as armas e o homem, bernard shaw

Upload: eliane-ramin

Post on 06-Apr-2018

225 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    1/61

    AS ARMAS E O HOMEM

    G. BERNARD SHAW

    1

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    2/61

    Extrado do programa da pea, montada com o ttulo As Armas e oHomem de Chokolatte. Estreou no Teatro Glauce Rocha, Rio de Janeiro, em1994, dirigida por Cludio Torres Gonzaga.

    Quando a CORTINA ABRE vemos o quarto de RANA. Uma janela comuma pequena sacada de onde se avista os Balcs. O estilo da decorao se divideentre o faustoso blgaro e o vulgar e barato de Viena. Um oratrio com o Cristo,uma cadeia otomana, cmoda, penteadeira com espelho e porta de entrada. Sobrea cmoda, uma pilha de livros, uma caixa de bombons e, em destaque, uma fotode SERGIUS em uniforme militar.

    (Rana est debruada na sacada curtindo sonhadoramente a noite l fora.Nas caixas de som, ouve-se uma voz grave e circunspecta de homem).

    VOZ EM OFF: Bulgria, 1885. Numa pequena cidade perto do PassoDragoman, uma jovem Blgara, em seu quarto blgaro, contempla, sonhadora,da sacada de janela, a noite estrelada, tendo ao fundo os Balcs, tambmblgaros.

    CATARINA: (Entrando em cena cheia de novidades.) Rana! Rana! (Vaiat a cama e no acha nada) U, cad a Rana? (Percebendo que ela est na

    sacada) Meu Deus, Rana, voc quer ganhar uma pneumonia nessa friagem?

    Voc devia estar na cama, minha filha. Liuka me disse que voc j estavadormindo.

    RANA: As estrelas esto to lindas. Voc reparou na lua cheia, mame?Definitivamente uma noite blgara. Mas o que a senhora quer?

    CATARINA: Grandes notcias! Houve uma batalha terrvel em Slivnitza.

    RANA: E?

    CATARINA: E uma grande vitria blgara conquistada por Sergius.

    RANA: (Num grito de satisfao.) Oh! (As duas se abraam.)

    RANA: E papai, est bem?

    CATARINA: Claro, Foi ele quem mandou as notcias. Sergius um heri, odolo do batalho!

    RANA: E como foi, mame? (Em xtase. ) Oh. mame, mame!(RANA leva a me at a cadeia otomana e as duas se beijam

    2

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    3/61

    freneticamente. )CATARINA: (Com entusiasmo crescente.) Foi emocionante! Uma cargafulminante da cavalaria! Sergius tomou a frente de nossos oficiais russos e, agindopor conta prpria, comandou uma carga da cavalaria contra as armas inimigas. Euposso at ver: nossos bravos e galantes soldados blgaros, com suas espadas eolhos flamejantes, caindo como um trovo sobre aquele bando de canalhas srviose seus oficiais austracos metidos a elegantes. E voc, Rana, francamente. levouum ano para aceitar o pedido de casamento de Sergius! Se voc tiver uma gota desangue blgaro correndo nas veias vai se arrastar aos ps dele quando ele voltar.

    RANA: Agora que Srgius um heri, nem vai ligar para minhas desculpas.Mas no importa, mame, eu estou to feliz, to orgulhosa. Isso prova que nossasidias estavam certas.

    CATARINA: Nossas idias, O que voc quer dizer com isso?

    RANA: Nossas idias sobre Sergius. Nosso patriotismo, nossos ideais hericos.Algumas vezes cheguei a duvidar de tudo isso. Que criaturas incrdulas so asmulheres. Quando eu segurei a espada de Srgius ele me pareceu to nobre. Foitraio minha pensar que... mame, promete guardar um segredo?

    CATARINA: Depende muito, depende muito.

    RANA: Enquanto Srgius me segurava em seus braos me passou pela cabeaque talvez ns s tivssemos ideais hericos porque gostamos de ler Byron ePushkin e porque freqentamos a pera de Bucareste. Mas a vida real todiferente que eu cheguei a duvidar de Srgius. Pensei que seu herosmo fossedesaparecer quando ele estivesse no campo de batalha. Tive medo de que elefizesse um papel ridculo na frente de todos aqueles oficiais do Czar.

    CATARINA: Papel ridculo? Voc deveria se envergonhar, Rana! Srgius umheri.

    RANA: Sim, Srgius um nobre e esplndido heri . Como eu fui idiota. Omundo pode ser glorioso para as mulheres que acreditam na coragem de seushomens. Que felicidade Que...

    (Liuka entra e interrompe.)

    LIUKA: Com licena, madame, todas as janelas devem ser fechadas e trancadasimediatamente. Vai haver tiroteio pelas ruas. (Rana e Catarina se levantam aomesmo tempo, alarmadas ).

    LIUKA: Os srvios esto sendo perseguidos desde o desfiladeiro. Dizem queeles podem entrar na cidade. Nossa cavalaria est atrs deles. Mas o povo da

    3

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    4/61

    cidade esta pronto para receb-los como merecem.(Liuka vai at a sacada, fecha as janelas e volta.)

    CATARINA: Preciso ver se est tudo trancado l embaixo.

    RANA: Espero que nosso povo no seja cruel. Qual a glria de matar fugitivosestropiados?

    CATARINA: Cruel?! Voc acha que eles no hesitariam em matar a todos ns,ou quem sabe fazer coisa pior?

    RANA: (Para Liuka.) Pode deixar as janelas abertas . Se ouvir algum barulhosuspeito eu tranco.

    CATARINA: Nada disso, querida, vamos deixar as janelas bem trancadas. Vocpode cair no sono e esquecer de fechar. Tranca tudo, Liuka.

    LIUKA: Sim, madame. ( Vai trancar as janelas.)

    RANA: No se preocupe, mame, se ouvir um tiro eu apago as velas e me enfiodebaixo das cobertores.

    CATARINA: a melhor coisa a fazer, minha filha. Boa noite.

    RANA: Boa noite (Elas se beijam.)

    RANA: Essa a noite mais feliz de minha vida. Se no me aparecer nenhumsrvio pela frente, claro.

    CATARINA: Vai se deitar e no pense mais nisso. minha filha. (Sai)

    LIUKA:(Em tom de segredo) Se a senhora quiser s empurrar a janela assim

    (Empurrar a janela que se abre. Depois fecha novamente) O ferrolho de baixono tem lingeta.

    RANA: Obrigado, Liuka, mas devemos fazer o que mame mandou. Boa noite.

    LIUKA: Boa noite. (Sai rebolativa) (Rana tira o roupo e o atira na cadeiraotomana. Vai at o retrato de Srgius e o fica adorando como uma sacerdotisa,

    sem beij-lo ou abra-lo).

    RANA: Eu nunca mais duvidarei de voc, meu heri. Nunca mais, nunca mais,nunca mais. (Ela faz uma reverncia, se despedindo da foto. Pega um livro e o

    folheia sonhadora. Suspira feliz e se enfia na cama para ler. Antes de comear,

    4

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    5/61

    olha mais uma vez para a foto.)RANA: Meu heri! Meu heri! (Um tiro l fora. Runa fica atenta. Mais tiros.

    Ela pula da cama e apaga as velas em cima da cmoda e da penteadeira e voltapara a cama. O quarto fica iluminado pela vela da imagem de Cristo. Mais tiros.H uma fuzilaria que ilumina o quarto. De repente, v-se que a janela se abre eum vulto entra fechando novamente a janela. Ele caminha coxeando pelo quarto.O silncio e o escuro so quebrados por um fsforo que aceso pelo vulto.

    RANA: Quem est a ? (O fsforo se apaga imediatamente.)

    RANA: Quem esta a? Quem ?

    HOMEM: (Baixo e ameaador, com um revlver na mo. ) Sshhhh! No gritaseno eu atiro. Seja boazinha que nada de mal vai acontecer. (Rana se levanta da

    cama e tenta chegar a porta.)

    HOMEM: No adianta fugir.

    RANA: Mas quem...

    HOMEM: (Cortando, ameaador.) Cala a boca. Se gritar eu atiro! Acende umavela que eu quero te ver. Voc ouviu? (Aps alguns momentos de silncio eescurido, Rana acende a vela da cmoda. Ela v um homem com uniforme de

    oficial srvio com mais ou menos 35 anos, num estado deplorvel, sujo de sangue,lama e neve.

    HOMEM: Desculpe entrar assim, mas voc reconhece o meu uniforme, no ?Sou do exercito Srvio. Se eu for pego, me matam. (Ameaador, enquanto trancaa porta. ) E eu no pretendo morrer enquanto estiver vivo, entendeu?

    RANA:No. Mas no importa. Alguns soldados tm medo de morrer mesmo.

    HOMEM: Todos, minha cara senhorita, todos tm medo de morrer, podeacreditar. nosso dever viver o mximo que pudermos. Portanto, se der oalarme...

    RANA: O senhor atira. E se eu no tivermedo de morrer?

    HOMEM: A um bando de soldados blgaros entrar por essa porta e memataro como um porco. claro que eu vou resistir como um demnio, no voudeixar que me levem para rua para se divertirem comigo. Eu conheo os soldados blgaros. Mas a senhorita? Est preparada para receber os soldados blgarosnesses trajes?

    (Rana se toca de que veste apenas camisola e fica envergonhada. Ela dirige-

    5

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    6/61

    se cadeira otomana.)HOMEM: Parada! Onde pensa que vai?

    RANA: Vestir meu roupo.

    HOMEM: (Indo at a cadeira e pegando o roupo.) Boa idia. Eu fico com oroupo. Assim voc ser a primeira a ser contra a entrada dos soldados blgarosnesse quarto. Essa arma melhor do que o revlver. (Coloca o revlver sobre acadeira.)

    RANA: Isso no arma de cavalheiro.

    HOMEM: o bastante para quem s tem a senhorita para se proteger da morte.(Nova fuzilaria l fora.)

    HOMEM: Se voc pretende chamar aqueles assassinos para me pegarem ter dereceb-los como est vestida. (Confuso l fora, batidas na porta da casa.)

    VOZ DOS SOLDADOS: Abram a porta! Abram a porta! Acordem e abram essaporta!

    VOZ DE UMA CRIADA: Essa a casa do major Petkoff, vocs no podementrar. (Mais batidas na porta que parece ser arrombada. Sons de passos e

    murmrios dos soldados entrando.)

    VOZ DE CATARINA: O que significa isso, senhor? Vocs sabem onde esto?(O barulho diminui l embaixo.)

    VOZ DE LIUKA: (Batendo na porta do quarto de Rana.) Senhora! Senhora!Levante e abra a porta. Seno eles vo arrombar.

    HOMEM: No adianta, minha senhora, estou perdido. (Atira o roupo a Rana).

    Vista-se antes que eles entrem.RANA: Obrigada. ( Veste-o)

    HOMEM: No tem de qu.

    RANA: O que voc vai fazer?

    HOMEM: O primeiro que entrar vai ver. Fica longe da porta. No vai demorarmuito, mas no vai ser bonito de se ver. (Tira o sabre e fica diante da portaesperando.)

    6

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    7/61

    RANA: Eu vou te ajudar.HOMEM: Voc no pode.

    RANA: Claro que posso. Eu vou te esconder. (Leva o homem at a janela.)Entra aqui, atrs da cortina.

    HOMEM: Nesse caso, talvez haja metade de uma chance. Mas voc vaiconseguir se controlar?

    RANA: (Fechando a cortina e indo para a otomana.) Sshhhh.

    HOMEM: (Colocando a cabea fora da cortina.) Mas no se esquea, hein?

    RANA: De qu?

    HOMEM: De que nove entre dez soldados so idiotas de nascena. (Rana fechaa cortina com raiva. Ele coloca a cabea de fora novamente, agora do outro ladoda cortina.)

    HOMEM: Se me acharem, vou lutar at a morte. (Rana o encara com dio e elese esconde. Ela tira o roupo e o atira no p da cama, faz um ar de quem acaboude sair da cama e vai abrir a porta. Liuka entra excitada.)

    LIUKA: Uma daquelas bestas srvias foi vista escalando sua janela peloencanamento. Nossos homens querem procurar aqui. Eles esto furiosos ebbados, parecem uns selvagens. (Vai para o outro lado do quarto, procurandoficar o mais longe possvel da porta.) Sua me disse pra senhora se vestir o maisrpido possvel e... (V o revlver sobre a otomana e se cala petrificada.)

    RANA: (Como se estivesse irritada por ter seu sono interrompido.) Eles novo procurar aqui. Por que os deixaram entrar?

    CATARINA: (Entrando apressadamente.) Rana, querida, voc est bem? Vocouviu algum barulho aqui em cima?

    RANA: Eu ouvi um tiroteio. Mas com certeza nossos soldados no vo quererentrar aqui, no ?

    CATARINA: Graas a Deus eu encontrei um oficial russo que conhece Srgius.(Falando para algum do outro lado da porta.) Senhor, pode entrar agora. Minhafilha vai receb-lo. (Entra o oficial russo vestido com uniforme blgaro e umaespada na mo.)

    OFICIAL: Boa noite, graciosa senhorita. Desculpe a intromisso, mas h um

    7

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    8/61

    fugitivo srvio escondido na sua sacada. Vocs poderiam se retirar enquantodamos uma busca?

    RANA: Ridculo, senhor. No tem ningum na sacada. (Rana abre as janelasmostrando a sacada e fica em p, de costa para a cortina onde o homem estescondido. Ouve-se alguns tiros bem abaixo da sacada. Uma bala atinge umavidraa. Rana estremece de susto mas mantm sua posio. O oficial russo vaiat a sacada e grita para os soldados l embaixo.)

    OFICIAL: Cuidado a em baixo! Cessem fogo, seus idiotas! Vocs esto meouvindo, seus cretinos?! (Para Rana.) Algum pode ter entrado sem que asenhorita percebesse?

    RANA: Impossvel, eu ainda nem tinha me deitado.

    OFICIAL: (Impaciente, voltando para o quarto.) Seus vizinhos andam vendofugitivos srvios por toda parte. Adorvel senhorita, um milho de desculpas. Boanoite. (Ele cumprimenta a todos e se retira. Catarina o segue. Rana fecha a

    janela e percebe Liuka que esteve o tempo todo observando a cena comcuriosidade.)

    RANA: Fique perto de mame at que os soldados saiam, Liuka. (Liuka olhapara Rana, para a otomana e para a cortina onde o homem se esconde. D um

    muxoxo, ri insolente e sai. Rana, revoltada com a atitude da criada, vai atrs ebate a porta com fora depois que ela sai e a tranca. O homem sai de trs dacortina com o sabre na mo.)

    HOMEM: Foi por um triz. (Numa reverncia.) Senhorita, seu servidor at amorte. Eu devia ter me alistado no exrcito blgaro. Eu no sou srvio.

    RANA: Ah, o senhor deve ser um desses austracos que enviam srvios pararoubar nossa liberdade. Conheo bem o seu tipo. Ns blgaros os odiamos.

    HOMEM: No me odeie toa, senhorita. Eu no sou austraco. Sou ummercenrio suo. S me alistei no exrcito srvio porque eles chegaram primeirona Sua. Seja mais generosa, vocs blgaros j bateram na gente o bastante porhoje.

    RANA: Por acaso eu no tenho sido generosa?

    HOMEM: Nobilssima. Uma verdadeira herona. Mas eu ainda no estou salvo.Ainda tenho uma noite inteira de fuga pela frente. Importa-se que eu fique aquipor mais um ou dois minutos?

    8

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    9/61

    RANA: Claro que no. No quer sentar?HOMEM: Obrigado. (Ele senta no p da cama. Rana, elegantemente, vai at aotomana e, sem perceber, se senta em cima do revlver, levando um enorme sustoe dando um grito. O homem estremece ao ouvir o grito.)

    HOMEM: Quer me matar do corao? O que foi?

    RANA: Seu revlver. Esteve vista do oficial russo o tempo todo. Que sorte eleno ter percebido.

    HOMEM: S isso!

    RANA: (Irnica.) Desculpe por t-lo assustado. (Entrega o revlver para ele.)Toma o revlver. Para se proteger de mim.

    HOMEM: Esse revlver no serve para nada. Est descarregado. (Sorri e colocao revlver no coldre.)

    RANA: Ento melhor carreg-lo.

    HOMEM: Eu no tenho munio. Balas no servem para nada numa batalha.Em vez delas, eu carrego chocolates. S que o ltimo acabou h algumas horasatrs.

    RANA: Chocolate! Quer dizer que quando vai para uma batalha voc enche osbolsos de chocolate como uma criancinha?

    HOMEM: No desprezvel? Mas o que eu mais gostaria agora era umchocolate para comer.

    RANA: Com licena. (Vai at a cmoda e volta com a caixa de bombons.)Pena que eu comi quase todos. (Oferece a ele.)

    HOMEM: Voc um anjo. (Devora alguns. Procura mais na caixa, mas noacha mais nada.) Hum, que delcia. Deus a abenoe. Sabe como se diferencia umsoldado jovem de um veterano? Pelo contedo das caixas de munio quecarregam. O jovem leva munio e o veterano comida. Muito obrigado. (Eleentrega a caixa de volta. Rana pega a caixa abruptamente e a atira longe. Eleleva outro susto.

    HOMEM: Voc que me matar do corao, no ? Est se vingando porque eu aassustei quando entrei no quarto?

    RANA: Me assustou? Tem graa. Pelo que estou vendo, sou mais corajosa que o

    9

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    10/61

    senhor.HOMEM: Acredito. Acontece que voc no passou trs dias debaixo de fogocruzado. Dois dias ainda d para suportar, mas trs, ningum aguenta. Eu estouuma pilha de nervos. (Senta na otomana e coloca a cabea entre as mos.)Gostaria de me ver chorar?

    RANA: No!

    HOMEM: Se quiser, s me repreender como se eu fosse uma criana, que eucomeo.

    RANA: (Comovida) Desculpe, eu no vou repreend-lo.(Ele levanta a cabea e olha para ela, que fica sem graa e disfara, se

    afastando da otomana.)

    RANA: Nosso Soldados so bem diferentes do senhor.

    HOMEM: Bobagem. S existem dois tipos de soldados: os veteranos e osjovens. Eu servi durante quatorze anos. A maioria dos soldados blgaros nuncasentiu o nem o cheiro de plvora. Como que eles nos venceram? Pura ignornciasobre a arte da guerra, nada mais. (Indignado) Eu nunca vi nada to amador emtoda a minha vida.

    RANA: (Irnica.) Foi amadorismo vencer vocs?

    HOMEM: No amadorismo lanar um regimento de cavalaria contra umabateria de metralhadoras? Se nossas armas atirassem no sobraria nem um cavalopra contar a historia. Eu no pude acreditar quando vi tanta ignorncia.

    RANA: (Ansiosa e entusiasmada.) Voc viu a grande carga da cavalaria? Contacomo foi, conta!

    HOMEM: Voc nunca viu uma carga de cavalaria, viu?RANA: Como poderia ter visto?

    HOMEM: uma coisa engraada. como soltar um monte de ervilhas sobreuma tbua inclinada: na frente vem uma ervilha, seguida de perto por duas ou trse l atrs vem o resto amontoado.

    RANA: (Com os olhos brilhando, em xtase.) Sim, o primeiro deles? O maisbravo de todos!

    HOMEM: Voc devia ter visto o pobre coitado tentando frear o cavalo.

    10

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    11/61

    RANA: Por que ele tentaria frear o cavalo?

    HOMEM: (Impaciente com tanta ignorncia.) Porque o cavalo tinha disparado,claro. Ou voc acha que ele queria ser o primeiro a levar um balao demetralhadora na cara? Sabe, voc pode diferenciar os veteranos dos novatos peloolhar selvagem. Os jovens vm sempre na frente feito doidos e os veteranos ficaml atrs. Eles sabem que no passam de fantoches e que no adianta nada lutar.Seus ferimentos, em geral so joelhos quebrados pelo empurra-empurra doscavalos.

    RANA: Eu no acredito que o primeiro homem seja um covarde. Eu sei que ele heri!

    HOMEM: (Irnico.) Claro, um heri , a senhorita devia ter visto o homem quecomandou acarga de hoje.

    RANA: (Com falta de ar.) Eu tinha certeza! Conta como foi!

    HOMEM: Ele parecia um tenor de pera. Um sujeito simptico, com o olharflamejante e um adorvel bigode. Parecia Dom Quixote de La Mancha avanandocontra os moinhos de vento. Nosso batalho caiu na gargalhada.

    RANA: Vocs ousaram rir?

    HOMEM: Claro. Mas quando nosso sargento apareceu branco como uma folhade papel, dizendo que tinham mandado pra gente munio de calibre errado nsengolimos o riso. Nunca fiquei to danado na vida. Eu no tinha um cartucho nomeu revlver, s chocolates. Nem baionetas ns tnhamos. claro que eles iamnos partir em pedaos. E l vinha aquele Quixote ensandecido, pensando que tinhafeito a coisa mais inteligente de mundo. Esse cara devia pegar uma corte marcial.De todos os idiotas que j soltaram num campo de batalhas esse foi o maior. Ele

    simplesmente levou seu regimento ao suicdio. Se salvaram apenas porque notnhamos munio. S isso.

    RANA: (Profundamente decepcionada, mas mantendo as aparncias.) Comcerteza voc reconheceria esse homem se o visse novamente?

    HOMEM: Claro. Eu nunca vou esquecer a cara daquele idiota. (Ela vai at acmoda. Ele a olha esperando por mais alguma coisa para comer. Ela traz oretrato de Srgius e o mostra a ele.)

    RANA: Esse o cavalheiro e heri de quem estou noiva.

    11

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    12/61

    HOMEM: (Reconhecendo Srgius com um choque.) Mil perdes. No devia terme deixado falar tanto. (Olha o retrato novamente.) No h dvida: o DomQuixote. (Comea a rir.)RANA: Por que est rindo?

    HOMEM: (Prendendo o riso.) Eu no estou rindo. Mas quando eu lembro doDom Quixote avanando...

    RANA: Devolva meu retrato, senhor.

    HOMEM: Claro. Desculpe-me. (Ele entrega o retrato. Ela beija o retrato e olhadiretamente para o rosto do homem enquanto o coloca de volta na cmoda. Ele a

    segue desculpando-se.)

    HOMEM: Bem, talvez eu esteja enganado. Provavelmente ele descobriu nossoproblema com a munio e sabia que a carga da cavalaria era uma ao segura.

    RANA: Agora o senhor quer dizer que meu noivo um farsante e covarde!

    HOMEM: No adianta, minha cara senhorita. Eu no vou conseguir faz-la veras coisas pelo lado profissional.

    (Mais tiros so ouvidos. Ele empurra o ouvido para ouvi-los.)

    RANA: Melhor para voc.

    HOMEM: Como assim?

    RANA: Voc meu inimigo e est nas minhas mos. O que eu deveria fazer seencarasse as coisas pelo lado profissional?

    HOMEM: verdade, voc est certa. Eu reconheo que voc tem sido boa para

    mim. At a hora de minha morte lembrarei daqueles bombons maravilhosos. Asenhorita no foi profissional, mas foi angelical.

    RANA: Obrigada. S que agora sou obrigada a fazer uma coisa profissional.Depois de tudo que disse sobre meu noivo voc no pode mais ficar aqui.Eu vouat a sacada ver se est tudo bem para voc descer de volta pelo encanamento. (Sevolta para a janela.)

    HOMEM: Pelo encanamento! De jeito nenhum! Eu no vou conseguir. Eu ssubi porque a morte vinha atrs de mim. Mas encarar o encanamento assim, asangue frio! (Se largando na otomana.) No adianta mais. Eu desisto. Pode dar oalarme. (Afunda a cabea entre as mos. Rana, fala quase maternalmente

    12

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    13/61

    enquanto ele balana a cabea negativamente.)RANA: Coitado do meu soldadinho de chocolate. Vamos l, nimo! maisfcil encarar o encanamento do que a captura.

    HOMEM: (Sonhador.) No, a captura significa a morte e a morte umdescanso. Um eterno descanso. Descer o encanamento significa ter que agir,pensar, correr. Prefiro dez vezes a morte.

    RANA: Voc est to cansado assim?

    HOMEM: Desde que me alistei que eu no durmo duas horas seguidas. Faz maisde quarenta e oito horas que no fecho os olhos.

    RANA: Mas o que eu vou fazer com voc dentro do meu quarto?

    HOMEM: Voc tem razo, eu tenho que tomar uma atitude. Bom, aqueleencanamento deve ser escalado, (Batendo no prprio peito.) ouviu, soldadinho dechocolate? (Vai para a janela.)

    RANA: Mas e se voc cair?

    HOMEM: Fico l dormindo como se o cho fosse uma cama de plumas. Adeus.

    (Quando ele vai abrir a janela h um tiroteio l embaixo. Rana corre at ele e osegura.)

    RANA: No! Eles vo te matar.

    HOMEM: No faz mal. Morrer faz parte do meu trabalho. (Decidido.) Apagueessa vela pra que eles no vejam luz quando eu abrir a janela. E fique longe daqui.Se eles me virem vo atirar.

    RANA: Eles vo te ver. A noite est muito clara l fora. Eu vou salv-lo. Comovoc pode ser to indiferente? Voc quer que eu o salve?

    HOMEM: Na verdade no quero incomodar.(Rana balana a cabea impacientemente.)

    HOMEM: Eu no sou indiferente, senhorita. Mas o que podemos fazer?

    RANA: Fica longe dessa janela.(Ela o afasta da janela at o meio do quarto, mas mecanicamente ele volta

    para l. Ela o afasta novamente.)

    13

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    14/61

    RANA: Por favor! (Ele fica imvel, como se o cansao o tivesse vencido.)RANA: Agora escuta: Voc deve confiar na nossa hospitalidade. Eu sou umaPetkoff.

    HOMEM: P de quem?

    RANA: Eu disse que perteno famlia dos Petkoff, a mais rica e famosa famliade nosso pas.

    HOMEM: Ah sim, claro. Mil desculpas. Os Petkoffs, claro, que estupidez aminha.

    RANA: Deixa de ser cnico. Voc nunca ouviu falar nesse nome antes.

    HOMEM: Mil perdes, mas eu estou cansado demais para pensar. A mudana deassunto foi rpida demais pra mim. No me censure, por favor.

    RANA: Claro, voc pode comear a chorar. (Ele concorda com a cabea.)

    RANA: Meu pai o oficial mais alta patente em toda Bulgria. (Orgulhosa.)Ele major!

    HOMEM: (Irnico, fingindo estar muito impressionado.) Um major! Puxa vida!

    Deus o abenoe. Quem diria, um major.

    RANA: Voc foi um ignorante ao pensar que pra subir at aqui era necessrioescalar o encanamento. Ns temos uma escada dentro de casa que usamos parasubir e descer.

    HOMEM: Uma escada! Genial! Voc vivem em grande luxo por aqui, senhorita!

    RANA: Voc sabe o que uma biblioteca?

    HOMEM: Uma sala cheia de livros?

    RANA: Sim, e ns temos uma tambm, a nica biblioteca de toda a Bulgria.

    HOMEM: (Irnico. ) Realmente, uma biblioteca! tudo o que eu preciso agora.

    RANA: (De modo afetado.) Eu digo essas coisas apenas para mostrar que vocno est na casa de ignorantes camponeses que iriam mat-lo quando vissem seuuniforme srvio, mas sim na casa de pessoas civilizadas. Todo ano ns assistimosa temporada de pera em Bucareste. E eu j passei um ms inteirinho em Viena.

    14

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    15/61

    HOMEM: Logo de cara eu percebi que a senhorita era uma moa muito viajada.RANA: Viajada e educada. E a boa educao manda receber bem os hspedes.

    HOMEM: O que a senhorita quer dizer com isso?

    RANA: Que se em vez de me ameaar com um revlver voc simplesmentetivesse me pedido abrigo, teria ficado seguro como se estivesse na casa de seu pai.

    HOMEM: (Irnico.) mesmo?

    RANA: (Dando-lhe as costas com desgosto.) intil tentar fazer o senhorentender, no ?

    HOMEM: No fique zangada, mas eu no podia correr riscos. Imagina o que

    aconteceria comigo se voc no fosse to hospitaleira assim? Meu pai, porexemplo, um homem muito hospitaleiro: ele tem seis hotis. Mas eu noconfiaria muito nele. E o seu pai?

    RANA: Ele est em Slivnitza lutando por nosso pas. Eu garanto sua segurana.Aqui est minha mo como prova. (Estende a mo.) Fica mais tranqilo agora?

    HOMEM: (Olhando com dvida para suas prprias mos.) melhor no apertarminha mo agora, senhorita. Eu preciso lav-las antes.

    RANA: muito gentil de sua parte. Vejo que um cavalheiro.

    HOMEM: Ah?!

    RANA: Os blgaros de nossa posio tambm lavam as mos quase todos osdias. Aprecio sua delicadeza, mas voc pode pegar minha mo. (Oferece a monovamente.)

    HOMEM: (Beijando a mo de Rana com suas mos s costas.) Obrigadograciosa senhorita. Me sinto finalmente seguro. E agora a senhorita se importariade contar as novidades sua me? No gostaria de ficar escondido no seu quartomais tempo do que o necessrio.

    RANA: Se voc fizer o favor de ficar em completo silncio enquanto eu estiverfora.

    HOMEM: Com certeza.(Senta na otomana. Rana veste o roupo. Os olhos dele se fecham. Ela vai

    saindo, d uma ltima olhada e v que ele est comeando a cair no sono.)

    15

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    16/61

    RANA: Voc no vai cair no sono, vai? (Ele murmura palavras ininteligveis.Ela volta e o chacoalha.)

    RANA: Voc ouviu? Acorda! Voc est dormindo!

    HOMEM: Dormindo? No, eu s estava pensando. Est tudo bem. Eu estoucompletamente acordado.

    RANA: Por favor, fique em p enquanto vou l embaixo. (Ele levanta relutante.

    RANA: No vai dormir, hei?

    HOMEM: Claro, pode contar comigo. (Rana olha desconfiada para ele e sai.)

    HOMEM: (Tonto de sono.) Dormir, dormir, dormir dor... (Quando est paracair no sono tem um sobressalto.) Onde estou? Preciso ficar acordado. S o perigome mantm acordado. Perigo, perigo, peri... (Vai apagar e novo sobressalto.)Onde est o perigo, preciso achar o perigo. (Vagueia pelo quarto.) O que eu estouprocurando? Dormir, perigo, eu no sei... (Tropea na cama.) Ah, sim, agora eulembrei, eu vou pra cama mas no vou dormir, no vou dormir por causa do perigo. No, deitar no, s sentar na cama. (Senta na cama.) Ah! (Acaba sedeitando e dorme imediatamente.)

    (Entra Catarina seguida por Rana.)

    RANA: (Olhando para a otomana.) Ele se foi . Eu o deixei aqui.

    CATARINA: Ento ele deve ter descido pelo encanamento.

    RANA: Oh! (Vendo-o na cama e apontando para ele.)

    CATARINA: Que vergonha! (As duas se aproximam e ficam cada uma de umlado da cama.)

    CATARINA: Caiu no sono, o mal educado!

    RANA: Sshhh!

    CATARINA: Senhor! Senhor! Senhor! (Sacudindo-o cada vez com maisfora.)

    RANA: Por favor, mame, o coitadinho est morto de cansao. Deixa eledormir.

    16

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    17/61

    (Segurando a me.)CATARINA: Coitadinho! Rana! (Largando-o e olhando indignada para

    Rana).(Catarina olha severamente para a filha. O homem dorme profundamente.)

    SEGUNDO ATO

    ( 6 de maro de 1886. Jardim da casa dos Petkoff. O jardim estfresco e bonito. Ao fundo, um vale com torres indicando uma pequena cidade e,mais atrs, os Balcs. O acesso do jardim para a casa feito por uma lance deescadas. Algumas peas de roupa secam sobre pequenos arbustos. direita, acocheira. No centro do jardim uma mesa onde um caf da manh acabou de sertomado. Liuka fuma um cigarro desdenhando Nicola que a censura. Ele veste um

    traje blgaro.)

    NICOLA: Voc precisa controlar o seu gnio, Liuka. Eu conheo a patroa. Ela seacha to importante que s de pensar que voc pode desafi-la, te manda pro olhoda rua.

    LIUKA: Eu desafio quem eu quiser. No t nem ligando pra ela.

    NICOLA: , mas se voc brigar com a famlia eu no vou poder casar com

    voc. Brigar com a famlia a mesma coisa que brigar comigo.

    LIUKA: E voc ainda fica do lado deles?!

    NICOLA: Eu sempre vou depender deles. Quando sair daqui e abrir minha lojaem Sofia, uma palavra negativa deles e babaus, eu vou falncia.

    LIUKA: Voc no tem aquilo roxo! Eu quero ver falarem alguma coisa de mim!

    NICOLA: Eu esperava mais juzo de voc, Liuka, mas t vendo que voc muitojovem pra isso.LIUKA: E exatamente por ser jovem que voc gosta de mim. Pois sendo jovemou no, eu sei todos os podres deles. Eles que ousem brigar comigo!

    NICOLA: Sabe que eles fariam se te vissem falando assim?

    LIUKA: O que eles poderiam fazer?

    NICOLA: Te botam no olho da rua na hora. Quem ia acreditar nas histrias quevoc conta? Quem ia te dar outro emprego? Quanto tempo iam deixar o seu pai

    17

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    18/61

    vivendo l na fazenda?(Liuka joga fora o cigarro.)

    NICOLA: Voc no sabe a fora que os ricos tm sobre os pobres.Principalmente sobre esses que ficam querendo ser como eles. ( Se aproximadela, com voz delicada.) Olha pra mim: h dez anos que trabalho para eles. Vocacha que eu tambm no sei de todos os podres deles? Eu sei coisas que a patroadaria mais de mil levas para que o patro no soubesse. Eu sei coisas sobre Ranaque fariam seu noivado com Srgius ir por gua abaixo.

    LIUKA: Como que voc sabe? Eu no falei nada pra voc.

    NICOLA: Ento esse o segredo? Bem que imaginei que devia ser alguma coisapor a. Se eu fosse voc, agiria com mais respeito e ganharia a confiana dela.

    isso o que eles querem e dessa maneira que voc consegue arrancar o mximodeles.

    LIUKA: Voc tem alma de empregado. Nicola!

    NICOLA: Tenho. Esse o segredo do sucesso na nossa profisso. (Ouve-sealgum batendo na porta do estbulo.)

    VOZ DEPETKOFF: Al! Tem algum a? Nicola, cad voc?

    LIUKA: o patro voltando da guerra.

    NICOLA: . infelizmente a guerra acabou. Se eu fosse voc ia logo buscar caffresco pra ele. (Ele sai para abrir a porta para Petkoff)

    LIUKA: Voc nunca vai colocar sua alma de empregado em mim. (Limpando amesa, colocando pratos e talheres numa bandeja e entrando na casa.)

    (Entra Petkoff com um chicote na mo, feliz por voltar para casa, seguido de

    Nicola.)PETKOFF: Caf da manh no jardim, hein?

    NICOLA: Sim senhor. Apatroa e a senhorita acabaram de entrar.

    PETKOFF: Ento vai l dentro chamar todo mundo e aproveita e me traz umcaf. (Sentando e pegando um pozinho.)

    NICOLA: J est vindo, senhor . (Ele entra na casa e Liuka chega com caffresco, uma xcara limpa e uma garrafa de conhaque.)

    18

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    19/61

    NICOLA: (Para Liuka.) J avisou patroa?LIUKA: Avisei. Ela j vem.

    PETKOFF: Pelo que vejo os srvios no levaram voc com eles, hem, Liuka!

    LIUKA: No senhor.

    PETKOFF: timo. Trouxe o conhaque?

    LIUKA: Aqui est. (Colocando a garrafa na mesa.)

    PETKOFF: Muito bem. (Enche a xcara de caf com conhaque.)(Entra Catarina vestindo um avental blgaro por cima de um vestido

    velho, um leno amarrado na cabea e sandlias sem meia. Apesar do traje, se

    porta como se estivesse tremendamente atraente e majestosa. Liuka entra para acasa.)

    CATARINA: Paul, querido! Que surpresa! (Vai at ele e o beija por trs de suacadeira.) J trouxeram caf fresco pra voc?

    PETKOFF: J. Liuka est cuidando bem de mim. Querida, a guerra acabou. Otratado de paz foi assinado h trs dias em Bucareste. O decreto para que nossoexrcito seja desmobilizado saiu ontem.

    CATARINA: (Indignada.) Paul, voc deixou que os austracos te forassem aaceitar a paz?

    PETKOFF: Querida, eles no me consultaram. O que eu podia fazer? Masfizemos um honoroso tratado de paz...

    CATARINA: (Cortando, ultrajada.) Paz!

    PETKOFF: . . . mas sem relaes cordiais. Eles queriam incluir relaes cordiaisno tratado mas eu fiz questo de no deixar. O que mais eu podia fazer?

    CATARINA: Se fosse comigo eu anexava a Srvia e fazia o Prncipe Alexandreimperador dos Balcs.

    PETKOFF: No duvido, querida. Mas antes eu teria que subjugar todo oimprio austraco. E para fazer isso teria de ficar longe de voc por muito maistempo. Eu estava morrendo de saudades.

    CATARINA: Oh! (Enternecida, esticando a mo at ele.)

    19

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    20/61

    PETKOFF: Como que voc passou este tempo todo?CATARINA: Com as minhas dores de garganta, como sempre.

    PETKOFF: Isso por causa dessa sua mania de lavar o pescoo todo dia. Eu jte avisei que isso no faz bem.

    CATARINA: Besteira, Paul.

    PETKOFF: (Entre goles de caf e baforadas de cigarro.) Eu acho que nuncavou me acostumar com esses costumes modernos. Essa lavao toda no faz bem asade. No natural. Tinha um ingls em Filippolis que tomava banho frio tododia. Que coisa mais desagradvel. Mas o sujeito sendo ingls, a gente entende: oclima deles to sujo que eles tm de tomar banho todo dia. Mas ns, blgaros,no precisamos disso. Meu pai, por exemplo: nunca tomou um banho na vida e

    viveu at os 98 anos. Foi o homem mais saudvel de toda a Bulgria. Eu no meimporto com um bom banho uma vez por semana s pra manter as aparncias.Mas todo dia ridculo!

    CATARINA: Voc ainda um perfeito brbaro, Paul. Espero que tenha secomportado na frente de todos aqueles oficiais russos.

    PETKOFF: Fiz o melhor que pude. E fiz questo de que soubessem que nstemos uma... (Sempre que falar biblioteca dar um tom orgulhoso palavra.)

    biblioteca em casa.

    CATARINA: E voc falou que ns tambm temos uma campanhia eltrica?

    PETKOFF: Campanhia eltrica? O que isso?

    CATARINA: A gente aperta um boto aqui, a campainha toca l na cozinha eNicola aparece.

    PETKOFF: No melhor gritar?CATARINA: Gente civilizada no grita pelos criados, Paul. Aprendi issoenquanto voc estava fora.

    PETKOFF: (Indicando as roupas que secam sobre os arbustos.) Pois eu tambmaprendi uma coisa quando estava fora: pessoas civilizadas no pem suas roupaspara secar onde as visitas podem ver.

    CATARINA: Que absurdo, Paul. Eu no acredito que pessoas finas vo repararnessas coisas.

    20

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    21/61

    SERGIUS: (Batendo na porta.)Nicola! Abre a porta pra mim.PETKOFF: Srgius! (Berrando.) Nicola!

    CATARINA: No grita, Paul, no educado.

    PETKOFF: Bobagem. (Gritando ainda mais alto.) Nicola!

    NICOLA: (Aparecendo na porta da casa.) Sim senhor?

    PETKOFF: Ficou surdo. No ouviu o major Sarahnoff? Abre aporta para ele.

    NICOLA: Sim, major. (Vai abrir a porta para Sergius.)

    PETKOFF: Voc podia conversar com Srgius antes que Rana o seqestre. Ele

    est me enchendo o saco porque no o promovemos. E de preferncia converselonge de mim.

    CATARINA: Ele devia ser promovido, Paul. Principalmente depois de casar comRana. Alm do mais, a Bulgria deveria ter pelo menos um general blgaro.

    PETKOFF: Claro, pra ele arriscar a vida de brigadas inteiras em vez de apenasregimentos de cavalaria! No adianta, querida. Enquanto houver possibilidade deguerra ele no tem a menor chance de ser promovido.

    NICOLA: (Anunciando a porta.) O major Sergius Sarahnoff.(Sergius entra. Nicola entra na casa e volta com uma cadeira. Catarina o

    recebe com entusiasmo, o mesmo no acontecendo com Petkoff.)

    PETKOFF: Prazer em v-lo, Sergius.

    CATARIANA: Meu querido Sergius!(Segura as duas mos dele.)

    SERGIUS: Minha querida mame, se permite a intimidade. (Beija as mos deCatarina com elegncia.)

    PETKOFF: (Seco.) Sogra, Sergius, sogra. Vamos sentando, aceita um caf?

    SERGIUS: No obrigado. (Se afasta com um pouco de repugnncia de Petkoff e seu caf e fica no p

    da escada que leva para a casa.

    CATARINA: Voc est com aspecto soberbo. A guerra fez muito bem pra voc.Todos ns ficamos loucos de entusiasmo quando soubemos da sua magnfica

    21

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    22/61

    carga da cavalaria.SERGIUS: Madame, aquela carga da cavalaria foi o incio e o fim de minhacarreira militar.

    CATARINA: Como que ?

    SERGIUS: Eu ganhei a batalha do jeito errado enquanto nossos dignos oficiaisrussos a estavam perdendo da maneira certa. Pra resumir, eu atrapalhei seusplanos, feri a auto estima deles. Eu soube que dois coronis cossacos e seusregimentos foram obrigados a bater em retirada de acordo com os mais rgidosprincpios cientficos da guerra. Os dois foram promovidos a major general e eucontinuo um simples major.

    CATARINA: Voc no devia falar assim, Sergius. Ns mulheres estamos do seu

    lado. Em breve a justia ser feita.

    SERGIUS: Agora tarde demais. Eu s estava esperando o fim da guerra parapedir baixa do exrcito.

    PETKOFF: Baixa.! (Cuspindo caf, assustado.)

    CATARINA: Voc deve voltar atrs, Sergius!

    SERGIUS: Eu nunca volto atrs, madame!

    PETKOFF: Quem podia imaginar que voc ia fazer uma coisa dessas?

    SERGIUS: Todos que me conhecem. Mas vamos mudar de assunto. E Rana,onde est?

    RANA: (Aparecendo subitamente e fazendo pose no alto da escada que leva acasa). Rana est aqui! (Ela esta vestida de maneira blgara e elegante, com um

    gorro dourado na cabea. Sergius imediatamente vai at ela, que lhe estende amo. Ele se ajoelha e a beija.)

    PETKOFF: (A parte, para Catarina, pai coruja.) No e bonito? Ela sempreaparece na hora certa.

    CATARINA: (Impaciente). Ela fica escutando por trs das portas! Um hbitohorrvel! Estou cansada de falar, mas no adianta!

    (Sergius conduz Rana at a mesa. Ela agradece com um aceno de cabea evai at o pai .)

    22

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    23/61

    RANA: (Beijando-o. ) Papai querido! Bem-vindo ao lar!PETKOFF: (Acariciando suas bochechas e beijando-a ) Minha garotinha!(Rana vai se sentar na cadeira de Sergius.)CATARINA: Ento voc no mais soldado, Sergius?

    SERGIUS: No. A arte blica mais arte covarde que consiste em atacarimpiedosamente quando se forte e evitar o conflito quando se e fraco. Esse osegredo do sucesso na guerra: pegue seu inimigo em desvantagem e nunca, emhiptese alguma, lute em igualdade de condies.

    PETKOFF: No h justia na guerra, isso l verdade. A guerra um negciocomo outro qualquer.

    SERGIUS: Exatamente. Mas eu tenho ambies de ser um bem sucedido homemde negcios. Por isso resolvi seguir os conselhos daquele capito safado quenegociou conosco a troca de prisioneiros em Pirot e desisti.

    PETKOFF: O qu? O suo? Aquele Capito enganou a gente com aquelescavalos.

    SERGIUS: Claro que nos enganou Ele sabia tudo sobre cavalos. Aquilo sim queera um verdadeiro soldado. Soldado da cabea aos ps. Se eu s comprasse

    cavalos em vez de liderar cargas de cavalaria j seria marechal de campo.

    CATARINA: Um suo? O que ele estava fazendo no exrcito srvio?

    PETKOFF: Era um voluntrio, claro. O melhor que j vi na profisso. Ns noteramos condies de comear uma guerra se esses estrangeiros no nosensinassem. No sabamos nada sobre a guerra. Nem os srvios. Sem eles no teriahavido guerra.

    RANA: Existem muitos oficiais suos no exrcito srvio?PETKOFF: No, so todos austracos, assim como todos os nossos oficiais sorussos. Esse era o nico. Nunca mais confiarei num suo. Ele nos fez darmos 50homens por duzentas mulas de carga que no serviam nem para fazer salsichablgara.

    SERGIUS: Parecamos duas crianas nas mos de um experiente soldado.

    RANA: Como ele era?

    CATARINA: Ora, Rana, que pergunta boba!

    23

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    24/61

    PETKOFF: (Rindo) Sergius, conta para Catarina aquela histria esquisita queum amigo dele nos contou sobre como ele escapou de Slivnitza. Voc sabe.Aquela, que ele foi escondido por duas mulheres blgaras.

    SERGIUS: (Irnico.) Ah, foi quase um romance. Ele estava na bateria srviaque eu to amadoristicamente ataquei. Para escapar de nossos sabres ele escalou oencanamento de uma casa e foi se esconder no quarto de uma jovem blgara. Ajovem, encantada com suas maneiras persuasivas, o entreteve durante uma hora oumais e depois chamou a me para que sua conduta parecesse honrada. A velhasenhora tambm ficou encantada e permitiu que o suo fosse embora somente nodia seguinte e ainda lhe ofereceu um velho sobretudo que pertencia ao dono dacasa, que estava a na guerra.

    RANA: (Irada.) A guerra fez de voc um grosso,. Sergius. Eu nunca poderiaimaginar que voc teria coragem de contar semelhante histria a na minha frente !(D as costas friamente.)

    CATARINA: (Se levantando indignada). Ela tem razo, Sergius. Se esse tipo demulher blgara existe, ns preferamos no saber.

    PETKOFF: Besteira! O que isso tem de mais?

    SERGIUS: (Envergonhado.) No, eu errei. (Para Rana, humilde.) Mil perdes,querida. Eu me comportei de maneira abominvel. (Se curva educadamente.)Depois, para Catarina) E a senhora tambm, madame, mil perdes. (Catarinaacena com a cabea e se senta novamente. Sergius continua, solene, para Rana.)

    SERGIUS: As coisas horrveis que vi nestes ltimos meses me transformaramnum cnico. Mas eu no devia trazer esse cinismo para c, especialmente em suapresena, Rana. Aproveitando a ocasio gostaria de dizer tambm. . .

    PETKOFF: (Cortando Sergius, ao perceber que ele vai iniciar um discurso pno saco.) Bobagem, Sergius. Essas duas esto fazendo uma tempestade num copodgua. A filha de um soldado deve ser capaz de ouvir conversas pesadas. (Selevanta.) Bom, est na hora de trabalhar. Ns temos que resolver como vamosmandar aqueles 3 regimentos de volta a Filippolis: no existe forragem para osanimais no caminho. (Vai andando para a casa.) Vamos l. (Sergius vai segu-lo, mas Catarina intervm.)

    CATARINA: Ora, Paul, voc no pode roubar Sergius por alguns minutos?Rana ainda nem teve tempo de conversar direito com ele. Talvez eu possa ajudarno negcio dos regimentos.

    24

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    25/61

    SERGIUS: Impossvel, madame, a senhora. . .CATARINA: (Cortando), brincalhona.) Voc fica aqui, meu caro Sergius. Eutenho umas palavrinhas para trocar com Paul. (Tomando o brao do marido.)Vamos ver a campanhia eltrica, Paul?

    PETKOFF: Ah, muito bom! Muito bom mesmo! (Eles entram na casa. Sergiusest ansioso, achando que Rana ainda est zangada com ele. Mas ela sorri e lheestende os braos.)

    SERGIUS: Me perdoa?

    RANA: (Colocando suas mos nos ombros de Sergius com admirao eadorao.) Meu heri! Meu rei!

    SERGIUS: Minha rainha! (Beija sua testa.)

    RANA: Como eu invejei voc, Sergius. Voc l fora, nos campos de batalha,mostrando ser digno de qualquer mulher o mundo. E eu aqui, trancada, sonhandoinutilmente, sem nada para fazer me sentir digna de um homem.

    SERGIUS: Querida, tudo o que fiz seu tambm. Voc me inspirou. Atravesseiessa guerra como um cavalheiro num torneio assistido por sua dama.

    RAINA: Voc no saiu de meus pensamentos um minuto. (Solene.) Sergius, euacho que ns atingimos o amor supremo. Quando penso em voc, eu sinto queseria incapaz de uma ao vil ou um pensamento ignbil.

    SERGIUS: Minha dama e minha santa! (Abraa-a respeitosamente.)

    RANA: Meu senhor e meu. ..

    SERGIUS: Sshhh. Deixe-me ador-la, querida. Nenhum homem digno da

    paixo de uma jovem pura como voc.RANA: Eu te amo e tenho certeza de que nunca vai me desapontar. (Ouve-se avoz de Liuka cantando dentro da casa e se aproximando. Eles se separamrapidamente.)

    RANA: Eu no consigo fingir indiferena na frente dos outros. Meu corao esttransbordando.

    (Liuka aparece com sua bandeja. Vai at a mesa e comea a limpar, decostas para eles.)

    RANA: Eu vou buscar meu chapu e vamos passear at a hora do almoo. Voc

    25

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    26/61

    quer?SERGIUS: Quero. Mas no demora. Cinco minutos sem voc me parecem 5horas. (Rana sobe os degraus e, do alto da escada, se volta. Os dois se olham,mandando beijos um para o outro. Ela sai. Ao se virar, Sergius d de cara com abunda maravilhosa de Liuka que se esmera em limpar a mesa. Ele cofia osbigodes de maneira cafajeste e vai para o outro lado da mesa.)

    SERGIUS: Liuka, voc sabe o que o amor?

    LIUKA: No senhor.

    SERGIUS: a coisa mais chata do mundo. Principalmente quando se arrasta poranos. (Insinuante.) Sabe, ns homens precisamos de um refresco de vez emquando.

    LIUKA: (Inocente.) O senhor quer que eu lhe prepare uma limonada?

    SERGIUS: (Pegando a mo dela.) Voc no entendeu.

    LIUKA: (Tentando tirar a mo.) Senhor, o que isso? Estou surpresa.

    SERGIUS: (Puxando-a para si.) Eu tambm, Liuka. O que Sergius, o heri deSlivnitza, diria se me visse agora? O que diria Sergius, o apstolo do amor

    supremo, se me visse agora? O que diriam essa meia dzia de Sergius que ficampipocando o tempo todo na minha cabea se nos vissem agora? (Enlaando suacintura.) Voc me acha simptico, Liuka?

    LIUKA: Deixe-me ir. O senhor vai me desgraar. (Tenta se libertar mas noconsegue.) Quer me largar?

    SERGIUS: (Olhando fundo em seus olhos.) No!

    LIUKA: Ento pelo menos vamos ali pro canto onde ningum nos veja. Osenhor no tem juzo?

    SERGIUS: Ah, at que enfim uma frase razovel. (Ele a leva at um canto ondeno podem ser vistos da casa.)

    LIUKA: Ainda podem me ver da janela. A senhorita Rana deve estarespionando o senhor.

    SERGIUS: (Irritado, soltando Liuka) Cuidado, Liuka. Eu sou indigno do amorsupremo, mas no admito que voc o insulte.

    26

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    27/61

    LIUKA: (Com medo.) De maneira alguma, senhor. Longe de mim. Possocontinuar com meu trabalho?

    SERGIUS: (Abraando-a novamente) Voc uma feiticeira deliciosa, Liuka. Seestivesse apaixonada por mim, me espionaria pelas janelas?

    LIUKA: Ia dar muito trabalho espionar essa meia dzia de Sergius que vivemdentro do senhor.

    SERGIUS: Alm de deliciosa, engraada. (Tenta beij-la.)

    LIUKA: (Fugindo do beijo dele.) Eu no quero seus beijos. Vocs ricos sotodos iguais. O senhor traindo a senhorita Rana comigo debaixo do nariz dela eela fazendo o mesmo com o senhor.

    SERGIUS: (Dando um passo pra trs.) Liuka!

    LIUKA: Vocs no ligam pra nada mesmo!

    SERGIUS: (Acabando com a familiaridade e numa voz fria e polida.) Se vocpretende continuar nossa conversa, deve saber que um cavalheiro nunca discute ocomportamento da dama com quem est comprometido com uma criada.

    LIUKA: muito difcil saber o que um cavalheiro considera certo ou errado. Issono frescura demais para um homem que agorinha mesmo queria me beijar?

    SERGIUS: (Se afastando dela e levando a mo testa.) Diabo! Diabo!

    LIUKA: H! H! H! Embora eu seja apenas uma empregada, tenho certeza deque um dos Sergius que moram dentro do senhor igualzinho a mim. (Continua

    seu trabalho, esquecendo de Sergius.)

    SERGIUS: (Falando para si.) Qual dos seis o verdadeiro? isso que meatormenta. Um um heri, outro um bufo, outro um trapaceiro, (D uma pausa eolha furtivamente para Liuka, com amargura.) E pelo menos um deles covarde.Ciumento como todos os covardes. (Vai at Liuka.) Liuka.

    LIUKA: Sim?

    SERGIUS: Com quem Rana est me traindo?

    LIUKA: Nem por amor nem por dinheiro eu diria pro senhor.

    SERGIUS: Por que?

    27

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    28/61

    LIUKA: Porque no. Se eu falar, o senhor conta pra ela e eu acabo despedida.

    SERGIUS: No! Dou minha palavra de. . . palavra de um cavalheiro capaz de secomportar do modo como me comportei nos ltimos 5 minutos. Quem ele?

    LIUKA: Eu no sei, nunca o vi. S ouvi a voz dele por trs da porta do quarto.

    SERGIUS: Desgraada! Como que teve coragem de ficar ouvindo por detrsdas portas?

    LIUKA: Foi por acaso. A patroa sabe disso. E tenho certeza que se aquele senhoralgum dia voltar, a senhorita Rana vai casar com ele. Eu sei a diferena entre ocomportamento que o senhor e ela tm quando esto juntos e quando esto

    separados. (Sergius estremece. Irritado vai at ela e a segura pelos braos comas duas mos.)

    LIUKA: Ai! O senhor esta me machucando!

    SERGIUS: No interessa. Voc manchou minha honra e me fez cmplice de suabisbilhotice. E traiu sua patroa.

    LIUKA: Por favor!

    SERGIUS: Isso mostra que voc no passa de uma bonequinha de lama comalma de empregada. (Ele a solta como se estivesse segurando uma coisa suja.

    Limpa as mos e se afasta, sentando numa cadeira longe dela.)

    LIUKA: (Arregaando as mangas e reclamando de dor nos braos.) O senhorsabe machucar com as mos e com As palavras. Mas no importa, estou vendoque o senhor feito da mesma lama que eu. E a senhorita Rana no passa de umamentirosa e trapaceira. Eu valho seis dela. (Liuka sacode a cabea e volta a

    arrumar a mesa, colocando as coisas na bandeja. Quando vai sair ele selevanta.)

    SERGIUS: Liuka! (Ela pra e olha desafiadoramente para ele.

    SERGIUS: Um cavalheiro no tem o direito de machucar urna dama por motivonenhum. Eu peo perdo.

    LIUKA: Perdo s serve para damas. De que adianta para urna criada?

    SERGIUS: (D uma gargalhada.)Ah, voc quer ser paga pelo que lhe fiz! Estbem.

    28

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    29/61

    (Pe a mo no bolso para tirar algum dinheiro.)LIUKA: (Com os olhos cheios dgua. ) Eu no quero seu dinheiro. (Suspendeas mangas novamente e mostra o brao dolorido. ) Beija. (Ele se anima, vaibeijar, mas na hora H volta atrs.)

    SERGIUS: Eu nunca beijo um machucado! (Ela no diz nada. Abaixa as mangasdignamente, pega sua bandeja e vai saindo. No caminho encontra Rana que vementrando vestida com chapu e uma jaqueta fora de moda. Liuka abre caminho

    para ela respeitosamente e entra na casa.)

    RANA: Estou pronta. Algum problema? (Alegremente.) Voc no esteveflertando com Liuka, esteve?

    SERGIUS: Claro que no. Como que voc pode pensar uma coisa dessas.?

    RANA: Eu estou s brincando querido. Desculpa. que me sinto to feliz hoje!(Ele vai at ela e beija suas mos com remorso. Catarina aparece no topo daescada e vem descendo.)

    CATARINA: Desculpe interromper vocs dois, mas Paul esta ficando louco porcausa daqueles regimentos e no quer nenhuma das minhas sugestes. Achomelhor voc ajud-lo, Sergius, ele est na biblioteca.

    RANA: Mas ns estvamos saindo para dar um passeio.

    SERGIUS: Eu no demoro, querida. S 5 minutos. (Sobe as escadasrapidamente).

    RANA: Eu vou dar uma volta e ficar bem vista da janela da biblioteca. Sedemorar mais de 5 minutos chame a ateno de papai que eu entro e arranco vocde l de dentro, com regimento ou sem regimento.

    SERGIUS: (Rindo. ) Est bem. (Entra para a casa. Rana relaxa e fica andandode um lado para o outro no jardim.)

    CATARINA: Que coincidncia encontraram o suo! A primeira coisa que seupai pediu quando chegou em casa foi o casaco que demos para ele. Que confusoem que voc foi nos meter, Rana!

    RANA: Aquela besta daquele suo, foi contar pra todo mundo a histria. Se eleestivesse aqui eu ia encher a boca dele de chocolate at ele morrer engasgado!

    CATARINA: Me diga a verdade, Rana: quanto tempo ele ficou no seu quartoantes de voc me chamar?

    29

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    30/61

    RANA: (Dando a volta e andando na direo oposta de Catarina.) No melembro.

    CATARINA: Como no se lembra? Ele subiu depois que os soldados saram ouj estava l quando o oficial foi procurar por ele?

    RANA: No. Sim. Eu acho que ele devia estar l antes.

    CATARINA: Voc acha! Oh, Rana, Rana. Ser que voc nunca vai tomar juzona vida? Se Sergius descobrir est tudo terminado entre vocs.

    RANA: Eu sei que Sergius o queridinho do seu corao. As vezes eu acho que voc quem quer casar com ele.

    CATARINA: Que ideia!

    RANA: Eu sempre tive vontade de dizer alguma coisa para Sergius que ochocasse totalmente. Uma coisa bem grossa. Eu no me importo que ele descubrasobre o soldadinho de chocolate. Eu acho at que seria bom ele descobrir.

    CATARINA: ? E o que eu digo pro seu pai?

    RANA:(Saindo de cena, irnica.) Coitadinho do papai. Como se fizesse algumadiferena!

    CATARINA: Ah, se voc tivesse dez anos menos! (Liuka, com uma badejaredonda na mo, entra vindo da casa.)

    CATARINA: (rritada.) O que foi agora?

    LIUKA: Tem um cavalheiro querendo falar com a senhora. Um oficial srvio.

    CATARINA: Umsrvio! Corno que ele ousou... ah, eu esqueci que estamos empaz agora. Imagino que eles vo aparecer todo dia para nos cumprimentar. Bom,mas porque voc no avisou Paul? Ele est na biblioteca com o major Sarahnoff.

    LIUKA: Ele disse que queria falar com a senhora. A dona da casa, ele disse.At me deu o seu carto. (Tira o carto do seio, pe na bandeja e o serve aCatarina.)

    CATARINA: (Lendo o carto.) Capito Bluntschili? um nome alemo.

    LIUKA: Suo, madame.

    30

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    31/61

    CATARINA: (Dando um pulo que assusta Liuka.) Suo! Como ele ?

    LIUKA: Ele carrega uma valise e...

    CATARINA: Ai meu Deus! Ele voltou para devolver o casaco. Manda eleembora. Diz que no tem ningum em casa. Pede o endereo dele e diz que euescrevo para ele. No, isso no vai adiantar nada. Deixe eu pensar. (Ela sentanuma cadeira para pensar.) O patro e o major Sarahnoff esto ocupados nabiblioteca, no esto?

    LIUKA: Esto sim.

    CATARINA: Ento traga o cavalheiro aqui rapidamente. E seja muito educada

    com ele. Rpido, vai logo. (Tirando a bandeja da mo dela.) Deixe isso aqui e vaidireto pra l.

    LIUKA: Sim, madame.

    CATARINA: Liuka!

    LIUKA: (Voltando.) Sim, madame.

    CATARINA: A porta da biblioteca est fechada?

    LIUKA: Eu acho que sim.

    CATARINA: Se no estiver, feche quando passar por l.

    LIUKA: (Saindo.) Sim, madame.

    CATARINA: Espera! (Liuka pra.) Traga o homem por este caminho. (Indica

    o lado da cocheira.) Diga para Nicola trazer a valise dele. No esquea.LIUKA: A valise?

    CATARINA: , o mais rpido possvel. Anda rpido, Liuka! (Liuka corre paraa casa. Catarina tira o avental e o atira atrs de um arbusto. Ela usa a bandejacomo espelho e se olha nela. Atira o leno da cabea no mesmo lugar que atirouo avental. Ajeita o cabelo e o vestido.)

    CATARINA: Como que um homem pode ser to idiota! Que hora que ele foiescolher! (Liuka entra.)

    31

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    32/61

    LIUKA: (Anunciando.) Capito Bluntschli. (Ele entra. Assim que Liuka sai,Catarina avana para ele.)

    CATARINA: Capito Bluntschli, estou muito feliz em v-lo, mas voc devepartir imediatamente.

    (Ele se assusta.)

    CATARINA: Meu marido acabou de chegar da guerra com meu futuro genro. Sesouberem que o senhor est aqui, as conseqncias podem ser terrveis. Voc no blgaro, no pode entender as animosidades blgaras como ns. Ns aindaodiamos os srvios. A paz transformou meu marido num leo que teve sua presaarrancada dos dentes. Se ele descobrir nosso segredo, a vida de minha filhacorrer perigo. O senhor, cavalheiro que , poderia fazer a gentileza de partirimediatamente, antes que o vejam?

    BLUNTSCHLI: Imediatamente, graciosa senhora. Eu s voltei para agradecer edevolver o casaco. Se a senhora me permitir peg-lo em minha valise e deixar comseu empregado quando sair, no tomarei mais o seu tempo. (Se vira para entrarna casa).

    CATARINA: (Segurando-o pela manga.) No, por a no. (Levando-o nocaminho da cocheira ) Por aqui mais rpido. Muito obrigado. Fico feliz por terpodido ajud-lo. Adeus.

    BLUNTSCHLI: Mas e a minha valise?

    CATARINA: Eu mandarei entreg-la a mais tarde. Deixe seu endereo.

    BLUNTSCHLI: Claro. Com licena. (Ele pega um carto e uma caneta ecomea a escrever seu endereo, deixando Catarina impaciente. Quando ele lheentrega o carto, Petkoff aparece, sem chapu e hospitaleiro, seguido porSergius.)

    PETKOFF: Meu querido capito Bluntschli!

    CATARINA: Meu Deus! (Afunda numa cadeira de canto.)

    PETKOFF: (Apertando a mo de Bluntschli vigorosamente, sem perceberCatarina.) Os idiotas dos meus criados acharam que eu estava aqui fora, mas euestava na ... biblioteca. Eu o vi pela janela. Estava me perguntando por que vocno entrou logo. Sarahnoff est aqui tambm. Lembra dele?

    SERGIUS: (Apertando sua mo calorosamente.) Bem-vindo, nosso amigoinimigo.

    32

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    33/61

    PETKOFF: Agora somente amigo. Espero que no tenha vindo para negociarcavalos e prisioneiros.

    CATARINA: claro que no, Paul. Eu estava agora mesmo convidando-o para oalmoo, mas o Capito Bluntschli disse que precisava partir o mais rpidopossvel.

    SERGIUS: Impossvel, Bluntschli! Ns precisamos muito de voc. Ns temosque mandar 3 regimentos de cavalaria para Filippolis e no temos a menor idiade como faz-lo.

    BLUNTSCHLI: Filippolis? O problema deve ser a forragem dos animais, no?

    PETKOFF: Exatamente (Para Sergius.) Ele pega tudo num minuto.

    BLUNTSCHLI: Eu acho que posso mostrar o que devem fazer.

    SERGIUS: Esse homem no tem valor! Venha conosco. (Sergius passa o brao sobre o ombro de Bluntschli e o leva para dentro

    seguido por Petkoff. Rana vem descendo a escada quando Bluntschli pisa noprimeiro degrau.)

    RANA: Meu Deus, o soldadinho de chocolate! (Bluntschli fica rgido. Sergiusestranhando, olha para Rana e depois para Petkoff, que olha de volta para ele edepois para sua esposa.)

    CATARINA: Minha querida Rana, ns temos convidados em casa. CapitoBluntschli, um de nossos novos amigos srvios.

    (Os dois se cumprimentam com acenos de cabea.)

    RANA: Que bobagem a minha! (Ela desce e fica no centro do grupo, entreBluntschli e Petkoff.) Eu fiz um lindo pudim de chocolate em forma de soldadopara o almoo e o estpido do Nicola colocou uma pilha de pratos em cima eestragou tudo.

    (Para Bluntschli, encantadoramente.) Espero que no tenha pensado que osoldadinho de chocolate era o senhor, capito Bluntschli.

    BLUNTSCHLI: Confesso que sim. Mas sua explicao me deixou bastantealiviado.

    PETKOFF: E desde quando voc comeou a cozinhar, querida?

    33

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    34/61

    CATARINA: Desde que voc foi pra guerra. sua ltima mania.PETKOFF: E o Nicola deu pra beber? Antigamente ele era to cuidadoso.Primeiro me traz o capito Bluntschli para o jardim quando eu estava na...biblioteca; agora amassa o soldadinho de chocolate de Rana. Ele deve... (Petkoff cortado por Nicola que aparece no topo da escada com a valise de Bluntschli.

    Ele desce as escadas e para espanto de todos a pe no cho, perto do suo, e ficatodo feliz consigo mesmo.)

    PETKOFF: Voc ficou maluco, Nicola?

    NICOLA: Como disse, senhor?

    PETKOFF: Por que voc trouxe essa valise para c?

    NICOLA: Ordens da patroa, major. Liuka me disse que...

    CATARINA: (Cortando.) Minhas ordens?! Por que eu iria mandar trazer a bagagem do capito Bluntschli para c? O que voc est pensando da vida,Nicola?

    NICOLA: (Depois de alguns momentos sem saber o que fazer, volta e pega avalise novamente.) Peo desculpas, senhor Capito. Devo ter ouvido mal. (ParaCatarina.) Espero que perdoem minha falta. (Vai subindo os degraus com a valise

    na mo quando Petkoff o interrompe.)

    PETKOFF: S falta agora colocar a valise em cima do soldadinho de chocolatede Rana. (Nicola se assusta e deixa a valise cair, que vai acertar o p de Petkoff.)

    PETKOFF: Cuidado, seu animal!

    NICOLA: (Pegando a valise de novo e sumindo rapidamente para dentro dacasa.) Sim, major.

    CATARINA: Paul, no fique zangado com ele.

    PETKOFF: (Irado.) Idiota! Foi s eu ficar fora que ele saiu da linha. Mas euvou ensin-lo. Empregados dos infernos. Vou fazer uma limpeza nessa casa.Eles vo ver uma coisa. (As duas falas seguintes so ditas ao mesmo tempo por

    Rana e Catarina que acariciam Petkoff tentando acalm-lo.)

    CATARINA: No precisa ficar zangado. Ele no fez de propsito. Fica calmo,benzinho. Sshhhh.

    RANA: N, n, n, n, n, logo no seu primeiro dia em casa! Eu fao outro

    34

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    35/61

    pudim de chocolate. Sshhhh.PETKOFF: Bom, vamos deixar pra l. E voc Bluntschli, vai ficar conosco.Voc sabe muito bem que no precisa ir para a Sua agora.

    RANA: Por favor, capito Bluntschli, fique.

    PETKOFF: Agora, a sua vez Catarina. de voc que ele est com medo. Umapalavra sua e ele fica. (Para Catarina.)

    CATARINA: claro, ser um enorme prazer se o capito Bluntschli quiser ficar.Ele conhece meus desejos.

    BLUNTSCHLI: Eu fao o que a senhora pedir, madame.

    SERGIUS: Ento est resolvido! Ele fica!

    PETKOFF: Pronto.

    RANA: Como v, o senhor deve ficar.

    BLUNTSCHLI: Bom, se devo ficar, eu fico.

    (Gesto de desespero de Catarina.)

    TERCEIRO ATO

    (Biblioteca, aps o almoo. Na verdade, livro o que menos vemos nesseaposento. Somente uma pequena estante com alguns parcos e sujos livros. Orestante da parede ocupado por trofus de guerra e caa. uma salaconfortvel com janelas grandes que mostram os Balcs ao fundo. No meio, uma

    lareira construda com tijolos, que mais parece um fogo, com uma torre decalefao que vai at o teto. Uma otomana, luxuosas poltronas perto das janelas euma mesa de cozinha usada como mesa de trabalho. Bluntschli est atento a seutrabalho, cheio de mapas e papis sua frente, escrevendo. Sergius est amuado,

    sentado sua frente, brincando com uma caneta e observando irritado o trabalhoeficiente de Bluntschli. O major l o jornal na otomana. Catarina est de costas

    para eles bordando perto da lareira. Rana sonha acordada reclinada no div,admirando os Balcs l fora, com um livro largado no colo.)

    PETKOFF: (Tirando os olhos do jornal.) Tem certeza que no posso ajudar,Bluntschli?

    35

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    36/61

    BLUNTSCHLI: Tenho, obrigado. Eu e Saranoff damos conta disso.SERGIUS: ns damos conta. Ele descobre o que fazer, escreve as ordens e euassino. Isso se chama diviso de trabalho.

    (Bluntschli passa um papel a Sergius.)

    SERGIUS: Outro? Obrigado. (Assina o papel lentamente e com grande esforo,mordendo a lngua e com o rosto quase colado no papel.) Eu me dou melhor comespadas do que com canetas.

    PETKOFF: Bluntschli, voc est sendo muito gentil em deixar que abusemosdos seus servios. Mas voc tem certeza de que eu no posso fazer nada?

    CATARINA: Se voc parar de interromper a toda hora j vai ser uma grande

    ajuda, Paul.

    PETKOFF: Est bem, querida. (Pega o jornal novamente, vai ler, mas desiste.)Graas a Deus a guerra acabou, Catarina. Voc no sabe como bom ficar sentadoaqui na biblioteca, depois de um maravilhoso almoo, sem nada para fazer alm dedesfrutar da companhia da famlia. S falta uma coisinha pra me fazer 100%confortvel.

    CATARINA: O que ?

    PETKOFF: O meu velho casaco de ficar em casa. Eu no me sinto bem com esseaqui. Parece que estou no meio de um desfile militar.

    CATARINA: Ah, l vem voc com aquele seu casaco velho novamente! Eledeve estar pendurado no armrio azul, onde sempre esteve.

    PETKOFF: Minha querida Catarina, eu j procurei no armrio azul e tenhocerteza de que ele no est l. A no ser que eu esteja ficando cego! (Catarina se

    levanta e toca a campainha eltrica.)PETKOFF: Pra que voc est se exibindo com essa campainha? (Catarina olha

    para ele e majestosamente volta a sua cadeira e seu bordado.)

    PETKOFF: Querida, no armrio azul s tem dois vestidos velhos de Rana,minha capa de chuva e o seu impermevel. Voc acha que apenas com aobstinao do sexo feminino vai conseguir transformar essas peas de roupa nomeu velho casaco de ficar em casa?

    (Nicola entra.)

    CATARINA: Nicola, v at o armrio azul e traga aquele velho casaco bordado

    36

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    37/61

    que o patro gosta de usar em casa.NICOLA: Sim senhora. (Sai.)

    PETKOFF: Catarina, eu aposto qualquer jia que voc quiser contra umasemana do dinheiro da casa que aquele casaco no est no armrio azul.

    CATARINA: Feito!

    PETKOFF: Ah, finalmente um pouco de diverso. Quem mais quer apostar?Bluntschli, dou seis contra um de vantagem. (Excitado com a aposta.)

    BLUNTSCHLI: (Imperturbvel.) No quero tirar seu dinheiro, major. Madamecom certeza sabe o que est dizendo. (Sem olhar, passa um monte de papis paraSergius.)

    SERGIUS: (Tambm excitado.) Viva a Sua! Major, aposto meu melhor cavalode batalha contra uma gua rabe para Rana como Nicola vai encontrar o casacono armrio azul!

    PETKOFF: Seu melhor cava... (Ansioso.)

    CATARINA: No seja idiota, Paul! Uma gua rabe vai te custar mais de50.000 levas.

    RANA: (Saindo bruscamente de sua abstrao.) Mame! Se a senhora vaiganhar jias, porque eu no posso ganhar uma gua rabe? (Entra Nicola eentrega o velho casaco a Petkoff que no acredita no que v.)

    CATARINA: Onde estava o casaco, Nicola?

    NICOLA: Pendurado no armrio azul, madame.

    PETKOFF: T fu. . .CATARINA: (Cortando.) Paul!

    PETKOFF: Eu podia jurar que no estava l. Eu acho que estou comeando aficar velho. Estou tendo alucinaes. (Para Nicola.) Me ajude a trocar de casaco.Com licena, Bluntschli. (Troca de roupa e Nicola o ajuda.)

    PETKOFF: Ainda bem que no aceitei sua aposta, Sergius. E agora que vocexcitou Rana com a possibilidade, acho melhor comprar a tal da gua rabe. No, Rana?

    (Rana j se desligou do que acontece no aposento novamente e contempla

    37

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    38/61

    absorta a paisagem pela janela.)PETKOFF: (Com orgulho paternal.) J est sonhando novamente.

    SERGIUS: Rana no vai se decepcionar. Eu nunca decepciono minhas noivas.

    PETKOFF: Melhor para ela. Esse casaco j me deu prejuzo bastante por hoje!(Petkoff terminou de se vestir e Nicola sai com o outro casaco.)

    PETKOFF: Ah, agora sim me sinto em casa! (Senta e pega o jornal para lercom um suspiro feliz.)

    BLUNTSCHLI: (Para Sergius, entregando um ltimo papel.) Essa a ltimainstruo.

    SERGIUS: J acabou?

    BLUNTSCHLI: Acabei!

    PETKOFF: (Numa inveja infantil.) E no tem nada pra mim assinar tambm?

    BLUNTSCHLI: No necessrio. A assinatura de Sergius basta.

    PETKOFF: (Batendo no peito estufado.) Bom, acho que j trabalhamos bastante

    por hoje. Tem mais alguma coisa para fazer?

    BLUNTSCHLI: melhor despachar essas ordens o mais rpido possvel. (Sergius se levanta para faz-lo.)

    BLUNTSCHLI: Cada ordem est marcada com a hora em que dever serexecutada. Deixe bem claro pra quem vai executar o servio que se pararem prabeber ou conversar e atrasarem um minuto que seja, sero esfolados vivos.

    SERGIUS: (Firme.) Pode deixar comigo. Serei firme. (Caminha para a porta.E se algum deles cuspir na minha cara eu peo sua baixa na hora e lhe arranjo umapenso pro resto da vida. (Sai.)

    BLUNTSCHLI: (Em tom de confidncia, para Petkoff.) melhor o senhor irjunto, major. Para garantir que as ordens sero dadas de maneira adequada.

    PETKOFF: Voc est certo, Bluntschli. Pode deixar comigo. (Vai para a portae de repente pra.) Pensando bem, melhor voc vir tambm, Catarina. Eles tmmais medo de voc do que de mim.

    CATARINA: melhor mesmo. O mximo que voc faz lanar perdigotos

    38

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    39/61

    sobre os soldados. (Os dois saem.)BLUNTSCHLI: Isso que um verdadeiro exrcito. Fazem canhes comtroncos de cerejeira e os oficiais precisam das esposas para manter a disciplina!(Bluntschli comea a arrumar os papis na mesa onde estava trabalhando. Rana

    se levanta, vagueia pela sala e olha maliciosamente para ele.)

    RANA: Voc est muito mais bonito do que na ltima vez que nos encontramos.O que foi que voc fez?

    BLUNTSCHLI: Bom, eu tomei um banho, fiz a barba, me penteei. Uma boanoite de sono e um bom caf da manh. S isso.

    RANA: Conseguiu escapar em segurana naquela manh?

    BLUNTSCHLI: Consegui, muito obrigado por tudo.

    RANA: E os seus companheiros no estavam zangados porque voc fugiu dacarga da cavalaria?

    BLUNTSCHLI: No, ficaram felizes por me verem vivo. Todos bateram emretirada tambm.

    RANA: (Se aproximando da mesa e se inclinando sobre ele.) O senhor deve ter

    feito muito sucesso ao contar a histria toda para eles.

    BLUNTSCHLI: A histria realmente maravilhosa, mas eu s contei para o meumelhor amigo.

    RANA: (Irnica.) Um amigo de total discrio e confiana, imagino.

    BLUNTSCHLI: Total confiana e discrio.

    RANA: (Se afastando dele, irritada.) E o seu discreto e melhor amigo foi diretocontar a histria para meu pai e Sergius no dia da troca dos prisioneiros em Pirot!

    BLUNTSCHLI: No! Quer dizer que seu pai e Sergius sabem de tudo?

    RANA: Sabem. Eles s no sabem que a histria aconteceu nesta casa. SeSergius soubesse j o teria desafiado para um duelo e o senhor estaria morto a essahora.

    BLUNTSCHLI: (Irnico.) Estou morrendo de medo do Quixote blgaro.

    RANA: Eu estou falando srio capito Bluntschli! Ser que no percebe como

    39

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    40/61

    difcil para mim mentir para Sergius? Eu quero ser perfeita com ele. Semmesquinharias, sem baixezas, sem trapaas. Minha relao com Sergius a coisamais bonita e nobre de minha vida. Espero que entenda isso.

    BLUNTSCHLI: (Ctico.) Voc quer dizer que no gostaria que ele descobrisseque a histria do pudim de chocolate foi uma. . . uma. . . voc sabe.

    RANA:No seja irnico. Eu menti,. sei disso. Mas s o fiz para salvar sua vida.Ele omataria se soubesse de tudo. Essa foi a segunda mentira que tive de contarem toda minha vida. (Bluntschli se levanta e olha como se a repreendesse por

    peg-la numa mentira.)

    RANA: Voc se lembra da primeira vez?

    BLUNTSCHLI: Eu? No. Por acaso eu estava presente?

    RANA: Estava. Foi quando eu disse aooficial russo que no tinha ningum nomeu quarto naquela noite.

    BLUNTSCHLI: verdade. Eu devia ter me lembrado.

    RANA: natural que o senhor tenha esquecido. Para o senhor no custou nada.Mas para mim custou uma mentira! Uma mentira! (Ela senta na otomana com as

    mos entrelaadas sobre os joelhos Bluntschli senta ao seu lado).

    BLUNTSCHLI: No se preocupe, minha cara senhorita. Eu sou um soldado. E asduas coisas que mais acontecem em nossa profisso ouvir mentiras e sermossalvos por todo tipo de gente a toda hora.

    RANA: por isso que vocs se tornam criaturas descrentes e incapazes desentir gratido.

    BLUNTSCHLI: Voc admira a gratido? Eu no. Se a compaixo se parece como amor, a gratido se parece com outra coisa.

    RANA: Se voc incapaz de sentir gratido, tambm incapaz de sentirqualquer outro sentimento nobre. At os animais sentem gratido. Agora eu seiexatamente o que pensa de mim. Voc no se surpreendeu nem um pouco ao mever mentindo. Deve achar que fao isso todo dia a toda hora. isso que os homenspensam das mulheres! (Caminha pela biblioteca tragicamente).

    BLUNTSCHLI: (Irnico. ) No fundo no fundo, todo mundo tem um pouco derazo. Mas voc acabou de dizer que s disse 2 mentiras em toda sua vida. Minhacara senhorita, no um clculo exageradamente modesto? Eu, que me considero

    40

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    41/61

    um homem extremamente honesto, levo apenas uma manh para dizer 2 mentiras.RANA: O senhor est me insultando, sabia?

    BLUNTSCHLI: No posso fazer nada. Eu admiro muito sua atitude nobre e suavoz carregada de emoo. Mas confesso que no consigo acreditar em uma spalavra do que diz.

    RANA: Capito Bluntschli!

    BLUNTSCHLI: (Como se nada tivesse dito.) Sim?

    RANA: (Se levanta como se no acreditasse no que houve.) Voc prestouateno no que disse? O senhor realmente pensa isso de mim?

    BLUNTSCHLI: Claro que penso.

    RANA: (Irritada a ponto de no saber o que dizer.) Eu! Eu! (finalmente largasua encenao e assume um tom natural e infantil.) Como que voc descobriu?

    BLUNTSCHLI:. Instinto, cara senhorita. Instinto e experincia de vida.

    RANA: Sabe que voc o nico homem que no me leva a srio?

    BLUNTSCHLI: Voc quer dizer que eu sou o nico homem que realmente aleva a srio.

    RANA: Eu at me sinto estranha falando desse jeito to natural. A minha vidainteira falei daquele jeito.

    BLUNTSCHLI: Que jeito?

    RANA: Com a atitude nobre e a voz carregada de emoo (Os dois riem

    juntos.)RANA: Eu falava desse jeito para minha bab e ela acreditava. Eu falava assimcom meus pais e eles acreditavam. Eu falo assim com Sergius e ele acredita emmim.

    BLUNTSCHLI: - Bom, o mesmo estilo dele.

    RANA:(Espantada.) Voc acha?

    BLUNTSCHLI: Voc o conhece melhor do que eu.

    41

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    42/61

    RANA: Imagino. Se tivesse percebido isso antes... Mas agora que o senhor meconhece to bem deve me desprezar.

    BLUNTSCHLI: (Enftico, se levantando.) Mil vezes no. Isso faz parte da sua juventude, do seu charme. Eu sou como todos os outros: a bab, seus pais,Sergius. Sou seu admirador incondicional.

    RANA: (Animada. ) Verdade?

    BLUNTSCHLI: A mais pura e cristalina verdade.

    RANA: E o que pensou de mim quando lhe mandei o meu retrato?

    BLUNTSCHLI: Retrato? Voc nunca me mandou seu retrato.

    RANA: Quer dizer que voc no recebeu?

    BLUNTSCHLI: No. Voc mandou?

    RANA: Eu no mandei. (Virando a cabea para o outro lado, relutante.) Eupus nobolso do casaco de papai.

    BLUNTSCHLI: Mas eu no achei. Ento ainda deve estar l.

    RANA: (Levantando num salto.) Est, e papai vai ach-lo na primeira vez emque colocar a mo no bolso. Meu Deus, como que eu pude ser to estpida!

    BLUNTSCHLI: (Tambm se levanta.) No faz mal. E s uma fotografia Como que ele vai adivinhar para quem foi mandada? Voc pode dizer que ele mesmo acolocou ali.

    RANA: (Amarga e irnica.) Claro, claro, que inteligente que voc !

    (Assustada, pensando.) Meu Deus, o que fao agora?BLUNTSCHLI: Voc escreveu a alguma coisa na foto?Que ingenuidade.

    RANA: ( beira das lgrimas.) E eu fiz tudo isso por voc, um homem que noliga para nada e fica o tempo todo rindo de mim. Tem certeza de que ningumpegou a foto?

    BLUNTSCHLI: Como que eu poderia ter certeza? Eu no podia ficar com ocasaco o tempo inteiro. Quando estamos servindo no podemos carregar muitabagagem.

    42

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    43/61

    RANA: O que voc fez com o casaco?BLUNTSCHLI: Quando cheguei em Pirot eu achei que devia coloc-lo numlugar seguro. Pensei no guarda-volumes da estao ferroviria, mas em tempos deguerra esses so os primeiros lugares a serem saqueados. A eu resolvi botar noprego.

    RANA: Voc empenhou o casaco de papai.?!

    BLUNTSCHLI: Eu sei que no soa muito bem, mas era o lugar mais seguro. Eutirei do prego anteontem. S Deus sabe se no limparam os bolsos.

    RANA: Voc tem ideia de comerciante barato. Pensa coisas que nuncapassariam pela cabea de um cavalheiro.

    BLUNTSCHLI: o carter nacional suo, cara senhorita.

    RANA: Eu preferia nunca Ter conhecido voc. (Rana, irritada, vai para ajanela. Entra Liuka com uma pilha de cartas e telegramas na bandeja e atravessaa biblioteca at a mesa com seu rebolado insolente. A manga esquerda de suabula est levantada e presa por um broche, mostrando o brao nu. Um enormebracelete dourado cobre a mancha roxa feita por Sergius. Ela se dirige a

    Bluntschli determinada a tratar mal um inimigo, ainda que o servindo.)

    BLUNTSCHLI: (Para Rana.) Com licena. A ltima correspondncia que meachou foi h 3 semanas. Deve estar tudo acumulado. Olha a, 4 telegramas comuma semana de atraso. (Abre um.) Oh, ms notcias.

    RANA: (Voltando-se para ele, preocupada.) Ms notcias.

    BLUNTSCHLI: Meu pai morreu. (Ele l o telegrama preocupado. Liuka sebenze rapidamente.

    RANA: Que triste notcia!BLUNTSCHLI: . Vou ter que voltar para casa agora. Ele me deixou umacadeia de grandes hotis que eu vou ter que administrar. (Pega uma carta gordanum envelope azul.) uma carta do advogado da famlia. (Abre.) Meus Deus!Setenta! Duzentos! Quatrocentos!! Quatro mil!! Nove mil e seiscentos!!! O queeu vou fazer com tudo isso?

    RANA: Nove mil e seiscentos hotis?

    BLUNTSCHLI: Que absurdo! Se voc soubesse! ridculo demais! Comlicena, preciso dar instrues ao mensageiro. (Deixa a biblioteca com as cartas

    43

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    44/61

    na mo.)LIUKA: (Tentando irritar Rana.) Esse suo no tem corao. Nem umapalavra de carinho pelo pobre pai morto.

    RANA: Um homem que nos ltimos anos no fez nada alm de matar pessoas pelos campos de batalha no pode sentir carinho por ningum. Soldados noligam para nada mesmo. (Caminha at a porta tentando controlar as lgrimas.)

    LIUKA: O major Saranoff tambm esteve lutando pelos campos de batalha eainda tem um corao enorme. (Rana se recompe e sai.)

    LIUKA: Aha! Eu sabia que voc no ia conseguir arrancar muito sentimento doseu soldadinho de chocolate. (Ela vai sair quando entra Nicola, carregandolenha para a lareira.)

    NICOLA: (Sorrindo maliciosamente para Liuka.) Eu fiquei a tarde inteiratentando arranjar um jeito de ficar sozinho com voc um minuto, minha garotinha.(Repara em seu brao.) Que moda essa no seu brao?

    LIUKA: (Orgulhosa.) Criao minha.

    NICOLA: Com certeza. Se a patroa pega vai te repreender. (Larga a lenha nocho e senta confortavelmente na otomana.)

    LIUKA: E isso motivo pra voc parar o seu trabalho e ficar pegando no meup?

    NICOLA: Ah, no fica zangada comigo, eu tenho boas notcias pra voc. (Liukasenta ao seu lado. Nicola tira uma nota de vinte levas do bolso e mostra a ela que,maravilhada, tenta peg-la. Ele no deixa, brincando.)

    NICOLA: Uma nota de vinte levas! Sergius me deu de pura ostentao. E ainda

    tem mais dez levas que o suo me deu por ter encoberto as mentiras da patroa ede Rana sobre ele. O suo no bobo no. Voc precisava ter visto a patroaconversando comigo l embaixo, toda educada e gentil, me dizendo pra no ligarpra impacincia do major, que eles sabem que eu me mostrei um excelente criadopor no me importar que me fizessem passar por bobo e mentiroso na frente detodos. As vinte levas vo para nossa poupana. E voc fica com as outras dez, seconversar um pouquinho comigo e me fizer sentir um ser humano decente. svezes eu tambm me canso de ser criado.

    LIUKA: Ser humano decente! Voc se vende por 30 levas e quer me comprar pordez! (se levanta.) Pode ficar com o seu dinheiro. Voc nasceu pra ser um criado.Quando abrir sua loja em Sofia vai continuar sendo criado da sua freguesia. (Vai

    44

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    45/61

    at a mesa e se senta com pompa na cadeira de Sergius.)NICOLA: (Catando a lenha no cho e indo para a lareira.) Espere pra ver. Nsteremos as noites s para ns e eu serei o patro na nossa prpria casa, eu teprometo. (Pe a lenha no cho e se ajoelha na frente da lareira.

    LIUKA: Voc nunca ser o patro na minha casa!

    NICOLA: (Se virando para Liuka de quatro no cho, indignado.)Voc ambiciosa demais, Liuka. Espero que nunca esquea que fui eu quem fez de vocuma mulher.

    LIUKA: Voc!

    NICOLA: (Se levantando e indo at ela.) mesmo. Quem foi que te convenceu

    a usar aquelas tranas postias ridculas nocabelo? Quem te disse para pintar oslbios e as bochechas de vermelho como qualquer garotavulgar da Bulgria? Eu!Quem te ensinou a aparar as unhas, a manter as mos limpas e se portar demaneira educada, como uma fina dama russa? Eu! (Liuka agita a cabeadesafiadora. Nicola se vira.).

    NICOLA: Se Rana estivesse fora do nosso caminho, se voc fosse um poucomenos boba e Sergius um pouco mais idiota, voc poderia ser uma das minhasmelhores freguesas em vez de ser minha esposa e me dar prejuzo pro resto da

    vida.

    LIUKA: Eu acho que voc prefere ser meu criado a meu marido. Assim podetirar mais proveito de mim. Eu conheo essa sua alma.

    NICOLA: (Se aproximando dela, com nfase.) Esquece minha alma. S escute oque eu lhe digo. Se voc quer se transformar numa dama melhor se comportardireito comigo. Voc atrevida demais. E atrevimento sinal de intimidade.Voc age como todas as outras caipiras da Bulgria; pensa que elegante tratar

    mal a um criado. Isso s mostra sua ignorncia. E no fique por a desafiando todomundo a toda hora. O segredo para ser uma dama o mesmo para ser um criado:conhecer o seu lugar. Voc vai precisar muito de mim se for promovida a dama.Pense nisso, garota! Eu vou esperar. Um criado sempre espera.

    LIUKA: (Se levantando impaciente.) Eu me comporto do jeito que quero. Vocquer me tirar a coragem, desfiando essa sua sabedoria de Segunda com esse seusangue de barata. Vai por lenha no fogo que disso que voc entende.

    (Antes de Nicola poder responder, Sergius entra. Ele se ajeita ao ver Liuka.Vai at a lareira.)

    45

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    46/61

    SERGIUS: (Para Nicola.) Estou atrapalhando o seu trabalho, Nicola?NICOLA: No senhor. Eu s estava repreendendo essa garota boba. Ela tem opssimo hbito de correr para ler livros sempre que tem uma chance. o pior desua educao, senhor. Hbitos acima de sua posio. (Para Liuka. ) Arrume amesa para o major, Liuka. (Sai lentamente. Liuka, sem olhar para Sergius, fingearrumar os papis na mesa. Sergius vai at ela e olha para seu braomachucado.)

    SERGIUS: Deixa eu ver isso. Ficou marcado? (Sergius levanta o bracelete e va mancha roxa. Liuka fica imvel, sem olhar para ele, mas em guarda.)

    SERGIUS: Nossa! Di?

    LIUKA: Muito!

    SERGIUS: Euposso curar?

    LIUKA: (Se afastando dele orgulhosa, ainda sem olhar para ele.) Agora tarde.

    SERGIUS: Tem certeza? (Faz um movimento como se fosse tom-la nos braos. )

    LIUKA: Por favor, no brinque comigo. Um oficial no deve brincar com umacriada.

    SERGIUS: (Indicando o machucado com o dedo.) Isso no foi brincadeira,Liuka.

    LIUKA: (Recuando e olhando para ele pela primeira vez.) Esta arrependido?

    SERGIUS:(Com nfase calculada cruzando os braos. ) Eu nunca me arrependo.

    LIUKA: (Pensativa. ) Um homem de verdade no trata uma mulher desse jeito.

    s vezes fico imaginando se o senhor mesmo um heri.SERGIUS: Sim, eu sou um heri. Meu corao disparou ao ouvir o primeiro tirono campo de batalha como o de qualquer mulher. Mas durante a carga da cavalariaeu descobri que sou um verdadeiro heri

    LIUKA: E por acaso voc tambm descobriu que os pobres so menos corajososque os ricos?

    SERGIUS: De maneira alguma. So todos iguais. A coragem para se enfurecer ematar banal e vulgar. Os pobres tambm podem cortar gargantas, como qualquerheri. S h uma diferena: eles morrem de medo de seus oficiais. Toleram seus

    46

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    47/61

    insultos e bofetadas e aceitam serem punidos como crianas. (Com um riso cruel.)Eu sou diferente. Mostre-me um homem capaz de desafiar o poder e eu lhemostrarei um verdadeiro heri.

    LIUKA: Voc no sabe o que a verdadeira coragem.

    SERGIUS: (Irnico.) mesmo? Ento talvez eu precise ser instrudo. (Senta naatomana como se esperasse por uma aula.)

    LIUKA: Se eu fosse a imperatriz da Rssia, acima de todos os mortais do mundo,voc iria ver.

    SERGIUS: Eo que faria, minha dignssima imperatriz?

    LIUKA: Eu casaria com o homem que amo, coisa que nenhuma outra imperatrizem toda a Europa teria coragem de fazer. Se eu fosse a imperatriz russa e teamasse eu me casaria com voc, mesmo que voc estivesse muito abaixo de mim.Voc teria essa coragem se me amasse? Claro que no. Se comeasse a sentir umpouco de amor por mim no deixaria esse sentimento crescer. Voc no teriacoragem. Se casaria com a filha de um homem rico porque teria medo do que osoutros iriam dizer.

    SERGIUS: (Levantando de um pulo.) Voc mente. Por todas as estrelas do cu,

    nem que eu fosse o prprio Czar, se estivesse apaixonado por voc, eu acolocaria ao meu lado, no trono. Voc sabe que eu amo outra mulher. Umamulher to acima de voc como o cu acima da terra. Voc est com cimes deRana.

    LIUKA: Eu no tenho motivos para ter cimes. Ela no vai mais se casar comvoc. O homem de que lhe falei voltou. Ela vai se casar com o suo.

    SERGIUS: O suo!

    LIUKA: Um homem que vale dez de voc. Ento voc vir pedir o meu amor,mas a eu vou recus-lo.

    (Se vira para a porta.)

    SERGIUS: (Pulando atrs dela e a segurando com fora.) Eu vou matar o suoe depois vou fazer com voc o que eu quiser.

    LIUKA: (Passiva em seus braos.) Ou talvez o suo que o mate. Ele j ovenceu no amor. Vai venc-lo tambm no duelo.

    SERGIUS: Voc acha que vou acreditar nessa calnia? Rana est muito acima

    47

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    48/61

    de suas mesquinharias.LIUKA: ? E a senhorita Rana, acreditaria que o senhor me tem em seus braosagora?

    SERGIUS: (Soltando-a desesperado.) Desgraa! Desgraa! Falsidade ementiras por todos os lados. Tudo que penso est contaminado pela falsidade demeus atos. (Batendo no peito.) Covarde! Mentiroso! Idiota! Ser que eu devo mesuicidar ou fingir que acho tudo isso engraado? (Liuka se volta para sairnovamente.)

    SERGIUS: Liuka! (Liuka pra, j na porta.)

    SERGIUS: Lembre-se: Voc me pertence.

    LIUKA: O que voc quer dizer com isso? um insulto?

    SERGIUS: Eu quero dizer que voc me ama. Eu a tive em meus braos uma vez.Talvez a tenha novamente. Se um insulto ou no, no me importa, tome comoquiser. Mas no serei um covarde nem brincarei com voc. Se eu decidir te amar,casarei com voc e vou defecar e andar para toda a Bulgria. Se essas mostocarem voc novamente, na verdade estaro tocando em minha noiva.

    LIUKA: Vamos ver se vai cumprir sua palavra. E tome cuidado: eu no vou

    esperar por muito tempo.

    SERGIUS: (Cruzando os braos, imvel.) Voc vai esperar quanto tempo euquiser. (Bluntschli, preocupado, e com as cartas e papis na mo entra deixandoa porta aberta para Liuka sair. Ele vai at a mesa e d uma olhada para ela.Sergius assiste sua entrada imvel. Liuka sai, deixando a porta aberta. )

    BLUNTSCHLI: (Sentando na mesa, ocupado com seus papis.) Uma mulher etanto essa Liuka!

    SERGIUS: (Gravemente, sem se mover.) Capito Bluntschli!

    BLUNTSCHLI: Sim?

    SERGIUS: Voc me enganou e agora meu rival. E eu nunca deixo meus rivaisvivos. Estarei as 6 horas no campo de manobras da estrada de Klissoura, sozinhocom meu cavalo e meu sabre. Voc compreendeu?

    BLUNTSCHLI: (Olhando fixamente para Sergius, porm tranquilo.) Obrigado,mas esse tipo de duelo para oficiais da cavalaria. Eu perteno a artilharia e,portanto, tenho direito de escolher as armas. Se eu for, levarei uma metralhadora.

    48

  • 8/3/2019 As Armas e o Homem, Bernard Shaw

    49/61

    E desta vez garanto que no haver engano quanto ao calibre da munio.SERGIUS: Cuidado, senhor. Ns, blgaros, no costumamos permitir quebrinquem numa situao sria como essa!

    BLUNTSCHLI: Bobagem! Vocs blgaros no sabem o que lutar. Mas sevoc prefere o sabre, tudo bem, estarei l, s 6 em ponto.

    SERGIUS: Muito bem, suo! Quer que lhe empreste meu melhor cavalo?(Rana entra e ouve a prxima frase.)

    BLUNTSCHLI: Eu prefiro lutar a p. Duelos a cavalo so muito perigosos e noquero mat-lo.

    RANA: (Correndo ansiosa para Sergius.) Eu ouvi o que o capito Bluntschli

    disse! Por que vocs vo duelar? (Sergius se vira em silncio e vai at o fogo.)

    RANA: (Para Bluntschli.) Afinal, o que est acontecendo?

    BLUNTSCHLI: Eu no sei, ele no me disse o motivo do desafio. Melhor no semeter, cara senhorita. Ningum ir se machucar. Eu sou professor de esgrima. Eleno vai conseguir encostar em mim e eu no irei machuc-lo. Melhor deixar esseassunto pra l. Amanh de manh eu j estarei em minha casa e nunca maisouviro falar de mim. Ento vocs dois podero se casar e vivero felizes para

    sempre.

    RANA: (Se voltando, profundamente ferida, quase num soluo. ) Eu nunca disseque no queria v-lo novament