexcluídosàsoportunidadesdasociedade,nãocorrespondendoaumaanula-çãodasdiferençasedosconflitos.Etambémporquepassaporumprocessodeinclusãoporqueobrigaaqueasociedadeseorganizedeformaaassumiroportunidadesplurais.Destaforma,«inserçãoeinclusãosão,assimasduasfasesdeumprocesso(duplo)queéodaintegração»23.

Oprocessoderecomposiçãosocialeespacialdoespaçourbanosugere--nosaindaaproblematizaçãodarepresentaçãodicotómicadoespaçourbanoalicerçadanospilares:centroeperiferia.Érazoáveladmitirqueacrescentedualizaçãodoespaçourbanotemgeradorupturasnãosósociais,nemterrito-riais,massobretudo,simbólicas.Numcontextoemqueocentroouoscentrossãocadavezmaiscentroseasperiferiassãomaisperiferias,pareceimpor-tantecriardistânciaepistemológicafaceaumaabordagemdicotomizadadarealidadeedosseusconsequentesefeitosnefastoseperversos.Eacreditamosqueomovimentocooperativodeconstruçãodehabitaçãosesituanacharneiradaresoluçãodestradicotomiacomorespostaàfragmentaçãodacidade.

Acidadecomolugarderealizaçãohumana,e,acimadetudo,comocentra-lidadesimbólica,pareceumafórmuladopassado.Énestesentidoquemuitas

21 - DIDIER LAPEYRONNIE, “De l’intégration à la ségrégation”, in JOELROMAN(ed.),Ville, Exclusion et Citoyenneté – Entretiens de la Ville II,Paris,Ed.Esprit, Paris, 1993, p. 105. Sobre esta questão é ainda importante o contributo deROBERTCASTELemArt. Cit.

22 - ISABELGUERRA,“Aspessoasnãosãocoisasqueseponhamemgavetas”,Sociedade e Território, n.º 20, 1994, p. 14.

23 - ROGÉRIO ROQUE AMARO, “A inserção económica de populaçõesdesfavorecidas,factordecidadania”,Sociedade e Trabalho,n.º8/9,2000,p.36.

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das políticas urbanas nomomento presente estãomais preocupadas com aqualificaçãoplurifacetadadoespaçourbano,oumaisconcretamente,como«fazercidadeportodaacidade».Indomaislonge,eaacentuar-seestadico-tomia,muitos questionammesmo a própria cidade e os seus limites e, noextremo,aprópriapertinênciadotermo.Aquestãoéadeestarmosperanteumacidadeouváriascidades,ouperantenenhumacidade.Questãorelevante,nesteeixo,seráopróprioreequacionamentodasfunçõesurbanastradicionais,poishápartesdacidadequetêmsidovotadasaumamonofuncionalidadefor-çadaatravésdeoperaçõesdezonamentosfuncionalistaseminimalistas,oquelevaaquestionaroseuprópriopapelenquantopartesdeumtodourbanoquesequerplurifuncionalnumapluriformidadedemanifestaçõesdeurbanidade.

Ousomaciçodapalavraghetto temvindoadesencadeareaamplificaraestigmatizaçãodoespaçoedapopulaçãoqueoocupa,equivalendoaumaespécie dedoxa24. Frequentemente, faz-se equivaler periferia aghetto, tor-nandoinjuriosososespaçosperiféricosparaquemosvivencia,aindaquesemqualquerfundamento.Outrasvezes,otermoghettoéutilizadonosentidodedestituição de funções urbanas, o que parece equivaler verdadeiramente àsituaçãorealdemuitasperiferias.ConvémsalientarqueasegregaçãonegranosE.U.A.constituiummarcohistórico fundamentalparaaelucidaçãodosignificado da noção de ghetto como bem considera Marielle Gros. Estamesmaautoraadiantaque«nasuaorigem,oghetto-negroamericanoapre-sentoucaracterísticassimilaresàsdoghettojudeueuropeupelasduasrazõesessenciais que, segundo os autores que vêm sendo seguidos, definem estaformade segregação sócio-espacial:ocarácter étnico-racialda segregação,sendoquenestecasoéacordapeleabarreiraqueseparaoshabitantesdoexterior;oghetto-negroconstitui,comooutroraoghettojudeu,umconjuntosocialespacialmenteseparado,comassuasredescomerciais,imprensa,igre-jas,instituiçõespolíticas,culturaisedeassistência.Oghettoéalémdomaisumconjuntosocialdotadodassuasprópriasorganizaçõeseconómicascapa-zesdesatisfazer,pelomenosemparte,asnecessidadesdapopulação,assimoferecendoaprofissionaisliberaisepequenosempresáriospossibilidadesdeexercícioprofissional.Poroutrolado,acoincidênciaespacialdoghettocom

24 - PHILIPPEGENESTIERdizaesterespeitoque«asperiferiassãoumproblema;massobreestepontotodasasperiferiasnãosãoequivalentes:sãoosgrandesconjuntosque levantam mais questões e que provocam mais reacções», «Quel avenir pourlesgrandsensembles?», in JOELROMAN(ed.),Ville, Exclusion et Citoyenneté – Entretiens de la Ville II,Paris,Ed.Esprit,Paris1993,p.133.

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delimitaçõesadministrativaslocaiscrioucondiçõesparaaemergênciadeumaclassepolíticanegra.É tão intensaepersistenteesta segregação racialquecertosanalistasamericanoscriaramotermodehíper-segregaçãoparaadistin-guirdasformasdeseparaçãoespacialqueatingemoutrosgrupossociais»25. Contudo,pensamosqueousodessapalavranãopodesergeneralizadonemamplificadoatodaarealidadeurbana,sobpenadereproduzirmosumdiscursomediáticoecomumacercadessesespaços.26TalcomoaludeLoïcWacquant«atemáticadoghetto,alimentadaporclichésimportadosdooutroladodoAtlân-tico(Chicago,Bronx,Harlem...),impôs-secomoumdoslugarescomunsdodebatepúblicosobreacidade»27.

Numanotadesíntese,gostaríamosdesublinharquealimentamosaideiadequeasgrandescidadeslongedesedesagregarem,recompõem-se,fazendoemergir novas centralidades, novas mobilidades, novos espaços públicos,novasformasdesociabilidadeenovasformasdecidadaniae,talcomorefereFrançoisAscher,«asdificuldades,asferidas,osabandonosqueacompanhamastransformaçõesemcurso,engendramagoniaereacções»28,maséilusóriopretenderreencontraraurbanidadedopassadocomarecriaçãodeumquadrourbanísticoearquitetónicotradicional,poistorna-seimperioso,naatualidade,readaptarotecidourbanoàsnovascondicionantessocioeconómicas.ÉnestequadroqueencaramosomovimentocooperativonareconstituiçãododireitoàhabitaçãoemPortugalnopós-25deabrilde74.

3. ReivindiCAção pelA CidAde e movimento CoopeRAtivo hAbitACionAl em poRtUgAl

Omovimento cooperativo ao nível da habitação emerge logo em 1974comoobjetivodepromoverahabitaçãoacustoscontrolados(numregimede

25 -MARIELLEGROS,Espaço Residencial e Modo de Vida – Contributos da Sociologia para a Reabilitação de uma Área Urbana Degradada–DissertaçãodeDoutoramento,Aveiro, Departamento deAmbiente e Ordenamento,Aveiro, 1998,doc.policopiado,pp.56-57.

26 - DANIELBÉHAR,«Banlieuesghettos,quartierspopulairesouvilleéclatée»,Les Annales de la Recherche Urbaine,n.º68/69,1995,pp.6-14.

27 -LOÏCWACQUANT,«DaAméricacomooavessodautopia»inDanielLins(org.),CulturaeSubjectividade.SaberesNômades,Campinas,PapirusEditora,2000,p. 35.

28 -FRANÇOISASCHER,Op.Cit.,p.232.

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H.C.C.),empropriedadeindividual,comempréstimosdoInstitutoNacionaldeHabitação (I.N.H.) com jurobonificadoparaa construção, aquisiçãooureparação de habitações. Omovimento cooperativo habitacional foi muitoforte,sobretudonoNortenopós-25deAbriltendo-seorganizadomaisde200cooperativasdehabitação,quedepoisdeultrapassaremdificuldadessignifi-cativas,desenvolveram,aindanadécadade1970,conjuntosresidenciaiscomreconhecidosníveisdequalidadeaonívelnãosódashabitações,mastambémdeespaçosexterioreseequipamentossociais,muitosdosquaisatéaíinexis-tentes emhabitação com controlo de custos29. Estes conjuntos residenciaisforaminovadoresnaparticipaçãodosprópriosutentesemtodooprocessoemereceram,porpartedosmunicípios,importantesaçõesdecedênciadeterre-nos,bemcomooapoiotécnicoefinanceiropelogovernocentral.

ComaextinçãodoFundodeFomentodeHabitação(F.F.H.)noiníciodosanos80,osprocessosemcursoforamperturbados,mascomacriaçãodoINHearespetivareformulaçãodosfinanciamentos,ascooperativasdehabitaçãoconheceramuma nova fase de desenvolvimento, ligada a uma clara opçãode apoio ao sector, o que fez com que se verificasse um notável aumentonaproduçãode fogos.Nofinal dadécadade80, umplanogovernamentaldefomentoàHCCcriouimportantesexpectativas,quepoucodepois,foramdefraudadaspornãoteremsidodesenvolvidasasmedidaspolíticasindispen-sáveisaoseucumprimento.Estasituaçãocaracterizouaentradanosanos90efoiagravadapelaausênciadeumdiálogoeficazentreogovernoeospar-ceirossociaisdosectordaconstruçãoehabitação.Comoconsequênciadestasituação,ascooperativasdehabitaçãocomeçaramatergrandesdificuldadesnodesenvolvimentodasuaaçãodepromoção,maispropriamentenaofertaresidencialparaosgrupossociaismaisdesfavorecidos.Assim,paraosectorcooperativo,osanos90,representaramumperíododeanulaçãodasanterioresexpectativasdeconsolidaçãoedecrescimento.Apartirde1992existeumaquebravisívelnapromoçãodehabitaçãodosectorcooperativo.

As razões que conduziram a essa quebra são de vária ordem, salien-tando-se,emprimeirolugar,afaltadesolosapreçosadequados,aperdadepoderdecompradaclasse«média/baixa»,adesatualizaçãodosistemadecré-ditovigenteparaosector,oaumentodecustodenaturezafiscal,processualeburocrática,eoaumento,emconsequência,doscustosfinaisdehabitação,condiçõesestasquetornamascooperativasmenoscompetitivas.

29 -SecretariadeEstadodaHabitação(2000),O sector da habitação no ano 2000, Lisboa:GovernodePortugal.

78 Guerra, Matos, Marques e Santos: As cooperativas e as modalidades contemporâneas de direito…

Depoisdeum«pico»em1989,quandoseproduziram5172fogos,agrandeinflaçãodecustonosectoreasaltastaxasdejuropraticadasnosempréstimoslevaramaque,apartirde1990,ascooperativastivessemgrandedificuldadeemencontrarcompradorparaosseusfogos,acumulandohabitaçõesparaven-der.Osectorcooperativoretraiu-se,onúmerodefogosfoidecrescendopro-gressivamenteapartirdessadata,apesardeaindaem1991teratingido4833fogosnapromoçãoanual.Adistribuiçãogeográficadapopulação,asopçõespolíticasdagestãomunicipaleaestruturademográficaedepovoamentosãoalgumasdasrazõesquecondicionamodesenvolvimentodascooperativasnasregiões.De facto,omaiornúmerode fogosconstruídospelascooperativasencontra-senodistritodeLisboa,seguidododistritodoPortoeFaro.EstapromoçãodehabitaçãotevemenosincidêncianosdistritosdeCasteloBrancoeGuarda.

Nadécadade90, o númerodemembrosdas cooperativasdehabitaçãorondavacercade100000oqueequivaleadizer,grossomodo,queumaemcada30famíliasportuguesasvivianumahabitaçãocooperativaouesperavavirafazê-losendoque60%dessasfamíliasresidiamnaregiãodeLisboaeValedoTejoe16%naÁreaMetropolitanadoPorto.Até1994apromoçãodascooperativas,emboraemproporçõesdiferenteserarealizadaemtodososdis-tritos.Comojáfoireferidoanteriormente,apromoçãocooperativatemvindoadiminuiraolongodosúltimosanoseissoverifica-seportodoopaís.Entre1995e2005verifica-sequedistritoscomoCasteloBranco,Bragança,Guarda,LeiriaeVianadoCastelodeixaramdepromoverhabitaçãosocialatravésdascooperativasdehabitação.

Alegislaçãoatualqueregulamentaaprovisãodehabitaçãopelascoope-rativasdehabitaçãoéfrutodeumprocessolegislativoquesurgiuapóso25deabril,oqualconsagrouoquadroregulamentardocooperativismohabita-cionaleoregimedefinanciamentoporpartedoEstadoàscooperativas30. O Decreto-Lein.º145/97tevecomoobjetivosatualizareadaptaroregimedefinanciamentoàscooperativasnumúnicodiploma,noquadrodeumconjuntodealteraçõesverificadasemtermosdaprocura(casodosjovens,porexem-plo)econdiçõesdosempréstimos,queseencontravamdispersosporváriosdiplomas.

30 - Os principais instrumentos legislativos são: a Promoção Cooperativa paravendaacustoscontrolados—DLn.º145/97de11dejunho—eaPromoçãoparaarrendamento—DLn.º76/85de25demarço.

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No âmbito deste diploma, as cooperativas de habitação têm acesso aempréstimos bonificados, para a construção de fogos destinados à venda,reduçãodataxadoIVAnasempreitadasrelativasàconstruçãodosempreen-dimentoseserviçosconexos(fiscalizaçãoeelaboraçãodeprojetos),desdequeascooperativascumpramosparâmetrosdecusto,vendaedimensãodascasas,definidosparaashabitaçõesdecustoscontrolados,bemcomo,determinadasregrasrelativasàpropriedadeealienaçãodascasas.Paraalémdeumconjuntodebenefíciosfiscais,comoisençãodeImpostoMunicipalsobreTransmissõesdeImóveis(IMT)naaquisiçãodeterrenos, isençãodopagamentodetaxaseencargospelarealizaçãodeinfraestruturasurbanísticas,isençãodetaxaseemolumentosnoregistodehipotecaemrelaçãoaosempréstimosegratuiti-dadedosatosderegisto.

Apesardosteóricosfundadoresdocooperativismo,comoAntónioSérgio,defenderemqueapropriedadecoletivaéaverdadeirapropriedadecoopera-tiva,estamodalidadeteveumaaceitaçãomuitolimitadaentrenós,sendoado-tada,apenas,pelascooperativassurgidasdoServiçodeApoioAmbulatórioLocal (SAAL) e pelas cooperativas filiadas naUnião dasCooperativas deHabitaçãoEconómicadoDistritodeSetúbal(UCHEDES)relativamenteaosseusprimeirosempreendimentos.

Amodalidademaisfrequentetemsidoapropriedadeindividual,emqueatransmissãodosfogosaoscooperadoreséfeitaatravésdecontratodecompraevenda,segundooqualacooperativatransmiteaocooperadorodireitorealpleno da habitação.No caso da propriedade individual, o preço dos fogosconstruídosouadquiridospodesersatisfeitodeumasóvez(oqueéraroacon-tecer)ouatravésdeempréstimosbancários,mediantehipotecadahabitação,segundoosistemageraldecréditoàhabitaçãoprópriaepermanente.

Apreferênciapelapropriedadeindividualtemsidopredominantedevido,queràpolíticadefinanciamentopraticadapelo InstitutodaHabitaçãoedaReabilitaçãoUrbana(IHRU)—queseparaofinanciamentoàconstruçãodofinanciamentoàaquisição,passandoesteaserconcedidoindividualmenteaosassociados, atravésdo regimegeraldecréditos, emcondições iguaisàsdomercado,queraospróprioscooperadores,dadasascaracterísticasdasocie-dadeportuguesaquevalorizaapropriedadeindividualemdesfavordapro-priedadecoletivaedoinquilinatocooperador.Aliás,quantoaesteúltimo,nãoforamtomadasquaisquermedidasquepermitissemasuaimplementaçãoporpartedascooperativas,nemtãopoucoqualquermecanismodeincentivo.

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É imprescindível no quadro atual de uma diminuição da procurapara venda, que o IHRU repense os condicionalismos e mecanismosque possibilitem as cooperativas investirem na oferta para arrenda-mento. Os primeiros diplomas legais que regulamentavam o finan-ciamento à construção pelo ex-F.F.H., os empréstimos concedidos àscooperativas de habitação obedeciam a uma taxa de juro muito baixa (3-5,8%),amortizadaalongoprazo(25-30anos).Estascondiçõesfinanceiraspermitiramàscooperativasdesenvolverumaintensaatividadeentre1975-80e integraremosestratospopulacionaisde rendimentosmédios-baixos, evo-luindo,progressivamente,paraascondiçõesdomercadoàsquais,naprática,ascooperativastêmestadosujeitas,comtaxasdejuromaiselevadas.

Esta evolução do sistema de financiamento acabou por originar quer asubstituição dos sócios demenor capacidade económica por outros prove-nientesdos estratos sociaismédios e elevados,quer ainda, adissoluçãodevárias cooperativas após a execução dos empreendimentos, pois o vínculocomacooperativadesapareceapósacompradacasa,passandoaqueleparaainstituiçãodecréditocomaqualocooperadorestabeleceuoempréstimo.Assimapartirdemeadosdosanos90começaasentir-seumadiminuiçãodapromoçãocooperativaatravésdesteprogramaeváriascooperativascomeçamatergrandesdificuldadesemescoaroseuproduto.

Umconjuntoderazõesestánaorigemdadiminuiçãodapromoçãodehabi-taçãocooperativaemPortugalnosanos90.Assim,emprimeirolugar,sãodedestacarasdificuldadesdeacessoaosolopúblicoeaausênciademecanismosmaiseficazes(financeirosououtros)paracomparticiparoscustosdacompradosoloparapromoçõescooperativashabitacionais,oqueconduziuascoo-perativasaestratégiasdeaquisiçãodesolo idênticasàsdomercado.Comoresultado,aincidênciadocustodosolonopreçofinaldahabitaçãoaumentouexponencialmente,aproximandooscustosfinaisdahabitaçãocooperativaaoscustoscorrentesnapromoçãoprivada.

Tambémacrescenteescassezdesoloapreçoscomportáveisnaslocaliza-çõesondesefazemsentirascarênciashabitacionais,fezcomqueascoope-rativasprocurassemsolosemlocalizaçõescadavezmaisafastadasdassuasáreasdeinfluênciahabitacional.Oscustossociaisdesteafastamento,emborapermitindoaaquisiçãodesoloapreçomaisbaixo,tornaram,muitasvezes,essaslocalizaçõesinacessíveisparaascamadassociaiscomreduzidopoderde mobilidade. Concomitantemente, com a progressiva cobertura nacionaldosPlanosDiretoresMunicipais(PDMs),apartirdoiníciodadécadade90,deixoudeserpossívelumapráticacorrentedeapoiodosmunicípiosàscoo-

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perativas—omunicípiocompravasoloapreçosbaixos(oproprietárioquasesemprenão tinhaanoçãodoseuvalorparafinsdeconstrução)quedepoiscedia ou transacionava, a preços simbólicos, às cooperativas. Regulado ozonamentodosolourbanizávelasituaçãonãosómudadrasticamentecomo,aomesmotempo,secriamexpectativasexageradasdevalorizaçãodospreços.Estasituaçãofoiagravadapelofactodealeinãopreverumregimeespecialparaexpropriaçãodosolodestinadoàproduçãodehabitaçãocooperativa.Aleigeraldasexpropriações,emvigoremPortugal,mesmocomautilizaçãodoargumentoda«utilidadepública»(aplicávelàsCHEs),favoreceuoestabele-cimentodepreçosdeexpropriaçãoaoníveldospreçoscorrentesdomercado.Tal situação impediu osmunicípios de constituíremumabolsa de terrenospúblicosmunicipaisque,mediantecritériosadefinir,poderiamfavorecerascooperativasdirigidasaestratossociaisnãosolventes.

Porseuturno,osbenefíciosconcedidospeloIHRUàhabitaçãoacustoscontrolados(bonificaçãode1/3dataxadejurocorrente),nãocompensamaburocraciaexcessivanaaprovaçãodefinanciamentoseprojetoseaslimita-çõesimpostas(áreas,plafondsdefinanciamentoecustos)nãosatisfaziamasexigências dos novos cooperadores com rendimentos ou expectativasmaisaltos.Outrossim,adiminuiçãodopoderdecompradaspopulaçõesquenor-malmente constituíam a procura potencial das cooperativas foi importantenesterecuo,sendodesalientarquefoiumasituaçãoagravadapelodesapare-cimentodocréditobonificadoàaquisição.

Nãopodemosdeixardereferirnofinaldadécadade90,oEstatutoFiscalCooperativo31.Esteestatutoabreapossibilidadeàscooperativasrecorreremaempréstimosnãobonificados,paraaconstruçãodehabitaçõesqueseintegremnosparâmetrosdasHCC (mascomumamajoraçãode20%),bemcomoaaplicaçãodataxareduzidadoIVAebenefíciosfiscais,comoisençãodopaga-mentodeIMTnaaquisiçãodeterrenosedeImpostoMunicipalsobreImóveis(IMI)(sónocasodosprédiosurbanoshabitacionaisemregimedepropriedadecoletiva,desdequedestinadosàocupaçãoprópriaepermanentedoscoopera-dores).Umadasvantagensdesteestatutoésemdúvidaamajoraçãode20%,querquantoàsáreasdosalojamentos,querquantoaoscustosdeconstruçãoevenda,oquepermitiuumacréscimodequalidadedashabitaçõese,ainda,alargaraprocuraaestratospopulacionaiscommaiorpoderdecompra,peloque,váriascooperativaspassaramarecorrermaisaesteestatuto.NasáreasmetropolitanasdeLisboaedoPorto,autilizaçãodesteestatutotempermitido

31 -EstatutoFiscalCooperativo(Lein.º85/98,de16dedezembro).

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aconstruçãodealojamentoscommelhorqualidadeecompreçosabaixodomercadolivre.

Estaincursãopelascooperativasepelosinstrumentoslegaisqueasestru-turamnotocanteàhabitaçãoparece-nosfundamentalparaabordarareivindi-caçãopelodireitoàcidadenacontemporaneidade,nãoobstanteasoscilaçõesqueofenómenocooperativotemvindoa«sofrer»,designadamente,osseusrecuos.Assim,podemosafirmarqueomovimentocooperativoseencontra,atualmente,numasituaçãoparadoxaldecorrentededuasquestões.Aprimeira,implicaqueconsideremosquedopontodevistaideológicoomovimentocoo-perativosefoiafastando,progressivamente,dosprincípiosfundadoresedaspopulaçõesinicialmentevisadas.Atualmente,deparamo-noscom«cooperati-vas-empresas»cujoobjetivoéodeservirasclassesmédias,quedispõemderendimentosmédiosemédios-elevados,que,emalgunscasospoderiaacederaomercadolivre.Ascooperativasencontram-se,assim,afastadasda«ideo-logia popular» ancorada na organização espontânea de atores socialmenteprecarizadosequeprocuravam,naorganizaçãocooperativa,asoluçãoparaosseusproblemasdehabitação,assimcomoummeiodeautorreferenciaçãoedeinclusãosocial.

Asegundaquestãoleva-nosaconsiderarquenacriseatualderedefiniçãodo Estado-Providência, as soluções neoliberais vêm ganhandomais força,tornando-se omercado, por um lado, um importante agente regulador dasdinâmicassociaise,poroutro,aeficiêncianagestãodasempresasprivadascomoomodeloorganizacionalaseguir,favorecendoosinteressesindividuaisem desfavor dos interesses coletivos.A organização cooperativa encontra--se,assim,numaposiçãodesobrevivênciadifícilouderesistênciapassiva,numcontextodeumacontratualizaçãosocialprecáriaeepisódica (os indi-víduosorganizam-se, cadavezmais, em funçãodeobjetivos e deprojetosdecurto-prazo);oEstado«assistencial»tomaaseucargoosgrupossociaismaisprecárioseexcluídos,oquecontribui, também,paraadiminuiçãodasuacapacidadedeauto-organização;omovimentocooperativo,porseulado,deslizouparaumafaltadelegitimidadefaceàsociedadepolítica,nestecasodevidoaumaescolha(ou,justamente,porquenãotinhaoutraalternativapos-sível)afavordalógicadeeficáciadomercado.Ditodeoutraforma,aaçãodomovimentocooperativoestácadavezmaiscomprometidapelointeressedeclassessociais,cujosrendimentosconstituemumcontra-argumentoparaasreivindicaçõesdemedidasdediscriminaçãopositivaemfacedapromoçãocooperativa.

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Neste contexto, resta uma margem muito pequena para a contratuali-zação entre as cooperativas já organizadas e o Estado ou os municípios.Saliente-se,aindaque,oritmoeaagendapolítico-eleitoral,passandopelasnecessidadesdoseleitos locaisapresentarem,rapidamente,osresultadosdasuaaçãopolítica, condicionamasopçõeseasprioridadesdapolíticahabi-tacional, acabandoas fórmulasdeprodução rápidadehabitaçãopororien-tarasprioridadesdoseleitos locais (casosdoProgramaEspecialdeRealo-jamento (PER) e dos Contratos de Desenvolvimento Habitacional (CDH). Refira-se também que, o facto de as grandes empresas de promoção e deconstrução imobiliária, se apresentaremmelhor adaptadaspara atingir eco-nomiasdeescalaesendofinanceiramentemaissólidas,notavelmentenoquedizrespeitoaosprazosderetornodocapitalinvestido,quepodemseralarga-dos,tendeadiminuiradiferençadoscustosdeproduçãodahabitaçãoentrea promoção privada e a cooperativa (esta não tem como objetivo o lucro,maséobrigadaareterumapartedasmais-valiasdemodoapodersuportaroarranquedenovaspromoçõeshabitacionais).

Quantoaoinquilinatocooperativo,estetemestadopraticamenteausente,devido,essencialmente,àfaltadeumfinanciamentomaisatrativoparaestaformadepromoção.Aestepropósito,aFENACHEpropõeacriaçãodeumFundodeGarantiaquepoderiaserarticuladocomumprogramadeapoioàsfamíliasemdificuldade(porexemplo,comoRendimentoMínimodeInser-ção).RelativamenteàrelaçãoentreoEstadoCentraleascooperativas,per-sisteumafaltadeconfiançarecíproca:oprimeiroacusaascooperativasdeseteremdesviadodosgrupossociaisalvodasuaação,umavezqueapromoçãocooperativasedirige,cadavezmais,aosgruposderendimentomédio,peloqueesta situação impedea suaclassificaçãocomo instituiçõesdeutilidadepública(comaexceçãodasCHEs).Ascooperativas,porseulado,atribuemaoEstadotodaaresponsabilidadepelasuasituaçãoatual,notavelmente,porfaltadeajudaspúblicassuficientesnosmomentosemqueaconjunturaeco-nómicalimitouasuaeficáciajuntodosgrupossociaisdemenorcapacidadeeconómica.

Arealidadeatualdosfactosreforçaesteclimadedesconfiançaeperturbatodos os esforços de aproximação e de reformulação que as associações efederaçõesdecooperativasreivindicamaoEstado.Noentanto,osnovospro-gramas habitacionais, caso do PER, têm como objetivo a resolução rápidadoalojamentoprecário,reorientandoasprioridadesdaspolíticasmunicipaishabitacionaisecondicionandoarecomposiçãodomovimentocooperativo.Osmunicípiossão,porprincípio,osparceirosmaisativosemaiseficazesnacola-

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boraçãocomascooperativas.Comefeito,nos«anosdeouro»domovimentocooperativo,estacolaboraçãoestreitaexistiu,apesardediferençassignifica-tivas entremunicípios.No caso em que este partenariado funcionou, duasrazõesjustificamoprotagonismoatribuídopelopoderlocalàscooperativas,porumlado,algumasCâmarasdispunhamdereservasdeterrenoparaurbani-zar(casodeLisboaePorto)ourecorreram,nosprimeirosanospósrevolução,aexpropriaçõeseaaquisiçõesdeterrenos,cedendo-osàscooperativas(como,por exemplo,Matosinhos e outros concelhos do sul do país), por outro, oEstadoCentraleosmunicípiostinhamumpapelmaisdiscretonapromoçãohabitacional.Olugarreservadoàpromoçãocooperativaeramaisexpressivoesuscetíveldeinteressarospoderespúblicos.

Porém,osmunicípiosnuncaexerceramqualquertipodecontrolonasele-ção dos cooperantes ou atémesmo sobre as cooperativas.Mesmono casodasCHEs,oprincípiode seleção fundamenta-sena ideiadequeos custoseascaracterísticasdasconstruções(regulamentaçãodosparâmetrosdimen-sionais,decustosbastantecontrolados,etc.)sãosuficientespara«filtrar»oscooperadores,apesardeestasituaçãoser,atualmente,postaemcausa.Apesardasalteraçõeslegislativaspermitiremumamaiorflexibilizaçãodosparâme-trosdimensionaisedecustosdosalojamentos,paraalémdecontemplaremo financiamento de garagens, de arrecadações, de equipamentos sociais ecomerciais,asCHEsparapoderemcumprirospreçosimpostospeloIHRU,serviram-sedeváriasalternativas,sendoasmaisfrequentesatransferênciadaresponsabilidadeedoscustosdosacabamentosinterioresdosfogosparaosproprietáriosou,ainda,osdéficesfinanceirosseremcobertoscomavendadasáreascomerciaisexistentesnosempreendimentos.

Face ao sistemaque regulamentaoordenamentodo território eourba-nismo, a recenteLei deBases doOrdenamento doTerritório não introduzqualqueralteraçãosignificativaaoníveldaregulamentaçãodossistemasdepartenariadoentreodomíniopúblicoeoprivado.Assim,queraoníveldosprivados,querdascooperativas,persisteumbloqueioquantoàpossibilidadedecriaçãodesociedadesmistasdeurbanização(municípios/particulares/coo-perativas), quepermitiria relançar adinâmica cooperativa, segundooprin-cípio fundadoreespecíficodestemododepromoçãohabitacional—cons-truirhabitação com os habitantes,emvezdeconstruiralojamentos para os habitantes.EsteéodadocríticoquetemvindoacaraterizaraprogressãodainiciativahabitacionalcooperativaemPortugal, sendo tambémodadomasevidentedoescamoteamentododireitoàcidade fundadonosprincípiosdocooperativismo.

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4. As CoopeRAtivAs de hAbitAção nA ÁReA metRopolitAnA do poRto

Amaioria,dascooperativasdaÁreaMetropolitanadoPorto(AMP),foicriadaentre1974-1978,na sequênciadoapoioentãodadopeloGovernoepelasCâmarasMunicipais,talcomoaconteceu,aliás,aoníveldopaís.Rela-tivamenteàsuadistribuiçãogeográfica,verifica-sequesãoosconcelhosdoPortoedeMatosinhosquedetêmomaiornúmerodefogosconstruídosporcooperativas,graçasaoapoiodadopelasCâmaras,nomeadamente,nadispo-nibilizaçãodeterrenos,naaprovaçãodosprojetosdeconstruçãoenaisençãodetaxasmunicipais.UmadasvantagensdoestatutoFiscalCooperativoésemdúvidaamajoraçãode20%,querquantoàsáreasdosalojamentos,querquantoaoscustosdeconstruçãoevenda,oquepermitiuumacréscimodequalidadedashabitaçõese,ainda,alargaraprocuraaestratospopulacionaiscommaiorpoderdecompra,peloque,diversascooperativaspassaramarecorrermaisaesteestatuto,comofoiocasodeváriascooperativasdaAMP.

Atualmente, existemnaAMP, cerca de 30 000 alojamentos construídospelascooperativasentre1976e2011,emconjuntos residenciaiscomreco-nhecidosníveisdequalidadeaonívelnão sódashabitações,mas também,deespaçosexterioreseequipamentossociais,muitosdosquaisinexistentesemHCC,qualidadeessaexpressanonúmerodeprémiosnacionaisquetêmsidoatribuídosdesde1988,peloatualInstitutodeHabitaçãoeReabilitaçãoUrbana(IHRU),anteriorInstitutoNacionaldeHabitação(INH).Estescon-juntosresidenciaisforaminovadoresnaparticipaçãodosprópriosutentesemtodooprocesso.Naverdade, a estratégiadedesenvolvimentodosprojetoscooperativos,queassociaapoupançapréviadasfamíliasaoutrasformasdefinanciamento—nomeadamenteaslinhasdecréditobonificadasàconstru-çãoconcedidaspeloINH/IHRU—possibilitaacriaçãodeumcontextodeintervençãodosconsumidores,quernoprojeto,quernagestãoposteriordoespaço construído. Esta situação contribui, significativamente, não só paraumamelhoriadaqualidadedoespaçohabitacionaledosespaçosenvolventes,comoainda,paraumagrandesatisfação/apropriaçãodosbairros,porpartedosmoradores.Saliente-se,também,queapromoçãocooperativatempossibili-tadoamisturadegrupossociais.

ApolíticadeapoioàscooperativasporpartedoEstadotemtido«altosebaixos»,devidoaodesajustamentodas condiçõesdefinanciamento, à faltadesolosapreçosadequados,àperdadepoderdecompradaclasse«média/baixa»,aoaumentodecustodenaturezafiscal,processualeburocrática,com

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consequências,noscustosfinaisdahabitação.Odinamismoemtermoscons-trutivos,comprovaqueocooperativismotempotencialidadesecaracterísticasque o vocacionam para um papel fundamental numa política de habitaçãodinâmica e inovadora, sendo parceiros fundamentais para proporcionar oacessoàhabitaçãodeinteressesocialcomqualidadeeapreçosvantajosos,sobretudosedispuseremdosindispensáveis(eviáveis)apoiosinstitucionais.

Naverdade,ascooperativasdispõemdequadrosexperientesnapromo-çãohabitacional,têmumbomrelacionamentocomosmunicípios,possuemumpotencialdepoupança-habitação importante eoprocessodepromoçãocooperativogaranteumamelhoradequaçãodosalojamentosàsnecessidadesdasfamílias.Outroaspetoasalientaréofactodeacooperativapermitirumaadequadagestãodoseuparquehabitacionaledosespaçosexteriores,fatoresdecisivosparaamanutençãodasurbanizações.

Numaalturaemquetantosefaladafaltadequalidadeedegradaçãodoespaçoconstruído,sobretudodasáreascentraisedasnovasáreaspredominan-tementeresidenciaisdasperiferiasurbanas,nãopodemosdeixardesalientaraqualidadeurbanadealgunsconjuntosresidenciais,promovidospelascoo-perativasdaAMP,ondeseconseguiuumequilíbrioentreoespaçoresidencial(com uma qualidade arquitetónica assinalável), a implantação de equipa-mentosdelazeredealgumasatividadeseconómicas,constituindoconjuntossocialmenteintegradoseintegradores.

Outradasáreasemqueascooperativasrevelampotencialidadesacrescidasénaáreadagestãodeserviçosdemanutençãoeconservaçãodoedificado,espaçosenvolventeseserviçosdeapoioàpopulação,sendoaliásumaáreaqueascooperativastêmmostradoasuadisponibilidadeparaassegurarestetipodeserviços,mesmoemurbanizaçõesconstruídasporoutrosagentespúblicos.Atítulomeramenteexemplificativo,podemosreferiralgunsempreendimentosdequalidade,queconstituemverdadeirostroçosdenovacidadebemhabitadae vitalizada, como por exemplo, as urbanizações daBarranha, doCarriçal(prémioINH1990),daAzenhadeCima(prémioINH1991),naSenhoradaHora, concelho deMatosinhos, Quinta do Sol emValbom, Gondomar, dacooperativa SeteBicas; a urbanização doForno emRioTinto,Gondomar,dacooperativaMãosàObra(prémioINH,1989);aQuintadaBelaVista,naMadalenaemVilaNovadeGaia,daURBICOOPE;acidadecooperativadaPrelada,noPorto,promoçãodeumauniãodecooperativas;aurbanizaçãodaPontedaPedra,emLeçadoBalio,primeiroempreendimentohabitacionaldeconstruçãosustentável(prémioIHRU2007),promoçãodauniãodascoope-rativasSeteBicas,CETAeNortecoope; o conjunto habitacional daBouça

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(prémioIHRU2007),noPorto,projetodoarquitetoSizaVieira(noâmbitodoSAAL),quefoiterminadopelauniãodecooperativas,constituídapelaSeteBicas,CETAeantigaassociaçãodemoradoresdaBouça;oconjuntohabi-tacionaldaSACHEdoarquitetoManuelCorreiaFernandesemAldoar,noPorto,damesmacooperativaoempreendimentodeSerralvesemLordelodoOuro,queinclui6edifíciosnovoseareabilitaçãodoedifíciodeescritóriosdaantigafábricadeLanifíciosdeLordelo(paraescritóriosesaladeexposições),tambémdoarquitetoManuelCorreiaFernandeseaurbanizaçãodacoopera-tivadosfuncionáriosjudiciaisemValbom,Gondomar.

Umagrandepartedasurbanizaçõescooperativasdesenvolveu-seemter-renosnãourbanizadosdasfreguesiasdaperiferiae,portanto,desinseridosdamalhaurbanapré-existente,comumadimensãoedensificaçãoporvezesassi-nalável.Devidoaestascircunstânciaselasacabaramporconstituiro«motordearranque»paraaurbanizaçãoposteriordasáreasondeseimplantaram.Estasurbanizaçõessãoconstituídas,essencialmente,poredifíciosmultifamiliares.Noentanto,existetambémumconjuntosignificativodemoradias,ocorrendoporvezesurbanizaçõesmistas,commoradiaseprédiosmultifamiliares.

Saliente-se,ainda,quemuitasdestasurbanizaçõesnãoselimitamaáreasexclusivamente residenciais, possuindo áreas de lazer e para a prática dedesportos,paraalémdeáreascomerciaiseequipamentosescolares(crecheeATL).Estascaracterísticasconferemaestasurbanizaçõesumaqualidadedevidaurbanaímpar,frutodaspreocupaçõessociaisquecaracterizamomovi-mentocooperativo,qualidadequecontrasta,muitasvezes,comasdasáreasenvolventes.Assim,apromoçãocooperativapelasuaqualidadeconstrutiva,inserçãourbanística,boagestãoemixsocial,apresentaumacapacidadequepode ser consideradacomoumaopçãoestratégicaparamuitosmunicípios,sendoterrenoprivilegiadodematerializaçãodautopiadodireitoàcidadeparatodos.

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Aquisiçãoeinfraestruturasdeterrenos—Decreto-Lein.º385/89,de8denovembro.

ConstruçãodeHabitaçãoaCustosControladosparavenda—Decreto-Lein.º220/83,de26demaio.

PromoçãoCooperativaparavendaacustoscontrolados—Decreto-Lein.º145/97,de11dejunho.

ConstruçãoouAquisiçãodeHabitaçãoaCustosControladosparaArren-damento—Decreto-Lein.º110/85,de17deabril.

Promoçãoparaarrendamento—Decreto-Lein.º76/85,de11demarço.