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As Artes Cênicas como Instrumento de Legitimidade das Identidades Quilombolas Lúcia Fabiana da Silva 1 Senhor historiador, Deixe o sobrado, a casa-grande, Recue na linha do tempo, Mergulhe no espaço geográfico, Peça licença, limpe os pés, Se deixe abocanhar por um quilombo, Mastigar pelas chocas, Meta-se no bucho de Palmar, Escute aí seu coração tambor E veja o sangue digno fluindo generoso Nas veias caudalosas. Desde o alto da serra da Barriga Olhe no rumo litoral: Veja num lado história, noutra escória. Depois comece a cantar. (SILVA, 2004, P. 151) RESUMO: O Brasil é um celeiro de formações identitárias das mais diversas origens, ritmos e cores, mas que por muito tempo, não conseguiu por em patamar de igualdade de direito e acesso a visibilidade e recursos necessários a manutenção das mesmas. Nas últimas duas décadas, temos caminhado para significativas mudanças, embora ainda não tenhamos uma equiparação de oportunidades, há uma disseminação significativa de pesquisas e a abertura da universidade a tratar das questões étnico raciais. Esta visibilidade, se deu também por meio da incorporação dos estudos culturais no meio acadêmico que aprimora teorias para a compreensão das tradições, da cultural oral e das manifestações culturais populares, perspectiva decolonial como forma de entender as atividades culturais humanas. No trabalho que se segue, apresento os desdobramentos de parte da pesquisa de mestrado que desenvolvo, no sentido de construir caminhos para consequente mudança na educação básica, por meio de práticas pedagógicas que nos auxiliem na perspectiva da emancipação identitária de alunos e alunas quilombolas, bem como o método de investigação a ser 1 Mestranda em Crítica Cultural, Pós-Graduação em Crítica Cultural, UNEB, Campus II Alagoinhas. Professora da educação básica municipal na cidade de Morro do Chapéu Bahia. Endereço eletrônico: [email protected]

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Page 1: As Artes Cênicas como Instrumento de Legitimidade das ... · Escute aí seu coração tambor E veja o sangue digno fluindo generoso Nas veias caudalosas. Desde o alto da serra da

As Artes Cênicas como Instrumento de Legitimidade das Identidades

Quilombolas

Lúcia Fabiana da Silva1

Senhor historiador, Deixe o sobrado, a casa-grande,

Recue na linha do tempo, Mergulhe no espaço geográfico,

Peça licença, limpe os pés, Se deixe abocanhar por um quilombo,

Mastigar pelas chocas, Meta-se no bucho de Palmar, Escute aí seu coração tambor

E veja o sangue digno fluindo generoso Nas veias caudalosas.

Desde o alto da serra da Barriga Olhe no rumo litoral:

Veja num lado história, noutra escória. Depois comece a cantar. (SILVA, 2004, P. 151)

RESUMO:

O Brasil é um celeiro de formações identitárias das mais diversas origens, ritmos e cores, mas que por muito tempo, não conseguiu por em patamar de igualdade de direito e acesso a visibilidade e recursos necessários a manutenção das mesmas. Nas últimas duas décadas, temos caminhado para significativas mudanças, embora ainda não tenhamos uma equiparação de oportunidades, há uma disseminação significativa de pesquisas e a abertura da universidade a tratar das questões étnico raciais. Esta visibilidade, se deu também por meio da incorporação dos estudos culturais no meio acadêmico que aprimora teorias para a compreensão das tradições, da cultural oral e das manifestações culturais populares, perspectiva decolonial como forma de entender as atividades culturais humanas. No trabalho que se segue, apresento os desdobramentos de parte da pesquisa de mestrado que desenvolvo, no sentido de construir caminhos para consequente mudança na educação básica, por meio de práticas pedagógicas que nos auxiliem na perspectiva da emancipação identitária de alunos e alunas quilombolas, bem como o método de investigação a ser

1 Mestranda em Crítica Cultural, Pós-Graduação em Crítica Cultural, UNEB, Campus II – Alagoinhas. Professora da educação básica municipal na cidade de Morro do Chapéu – Bahia. Endereço eletrônico: [email protected]

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tomado como base de uma pesquisa que busca romper com a linearidade dos cânones da ciência.

Palavras-Chaves: Comunidades Quilombolas – Artes cênicas – educação básica –

Brasil/África

Todas as vezes que sou interpelada a escrita, penso em quanto de mim pode

ser excluso de minhas narrativas, ao passo que delineio e traço um esboço de temas

e discussões, vejo tornar-se mais difícil esta tarefa, visto que toda a concepção de

pesquisadora que existe até aqui é carregada da mais tenra subjetividade, bem como

os caminhos científicos que até então percorri. Diferente de muitos, a escrita em minha

trajetória, se consolidou anterior a leitura, ainda na infância, separada de minha mãe,

por questões circunstanciais a época, nosso meio de comunicação se configurava

pelas cartas que eu lhe enviava do estado do Ceará para a Bahia cada vez que um

viajante do trajeto se comprometia com a entrega de minhas cartinhas que não

continham nenhuma pontuação correta, tampouco a ortografia usual, porém

carregadas de toda a verdade situacional, a qual minha mãe nunca reclamou dos

erros. Estas, certamente, influenciaram definitivamente a escolha por narrativas

futuras que para além da ciência, também revelem a pesquisadora que no uso da

linguagem formal da língua portuguesa e dentro dos padrões acadêmico escreve

agora.

A URGÊNCIA DA PESQUISA PARA MEU FAZER PEDAGÓGICO

Ao adentrar a cidade, um visitante observa inicialmente uma estátua de um

Coronel Negro, Francisco Dias Coelho2, sob os pés, nesta mesma rua, sente-se o

peso do que foi o período escravo no Brasil, o calçamento da rua principal, é

resguardado como patrimônio material da cidade, são enormes pedras que foram

2 “Dias Coelho, homem de cor como é citado pelos mais velhos, nasceu 24 anos antes da lei

áurea e até hoje não sabemos de sua verdadeira origem. Tudo leva a crer que tenha nascido

na fazenda Gurgalha. Menino pobre consegue transformar-se num homem letrado,

respeitado, honrado e rico. Não fosse a nossa sociedade tão preconceituosa, podíamos hoje

estar com toda a sua história escrita”.

( DANTAS JUNIOR, 2006. P.12)

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fincadas naquele trecho para escoar toda a produção de diamante que saía da Vila

do Ventura, hoje, um espaço que abriga ruínas de uma simpática vila do passado,

local turístico no dias de hoje; Morro do Chapéu é ainda dotado de grande riqueza

ambiental, com cachoeiras que dão margem para grande exploração turística local,

porém, o que se sabe até então é de muito esforço pelo poder público a trazer um

título de geoparque a cidade, que abriga também material arqueológico e pinturas

rupestres em diversos locais, encontrados e protegidos e outros ainda pela espera

dessa sorte. Contudo, se ainda não interessa nenhum dos atrativos terrenos, o

município também conta com um centro ufológico de observação e pesquisa, com

direito a réplica de uma nave espacial para maior adensamento do lugar. A quem se

incube de leituras do espaço geográfico a partir de formação acadêmica, trabalhar e

vivenciar Morro do Chapéu é inspirador.

Dentro de sala de aula me deparei com uma cidade negra e com problemas

sociais, ou seja, uma pequena amostra do Brasil, conhecendo mais afundo os alunos,

alguns relataram vir de comunidades rurais quilombolas, no município, há registradas

pela fundação Palmares seis comunidades, algumas destas não dispõe de escolas,

dessa forma os alunos precisam se deslocar de seu local de origem para estudar na

zona urbana, para alguns alunos, identificar-se como vindo de Barra II ou Veredinha

era um motivo de vergonha, ser desses locais é sinônimo de ser preto, o que lhes

causava certo incômodo com tal identificação.

A constituição de uma difusão cultural a partir de um parâmetro imputa as

pessoas mudança de valores e perspectivas para aquilo que é aceito, reside aí uma

disputa pelas consciências, que se constitui elemento balizador para se alcançar uma

conformação/aceitação do que está sendo posto, permeava assim a questão da

identidade dos alunos, identidade esta que perpassa o olhar de si próprio e o olhar do

outro para ele, não obstante, a relação do negro com sua identidade está

intrinsecamente ligada ao seu próprio corpo, corpo este que carrega as marcas

violentas do período escravocrata do Brasil.

Na estrutura social brasileira colonial o corpo negro era vendido, alugado,

violentado e mutilado a bem dos direitos legais dos “donos” desses corpos, em

consequência disto, por muito tempo fomos ensinados a rejeitar o cabelo carapinha,

o nariz achatado, o delineamento da boca e os variados tons da pele negra, pois foram

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estas características biológicas utilizadas pelas teorias raciais para subjugação do

negro numa escala hierárquica inferior aos brancos, dando autonomia a estes para

manipulá-los e traficá-los aos montes e de qualquer forma, A partir dessa memória

que culturalmente é vivificada nos livros didáticos através das pinturas de Rugendas

e Debret, possibilita ao corpo negro se manifestar enquanto lócus de negação,

opressão, dor e rejeição, somado a isto os referenciais de beleza ocidental como a

brancura da pele, os cabelos loiros, os olhos claros, opostos a figura do corpo negro

associando-os a “feiura e sujeira”, como descrito por Nina Rodrigues citado por

Schwarcz, 1993, “uma mancha na sociedade brasileira, que condicionava a nação ao

fracasso”.

Toda a consciência e necessidade de problematizar estas questões dentro do

espaço escolar me traziam a necessidade de práticas que permitisse reconhecer que

as relações diferenciais formam o conjunto de fatores para se compreender cultura e

sociedade, bem como a estrutura decorre dessas relações e não antes dela, o que

configura um viés do pensamento que abarca os estudos culturais.

Com vistas a emancipar toda essa gama de conceitos que me impulsionavam

a dar vida a estes, propus, juntamente com outras colegas de trabalho docente e de

afinidades de objetos de investigação, relações étnico raciais, um projeto cultural, a

partir da promoção de políticas de financiamento a cultura do estado da Bahia através

dos editais de cultura da Fundação de Cultura da Bahia – FUNCEB, ligada a

Secretaria de cultura da Bahia – SECULT. Com parecer favorável a execução do

mesmo, recebemos um recurso destinado a realização de intercâmbio cultural entre

as comunidades quilombolas citadas anteriormente, através dos alunos e de uma

companhia de teatro de rua de Maputo, Moçambique, África.

O projeto consistia resumidamente em realizar pesquisas através de

entrevistas, questionários, fotografias, nas comunidades quilombolas, onde os alunos

das escolas que recebiam os alunos destas comunidades, foram os pesquisadores.

Concomitantemente, estes mesmos alunos participavam de oficinas de teatro,

dança africana, percussão africana, pernas de pau, figurino, caracterização entre

outras, todas estas, ministradas pelo trio de artistas moçambicano que também

transformaram o resultado das pesquisas de campo realizada com os moradores de

Barra II e Veredinha, num texto, número de danças e performances para

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representando tudo aquilo que foi absorvido, nasceu assim o espetáculo Nosso

Tesouro, que percorreu a seis comunidades quilombolas de Morro do Chapéu, bem

como outras comunidades rurais, a fim de dar visibilidade e notoriedade ao trabalho

que compunha todo o Intercâmbio, vale lembrar que todos os atores e dançarinos do

Nosso Tesouro, eram alunos da educação básica, quilombolas e não quilombolas que

se dispuseram a participar do projeto por meio de participação gratuita, as

apresentações do espetáculos se davam sempre ao ar livre no período diurno e com

chamada da população local através de rádios, com apoio das escolas dos locais, e

também pela apresentação percussiva que os alunos faziam ao chegar nos locais

circulando pelas principais ruas do ambiente, convidando as pessoas ao local de

apresentação, enquanto montávamos a estrutura de apresentação do número.

Além disto, na finalização dos espetáculos, elaboramos um material didático

intitulado: Barra II e Veredinha, Um Olhar para as comunidades quilombolas de Morro

do Chapéu, que registra toda a trajetória do trabalho, conjugando imagens e textos,

este material, teve uma tiragem de 100 exemplares que foram distribuídos a escolas

quilombolas com indicação da equipe executora a para ser utilizado enquanto material

didático, os alunos participantes do projeto também receberam e foram orientados

apresentar as suas famílias como forma de resposta as recorrentes solicitações dos

entrevistados a um retorno posterior do que seria e para que se destinava o nosso

trabalho de pesquisa.

Todas essas ações foram previamente informadas no momento de elaboração

do projeto destinado a instituição de fomento, este é um dos pré-requisitos para

financiamento de atividades desta natureza, bem como a destinação e custo de cada

item que foi utilizado em todos os seis meses de realização do Intercâmbio Cultural

Brasil/África pautado numa interação entre a cultura moçambicana e as comunidades

quilombolas de Morro do Chapéu, que carinhosamente e pela comodidade intitulamos

de ICBA.

A composição do ICBA, foi pensada para agregar, comunicação, sociabilidade,

troca de conhecimento e sobretudo que auxiliasse os estudantes a se reconhecerem

culturalmente e respeitar a cultura e identidade do outro, levando também a reflexão

das pessoas que assistiram ao espetáculo sobre o que é ser negro e ainda aspectos

culturais, modos de vida, trabalho e símbolos que identificam Barra II e Veredinha.

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BARRA II E VEREDINHA: ROMPENDO OBSTÁCULOS

EPISTEMOLÓGICOS PARA FORMULAR UM PROBLEMA DE PESQUISA

O Brasil é um celeiro de formações identitárias das mais diversas origens,

ritmos e cores, mas que por muito tempo, não conseguiu por em patamar de igualdade

de direito e acesso a visibilidade e recursos necessários a manutenção das mesmas.

Nas últimas duas décadas, temos caminhado para significativas mudanças, embora

ainda não tenhamos uma equiparação de oportunidades, há uma disseminação

significativa de políticas públicas voltadas a financiar atividades culturais, por meio de

feiras, espetáculos, intervenções, editais, entre outros. Esta visibilidade, se deu

também por meio da incorporação dos estudos culturais no meio acadêmico que

aprimora teorias para a compreensão das tradições, da cultural oral e das

manifestações culturais populares, como forma de entender os percursos e rumores

da humanidade.

Passados mais de um século da instituição legal da abolição do trabalho de

forma escravo no Brasil, nós brasileiros ainda nos deparamos com uma limitação à

aceitação da identidade negra brasileira. O negro é parte de uma construção

histórico/social de miscigenação numa sociedade que usa determinados elementos

da cultura como slogan na caracterização do país, porém, não é dada a devida

valorização aos sujeitos donos dessa construção histórica.

Essa desvalorização se baseia em nome do racismo que distancia os sujeitos

e fragmenta os espaços. O preconceito existe porque as elites dominantes jamais

permitiram a instauração de uma democracia igualitária de oportunidades para todos.

Democracia esta, que se contradiz com as barreiras sociais impostas aos negros onde

o racismo é um dos principais mecanismos produtor da concentração de renda e de

riquezas, e mediante processos discriminatórios que dificultam o acesso significativo

da camada da população às riquezas que o país produz.

Jessé de Souza, em A Tolice da inteligência Brasileira, refere-se ao domínio das

estruturas de poder brasileiro que estariam atrelados aos donos dos jornais TV enfim

meios de comunicação, que somam os 1% dos ricos do Brasil e por sua vez, são os

atores que compõem o estado os quais monopolizam corretamente o Brasil apoiados

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por uma elite conservadora, que se diz elite, mas que está longe de ter algum poder

mas confia plenamente em uma superioridade inexistente. Não existe notícia em jornal

ou TV que não necessite do aval de uma especialista, o livro, portanto funda-se na

crítica combinada de “culturalismo conservador” e na “ inteligência brasileira”. Nos traz

a luz a reflexão sobre os processos que legitimam o poder social fático e que

acentuam as relações de poder e a superioridade branca enquanto uma questão

científica trazendo a luz da discussão, a perversa religiosidade e comprovações

científicas que institucionalizavam o racismo como algo natural, até 1920 e que

fatidicamente perdura o imaginário popular até os dias atuais, que tende a classificar

as pessoas como gente ou subgente branco e negro/ índio, respectivamente.

“Como essa oposição é criada e legitimada “cientificamente” e o que isso tem a ver com a obra weberiana? Max Weber oferece os conceitos centrais por meio dos quais foram pensados e tornados vida prática essa divisão racista entre “gente” superior, das sociedades avançadas, e “subgente” inferior, das sociedades latino-americanas e periféricas. Mais do que isso, Weber é uma espécie de “chave mestra” que nos permite abrir o registro profundo desse “racismo científico” dominante, ainda que até hoje inarticulado, mas, por isso mesmo, “naturalizado” e aceito por todos no âmbito científico e na esfera prática e cotidiana de todas as sociedades modernas. ( SOUZA, 2015, p.25)

A obra de Weber foi utilizada distorcidamente para legitimar o racismo

fundamentando a seguinte premissa: Reconstruindo o debate central e periférico que

usam essas categorias como eixo central, demonstrando o potencial de distorção

sistemática da realidade social dessas teorias hegemônicas no centro e na periferia

no discurso científico internacional, que categoriza o planeta enquanto dominador e

dominante, essa estrutura foi alimentada pela disseminação do capitalismo pelo

mundo, e atraindo mais pessoas que em nome do poder e da superioridade,

subjugavam seres humanos e utilizavam para manutenção das condições sociais

amparadas por teorias cientificas que classificavam seres humanos.

A história e cultura do negro vão além das suas características culturais que

estão presentes nos territórios brasileiros. Os movimentos buscam o direito a

aquisição da cidadania e reconhecimento enquanto categoria integrante e atuante na

sociedade, não apenas sendo parte de uma história miscigenada que se resumindo

num forjamento social, que cai por terra ao se deparar com a fragmentação dos

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espaços de exclusão/inclusão, transcorrendo como se fosse um processo pertencente

à ordem natural das coisas.

Em face do enfrentamento a tais situações observa-se uma das questões

estruturais em nossa sociedade está ligada ao que concerne as comunidades

quilombolas. Apontadas como espaço de negros fugitivos, o que inicia um processo

de distorção do real significado de um espaço de luta e resistência contra o sistema

escravista da época colonial do país, formando comunidades livres, esses sítios

geográficos passaram a ser reconhecidos e mapeados em todo o território nacional a

fim de se mostrar o real significado dentro de um contexto político e de reinvindicações

do movimento negro unificado (MNU) no país.

O estruturalismo enquanto corrente de pensamento e fundamentação para se

apoiar os estudos culturais nos incita a perceber a sociedade como um sistema onde

determinados fenômenos ou a conjuntura dos fatos sociais, a partir da base

epistemológica do conhecimento, deslocando da perspectiva essencialista do

conhecimento e da sociedade pra uma vertente que proponha a análise das questões

estruturais que formam a sociedade, onde a história passa a moldar a ciência a partir

e no transcorrer dos acontecimentos.

Um dos principais teóricos a enriquecer o pensamento estruturalista foi Gaston

Bachelard, este, apresentou elementos básicos fundamentais para a concepção

filosófica proposta, bem como para a singularidade de seu pensamento.

Inicialmente a perspectiva epistemológica da ciência, este seria o meio pelo

qual os avanços científicos se configuram possíveis, a partir dessa ênfase conseguir

o elo perfeito entre ciência e filosofia; Teorizar a história da ciência foi também uma

de suas facetas, para Bachelard não exista uma continuidade da ciência, uma teoria

não deriva de outra, pelo contrário a descontinuidade, a partir disso, pretende nos

mostrar que se superadas, as mesmas podem transcender anteriores, ou seja, tudo

que seja novo, será revolucionário. Nessa perspectiva a sua metodologia científica

calçou-se na crítica as epistemologias tidas como clássicas bem como suas

epistemologias. Para justificar o rompimento dessa erudição da ciência o autor propõe

A noção do obstáculo epistemológico contidos nas formulações do fazer científico,

sobre o conhecimento científico, alguns destes são:

1º Obstáculo: “A experiência primeira”

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“O espírito científico deve formar-se contra a Natureza, contra o que é, em nós e fora de nós, o impulso e a informação da Natureza, contra o arrebatamento natural, contra o fato colorido e corriqueiro. O espírito científico deve formar-se enquanto se reforma. Só pode aprender com a Natureza se purificar as substâncias naturais e puser em ordem os fenômenos baralhados. (1938, p. 22)

Ao iniciar a pesquisa de campo com os alunos nas comunidades quilombolas

e os colegas que residiam na sede do município, primeira impressão, “opinião” era de

encontrar um espaço desprovido ou esquecido de memória coletiva, tanto que na

proposta apresentada a FUNCEB, trato de ‘Formação Cultural’. Ao adentrar as

comunidades ia tomando consciência de que ali estava um celeiro da tradição oral

recheado de ricas memórias e elementos das vivências e das construções identitárias

próprias,

De modo geral conseguimos mitigar esse obstáculo ao longo das próprias

entrevistas, na medida que os alunos (as) questionavam seus entrevistados, as

perguntas iam se moldando, mesmo naquele pesquisar ‘rudimentar’ – ou por que não

chamar, adolescente – víamos as “opiniões” se desfazerem.

Bachelard (1938), afirma que “o progresso científico efetua suas etapas mais

marcantes quando abandona os fatores filosóficos de unificação fácil, tais como a

unidade de ação do Criador, a unidade de organização da Natureza, a unidade

lógica”(1938, p.14). Isso endossa a necessidade do recorte do problema, porém exige

da observação dos contextos de acordos com suas peculiaridades, na figura abaixo

tentarei explicitar a ideia.

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Figura 1. Representação gráfica do contexto das Comunidades Quilombolas3

Fonte: A autora, 2017.

O contexto vivenciado pelas comunidades quilombolas, remete ao conceito

apontado por Walter Benjamim, “Pensar a História a Contrapelo”, por todo o contexto

que se criou, inclusive por meio da ciência para estabelecer hierarquias étnicas dentro

do país, dessa forma, não há como reduzir a uma unicidade a discussão referente à

comunidades remanescentes de quilombo, uma vez que o conjunto de conceitos

apontados na figura 1, ainda não dão conta de apresentar tudo que se pode extrair de

conhecimento científico de espaços como estes, podíamos falar ainda sobre as

diversas formas de apropriação do território, da terra, dos quilombos urbanos, das

3 Comunidades que sobreviveram à escravidão, à abolição e a todos os demais processos pelos quais o nosso país passou, mantendo viva a sua identidade quilombola” [...] “ Uma força relevante no meio rural brasileiro, dando uma nova tradução àquilo que era conhecido como comunidades negras rurais (mais ao Centro, Sul e Sudeste do país) e terras de preto (mais ao Norte e Nordeste), que também começa a penetrar no meio urbano, dando nova tradução a um leque variado de situações que vão desde antigas comunidades negras rurais atingidas pela expansão dos perímetros urbanos até bairros no entorno de terreiros de candomblé. (SOUZA, 2012, p.87 e 88)

Comunidade Quilombola

Resistência

Memória

Tradição

Barra II e Veredinha

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diferentes manifestações culturais e ramificações dos sambas de rodas provenientes

dessas comunidades, enfim, elementos que apontam para uma construção da ciência

que não se submeta a constituição de saberes finitos e acabado, muito além disso, o

cientista tem função epistemológica os fatos devem conceber como ideias a

produzirem novos saberes compreender a diferença entre designar e explicar algo, ou

seja, “captar os conceitos científicos em síntese psicológicas efetivas”. Substituindo o

saber fechado e estático por um conhecimento aberto e dinâmico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A compreensão do conhecimento como forma de emancipação dos sujeitos é

uma perspectiva revolucionária e brasileira, a partir das teorias de Paulo Freire, penso

que a bem desta ciência, devamos nos atentar aos vieses da construção do

conhecimento para diminuir distâncias entre academia e comunidade quilombolas e

todas as minorias que necessitem de espaço e discussões para suas questões,

principalmente estando num a universidade pública, superado isto, os métodos

investigativos de qual iremos dispor para se chegar a pesquisa se configurarão

válidos. Graças à própria ciência no seu espírito de dissolução de verdades e

reconstrução de conceitos, possibilita a compreensão e as finalidades de tais

concepções, sendo assim conseguimos construir novos conceitos, novas ciências e

pesquisas, nos espaços acadêmicos brasileiros, assim conseguiremos galgar novas

concepções de mundo, do sexo, do gênero, de etnicidade e afins, como um novo

parâmetro para reflexões.

Tratar de Comunidades Quilombolas é tratar de afrocentricidade4 e este não é

um viés habitual da ciência portanto toda a leitura quanto aos obstáculos propostos

por Bachelard apontam para o êxito das pesquisas que se incumbem de discutir

africanidades, gênero, minorias, enfim, todas as vertentes que não perpassem os

caminhos e regras estabelecidos pela forma clássica de se conceber o conhecimento

científico.

4 Discussões ampliadas no cenário nacional por Abdias Nacimento, Elisa Larkim entre outros autores para trazer a discussão da africanidade, das territorialidades ou referências culturais e sociais advindas da África.

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REFERÊNCIAS:

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http://groups.google.com.br/group/digitalsource. Acesso em: 20/05/2017.

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SOUZA, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira: Ou como o país se deixa

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