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1 Entremeios: revista de estudos do discurso. n.8, jan/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > AS CARTILHAS NA SOCIEDADE DO CONHECIMENTO 1 Mariza Vieira da Silva Escola de Educação e Ciências Humanas Curso de Letras Universidade Católica de Brasília EPTCT Q.S.7 Lote 1 719660-900 - Águas Claras Distrito Federal Brasil [email protected] Resumo. Este trabalho visa, a partir da perspectiva teórica da Análise de Discurso, compreender um dos modos de circulação do conhecimento em nossa sociedade, tomando como objeto de estudo as cartilhas. Observamos, através da análise de um corpus específico, como se dá o encontro de uma atualidade com uma memória em um discurso pedagógico deslocado, reorganizado, criando condições para a emergência de novas formas de disciplinarização do sujeito cidadão. Palavras-chave. Cartilhas; sociedade do conhecimento; velhice; análise de discurso; sujeito leitor. Abstract. This paper aims, from the theoretical standpoint of the Discourse Analyses, to understand one of the means of circulation of knowledge in our society, focusing on reading booklets. We have observed, through the analysis of a specific corpus, how contemporaneity meets recollection in a dislocated, reorganized pedagogical discourse, paving the grounds for the advent of new ways of domesticating the citizen-subject. Keywords: Reading booklet; knowledge society; old age; discourse Analysis; subject-reader. 1. Introdução Vivemos nas últimas décadas, em relação ao discurso pedagógico, que tem como locus institucional a Escola, impasses, dilemas, conflitos: movimento das contradições, que determinam o processo mais amplo da escolarização no Brasil. A Escola vem sendo, cada vez, mais cobrada pelo seu descompasso em relação às demandas da sociedade, aos avanços das tecnologias de linguagem que produzem novas práticas de 1 A primeira versão deste trabalho foi apresentada no 61º Seminário do GEL - Grupo de Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo, realizado na USP - Universidade de São Paulo, em julho de 2013, em um Simpósio intitulado “Discurso, ciência, circulação”, que teve como objetivo proporcionar uma reflexão sobre o discurso da ciência e o modo como ele circula na sociedade, com base no dispositivo teórico da Análise de Discurso. Participaram desse Simpósio: José Horta Nunes (coordenador) e Cláudia C. Pfeiffer.

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Entremeios: revista de estudos do discurso. n.8, jan/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >

AS CARTILHAS NA SOCIEDADE DO CONHECIMENTO1

Mariza Vieira da Silva

Escola de Educação e Ciências Humanas – Curso de Letras

Universidade Católica de Brasília

EPTCT Q.S.7 Lote 1 – 719660-900 - Águas Claras – Distrito Federal – Brasil

[email protected]

Resumo. Este trabalho visa, a partir da perspectiva teórica da Análise de

Discurso, compreender um dos modos de circulação do conhecimento em

nossa sociedade, tomando como objeto de estudo as cartilhas. Observamos,

através da análise de um corpus específico, como se dá o encontro de uma

atualidade com uma memória em um discurso pedagógico deslocado,

reorganizado, criando condições para a emergência de novas formas de

disciplinarização do sujeito cidadão.

Palavras-chave. Cartilhas; sociedade do conhecimento; velhice; análise de

discurso; sujeito leitor.

Abstract. This paper aims, from the theoretical standpoint of the Discourse

Analyses, to understand one of the means of circulation of knowledge in our

society, focusing on reading booklets. We have observed, through the

analysis of a specific corpus, how contemporaneity meets recollection in a

dislocated, reorganized pedagogical discourse, paving the grounds for the

advent of new ways of domesticating the citizen-subject.

Keywords: Reading booklet; knowledge society; old age; discourse

Analysis; subject-reader.

1. Introdução

Vivemos nas últimas décadas, em relação ao discurso pedagógico, que tem como

locus institucional a Escola, impasses, dilemas, conflitos: movimento das contradições,

que determinam o processo mais amplo da escolarização no Brasil. A Escola vem

sendo, cada vez, mais cobrada pelo seu descompasso em relação às demandas da

sociedade, aos avanços das tecnologias de linguagem que produzem novas práticas de

1 A primeira versão deste trabalho foi apresentada no 61º Seminário do GEL - Grupo de Estudos

Linguísticos do Estado de São Paulo, realizado na USP - Universidade de São Paulo, em julho de 2013,

em um Simpósio intitulado “Discurso, ciência, circulação”, que teve como objetivo proporcionar uma

reflexão sobre o discurso da ciência e o modo como ele circula na sociedade, com base no dispositivo

teórico da Análise de Discurso. Participaram desse Simpósio: José Horta Nunes (coordenador) e Cláudia

C. Pfeiffer.

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leitura e de escrita: pela qualidade do ensino que produz. Observa-se, contudo, fora dos

muros escolares, uma pedagogização da vida em sociedade através da fala do

especialista, que coloca o cidadão, pelo modo como circula o conhecimento, na posição

de eterno aprendiz, despossuído de todo e qualquer conhecimento necessário às práticas

cotidianas de cada um. Esse processo de escolarização extensivo vem adotando, na

sociedade brasileira, com frequência, métodos e técnicas, bem como organização e

funcionamentos consagrados por um saber-fazer próprio da Escola. No momento, então,

em que o saber escolar e seus instrumentos linguísticos perdem credibilidade pela

alegada defasagem em relação ao desenvolvimento da ciência e das tecnologias,

podendo, pois, ser adquirido em outro lugar através de conhecimentos mais rentáveis,

esse mesmo conhecimento científico passa a circular na sociedade sob formas advindas

da Escola, como as cartilhas.

Nesse contexto, este trabalho tem como objetivo, a partir da perspectiva teórica

da Análise de Discurso, refletir sobre os modos de circulação do conhecimento em

nossa sociedade, tomando como objeto de estudo a cartilha, enquanto um objeto

histórico e discursivo. Como se produz a construção histórica – e imaginária – desse

objeto como instrumento de divulgação do conhecimento em nossa sociedade, e quais

os efeitos-leitor que produz? Como se dá a migração de sentidos entre o discurso

pedagógico e o discurso da divulgação no encontro de uma atualidade e uma memória,

no espaço-tempo da urbanização?

Pêcheux (1990a) ao analisar um acontecimento discursivo, enquanto um o

encontro de uma memória com uma atualidade, que remete a conteúdos perfeitamente

transparentes e profundamente opacos, coloca em questão o estatuto das discursividades

aí presentes, em que se entrecruzam “proposições de aparência logicamente estável,

suscetíveis de respostas unívocas (é sim ou não, é x ou y etc.) e formulações

irremediavelmente equívocas” (Pêcheux, 1990a, p. 28). A proliferação de cartilhas em

nossa sociedade, fora do espaço escolar, principalmente nas duas últimas décadas, para

disseminar o conhecimento, parece ser um observatório interessante para acompanhar e

compreender esse entrecruzamento de discursividades. Para tanto, tomamos como

corpus, para descrição-análise dos funcionamentos linguístico-discursivos, pelos quais

se atinge os processos discursivos, quatro cartilhas sobre um mesmo tema: o do

envelhecimento. Na constituição do corpus não objetivamos a exaustividade em relação

ao número de cartilhas analisadas enquanto um objeto empírico, mas a exploração de

possibilidades de compreensão de um campo de estudo e pesquisa: o da circulação do

conhecimento.

2. Cartilha: sujeito, língua, história

A cartilha é um manual didático e um instrumento linguístico, que descreve e

instrumentaliza a língua (AUROUX, 1992), conferindo-lhe uma representação e, ao

mesmo tempo, constitui-se em um manual de comportamento e de conduta, de

conselhos morais, de amor à família e à Pátria, de rememoração dos feitos considerados

dignos de serem lembrados por toda uma nação, visando à formação de um sujeito

urbano escolarizado (PFEIFFER, 2001a), adequado aos valores dominantes em um tipo

determinado de sociedade. Ela coloca em funcionamento diferentes formações

discursivas, em que se pode observar um deslizamento de sentidos entre diferentes

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discursos, construindo novas formas de gestão do político nas práticas sociais. Trata-se

de um objeto específico para o ensino e aprendizado da leitura e escrita, que se constitui

no século XIX, em meio a uma variedade de escritos, gêneros textuais, recursos

didáticos, utilizados na difusão da leitura e da escrita2.

No Brasil, as primeiras “Cartas” ou “Cartinhas” foram produzidas em Portugal,

mas delas sabemos pouco, bem como dos demais materiais didáticos destinados à

escolarização elementar dos brasileiros. O século XIX é a referência quando se trata de

construir arquivos da perspectiva histórica (MACIEL, 2002). Segundo Mortatti (2000),

ao longo desses mais de 100 anos, a cartilha, embora sofrendo alterações de natureza

didático-pedagógica, e sendo questionada pelas teorias construtivistas e interacionistas,

[...] permaneceu até os dias atuais, assim como conservou-se intocada sua

condição de imprescindível instrumento de concretização de determinado

método, ou seja, da seqüência necessária de passos predeterminados para o

ensino e a aprendizagem iniciais de leitura e escrita, e, em decorrência, da

configuração silenciosa de determinado conteúdo de ensino, assim como de

certas também silenciosas, mas efetivamente operantes, concepções de

alfabetização, leitura, escrita, texto e linguagem/língua (MORTATTI, 2000,

p. 48).

Interessante como esses questionamentos, que se dão a partir de 1980, levam,

muitas vezes, a um movimento paradoxal entre eles a construção de cartilhas

construtivistas ou sociointeracionistas - ou mesmo de materiais construídos pelos

próprios professores -, que seguem a estrutura e o funcionamento das cartilhas ditas

tradicionais, como diz Mortatti (2000). Observa-se também, como parte desse

movimento, um apagamento do termo “cartilha”, quando se pretende uma alfabetização

inovadora metodologicamente, antes mesmo dessas teorias entrarem em voga. Esse

apagamento, no entanto, parece fortalecer sua presença no discurso pedagógico por um

imenso trabalho de formulações, trabalhando uma opacidade sempre presente nesse

instrumento linguístico-discursivo, ao trabalhar a relação língua-sujeito-história, que

atravessa esse retorno da cartilha, agora dirigida ao sujeito-cidadão em nossa sociedade.

O estudo de Maciel, “Cartilhas e a história da alfabetização: alguns

apontamentos” (2002), fala dessa presença-ausência da palavra “cartilha”. Ao tratar do

“Primeiro Livro de Leitura” de Felisberto de Carvalho, que trazia inovações e cujas

primeiras edições datam do final do século XIX, continuando a ser editado até os anos

40, ela diz:

No entanto, Felisberto diferencia-se dos autores citados por não utilizar a

palavra cartilha em momento algum de seu material didático. Aqui fica a

indagação: na concepção do autor a palavra cartilha estaria associada aos

"antigos" métodos de soletração? As cartilhas estariam relacionadas aos

"syllabarios"? A cartilha seria um material didático específico, e não deveria

fazer parte de uma coleção como propunha o autor? Eis algumas questões a

serem pesquisadas. (MACIEL, 2002, p. 157)

A propósito de uma outra cartilha analisada – “O livro de Lili” (1940) -, a autora

também observa:

2. Ver tese de Fernado Vojniak (2012), sobre uma história da institucionalização da cartilha de

alfabetização no século XIX.

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A palavra cartilha não aparece na capa do livro até os anos 60, entretanto, ela

se encontra na primeira página entre parênteses. Isso porque a proposta

metodológica do trabalho da Escola de Aperfeiçoamento, através da

professora Lúcia Casasanta, orientava suas alunas-mestras na fundamentação

teórica do método global, cujos pressupostos se coadunam com a produção

de pré-livro, e não de cartilha. Na opinião da professora Lúcia Casasanta, a

palavra cartilha estava associada aos métodos tradicionais em que o "saber

ler" se reduzia em traduzir em sons os símbolos da página escrita. (MACIEL,

2000, p. 158)

Contudo, na edição de 1964 (136ª edição), observando as modificações

realizadas, Maciel diz que:

O que me chama atenção nessa edição não é só a mudança da capa, o que já

seria suficiente para muitos questionamentos, mas e principalmente é que

pela primeira vez aparece escrito na capa em letras cursivas e vermelhas a

palavra cartilha. Ora, isso nos leva a várias perguntas e algumas explicações.

Uma das explicações que encontro, é de que o termo Pré-livro foi mais

utilizado entre as autoras de Minas Gerais, e a maioria delas foi aluna de

Lúcia Casasanta. Apesar de ser um termo utilizado pelas autoras, ele não foi

totalmente incorporado pelos professores e alunos que faziam uso do material

didático, em entrevistas realizadas com professoras e ex-alunos que

estudaram no Livro de Lili, são unânimes em afirmar que estudaram na

Cartilha da Lili. (MACIEL, 2000, p. 160)

Acompanhando a análise de Maciel, podemos observar um forte imaginário

presente no termo “cartilha”. Como diz Pêcheux (1990b), todo processo discursivo

supõe a existência de formações imaginárias que dizem respeito aos interlocutores, mas

também ao referente, o que significa dizer que a cartilha aqui é tomada como um objeto

imaginário, distinto do material didático empírico, e que os interlocutores, enquanto

posições de sujeito relacionam-se e apropriam-se da cartilha nesse espaço-tempo das

formações imaginárias. Não são os indivíduos empíricos, pois, que funcionam nos

processos discursivos, mas suas imagens que resultam de projeções e que irão constituir

as posições de sujeito. Esse mecanismo produz também as representações imaginárias

do referente em um processo de subjetivação e de identificação. A cartilha, em sua

materialidade, constitui-se em um dispositivo estruturante da construção do sentido e

dos sujeitos que aí se reconhecem.

Em um blog “Espaço Educar”, em que são postadas cartilhas antigas, podemos

também observar a retomada no espaço das novas tecnologias de linguagem, esse

conflito/confronto discursivo presente em nosso objeto de estudo. Não obstante a

aceitação e interesse do público, a autora não deixa de lembrar aos que frequentam seu

blog de que: “As Cartilhas de Alfabetização antigas aqui postadas destinam-se a estudo

e avaliação, a registro histórico e fonte de análise a quem deseja estudar o assunto. De

forma alguma estamos incentivando o uso destas cartilhas nos dias atuais”. Nos

comentários, podemos também observar o movimento dos sentidos e dos sujeitos nessa

rede de memória.

Parabéns por resgatar a memória do aprendizado!, particularmente fiquei

muito feliz em poder rever a capa da cartilha "No reino da alegria" com a

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qual fui alfabetizado no ano de 1982, era essa capa mesmo, que saudade da

minha professora a Tia Beth, lembro-me como se fosse hoje, que vontade de

chorar... (março 13, 2013)

Maravilha pura !

Nossa quanta história legal

Gostaria de ver a cartilha que eu fui alfabetizada, contava a história da Lalá,

Lelé, Lili, Loló e Lulu, como esse povo andava !

Quanta imaginação, cada palavrinha introduzida era um sonho !

Lembro-me também da cartilha "No reino da alegria"

E da minha saudosa Tia Paia, a quem devo muito ! (maio 21, 2013)

3. Alfabetização e ciência

O uso de manuais didáticos para a chamada divulgação científica - DC, é

importante lembrar, não é algo novo. Assim, o trabalho de disseminação, de transmissão

do conhecimento via um instrumento didático específico como a cartilha, não causa por

si só estranheza, nem justificaria torná-la um objeto de estudo e pesquisa3. O que

chamou a nossa atenção, interessada que somos na relação língua-sujeito-escola, foi a

adoção massiva, por parte de instituições e órgãos de natureza bem diversa, desse

instrumento.

O termo “alfabetização científica” já vem sendo usado há algum tempo dentro e

fora do Brasil. Isaac Epstein, em obra de Divulgação Científica – DC, sob a forma de

verbetes, diz que:

A alfabetização científica, entre outras coisas, favorece a distinção entre a

ciência e a pseudociência, torna viável uma noção básica das explicações

científicas para os fatos, desenvolve o pensamento racional, ajuda o despertar

da vocação para a pesquisa científica entre os jovens e favorece o exercício

da cidadania (EPSTEIN, 2002, p. 11).

E prossegue:

No fundo, o que se deseja é que o cidadão tenha uma noção de como

funciona o mundo, a partir de paradigmas oferecidos pela ciência; não um

conhecimento dos detalhes, mas dos princípios gerais. Assim, quando

chamado a opinar sobre temas relevantes e de grande interesse para a

coletividade, como o aproveitamento da energia nuclear e respectivo destino

dos resíduos nucleares, o cultivo dos vegetais transgênicos ou questões

éticas ligadas a determinadas terapias genéticas, este cidadão possa manter

um espírito crítico baseado em sua própria cultura cientifica e não ser apenas

caudatário de correntes de opinião, muitas vezes alimentadas menos pelo

interesse público do que por lobbies e interesses de grupos e facções

interessadas (EPSTEIN, 2002, p. 12 – grifos do autor).

3, Authier-Revuz em artigo sobre a encenação da comunicação no discurso de divulgação científica

(1998) fala do discurso dos manuais didáticos, mas também de uma “outra forma de discurso didático”

em que jogam “1) a questão da legitimidade da D.C. como instância pedagógica; 2) seu papel

compensador – rival que lhe revela, por seus meios, o desafio – de faltas da instituição, e 3) sua ambição

explicitamente limitada da aproximação, aquém de um objetivo de “verdadeira formação’” (p. 124).

Considerando o nosso processo histórico de escolarização, para poucos e precário, pensamos que as

cartilhas irão trabalhar ainda outras questões, como veremos.

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A alfabetização científica, segundo John Durant, especialista da área de

Comunicação em Ciência, uma expressão que passa a ser usada nos círculos

educacionais dos Estados Unidos e Inglaterra, “designa o que o público em geral

deveria saber a respeito da ciência, e a difusão do seu uso reflete uma preocupação

acerca do desempenho dos sistemas educacionais vigentes” (DURANT, 2005, p. 13).

Nesse artigo, Durant distingue três abordagens, que considera muito diferentes da DC,

significando: saber sobre a ciência em termos de conteúdos; saber como a ciência

funciona em termos de métodos; e saber a ciência como uma prática social4.

Isso parece, contudo, ser algo bem diferente do que encontramos em dos

dicionários brasileiros mais consultados, o “Dicionário Aurélio” (1975), em que se dá o

encontro de diferentes formações discursivas em que se constituem sentidos e sujeitos.

Sentidos esses que se estabilizaram e que parecem sustentar o apagamento do termo

pelos autores, e os questionamentos presentes no discurso acadêmico-científico, como

vimos anteriormente.

Cartilha. [Dim. de carta.] S. f. 1. Livro para aprender a ler. 2. Compêndio

elementar ou rudimentos de arte, ciência ou doutrina: cartilha de música;

cartilha cristã. 3. Fig. Maneira de ser e viver; padrão, modelo: Casou-se e

vive segundo a cartilha do marido. * Ler pela mesma cartilha. Ter a mesma

opinião, doutrina ou teoria. (FERREIRA, 1975, p. 289)

Nos enunciados, presentes no verbete, encontramos termos que parecem

distanciar-se, e muito, daquela alfabetização pretendida pela DC, conforme Epstein

(2002) e Durant (2005): “elementar”, “rudimentos”, “modelo”, “mesma opinião,

doutrina ou teoria”; termos que significam o objeto a ser apreendido e aprendido, mas

também um modo de ser, de “modelar” o sujeito.

Essa discrepância, aparente, entre as formulações de diferentes discursividades -

a da DC, do dicionário, do blog e das pessoas que ali postam seus comentários -,

remetem a esse conteúdo sociopolítico ao mesmo tempo perfeitamente transparente e

profundamente opaco de que fala Pêcheux (1990a) a propósito de um acontecimento

discursivo. E é aí que trabalha a Análise de Discurso: nesse entremeio entre a

transparência e a opacidade da linguagem, mas também do sentido, do sujeito.

4. O envelhecimento: a construção discursiva de um referente

O envelhecimento populacional no mundo e no Brasil provocou a transformação

da velhice em um problema social, entendido como um fenômeno que se relaciona com

os demais setores e estruturas da sociedade. O aumento quantitativo das pessoas idosas

é a principal preocupação dos governos diante do aumento das demandas e das pressões

que acarreta o envelhecimento populacional. Sabemos, contudo, que em nosso país,

4 É importante mencionar, ainda, que “alfabetização científica” é a tradução de scientific literacy, o que

traz para a discussão as diferenças entre o processo histórico de produção de ciência e de escolarização

básica da/na sociedade brasileira e da/na sociedade inglesa, que merece reflexão. Tal expressão tem

também sido traduzida como “letramento científico”, considerando a entrada do termo/conceito

“letramento”, a partir de meados dos anos 1980, no discurso pedagógico, via discurso de linguistas.

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como em outros países em desenvolvimento, a questão do envelhecimento populacional

soma-se a uma ampla lista de questões sociais ainda não resolvidas decorrentes de

fatores estruturais, como os elevados níveis de desigualdade econômica, social e política

entre brasileiros.

Nesse sentido, a sociedade contemporânea elabora representações específicas do

envelhecimento, de forma a tentar solucionar o problema social em que esta foi

transformada. De maneira geral, o discurso político e o midiático consideram essa parte

da população como um segmento homogêneo, com necessidades e experiências

comuns, tomando-a como uma etapa da vida e não como processo de vida,

necessariamente plural e heterogêneo. Na construção de imagens (dominantes) sobre a

velhice, sobre o velho, o que se observa não tem uma relação direta com o processo

físico de envelhecimento, mas sim, com o contexto histórico e econômico. Essas

imagens, representações, designam referentes e lugares determinados na estrutura de

uma formação social dada que são representados nos processos discursivos. Assim, “o

que funcionam nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que

designam o lugar que A e B [interlocutores] se atribuem cada um a si e ao outro, a

imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro” (Pêcheux, 1990b, p.

82); sendo o referente também um objeto imaginário.

Não são os indivíduos e o material didático tomados empiricamente que

funcionam nos processos discursivos, mas suas imagens que resultam de projeções e

que irão constituir as posições de sujeito. Esse mecanismo produz também as

representações imaginárias do referente “envelhecimento”. As cartilhas são, nesse

sentido, instrumentos linguísticos de organização de representações na história que dão

ao indivíduo, já interpelado em sujeito pela ideologia, “sua forma individua(lizada)

concreta: no caso do capitalismo, que é o caso presente, a forma de um indivíduo livre

de coerções e responsável, que deve assim responder, como sujeito jurídico (sujeito de

direitos e deveres), frente ao Estado e aos outros homens” (ORLANDI, 2001, p. 107).

Selecionamos para esse trabalho exploratório, as seguintes cartilhas:

CARTILHA DO IDOSO: o que você precisa saber (2011)

TJDFT - Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios

Central de Apoio Judicial aos Idosos

CARTILHA DO IDOSO: acessibilidade e atendimento prioritário à Pessoa

Idosa (2010)

UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro

UnTI – Universidade Aberta da Terceira Idade

Cartilha do Idoso (2007)

Ministério Público do Estado de São Paulo

Defensoria Pública do Estado de São Paulo

Alimentação saudável: sempre é tempo de aprender (2011)

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Prefeitura de Belo Horizonte

Secretaria Municipal Adjunta de Segurança Alimentar e Nutricional

De início, os títulos das cartilhas, bem como as instituições que as produzem, já

vão nos situando em termos de condições de produção, estabelecendo as bases para a

construção da cena enunciativa, enquanto conjunto de lugares determinados por uma

topografia social em que os sujeitos se inscrevem (MAINGUENEAU, 1989). Duas

cartilhas são produzidas por instituições jurídicas, uma por uma universidade e outra por

um órgão do Estado, e tem um interlocutor nomeado como “idoso” e não como “velho”,

identificando-o de uma determinada maneira. A designação, como algo relativa à

significação de um nome, seria, de acordo com Guimarães (2002), “algo próprio das

relações de linguagem, mas enquanto uma relação linguística (simbólica) remetida ao

real, exposta ao real, ou seja, enquanto uma relação tomada na história” (Guimarães,

2002, p. 9).

O artigo definido determina “idoso”, produzindo um efeito de homogeneização -

todo e qualquer idoso - e, ao mesmo tempo, o de um idoso indeterminado. Isso se

mostra também pelo outro sujeito desse processo de interlocução: aquele se dirige ao

leitor, que o faz como “a” Defensoria, “a” UNaTI, a “cartilha”, a “lei”: enunciadores

que falam do lugar do universal, do racional, do verdadeiro, do atemporal (mesmo que

se refiram a leis e procedimentos datados), do impessoal. Lugar esse sustentado pela

Política Nacional do Idoso (Lei 8.824/90) e do Estatuto do Idoso (Lei 10.741 de

01/10/2003), sempre mencionados. Gestos de interpretação que se filiam ao discurso

jurídico - mesmo naquela elaborada por uma universidade - que remetem a um sujeito

de direito no exercício da cidadania. Esses enunciadores fazem uma leitura específica

desses instrumentos regulatórios da vida em sociedade, o que coloca em pauta as

práticas e as relações sociais. Não basta, pois, existir a lei para ser lida por todos, é

necessário que existam os intérpretes, aqueles que sabem ler o texto original,

evidenciando o funcionamento do processo de divisão social da leitura (PÊCHEUX,

1994).

Nos títulos de duas, temos a presença, nos enunciados, do discurso pedagógico

com os verbos “saber” e “aprender”: “O que você precisa saber” e “Sempre é tempo de

aprender”, que instalam as coordenadas espaçotemporais implicadas no ato de

enunciação. Uma temporalidade, que aponta para o atemporal, marcada pela

necessidade, presentes na modalização do verbo “precisar”, e por um “sempre é tempo

de aprender” que, em um procedimento de substituição parafrástica, está a nos dizer

também que “algo não foi aprendido antes”, algo falta a esse sujeito, e que mesmo

sendo velho ainda tem tempo para aprender.

Caminhando pelas páginas das cartilhas, podemos refletir sobre o modo como o

discurso jurídico se configura e como o sujeito velho/idoso vai participar desse jogo. Na

“CARTILHA DO IDOSO: o que você precisa saber” (2011), do TJDFT, segundo sua

apresentação. “contém informações básicas sobre a Central de Apoio Judicial aos Idosos

- CAJI, serviço que veio fortalecer a rede de defesa e proteção à pessoa idosa do Distrito

Federal” (p. 7). E tem como público-alvo “idosos do Distrito Federal, acima de 60 anos,

que tenham seus direitos ameaçados ou violados e que necessitem de orientação e

atendimento na esfera da justiça”. (p. 8) Ou seja, quando esses direitos já se tornaram

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caso de justiça (ou de polícia), como se pode observar, ainda, pela presença reiterada de

termos como “violência”, “abuso”, “idosos em situação de risco”. E quando sai do

campo desse campo delimitado do jurídico é para articular-se ao individual com os

termos “laços de amizade”, “depressão”, “autoestima”, “relacionamento familiar”,

conforme está dito em seu Projeto Cidadania para Todas as Idades.

A cartilha traz como Anexos o “Estatuto do Idoso” e um “Provimento da

Corregedoria da Justiça do Distrito Federal e dos Territórios”. Nessa última, que

disciplina os procedimentos atinentes aos processos judiciais, chamou a nossa atenção

as pessoas a que se dirigem: I – ter idade igual ou superior a sessenta anos; II – ser

portador de doença grave; III – ser portador de deficiência física, visual, auditiva ou

mental. Essa taxionomia parece ser um recorte recorrente no discurso jurídico aí em

funcionamento, em que “idoso” desliza para “deficiente”, ou seja, de idoso “e”

deficiente passa-se para idoso “com” deficiência, como pode se ler na cartilha da

Universidade Aberta da Terceira Idade da UERJ – “CARTILHA DO IDOSO:

acessibilidade e atendimento prioritário à Pessoa Idosa” (2010), que contou com a

colaboração do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, da Defensoria Pública

do Estado do Rio de Janeiro e da Delegacia Especial de Atendimento à Pessoa de

Terceira Idade.

A cartilha tem por finalidade oferecer serviços, leis, orientações sobre

procedimentos de saúde e benefícios a toda pessoa idosa com deficiência ou

mobilidade reduzida e também orientar todos os idosos que necessitem de

informações que auxiliem em seus direitos no trato com a questão do

atendimento prioritário. (UERJ/UNATI, 2010, p. 2. )

O atendimento prioritário é sumariamente descrito em termos de

estabelecimentos públicos e privados, transporte, tramitação de processos. A parte

referente à acessibilidade, também sumária, limita-se a nomear o que deveria ser objeto

de atenção por parte do Estado e não mais do idoso, como espaços, mobiliários e

equipamentos urbanos, edificações, transportes e sistemas de comunicação. Em seguida

vêm algumas “dicas” referentes à “Prevenção de Quedas e Benefício de Prestação

Continuada”: “Evite tapetes de tecidos, tapetes muito soltos ou sobrepiso encerado, pois

estes poderão ocasionar escorregões. Prefira tapetes emborrachados e antiderrapantes”.

A “Cartilha do Idoso” (2007) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo,

órgão do Ministério Público do Estado de São Paulo, que “resume os conhecimentos

trazidos pela experiência das Instituições, constitui-se em guia prático para o uso do

público a que se destina”. Está estruturada bem ao modo da cartilha-catecismo:

perguntas e respostas, marcadas pela univocidade, pela evidência das verdades

absolutas, pela ausência de ambiguidades: os universos logicamente estabilizados.

Quem o Estatuto considera idoso?

A pessoa com idade igual ou superior a sessenta anos.

O que é a Previdência Social?

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Entremeios: revista de estudos do discurso. n.8, jan/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >

A Previdência Social é um seguro social que as pessoas pagam para ter uma

renda quando se aposentam ou não puderem trabalhar.

Quem pode usufruir desse Seguro Social?

Todas as pessoas que pagam, isto é, recolhem contribuições para a

Previdência Social, e seus dependentes. (p. 9)

A cartilha da Prefeitura de Belo Horizonte “Alimentação saudável: sempre é

tempo de aprender (2011)”, remete-nos ao discurso da saúde que exige a produtividade

e a permanente responsabilidade dos idosos sobre a sua vida, que sejam pessoas,

obrigatoriamente, saudáveis e produtivos, o que irá redundar em uma diminuição dos

gastos sociais com este grupo de população. Sabemos, contudo, que as políticas

públicas devem promover melhorias na saúde desde a infância, como o acesso universal

aos serviços de saúde pública, considerados fatores ambientais, econômicos, sociais,

educacionais, dentre outros, que irão afetar o aparecimento de enfermidades e

incapacidades futuras; resultantes, portanto, não só de questões da alimentação

saudável, mas da economia, do mercado de trabalho, da seguridade social, da educação.

Observamos também sentidos, vindos do discurso pedagógico, de “adaptação”,

de “adequação”, de “reconhecimento de uma falta” (Pfeiffer, 2001b) que significa o

ingresso na escola, agora do conhecimento, algo que se encontra sob a responsabilidade

do idoso. Assim, encontramos na Apresentação da cartilha:

O processo de envelhecimento faz parte do ciclo natural da vida, sendo

influenciado tanto pelo estilo de vida quanto por fatores genéticos. Uma

alimentação saudável e a prática regular de atividades físicas, por exemplo,

são medidas importantes para auxiliar um envelhecimento ativo. (p. 2)

Após a “Apresentação”, vem uma parte denominada “Pra começar... Direitos da

Pessoa Idosa” em que após dois sumaríssimos parágrafos sobre legislação brasileira

vigente, temos o que se segue:

Agora, se na lei estão previstos os direitos da pessoa idosa, na vida pessoal

cabe a cada um refletir e buscar atitudes positivas relacionadas à alimentação,

atividade física e modos de vida adequados, de forma a não colocar em risco

o envelhecimento saudável. Ou seja, é preciso participar dos cuidados com a

própria saúde. (p. 3)

Em um texto sobre a velhice e suas representações, Márcia Dourado e Anette

Leibing (2002) dizem que:

Atualmente, os indivíduos são convencidos a assumir a responsabilidade pela

sua própria aparência, comportamento e talvez, até mesmo, seu adoecimento.

Isto porque envelhecer está normalmente conjugado com a impotência,

declínio e morte e, assim, uma vez que a velhice é percebida como um

estágio deprimente do desenvolvimento humano, então ser velho e acometido

por doenças, como a demência, por exemplo, seria uma trapaça armada pelo

destino que nos faria dar boas-vindas à morte e ao esquecimento.

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Entremeios: revista de estudos do discurso. n.8, jan/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >

A publicidade, os manuais de auto-ajuda e as receitas dos especialistas em

saúde estão empenhados em mostrar que as imperfeições do corpo não são

naturais nem imutáveis e, que, com esforço e disciplina, pode-se conquistar a

aparência desejada, de forma que as rugas e a flacidez transformam-se em

fraqueza moral e, portanto, devem ser combatidas através de cosméticos,

ginástica, vitaminas, enfim, a parafernália da indústria do corpo e do

prazer.(2) O fato de os idosos constituírem um novo grupo com

disponibilidade para o consumo, bem como a relação existente com as

concepções modernas sobre a conservação do corpo propiciam uma nova

significação ao envelhecimento (DOURADO & LEIBING, 2002).

A seguir, vem, na cartilha, a parte das dicas nomeadas como “passos” em

número de dez, construídos com verbos na forma imperativa: “Faça, inclua, coma,

consuma, prefira, evite, diminua, beba, pratique, descubra, use, valorize”. A isso se

segue, um exercício de adivinhação com título: “Brincando com adivinhas sobre

alimentos”; uma seção denominada “Para relaxar, aprender e compartilhar” com

palavras cruzadas, caça-palavras, questões para marcar certo ou errado. Um novo

deslizamento que se constrói pela estrutura própria de exercícios escolares: a de velho

para criança. A infantilização do idoso.

5. Algumas considerações finais

O envelhecimento como objeto de conhecimento relaciona-se a diversas

dimensões que vão desde o desgaste fisiológico e do prolongamento da vida ao

desequilíbrio demográfico e custo financeiro das políticas sociais. Assim, a

compreensão da velhice na sociedade contemporânea implica o reconhecimento da sua

dimensão histórica e social, o que é apagado completamente nessas cartilhas.

O poder disciplinador e homogeneizador do Estado, na construção de discursos

sobre o envelhecimento, faz-se através de um discurso jurídico-administrativo, mas

também pedagógico-moral, contribuindo para construir o consenso em torno do que é

ser velho, o que interessa a ele e como apresentar-lhe o conhecimento: um velho não

letrado, infantilizado em que se apaga toda uma história de vida. A divulgação do

conhecimento situa-se no sentido de uma aprendizagem escolar “rudimentar”,

evidenciando que a partilha do saber se dá pautada, também, nas desigualdades

estruturais de nosso processo de escolarização.

Observamos, na descrição e análise de funcionamentos linguístico-discursivos,

um discurso pedagógico – invertido, deslocado, reorganizado – tornar-se dominante,

criando condições para a emergência de novas formas de disciplinarização desse sujeito

cidadão-consumidor, construindo novas formas de gestão do político nas práticas

sociais, articulando de uma nova forma a relação Escola, Ciência, Sociedade. Na

socialização do conhecimento, não se constrói uma articulação significante entre o

individual e o social, entre o público e o privado para o sujeito exercer a cidadania. Não

se criam condições de produção para o sujeito ser um leitor capaz de gestos de

interpretação múltiplos, porque construídos de um lugar na história.

Referências bibliográficas

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