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As Conchas de Maria – Um relato de experiência com artes visuais a partir da Educação Infantil - Marcelo José. Maria de Castro
As Conchas de Maria – Um relato de experiência com artes visuais a partir da Educação Infantil
Marcelo José Maria de CASTRO1
1 Formado em Artes Plásticas pela Escola Panamericana de Artes. Docente na Escola Panamericana de Artes. Graduando em Artes Visuais no Centro Universitário Ítalo Brasileiro (Uniítalo).
E-mail: [email protected]
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo relatar uma experiência
educacional da área de artes visuais na Educação Infantil, bem como
abrir uma porta para o processo criativo de uma série de quadros
pintados pelo professor dessa experiência educativa com tema
específico de conchas. Essa coleção é denominada “As Conchas de
Maria”. Mais especificamente o estudo buscou apontar as principais
influências filosóficas e artísticas que inspirou a ação educativa e as
obras dela derivadas e também destacar o processo de criação e
confecção da aula e da série de quadros inspirada a partir dela. No
âmbito educacional, foi possível concluir que o trabalho de um professor,
seja ele da Educação Infantil ou de outro nível de ensino, se faz
importante para que a sociedade cumpra sua tarefa de formar indivíduos
esclarecidos, autônomos, sensíveis e criativos. Ao planejar e ministrar
uma aula em que o aluno é ativo no processo de ensino e
aprendizagem, tornando-se protagonista na construção do
conhecimento abriu-se uma porta para a emancipação humana. Essa
tarefa inclui a educação de sujeitos capazes de refletir sobre obras de
arte, fruí-las e ,quem sabe, produzi-las. Ainda é importante destacar o
processo lúdico utilizado na aula, que respeitou o universo infantil e a
utilização da a abordagem sócio-cultural proposta por Ana Mae Barbosa.
Palavras-chave: Pintura; Educação Infantil; Artes Visuais.
ABSTRACT
This article aims to report an educational experience of the visual arts
area in Early Childhood Education, as well as to open a door to the
creative process of a series of paintings painted by the teacher of this
educational experience with a specific theme of shells. This collection is
called "The Shells of Mary". More specifically the study sought to point
out the main philosophical and artistic influences that inspired the
educational action and the works derived from it, as well as highlight the
process of creation and confection of the class and the series of
paintings inspired from it. In the educational context, it was possible to
conclude that the work of a teacher, whether it be in Early Childhood
Education or another level of education, is important for society to fulfill
its task of educating enlightened, autonomous, sensitive and creative
individuals. In planning and delivering a class in which the student is
active in the process of teaching and learning, becoming a protagonist in
the construction of knowledge has opened a door to human
emancipation. This task includes the education of subjects capable of
reflecting on works of art, as well as enjoying them and who knows how
to produce them. It is still important to highlight the playful process used
in class, which respected the children's universe, as well as the socio-
cultural approach proposed by Ana Mae Barbosa.
Keywords: Painting; Child education; Visual arts.
1. INTRODUÇÃO
As pinturas têm como projeto social enriquecer a vida,
proporcionando sentido por meio da fruição do sublime e o do belo. O
ser humano tem a necessidade de apreciar arte geralmente
experimentada quando estamos em contato com natureza da qual
fazemos parte. Portanto, a arte visa despertar a reflexão sobre a
capacidade humana no processo de recuperar o contato e perceber
poeticamente o mundo e as nuances de sua natureza.
Nesse sentido a escola, por meio da área das artes visuais, seria
um local privilegiado para a formação de indivíduos que possam fruir e
decodificar uma obra de arte contribuindo para o desenvolvimento de
uma sociedade artisticamente evoluída e consequentemente justa,
digna, próspera e afortunada.
Numa análise didática, sabe-se que o trabalho com temas
geradores oportuniza um processo de ensino e aprendizagem a partir da
vida cotidiana dos educandos e assim sendo alavanca a busca de uma
consciência crítica. As abordagens do processo de ensino
aprendizagem sociocultural e construtivista destacam bastante a
importância desse tipo de ação pedagógica.
O tema das conchas na série de pinturas “As conchas de Maria”
surgiu a partir da elaboração de uma aula de artes visuais com foco na
observação de um quadro. Ao aplicar essa aula numa escola de
educação infantil, mais especificamente para alunos de três a cinco
anos, foi sugerido num primeiro momento relembrar de maneira lúdica o
colo da mãe por meio do barulho que a concha emitia em seu interior.
Após uma experiência pedagógica completa, ou seja, uma aula
com o tema gerador “conchas”, foi realizada a pintura de quadros em
aquarela pelos alunos a partir da vivência com várias conchas
verdadeiras, consideradas natureza morta esculpida pela água, fóssil do
mar.
A partir da metodologia triangular de ensino de artes proposta por
Ana Mae Barbosa conseguimos envolver as crianças em um mundo
lúdico em que se explorou vários mecanismos sensoriais para reflexão e
fruição da escultura Pietà de Michelângelo, porém adaptado na imagem
de um quadro de uma concha cujo a forma se assemelhava à mesma. A
adaptação da referida obra foi feita pelo professor do eixo de trabalho
“Artes Visuais” das próprias crianças e autor deste artigo.
O objetivo geral deste estudo consiste em relatar uma experiência
educacional da área de artes visuais na Educação Infantil. Tal objetivo
foi desdobrado em dois objetivos específicos sendo a) apontar as
principais influências filosóficas e artísticas que inspirou a ação
educativa e as obras dela derivadas e b) destacar o processo de criação
e confecção da aula e da série de quadros inspirada a partir dessa
experiência pedagógica.
Metodologicamente, a pesquisa em artes, em virtude do caráter
conceitual, porque constitui a cultura humana, leva a adoção do método
de pesquisa qualitativa. O método qualitativo difere, em princípio, do
quantitativo à medida que não emprega um instrumental estatístico
como base do processo de análise de um problema.
Aqui é utilizado um estudo descritivo do tipo “relato de
experiência”, que consiste na descrição e análise de experiências
desenvolvidas em ambientes educacionais, que nesse caso específico
foi elaborado no contexto da experiência docente do autor do artigo na
Educação Infantil.
Para melhor organização e leitura o trabalho foi dividido em duas
partes, sendo a primeira denominada “As Conchas de Maria” com a
função de apresentar o tema “concha” que embasou não só a aula para
os alunos da Educação Infantil como também a série de quadros que o
professor desenvolveu, e a segunda parte denominada “A aula de artes
das conchas” para apresentar e discutir a experiência pedagógica de um
professor de artes visuais de uma escola de educação infantil.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1. As conchas de Maria
se pode mais sair. (Gaston Bachelard)
Inicialmente, se faz necessário destacar aqui que “As conchas de
Maria” é uma série de quadros constituída por 11 pinturas de tamanho
80cm x 80cm x 4cm com a técnica de óleo sobre tela.
O processo criativo dessa série de pinturas é autobiográfica. A
concha é um tema recorrente em minha vida, desde criança elas foram
aparecendo em suas diversas faces. Uma das vivências mais
significativas no período da minha infância foi a de escutar a concha e
imaginar um universo particular. É importante considerar que
“a memória pertence ao passado. É um registro, sempre que evocamos ela se faz presente, mas permanece intocável como um sonho. A percepção do real tem a concreteza, realidade física, tangível. Mas como os instantes se sucedem feito tique-taques do relógio, eles vão se transformando em passado, em memória, e é tão inaferrável como um instante nos confins do tempo. A deformação é a expressividade da forma.” (LAGNADO, 2000, p. 45 apud Edith Derdyk, 2004, p.165)
Entretanto, a temática das conchas reaparece posteriormente no
âmbito profissional. Já formado em curso de artes e atuando na carreira
docente, o tema surgiu na preparação de uma aula. Precisava traduzir o
processo criativo e artístico dos alunos de uma escola com abordagem
pedagógica construtivista em um presente para o dia das mães. Decidi
que esse processo resultaria então num quadro em aquarela. Cada
aluno pintaria seu quadro após uma vivência pedagógica e depois ele
seria dado de presente para suas mães.
Como se tratava das comemorações do “Dia das Mães”, a
iniciativa de me espelhar em Michelangelo foi fazer uma releitura da
Pietà que representa o signo materno no mundo católico. Fui motivado
pelos grandes pintores que fizeram releituras de mestres anteriores ao
seu tempo, porém mantendo o mesmo assunto da obra.
Foi realizada por mim, professor da turma, a pintura abstrata
expressionista concebendo o mesmo processo criativo de Michelangelo,
que visualizou uma figura materna protegendo seu filho, porém dentro
da forma de uma concha modelo verdadeira, essa esculpida pela
natureza. Batizei minha obra também com o nome Pietà.
O processo de criação foi influenciado diretamente pelo modo
como Michelangelo enxergava o bloco de mármore. Assim, por revelar
as fantasias proporcionadas por objetos oníricos, a concha
representando a abstração da Pietà foi o fio condutor para que as
crianças entendessem a imagem por meio dos sentidos e da memória
afetiva.
Figura 1: Pietà de Michelangelo Figura 2: Pietà de Marcelo Maria de Castro
Fonte: www.guiageo-europa.com/vaticano/pieta.htm Fonte: arquivo pessoal de Marcelo Maria de Castro
Na vivência de fruir a concha, a criança começa um processo de
exteriorização de suas fantasias numa experiência lúdica em forma de
aquarela, ou seja, ao desfrutar de toda a potencialidade formativa da
concha (imagem, som, tato) ela mesma pôde produzir sua própria
concha e também sua própria arte.
Para Bachelard (1993, p.119) “a melhor marca da admiração é o
exagero. Já que o habitante da concha espanta, a imaginação não vai
demorar a fazer sair da concha seres espantosos, seres mais
espantosos que a r i .”
A fruição teve um caminho percorrido pelo lúdico e as crianças
entenderam como os dois artistas conceberam as suas referidas Pietàs,
incluindo, entre outras experiências, tocar na concha mergulhada na
água e refletir sobre a mesma que agora foi transformada do
tridimensional em bidimensional (concha verdadeira em concha
pintada).
Em relação ao conceito de fruição, estudos realizados por Alves
(2011, p. 98) afirmam que “S t Agostinho já dizia que a fruição, do
latim “fr i”, significa desfrutar, amar uma coisa por causa dela mesma
(dielidere propter se)”. Ao fruir o som da concha a criança pôde
descobrir um caminho para a atmosfera do útero materno encontrando o
mesmo sentido protetor que há tanto na Pietà de Michelangelo quanto
na concha do mar.
Passando do universo pedagógico e profissional para a esfera
artística, a pintura desenvolvida para ser utilizada na aula com as
crianças se tornou o primeiro de onze quadros da série “As Conchas de
Maria”. Faz-se importante destacar aqui que as obras pintadas tem
influência da fenomenologia por meio dos escritos de Gaston Bachelard,
filósofo e poeta francês com tradição epistemológica construtivista e
histórica.
Artisticamente, a experiência da série “As de Concha de Maria”
tem a ousadia de promover ao espectador um olhar do útero materno. A
energia da deusa deméter está muito presente na série, mas propondo
uma visão ao espectador de uma sublime natureza em que as conchas
o transportem para um lugar inédito, porém envolvido com uma
atmosfera de acolhimento e proteção.
A linguagem das pinturas dessa série exalta as formas e as cores
que, em uma composição cria as imagens da concha num ambiente
surrealista e transcendente revelando sua imagem tratada de modo
expressionista.
Como a poética da série das conchas é autobiográfica, também
busquei com elas ter compreensão plena sobre os acontecimentos da
vida. As conchas em maior ou menor escala nos transmite uma
sensação de lente de aumento diante de uma “paisagem marinha
fossilizada”, mas que são transportadas para fatos da vida cotidiana.
2.2. A aula de artes das conchas
O verdadeiro limite do desenho não implica de forma alguma o limite do papel, nem mesmo pressupondo margens.
(Mario de Andrade)
O método de ensino triangular proposto por Ana Mae Barbosa foi a
âncora pedagógica para a aula acontecer, pois segundo essa estudiosa
da metodologia do ensino da arte visuais no contexto escolar
“o que a arte na escola principalmente pretende formar o conhecedor, fruidor, decodificador da o ra de arte. ma sociedade s artisticamente desenvolvida quando ao lado de uma produ ão art stica de alta qualidade h tam m uma alta capacidade de entendimento desta produ ão pelo p lico. (BARBOSA, 2007, p.33).
A triangulação composta por “contextualizar”, “fruir” e “fazer”
aconteceram a partir do processo de criação de Michelangelo, o
idealizador da escultura Pietà. O referido artista, no momento de
conceber a obra declarava que já enxergava a imagem da mãe de cristo
dentro do bloco de mármore e a forma surgiu retirando o que não era
necessário.
A “contextualização” aconteceu no primeiro momento da aula em
que o professor iniciou uma conversa com os alunos sobre o tema das
conchas, introduzindo alguns aspectos conceituais e obtendo
impressões das crianças sobre suas experiências e conhecimentos em
relação àquele objeto.
O “fruir” se deu a partir dos aspectos sensoriais dos alunos (visão,
tato e audição), iniciando pela observação do quadro Pietà pintado pelo
professor e exposto na sala, depois o manuseio de diversas conchas
verdadeiras em potes de água e, por fim, a audição do som que vem de
dentro da concha.
O “fazer” ficou por conta da confecção de quadros em aquarela
onde cada aluno deveria pintar sua própria concha a partir da vivência
pedagógica oportunizada.
Em linhas gerais, o trabalho pedagógico permitiu que as crianças
desfrutassem da obra de várias maneiras, pois puderam sentir as
conchas na água, fruindo pelo tato; ouvir o barulho das conchas,
desfrutando-a pela audição; apreciar a concha representada na tela, por
meio da visão.
A etapa seguinte do procedimento de ensino, em que houve a
elaboração individual de uma pintura em aquarela de uma concha, teve
como destaque o fato de que a concha foi trazida de casa como
Fonte: arquivo pessoal de Marcelo Maria de Castro Fonte: arquivo pessoal de Marcelo Maria de Castro Fonte: arquivo pessoal de Marcelo Maria de Castro
presente da mãe do aluno. Nesse momento o professor possibilitou uma
vivência formativa em que
“o desenho vai da ação à representação na medida em que evolui da sua forma de exercício sensório-motor para a sua forma de jogo simbólico. O desenho entra na categoria de jogo simbólico ou imaginário quando permite à criança exprimir um pensamento individual.” (MÈREDIEU, 1956, p. 33 apud Edith Derdyk, 1974, p. 71)
A partir dessa proposta pedagógica conseguimos envolver a
criança em um universo lúdico em que pudemos explorar vários
mecanismos sensoriais para fruição da obra Pietà de Michelangelo,
ressignificada em uma pintura de concha. Nesse envolvimento entre
aluno e obra de arte foi fundamental a criação de um mundo lúdico
porque
“um currículo que interligasse o fazer artístico, a historia da arte e a análise da obra de arte estaria se organizando de maneira que a criança, suas necessidades, seus interesses e seu desenvolvimento estariam sendo respeitados e, ao mesmo tempo, estaria sendo respeitada a matéria a ser aprendida, seus valores, sua estrutura e sua contribuição especifica para a cultura. (BARBOSA, 2007, p.35)
Focando no trabalho pedagógico realizado com as crianças e a
relação que cada um estabeleceu com as conchas nesse processo, foi
proposto que o quadro em aquarela fosse dado de presente às suas
mães no dia da comemoração do dia das mães.
Figura 3: Contextualizar Figura 4: Fruir Figura 5: Fazer
3. CONCLUSÃO
A brincadeira lida com experiências através de situações artificialmente criadas, no ensejo de dominar a realidade.
(Winnicott)
O relato de experiência apresentado procurou mostrar como o
trabalho de um professor com alunos da Educação Infantil se faz
importante para que a sociedade cumpra sua tarefa de formar indivíduos
esclarecidos, autônomos, sensíveis e criativos. Essa tarefa inclui a
educação de sujeitos capazes de refletir sobre obras de arte, bem como
fruí-las e, quem sabe, produzi-las.
Em quatro anos trabalhando com educação infantil, pude observar
como é importante uma decodificação lúdica do contexto da obra para a
criança ter uma reflexão mais apurada da arte. Podemos considerar um
assunto próximo de seu universo escolhendo obras cujo suas vivências
tragam maiores signos para o desenvolvimento da atividade. Enfim,
transformar a tridimensionalidade da concha em pintura possibilitou uma
reflexão do espaço pedagógico de maneira lúdica e onírica no campo
visual.
Para os educandos, quanto maior for suas reflexões sobre as
obras maiores serão as possibilidades de criação e autonomia sobre o
seu fazer. Entender o assunto da obra é para a criança uma maneira de
Figura 6: Aquarelas pintadas pelos alunos
Fonte: arquivo pessoal de Marcelo Maria de Castro
Fonte: arquivo pessoal de Marcelo Maria de Castro
andar com mais segurança em um ambiente já experimentado na sua
vida. Nesse caso com a Pietà, exploramos o colo da mãe, bem como a
proteção materna.
Ao planejar e executar uma aula em que o educando é ativo no
processo de ensino e aprendizagem, tornando-se protagonista na
construção do conhecimento abre-se uma porta para a emancipação
humana. Ainda se faz importante destacar o processo lúdico utilizado
que respeita o universo infantil, bem como a abordagem sócio-cultural
proposta por Ana Mae Barbosa.
A experiência pedagógica relatada nesse artigo incluiu a pintura de
um quadro de concha também denominado Pietà, que serviu como
inspiração inicial para a criação de uma série de pinturas denominada
“As conchas de Maria”, constituída por 11 obras de tamanho 80cm x
80cm x 4cm com a técnica óleo sobre tela.
Figura 7: Série de quadros "As Conchas de Maria" de Marcelo Maria de Castro
REFERÊNCIAS
ALVES, Rubens. Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1993. BARBOSA, Ana Mae. Imagem no ensino da arte. São Paulo Editora Perspectiva, 2007. DERDYK, Edith. Formas de pensar o desenho: desenvolvimento do grafismo infantil. Porto Alegre: Editora Zouk, 2010.