as aporias do liberalismo periférico: comentários à luz dos governos dutra (1946-1950) e cardoso...

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 Economia e Sociedade, Campinas, v. 12, n. 2 (21), p. 245-274, jul./dez. 2003.  As aporias do liberalismo periférico: comentários à luz dos governos Dutra (1946-1950) e Cardoso (1994-2002) Pedro Paulo Zahluth Bastos 1  Resumo O artigo analisa a experiência de liberalização comercial dos governos Dutra (1946-1950) e Cardoso (1995-2002), avaliando o processo decisório da política econômica para mostrar que crises cambiais levaram os governos, de uma forma ou outra, a substituir prioridades definidas inicialmente e revalorizar a substituição de importações, ao contrário de narrativas liberais qu e enfatizam restrições não-econômicas (políticas e ideológicas) à consolidação de estratégias liberais na América Latina. Estas narrativas desconsideram, de um lado , assimetrias internacionais e, em particular, o impacto d a fragilidade financeira externa para reduzir graus de liberdade na gestão da política de importações de maneira contrária àquela desejada pelos governos liberais em questão; de outro, que restrições à intervenção estatal limitaram a resposta local à crise cambial em um sentido diferente daquele verificado nas estratégias de desenvolvimento do sudeste asiático. Palavras-chave: Estratégias de desenvolvimento; Crises cambiais; Regimes de comércio exterior; Substituição de importações; Consenso de Washington. Abstract The paper studies the experience of commercial liberalization during governments Dutra (1946) and Cardoso (1995-2002) in Brazil, analyzing the evolution of its economic policy decision-making to show how exchange crisis induced these governments, in a way or another, to revert from initial priorities in order to revaluate import substitution, quite contrary to neo-liberal explanations which emphasize non-economic restrictions (political and ideological ones) that presumably hindered market-friendly and outward economic strategies in Latin America. These neo-liberal explanations tend to disregard 1) international hierarchies and, in particular, the impact of external financial fragility to reduce degrees of autonomy in import policy, again quite contrary to aspirations of the governments in question; and 2) restrictions to state policy that limited local reactions to exchange crisis in a different way here than at some development strategies in Southeast Asia. Key words: Development strategies; Exchange crisis; Foreign trade regimes; Import substitution; Washington Consensus. JEL F43, N16, O24.  Vários teóricos liberais alegam que experiências de intervenção estatal na América Latina, visando o desenvolvimento industrial de economias agrárias exportadoras a partir da década de 1930, resultaram de projetos “artificiais” liderados por políticos populistas, elites predadoras de renda e ideólogos (sobretudo economistas) movidos, no fundo, por interesses particulares. (1) Professor Doutor do Instituto de Ec onomia da UNICAMP.

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  • Economia e Sociedade, Campinas, v. 12, n. 2 (21), p. 245-274, jul./dez. 2003.

    As aporias do liberalismo perifrico: comentrios luz dos governos Dutra (1946-1950) e

    Cardoso (1994-2002) Pedro Paulo Zahluth Bastos1

    Resumo

    O artigo analisa a experincia de liberalizao comercial dos governos Dutra (1946-1950) e Cardoso (1995-2002), avaliando o processo decisrio da poltica econmica para mostrar que crises cambiais levaram os governos, de uma forma ou outra, a substituir prioridades definidas inicialmente e revalorizar a substituio de importaes, ao contrrio de narrativas liberais que enfatizam restries no-econmicas (polticas e ideolgicas) consolidao de estratgias liberais na Amrica Latina. Estas narrativas desconsideram, de um lado, assimetrias internacionais e, em particular, o impacto da fragilidade financeira externa para reduzir graus de liberdade na gesto da poltica de importaes de maneira contrria quela desejada pelos governos liberais em questo; de outro, que restries interveno estatal limitaram a resposta local crise cambial em um sentido diferente daquele verificado nas estratgias de desenvolvimento do sudeste asitico.

    Palavras-chave: Estratgias de desenvolvimento; Crises cambiais; Regimes de comrcio exterior; Substituio de importaes; Consenso de Washington.

    Abstract

    The paper studies the experience of commercial liberalization during governments Dutra (1946) and Cardoso (1995-2002) in Brazil, analyzing the evolution of its economic policy decision-making to show how exchange crisis induced these governments, in a way or another, to revert from initial priorities in order to revaluate import substitution, quite contrary to neo-liberal explanations which emphasize non-economic restrictions (political and ideological ones) that presumably hindered market-friendly and outward economic strategies in Latin America. These neo-liberal explanations tend to disregard 1) international hierarchies and, in particular, the impact of external financial fragility to reduce degrees of autonomy in import policy, again quite contrary to aspirations of the governments in question; and 2) restrictions to state policy that limited local reactions to exchange crisis in a different way here than at some development strategies in Southeast Asia.

    Key words: Development strategies; Exchange crisis; Foreign trade regimes; Import substitution; Washington Consensus.

    JEL F43, N16, O24.

    Vrios tericos liberais alegam que experincias de interveno estatal na Amrica Latina, visando o desenvolvimento industrial de economias agrrias exportadoras a partir da dcada de 1930, resultaram de projetos artificiais liderados por polticos populistas, elites predadoras de renda e idelogos (sobretudo economistas) movidos, no fundo, por interesses particulares.

    (1) Professor Doutor do Instituto de Economia da UNICAMP.

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    Para polticos, o interesse da popularidade rpida e sobretudo irresponsvel; para empresrios, lucratividade fcil, protegendo-se da competio estrangeira e predando recursos pblicos; para economistas, reputao, influncia e cargos bem remunerados no Leviathan em expanso veloz, descontrolada e ineficiente.

    Interveno estatal, ideologia antiliberal, projeto artificial de desenvolvimento. A suposio implcita dos crticos liberais desta trade que eles, sim, conheceriam o curso natural de desenvolvimento distorcido por essa conjuno de interesses escusos; pois por referncia a um curso presumidamente natural de desenvolvimento que a estratgia artificial criticada.

    A defesa do liberalismo nestes pases perifricos, porm, enfrenta algumas aporias. Como saber qual o curso natural que deveria ter sido seguido, caso interesses inconfessveis no tivessem desviado regies inteiras do rumo correto?

    Como este reino da natureza no foi experimentado historicamente, sua existncia (metafsica) no poderia ser, ela sim, o produto artificial da imaginao de tericos liberais? Tericos estes que, ento, poderiam estar interessados menos em cincia (a partir da investigao emprica) e mais em critrios normativos para criticar a realidade objetiva em defesa de reformas liberais? O recurso retrico metafsica do estado de natureza, alis, no teve sempre intuito poltico (s vezes revolucionrio) atravs dos tempos?

    Da a indagar pelos interesses dos reformistas liberais vai um passo: lutam por ideais metafsicos ou interesses menores? Da a sugerir que economistas proponentes de reformas liberais possam ser movidos pela busca (inconfessvel) de reputao, influncia e cargos bem remunerados no mesmo Leviathan, agora em crise e redefinio, vai outro passo. Sem absorver o nus da prova desta possibilidade (nem absolv-la), este artigo tem por objetivo:

    (1) apresentar a crtica de economistas liberais ao artificialismo desenvolvimentista, e a maneira como buscam dar densidade emprica ao presumido curso natural de desenvolvimento que poderia ter sido seguido na Amrica Latina, comparando-o com o caso asitico;

    (2) discutir as experincias mais aproximadas e recentes de uma estratgia liberal (pelo menos no que tange abertura externa) no caso brasileiro (governos Dutra e Cardoso); mostrando que a crise da abertura pretendida de incio no foi produto de uma reviravolta desenvolvimentista, mas de uma crise cambial incontrolvel e indesejada, particularmente porque a oferta de financiamento externo ficou aqum do esperado;

    (3) apresentar os efeitos naturais da crise cambial sobre a dinmica de produo e investimento privado, induzindo processo de substituio de importaes no sentido de um desenvolvimento econmico mais autrquico do que planejado pelos reformistas liberais; neste sentido, o elogio da substituio de importaes que se seguiu crise da estratgia de abertura no resultou de

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    uma preferncia apriorstica pelo nacional contra o importado, mas do fato de reagir a um problema inescapvel: a necessidade urgente de superar ou atenuar a crise cambial;

    (4) constatar e discutir por que o processo de substituio de importaes, que limitou a abertura externa no plano comercial, no foi acompanhado de redefinio antiliberalizante semelhante no plano financeiro, depois da crise cambial, uma vez que os governos insistiram em obter os fluxos financeiros que acreditavam corresponder sua adeso crvel a um ambiente regulatrio atraente ao capital estrangeiro.

    Assim, o artigo pretende realar outra aporia do liberalismo perifrico latino-americano: o fato de que, ao contrrio do que alegam vrios economistas liberais, um curso de desenvolvimento econmico menos autrquico e mais natural (aberto de diferentes maneiras economia mundial) foi testado no Brasil em pelo menos duas circunstncias. E que, a despeito de sua pretenso de corresponder ao estado natural das coisas, ele no se sustentou historicamente.

    Sua crise, por sua vez, induziu naturalmente um estado de coisas mais autrquico do que inicialmente pretendido pela opo liberal, por meio de alterao abrupta e indesejada da taxa de cmbio ou da proteo comercial efetiva. Sobretudo depois que a crise cambial pressionou o sistema de preos relativos e induziu a substituio de importaes, os governos procuraram colaborar retirando gargalos que limitavam o livre curso da expanso induzida pela crise cambial. Sem, porm, reverterem a abertura financeira inicial, embora enfrentassem crises econmicas e oposio poltica a esta opo liberal.

    No difcil sugerir, a partir da, que o projeto liberal era artificial e que a substituio de importaes correspondeu a um curso de desenvolvimento induzido naturalmente por crises histricas do prprio projeto liberal. Este artigo, porm, no pretende assumir o nus deste argumento em geral, embora admita, com as qualificaes necessrias, que este pode ser o caso para as conjunturas histricas analisadas.

    O primeiro item, a seguir, resenha os argumentos liberais sobre o desenvolvimento econmico latino-americano. O segundo item discute o governo Dutra e o terceiro, o governo Cardoso. O ltimo item faz consideraes finais.

    1 O padro natural de desenvolvimento econmico

    As crises monetrias e cambiais latino-americanas nos anos 1970 e 1980 foram explicadas por economistas liberais de um modo inequvoco: resultariam da interferncia estatal, exagerada, duradoura e ineficiente, no mecanismo alocativo presumidamente eficiente representado pelos sinais de preos de mercado. Em novembro de 1989, um amplo seminrio promovido pelo Instituto de Economia Internacional de Washington sistematizou crticas ao modelo de desenvolvimento autrquico e artificial latino-americano, elaborou propostas consensuais

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    para superar o modelo e comparou casos nacionais para avaliar o que vinha sendo feito para corrigir os erros atravs de reformas liberais (J. Williamson, 1990).

    As principais concluses foram batizadas de Consenso de Washington e forneciam um conjunto de propostas de reforma liberal (comerciais, financeiras, patrimoniais, fiscais, cambiais e monetrias) para superar erros identificados. Estas propostas originavam-se de diagnsticos liberais anteriores de que

    (1) as crises monetrias e cambiais (incluindo a crise da dvida) que marcaram o esgotamento do modelo autrquico de industrializao resultaram do acmulo de erros de poltica econmica, motivados por dogmas doutrinrios ultrapassados e/ou atividades polticas predadoras de renda;

    (2) as crises seriam superadas por reformas e polticas corretas que liberassem o sistema de preos para alocar recursos sem interferncias errneas.2

    O argumento tpico alega que o modelo de desenvolvimento autrquico por substituio de importaes industriais teria sido idealizado previamente e perseguido politicamente. A interveno injustificada na eficincia alocativa do sistema de preos seria motivada tanto por atividades polticas predadoras de renda quanto por idealizaes artificiais, arbitrrias, antinaturais a respeito do desenvolvimento latino-americano. O objetivo alegado desta interveno seria desenvolver a indstria substitutiva de importaes, mas seu efeito prtico era favorecer empresrios ineficientes e prejudicar consumidores de bens nacionais piores e mais caros do que os similares importados. Os instrumentos desta interveno fracassada eram vrios (incentivos fiscais e creditcios, sobrevalorizao da moeda local, altos nveis de proteo comercial), mas seu pior efeito no era a transferncia de rendas pblicas, a curto prazo, para empresrios ineficientes e polticos corruptos.

    Seu prejuzo mais duradouro seria a m alocao de recursos privados gerada pela distoro artificial do sistema de preos. A proteo estatal reduziria o escopo de produo/consumo afetado pelo comrcio exterior e pela disciplina de eficincia alocativa exigida, induzindo realocaes artificiais de recursos domsticos da produo de bens exportveis para produo de bens importveis. Assim, tal proteo afastaria a alocao de recursos da direo naturalmente eficiente representada pelas vantagens locais, ou seja, iria desvi-la da especializao correta na diviso internacional do trabalho por proteger especializaes incorretas e insustentveis.

    Embora a opo intervencionista pudesse provocar expanses a curto prazo, ela teria flego curto. Ao invs da opo natural de take the right prices as they are, a tentativa artificial de make prices as whished, alm do limite do

    (2) Argumentos apresentados de maneira mais ou menos integrada por autores como Balassa (1982; 1983); Bhagwati (1985); Ranis & Orrock (1985) e Balassa & Williamson (1987). Exemplos brasileiros do argumento so fornecidos por Roberto Campos (1994) e Gustavo Franco (1999).

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    possvel, seria contraproducente a mdio prazo. Dficit pblico (induzido por populismo macroeconmico e incentivos/desperdcios fiscais), ineficincia produtiva (por proteo comercial) e manuteno de taxas de cmbio anti-exportaes (pela fixao nominal ou condescendncia com inflao) gerariam tendncia de dficit comercial e endividamento externo cumulativo, agravando eventuais restries de divisas que se pretenderam superar.

    Uma hiptese central implcita ao argumento a existncia de um caminho natural de desenvolvimento latino-americano que s no foi seguido em razo da arbitrariedade dos grupos polticos e tcnicos que o rejeitaram. O argumento enfrenta uma aporia: definir o que seria (ou teria sido) o desenvolvimento natural destas economias no trivial e, luz do que efetivamente ocorreu (um desenvolvimento presumidamente antinatural), defini-lo no pode deixar de constituir um exerccio contrafactual, recurso prximo do artificialismo de que se quer afastar. Afinal, como o desenvolvimento natural no foi experimentado historicamente, sua existncia no poderia ser o produto artificial da imaginao liberal (ou seja, ter apenas uma existncia terica)?

    Frente dificuldade de superar esta aporia sem uma referncia externa prpria experincia latino-americana, os exerccios voltam-se para a histria comparativa: a experincia de desenvolvimento latino-americana posta defronte experincia (estilizada) do sudeste asitico. Os casos nacionais do sudeste asitico ilustrariam o caminho natural que poderia ter sido percorrido pelos pases latino-americanos. Aqui, arbitrariedade; l, natureza: os pares so e podem ser os mais diversos (dficit pblico/equilbrio fiscal; sobrevalorizao cambial/cmbio justo; inflao/responsabilidade monetria; proteo redundante/ proteo temporria etc.), mas todos servindo ao dualismo artificialismo/ naturalidade.

    A comparao complicada pelo fato de que a experincia de desenvolvimento dos pases asiticos marcada pelo reconhecimento de que o papel do Estado no desenvolvimento da regio pelo menos maior ou diferente de algum padro de desenvolvimento dito clssico. A presena do Estado no desenvolvimento de Coria do Sul e Formosa, para no falar do Japo, no parece constituir exceo em relao a outros processos de industrializao tardia, no apenas na interferncia indireta por meio de incentivos alocativos ao investimento privado direcionado, como tambm na interveno direta de empreendimentos estatais em atividades essenciais e estratgicas.3

    Esta dificuldade contornada apontando-se a nfase da interveno estatal e sua convivncia com polticas de comrcio exterior corretas. Embora

    (3) Para ilustrar com a experincia de pases comumente tomados como exemplos de virtude liberal a ser imitada pelos governos latino-americanos, em Formosa (Taiwan) as seis maiores firmas estatais industriais tinham um faturamento igual ao dos cinqenta maiores grupos industriais privados em 1980. Das dez maiores firmas industriais, sete eram empresas estatais; das maiores cinqenta, dezenove eram estatais. A estrutura de propriedade na Coria do Sul similar: doze das dezesseis maiores firmas industriais eram estatais em 1972, assim como vinte das cinqenta maiores (Wade, 1990, p. 178).

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    reconheam a interveno estatal na sia, os relatos liberais argumentam que a interveno teria se voltado a reafirmar sinais alocativos do sistema de preos e apoiar a alocao privada de recursos na direo natural das vantagens comparativas, preferindo um regime liberal de importaes.

    Nisto, as economias asiticas teriam se diferenciado do curso das economias latino-americanas depois da primeira etapa, fcil, da substituio de importaes. Ao final desta etapa inicial, enquanto na Amrica Latina ter-se-ia optado pela estratgia de aprofundar a substituio de importaes em direo segunda etapa, difcil porque exigente de fatores de produo escassos na regio, no sudeste asitico a escolha recara em um caminho extrovertido: a, a despeito da interveno estatal, nunca se pretendera eliminar a disciplina e os sinais alocativos do comrcio exterior e afastar a alocao de recursos de sua tendncia natural (Balassa, 1981).

    Em suma, na comparao com a interveno estatal predominante no sudeste asitico, a interveno latino-americana perderia por no se limitar a apoiar o caminho natural indicado pelo sistema de preos (market friendly), mas por buscar revert-lo de todo, orientando-o para dentro e no para fora. Ou seja, fechando-o diviso internacional do trabalho, limitando benefcios da especializao econmica correta e protegendo decises de especializao erradas (Krueger, 1985; Ranis & Orrock, 1985).

    Ao realizar esta comparao, o argumento liberal no recorre hiptese de que restries econmicas (no ideolgicas ou corporativas) tenham impedido ou dificultado a consolidao do padro natural de desenvolvimento econmico. Ao contrrio, alega-se que restries econmicas herdadas da disponibilidade relativa de fatores de produo, particularmente naturais, aconselhariam naturalmente abertura e especializao correta. Algo que s no se teria realizado em razo da conjuno de interesses e ideologias de grupos polticos, econmicos e tcnicos particularistas prejudicados. Assim, as crises posteriores podem ser explicadas exclusivamente pela equivocada conduo de polticas econmicas (unsound policies), porque se presume que no haja nada que as justifique de incio, tirante ideologias erradas e interesses corporativos daqueles que as executaram.

    Em outras palavras, supe-se que (1) os policy-makers operaram em contexto livre de restries

    econmicas internacionais ou locais que implicassem na insustentabilidade histrica do projeto de abertura; e

    (2) eles poderiam/deveriam ter optado por polticas liberais, diferentes daquelas implementadas e consideradas equivocadas luz das teorias liberais invocadas para analis-las: se um curso de desenvolvimento econmico natural foi bloqueado, isto no teria acontecido porque restries econmicas inviabilizaram-no, mas porque polticos, economistas e empresrios liberais perderam embates ideolgicos e polticos para congneres desenvolvimentistas.

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    As prximas sees deste trabalho pretendem avaliar o papel que restries no ideolgicas ou corporativas, mas econmicas, tiveram na dificuldade de consolidar um curso de desenvolvimento econmico menos autrquico no Brasil, em duas das circunstncias mais recentes em que a tentativa foi feita: nos governos Dutra e Cardoso. Por que avaliar restries econmicas, e no ideolgicas ou corporativas? Primeiro, porque estes governos foram influenciados por propostas liberais de abertura externa. Como o argumento liberal para explicar o desvio para um desenvolvimento mais autrquico e menos aberto apela para restries ideolgicas e corporativas, tomar conjunturas em que os embates ideolgicos e polticos favoreceram propostas de abertura externa relevante para avaliar, ao revs, a sustentabilidade econmica destas propostas.

    Segundo, porque estes governos descreveram, de certo modo, um movimento pendular de poltica econmica, iniciando com propostas de abertura externa que explicitamente valorizavam a entrada barata de produtos importados e terminando com elogios substituio de importaes industriais protegidas (espontaneamente ou no) da competio estrangeira.

    Terceiro, e mais importante, porque este movimento pendular no foi produto de uma reviravolta desenvolvimentista que decidisse embates ideolgicos e polticos em sentido antiliberal. Resultou, sim, de uma crise cambial incontrolvel e indesejada que tornou insustentvel a poltica anterior; foram restries econmicas, e no preferncias apriorsticas pelo nacional contra o importado (motivadas por interesses corporativos ou ideologias ultrapassadas), que levaram estes governos a elogiar a substituio de importaes, depois de tanto elogiarem as importaes. Assim, se algum exemplo reverso pode ser dado pela experincia brasileira, o de que um regime liberal de importaes no basta para explicar o sucesso asitico e que as lies liberais sobre este sucesso esto desfocadas.

    2 O pndulo do governo Dutra (1946-1950)4 2.1 A opo liberal

    A opo inicial por uma poltica ortodoxa de combate inflao no governo Dutra teve o sentido de rejeio ideolgica e tcnica ao intervencionismo varguista, considerado responsvel pela acelerao inflacionria durante a Segunda Guerra. Um amplo consenso liberal formou-se entre elites polticas e econmicas a respeito das causas da inflao, responsabilizando o par interveno estatal (dficit pblico) e proteo comercial (lucros extraordinrios). O lder da campanha liberal foi inegavelmente Eugnio Gudin, j acompanhado do jovem Octvio Gouva de Bulhes.

    (4) Esta seo sintetiza resultados apresentados em outros trabalhos do autor (Bastos, 2001; 2003), evitando-se recuperar aqui todo o suporte documental e serial apresentado neles.

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    O principal conflito ideolgico deu-se em torno da proposta de planejamento econmico de Roberto Simonsen (lder da indstria paulista) junto ao Conselho Nacional de Poltica Industrial e Comercial (CNPIC), bombardeada por Gudin na chamada controvrsia do planejamento. Simonsen mostrava-se pessimista diante da possibilidade de assentar o crescimento econmico em exportaes agrcolas e considerava essencial preservar a proteo natural propiciada pela Grande Depresso e pela Segunda Guerra, substituindo-a pelo protecionismo deliberado da indstria nacional no ps-guerra. Alm disso, propunha fomentar o desenvolvimento industrial com crdito subsidiado e investimento estatal complementar e a criao de uma Cmara de Planificao na qual participariam industriais para alocar financiamento norte-americano tomado de governo a governo.5

    A posio de Gudin foi editada em livro (Rumos da poltica econmica) e, indo muito alm de crticas tcnicas s propostas de Simonsen, associava a orientao econmica do Estado Novo e a proposta de planejamento ao autoritarismo poltico (citando teses contemporneas de Hayek), sendo elemento incompatvel ao movimento de redemocratizao do pas. Propunha modificar o modelo de crescimento em um sentido liberal: restaurar sinais de mercado por meio de abertura externa (comercial e financeira) e controle da inflao, para que recursos privados fossem alocados de maneira eficiente entre setores urbano e rural. Um ambiente regulatrio atraente ao capital externo privado deveria ser criado, facilitando remessas de lucro e evitando a presena de estatais que empurrassem filiais internacionais de setores onde poderiam atuar (sobretudo infra-estrutura e extrao mineral), havendo forte crena de que estas reformas seriam suficientes para atrair fluxos de capital capazes de financiar importaes crescentes, seja para reaparelhar a estrutura produtiva, seja para combater os lucros extraordinrios dos industriais e, portanto, a inflao. As crticas liberais de maior apelo poltico estavam na questo inflacionria, resultando da proteo comercial (lucros extraordinrios) e de uma interveno estatal arbitrria e excessiva que deveria ser abandonada junto com o Estado Novo:

    Como conceber uma ditadura econmica dentro de uma democracia?No discuto aqui ideologias. Mostro apenas a grave herana de capitalismo de Estado que nos ficou do regime totalitrio que ora se extingue H muito quem pense e pense erroneamente que muitos dos empreendimentos no se poderiam ter realizado porque a economia privada no dispe de recursos suficientes e porque s o Estado tem capacidade financeira para tanto. um erro, baseado na idia de que o Estado pode forjar capital Mas papel pintado s capital na cabea dos inocentes. O que o papel-moeda faz tirar do povo para as mos do governo que emite o dinheiro (Gudin, 1945b, p. 68, 81-82).

    (5) Sobre ela, ver especialmente Corsi (1991); Doellinger (1977); Diniz (1978, cap. 6); Sola (1982, cap. 2) e Bielschowsky (1985, parte II, caps. 1-2).

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    A principal reao de Vargas campanha econmica liberal acabou reforando-a. O decreto da Lei Malaia (n. 7.666, a 22 de junho de 1945) transferia a responsabilidade pela inflao aos trustes e cartis formados para cometer atos contrrios economia nacional, explorando a misria e a impotncia do povo.6 Esta reao, que visava aproximar Vargas do povo (e dos queremistas), acabou empurrando empresrios para a campanha liberal, envolvendo manifestos da Ordem dos Advogados, da UDN e uma carta aberta das classes produtoras publicada na Folha da Manh, unificando a Federao das Associaes Comerciais, a Confederao Nacional da Indstria e a Unio das Associaes Agropecurias do Brasil Central, interpelando Vargas:

    Crdito e papel moeda mais do que duplicaram em 10 anos. Para que procurar outra causa para a alta de preos, quando ela est a evidente aos olhos de todos? (Carone, 1976, p. 369-377).

    O prprio Eugnio Gudin enderearia carta a Vargas pedindo demisso dos rgos de que participava como conselheiro por discordar frontalmente do DL n. 7.666 (EUG/ 45.07.30cor). O efeito poltico da CADE foi, de um lado, reforar a impopularidade dos industriais na questo inflacionria e, de outro, afast-los de Vargas. Embora a vinculao da poltica cambial proposta de reaparelhamento da indstria pelo regime de licena prvia (cinco meses antes) favorecesse os industriais, a legitimidade da defesa da proteo contra o dumping das importaes era severamente afetada, se os empresrios, j tributados por um imposto sobre lucros extraordinrios, eram agora acusados de atos contrrios economia popular. O candidato pessedista Dutra tambm preferia no se afastar, na questo inflacionria, da matriz ideolgica que orientava o programa da UDN.7

    No surpreende que o governo Dutra recebesse e aprofundasse as iniciativas de liberalizao herdadas do governo provisrio. Mantendo iniciativas para contrair a expanso do crdito e investimentos pblicos, a revogao do regime de licena prvia das importaes (PI-7) pela Portaria n. 258 (28 de dezembro de 1945) comeou o desmonte dos mecanismos cambiais institudos no Estado Novo. Taxa de cmbio fixa, mas desregulamentao sucedendo-se gradualmente, pautando-se na crena de que receberamos financiamento externo suficiente para sustentar o programa liberal de importaes.

    (6) Para o texto da lei, cf. Franco (1946, p. 288-295) ou Carone (1976, p. 196-203); ver tambm Corsi (1997, p. 276-277)

    (7) Cessadas as operaes de guerra, deveramos restringir as despesas militares, protrair o incio das obras novas e reduzir o andamento das j iniciadas, cuja concluso no tenha efeitos imediatos sobre o barateamento do custo de vida, at que possamos restabelecer o equilbrio das finanas pblicas e estancar qualquer nova emisso de papel-moeda: discurso de campanha de Dutra citado pelo Relatrio do Banco do Brasil de 1945 (p. 123). Nas palavras de Bielschowsky (1985, p. 365-366): Consensualmente, a grande causa da inflao, segundo as anlises econmicas de todo o perodo, estariam sendo os dficits pblicos, que sempre , naturalmente, o argumento tpico do empresariado, aquele que mais lhe convm pelo menos no que diz respeito a seus interesses de curto prazo. Ao final da guerra, a recomendao mais enftica encontrada na literatura econmica era a de que se deveriam contrair as despesas pblicas.

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    2.2 Crise e reverso

    Sabe-se que a liberalizao das importaes no durou todo o governo. Uma crise cambial forou reverso ao regime de licenas prvias e seletivas de importaes, restaurado em 1948. Mas a crise cambial no foi provocada, como Vargas gostaria de repetir, pelo boom importador de bugigangas. Pesquisas acadmicas revisaram esta interpretao, considerando-se atualmente que a crise cambial de 1947 deveu-se tambm a que:

    (1) o saldo comercial tenha cado rapidamente em 1947, contando tambm com expanso de importaes de bens de capital respectivamente de 47% e 57% em 1946 e 1947, mais que dobrando no binio;

    (2) o surto de importaes tenha-se concentrado particularmente em moedas conversveis (60% oriundas dos EUA), dada a lentido da reconverso produtiva das demais economias industriais afetadas pela guerra, com as quais o pas mantinha acordos de compensao bilateral;

    (3) as exportaes tenham-se concentrado em moedas inconversveis (apenas 40% destinadas aos Estados Unidos), retidas como crditos nos acordos bilaterais;

    (4) o preo do caf no tenha se recuperado at 1949 como era esperado, limitando a gerao de crditos bilaterais e sobretudo de dlares;

    (5) a fuga de capitais propiciada pela liberao das remessas de lucro tenha gerado sadas lquidas de US$ 500 milhes entre 1946-1950, desfinanciado o balano de pagamento e limitando a acumulao de reservas mesmo depois dos controles institudos em 1948;

    (6) a hiptese de que a condio de aliado especial dos Estados Unidos compensasse o pas com crditos de governo a governo tenha fracassado medida que o esforo diplomtico e financeiro norte-americano se deslocou para regies problemticas no incio da Guerra Fria (Tavares, 1963; Malan, 1976; 1977;1984; Vianna, 1987; Bastos, 2001). Em suma, a liberalizao comercial no se mostrou vivel e desaguou em crise cambial em razo de fragilidades inerentes condio perifrica do pas nos planos econmico, poltico e cultural do mundo capitalista ps-Segunda Guerra, em particular da incapacidade de obter financiamento externo no montante desejado.

    Em contexto de crise cambial aguda, a reverso ao regime de licenas prvias foi provocada pela inviabilidade prtica de preservar a liberalizao das importaes. verdade que o governo poderia ter desvalorizado a taxa de cmbio ou liberado-a (e o fez em parte). Mas mesmo economistas liberais reconheciam que as circunstncias historicamente especficas do Brasil (exportador de commodities inelsticas ao preo) no aconselhavam a proposta em geral. Gudin repetia, em 1945, o recado de seu influente Caf e cmbio (1933), afirmando em palestra aos cafeicultores que nenhum produto de nosso comrcio internacional

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    pode ser mais beneficiado pela estabilidade cambial que o caf [] as sucessivas desvalorizaes de nossa moeda s tem tido efeito deprimente sobre os preos-ouro do caf, com grave dano para a economia nacional, obrigando-nos a dar uma quantidade cada vez maior de sacas de nosso produto em troca de nossas importaes (Arquivo EUG/reg. Gudin F-pi45.09.16d). Ao invs de generalizar taxa de cmbio desvalorizada ou livre, o governo preferiu promover as exportaes de produtos gravosos com cmbio livre a partir de 1948, estimulando as exportaes capazes de reagir a estmulos de preo.

    Por outro lado, a restaurao do regime seletivo de importaes permitia contornar a crise cambial sem experimentar o impacto inflacionrio do encarecimento de importaes essenciais. O efeito desta poltica conhecido: o bloqueio da importao de bens no-essenciais e o barateamento relativo das importaes complementares representou um estmulo considervel implantao interna de indstrias substitutivas desses bens de consumo, sobretudo os durveis, que ainda no eram produzidos dentro do pas e que passaram a contar com uma proteo cambial dupla, tanto do lado da reserva de mercado quanto do lado dos custos de operao. Esta foi basicamente a fase de implantao das indstrias de aparelhos eletrodomsticos e outros artefatos de consumo durvel (Tavares, 1963, p. 71; ver tambm Malan et al., 1977, cap. 5).

    A maioria dos intrpretes desta reverso alega no apenas que o governo foi forado a realiz-la pela crise cambial (o que inegvel), mas tambm que era inconsciente dos efeitos da restaurao de controles cambiais sobre a substituio de importaes, o que no corroborado por documentos oficiais (cf. Bastos, 2001; 2003). J no discurso de fim de ano de 1947, Dutra anunciava programa de investimentos pblicos (o que viria a chamar-se SALTE) como uma reao diante dos limites da estratgia exportadora e como uma imposio das circunstncias:

    Os recursos da nossa exportao so insuficientes. Ou procuramos outras fontes de exportao, ou havemos de substituir os nossos acrscimos de compra com produo nacional, evitando, desse modo, o aumento crescente da importao. No possvel escolher, com exclusividade, um ou outro caminho. No h dvida, porm, sobre a convenincia e urgncia de dotar o pas de meios para incrementar a produo, atravs do reaparelhamento dos transportes, do aumento da produo de energia e da explorao de petrleo Sade, alimentao, transporte, energia e petrleo so as balizas que devem orientar o nosso esforo de recuperao, uma vez reconhecido, depois do grande otimismo inicial, que a confiana inicial na estabilidade do setor externo se frustrara.8

    O governo voltaria a reconhecer a necessidade de retirar gargalos expanso industrial na Mensagem presidencial de 1948, uma vez que a estratgia liberal fracassara. Agora, nas novas circunstncias, para [] precaver os prprios

    (8) Esta passagem do discurso de final de ano no era mero acidente lingstico, sendo repetida textualmente na prxima mensagem presidencial enviada ao congresso para abertura das sees, lida em 15 de maro de 1948 (Dutra, 1948, p. 178-179).

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    interesses do povo, necessrio firmar a noo de que o Brasil precisa importar, mas com a finalidade de equipar-se convenientemente, para incrementar a sua indstria e aparelh-la do que lhe falta. (p. 147). Enquanto o governo favorecia importaes essenciais, o Banco do Brasil passou a realizar poltica de crdito mais acomodatcia (lembre-se que 1948 foi o primeiro ano da histria em que os emprstimos para a indstria superaram os destinados ao comrcio), de modo que se restaurava a combinao entre plano de investimentos, poltica cambial seletiva, cmbio fixo e poltica acomodatcia de crdito visualizada no final do Estado Novo.

    No se exagere, porm, a racionalidade desta poltica. O Plano SALTE foi pouco alm de um somatrio de projetos relativamente desconexos, reunidos formalmente em projetos de gasto que ultrapassassem o ano fiscal, sem definir cronogramas de execuo e articul-los a fluxos de financiamento (cf. Draibe, 1980). No foi acompanhado de qualquer reforma administrativa, nenhuma agncia central de coordenao, nenhum esquema novo de financiamento ou empresa estatal. A nica indstria nova a criar em seu anteprojeto (material eltrico pesado para gerao e distribuio de energia hidreltrica) desapareceria da proposta final: a substituio de importaes ficava restrita aos ramos fceis. Tratou-se de retirar alguns gargalos de infra-estrutura ao crescimento econmico, crescimento este que acompanhou a expanso/diversificao industrial induzida, espontaneamente, pela crise cambial e pela proteo substituio de importaes: no foi produto de um plano governamental abrangente.

    De todo modo, o governo, forado a uma reverso, no conseguia agradar nem a gregos nem a troianos. Velhos aliados liberais exasperavam-se porque a estratgia inicial de incentivo s importaes comeava a ser substituda pelo elogio do planejamento e da substituio de importaes; Gudin escreveria uma violenta crtica ao Plano SALTE, encarando-o como um retrocesso (cf. Bielschowsky, 1985). Vargas continuava torpedeando o governo de crticas (reunidas em A poltica trabalhista no Brasil) por seu carter liberal, anacrnico e omisso, embora o elogio do planejamento feito por Dutra visasse em parte desarmar crticas da oposio ao alegar que o governo j tomara as iniciativas exigidas pelo momento.

    Mas o governo no agiria com a mesma presteza para controlar outra fonte de desequilbrio externo: as remessas financeiras, facilitadas pela liberalizao completa empreendida pela Instruo 20 da SUMOC em agosto de 1946 (tendo em vista as condies favorveis do mercado de cmbio, no texto da lei), no paravam de aumentar sem que o governo restaurasse os controles originais. Por no criar nem contar com mecanismos internos de financiamento de projetos essenciais (e ter abolido at o fundo constitudo com taxa de 5% sobre transaes cambiais que financiara o programa que antecedera o SALTE, isto , o Plano de Obras e Equipamentos), o governo continuava esperando uma promessa liberal

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    que tambm no se realizou: que um arcabouo amigvel para remessas por si s induziria grande surto de financiamento externo. Tal no se deu, e o governo amargou um saldo negativo de 500 milhes de dlares de sadas lquidas de capital privado que manteve as reservas cambiais em nveis pouco confortveis para financiar mesmo importaes essenciais crescentes.9

    Assim, a resposta crise da estratgia liberal foi restringida por limites: (1) aos esforos de criao de mecanismos de centralizao financeira

    interna que apoiassem investimentos locais (privados e estatais); (2) articulao planejada de metas de investimento e de mercados a

    criar aos quais talvez pudessem integrar-se filiais internacionais, complementando investimentos locais (Bastos, 2001).

    Em outras palavras, o governo foi obrigado a dar meia-volta no pndulo em razo de uma crise que no queria experimentar; tomou conscincia de certas iluses do liberalismo perifrico; mas permaneceu distante de retirar e buscar implementar todas as exigncias prticas que pudessem corresponder a esta nova conscincia.

    3 O pndulo do governo Cardoso (1995-2002) 3.1 A opo liberal

    Anos 1990, tempos em que a ofensiva poltica neoliberal prometia abundncia de financiamento externo aos pases (ditos emergentes) que aderissem ao Consenso de Washington. O sistema monetrio e financeiro internacional fora virado de ponta-cabea desde a escassez de financiamento externo experimentada por Dutra ou Vargas: a poca dos mercados domesticados pelo acordo de Bretton Woods fora substituda pelo mundo das finanas desreguladas, por ciclos de entrada e sada de capitais mais curtos, pouco favorveis ao investimento produtivo e sujeitos a movimentos especulativos e de contgio em escala global (Helleiner, 1994; Belluzzo, 1995). Em meados da dcada, Cardoso no inaugurava a abertura comercial e financeira no Brasil, mas a herdava de bom grado do governo Collor. As reformas liberalizantes de Collor foram anunciadas na campanha eleitoral de 1989, em que o candidato brandia slogans contra os marajs do servio pblico, os elefantinhos do setor produtivo estatal e as carroas produzidas pelo setor automobilstico protegido. claro que a opo liberal no era consensual, havendo forte polarizao entre Collor e candidatos esquerda (Brizola e Lula); mas tampouco resultava de

    (9) Na formulao insuspeita de Pedro Malan (1984, p. 65), [...] As autoridades monetrias e cambiais do governo Dutra aparentemente depositaram vasta confiana em uma soluo duradoura para o potencial desequilbrio do balano de pagamentos nacional atravs da conta de capital, vale dizer, atravs de uma poltica liberal de cmbio que, em estimulando as sadas de capital, pudesse estimular tambm ingressos brutos em proporo ainda mais significativa no futuro.

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    idiossincrasia do candidato: suas posies liberais articulavam-se a um movimento reformista amplo que se gestara durante a agonia lenta do governo Sarney (cf. Cruz, 1992).

    Uma vez no governo, tratou-se de realizar reformas semelhantes quelas que vinham sendo propostas pelas instituies multilaterais sediadas em Washington (FMI e Banco Mundial) e pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, visando, em linhas gerais, reduzir e delimitar o papel do Estado e aumentar o grau de concorrncia (comercial e financeira) com menor proteo poltica e maior abertura externa. A abertura comercial iniciou-se ainda no governo Sarney com a eliminao de controles administrativos, radicalizada no governo Collor e fazendo-se seguir de cronograma de desgravao que visava reduo da mdia e da varincia tarifria (cf. Holanda, 1997); a liberalizao financeira tambm se iniciara com algumas iniciativas em 1988, acelerando-se at 1992 com facilidades abertas de movimentao via CC-5, dentre outras (cf. Margarido, 1997); o programa de privatizaes foi inaugurado com o setor siderrgico (Usiminas, 24 out. 1991) estendendo-se depois para petroqumica, fertilizantes e, j no governo Cardoso, transportes, telecomunicaes, energia e bancos (cf. Oliveira, 1996).

    O programa liberal foi ainda levado adiante no governo Cardoso com uma srie de mudanas regulatrias que facilitavam o programa de privatizao (EC-5 a EC-9/1995) e aprofundavam a abertura financeira, facilitando fluxos de capitais de diferentes prazos e perfis sob justificativa de adaptar o marco regulatrio domstico s novas oportunidades da globalizao financeira (cf. Freitas & Prates, 2001). A justificativa da abertura comercial continuava, em parte, a mesma de 50 anos antes: deixar para trs os lucros extraordinrios, a diversificao excessiva e o descaso com ganhos de produtividade que seriam inerentes ao modelo protegido de substituio de importaes. A novidade que se passava a argumentar que a abertura comercial era uma necessidade imposta pela globalizao, vale dizer, pela nova forma de internacionalizao das corporaes, operando em redes produtivas globais recorrendo ao outsourcing com nveis de integrao vertical local menores do que, se alegava, na poca dos mercados nacionais protegidos. Como a proteo substituio de importaes seria inadequada atrao de investimentos destas empresas-rede, a reduo da proteo (acompanhada de privatizaes e outras reformas do marco regulatrio) atrairia investimentos que, por sua vez, financiariam o aumento das importaes e eventuais dficits correntes resultantes, ao mesmo tempo em que aumentariam a produtividade geral do sistema (cf. Franco, 1996).

    Com argumentos velhos e novos, liberar importaes foi considerado um dever de casa para melhorar a qualidade dos produtos oferecidos no mercado brasileiro, criando presso competitiva para que produtores internos (nacionais ou no) melhorassem suas plantas e/ou focalizassem suas atividades em produtos em

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    que efetivamente fossem competitivos. Esta presso competitiva tornou-se mais premente com o Plano Real, pois se tratava de usar a liberao de importaes tambm para chancelar a estabilidade de preos: o cronograma de abertura foi acelerado no segundo semestre de 1994, durante a implementao do plano no final do governo Itamar, como meio de evitar a transmisso para os preos das presses de custo e de demanda que se manifestavam (Bacha, 1997, p. 43).

    A presso competitiva no resultava, porm, apenas da acelerao da abertura comercial, e era fortemente articulada prpria liberalizao financeira, pois era acompanhada por uma poltica cambial que Edmar Bacha, talvez o principal formulador do Plano, chamou de banda cambial assimtrica, ou seja, o compromisso do BC de manter a taxa entre um limite superior de R$ 1,00 e um limite inferior indefinido, que na prtica provou estar em torno a US$ 0,83 por Real (Bacha, 1997, p. 21), j que o real se apreciou rapidamente em julho de 1994, sob presso da abundncia de capital externo destinada ento aos mercados emergentes. Gustavo Franco, ento diretor do Banco Central responsvel pela poltica cambial, admitia que:

    [] ao abster-se de intervir no mercado de cmbio, o BC permitiu, como se esperava, e como no poderia deixar de acontecer, uma apreciao nominal da taxa de cmbio. Tratava-se de ir alm de uma ncora cambial na medida em que se criava uma presso deflacionria no universo de mercadorias e servios com seus preos associados ao dlarA deflao no cmbio, bem como em diversos outros preos determinados em mercados competitivos, produziu um choque de expectativas que se revelou fundamental, nas primeiras semanas do Plano Real (Franco, 1995, p. 59).

    A taxa de cmbio apreciada continuou a ser usada como recurso de controle dos preos domsticos durante todo o primeiro mandato de Cardoso. verdade que, depois da crise do Mxico, transitou-se para um regime de bandas cambiais, em que o Banco Central corrigia a taxa de cmbio com depreciaes nominais que pouco compensavam a apreciao do incio do Plano Real (seguindo ritmo claramente maior que a inflao corrente apenas em 1997). O BC esforava-se para manter controle sobre um ritmo de depreciao que no reduzisse a presso competitiva das importaes, recorrendo a elevaes bruscas da taxa Selic, aumento de depsitos compulsrios e incentivos entrada de capitais sempre que ataques especulativos ameaassem o limite superior do regime de bandas (cf. Filgueiras, 2000; Prates, 2000). A deciso do governo Cardoso de no reverter a apreciao inicial do real foi justificada em vrios textos de Gustavo Franco, executor da poltica cambial e, a partir de setembro de 1997, presidente do Banco Central; deixava-se claro que a taxa de cmbio verificada era necessria para reforar a presso competitiva promovida pela abertura comercial sobre preos internos, aumentando a produtividade empresarial e a renda real dos consumidores:

    [] a induo ( produtividade) tem vis deflacionista, pois o repasse pode beneficiar o consumidor se a maior eficincia repassada aos preos e se a

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    manuteno da competio estrangeira impede o uso de margens de lucro para a gerao de lucros extraordinrios retidos para fins de investimentoA abertura a base para a construo de um novo modelo de crescimento [] a abertura se tornou um causa progressista em oposio ao protecionismo que busca suas justificativas em idias nacionalistas e em grupos de presso comprometidos com os velhos processos da substituio de importaes e a explorao de maiorias por minorias organizadas e politicamente influentes (Franco, 1996, p. 42-44).

    Franco e outros seguiam alegando que a nova taxa de cmbio deveria reforar a disciplina alocativa de recursos de maneira natural (sem proteo artificialista) e, em si mesma, a nova taxa no produzia nem manifestava qualquer desequilbrio cambial; era uma taxa de equilbrio determinada pela abundncia de capital externo disponvel para os pases em desenvolvimento e, sobretudo, por um novo modelo de crescimento econmico sustentado em aumentos de produtividade. Estes aumentos eram, a um tempo, conseqncia e causa da nova taxa de cmbio: a apreciao cambial reforara o poder purificador da abertura comercial e da atrao de investimentos no sentido de induzir ganhos de produtividade; os ganhos de produtividade e a atrao de investimentos sustentariam a nova taxa de cmbio apreciada e, com ela, a estabilidade de preos e a presso competitiva inerente liberalizao de importaes (Franco, 1996; Resende, 1996).

    Muito se discutiu sobre a concordncia ou no do presidente Cardoso com as teses defendidas pelo diretor do Banco Central (cf. Safatle, 1996; Pinto, 1996). Na prtica, o diretor no apenas continuou conduzindo a poltica cambial depois da crise do Mxico como passou Presidncia do Banco Central em setembro de 1997, dirigindo o BC com tamanha garantia de autonomia (coerente com sua viso da poltica cambial e monetria) que, ao perd-la (em suas palavras), decidiu demitir-se, em janeiro de 1999 (Franco, 1999). Antes disto, a convergncia, seno terica, pelo menos prtica, era ampla: o presidente Cardoso no somente conferia autonomia gesto do Banco Central, mesmo diante de elevaes da Selic politicamente amargas; ele freqentemente se referia verdadeira ncora que sustentava o real como sendo o aumento revolucionrio de produtividade que a abertura comercial e o ajuste das estratgias empresariais teriam produzido.10

    3.2 Crise e reverso

    Na prtica, sustentar a apreciao cambial foi mais difcil do que parecera de incio, uma vez que a fragilidade financeira externa aumentou muito

    (10) Prefaciando o livro de Franco (1995), Cardoso avisava que para os crticos apressados do Real, a leitura do captulo 5 recomendvel. Na anlise das condies da dolarizao, explicam-se os pressupostos para o xito dos programas de estabilizao e conversibilidade fixa. V-se, com clareza, que expedientes como juros altos e recesso no surtem efeitos positivos de mdio prazo []. No referido captulo, os pressupostos para o xito ficam claros, associando-se aos ganhos de produtividade trazidos pela presso competitiva da abertura com apreciao cambial (Franco, 1995, p. 139-141).

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    rapidamente ao longo do primeiro mandato de Cardoso (Belluzzo & Almeida, 2002; Carneiro, 2002; Paula & Ferrari-Filho, 2003). As entradas de capitais que apreciaram a moeda podiam ser revertidas abruptamente graas liberalizao financeira empreendida, havendo desproporo entre o volume de ativos financeiros em moeda local que podiam ser convertidos em dlar, a curto prazo, e o limitado colcho de reservas usado para defender a banda cambial. No obstante isto, o governo perseverou em no perder o vis deflacionista da taxa de cmbio nas conjunturas de crise internacional que diminuam a credibilidade no regime cambial brasileiro (Mxico, 1995; sia, 1997; Rssia, 1998), contando com polticas monetrias austeras, mas esperando que, no futuro, a melhoria da competitividade empresarial e a permanente atrao de filiais criassem bases de sustentao duradouras da posio externa do pas (cf. Franco, 1995; 1996; Barros & Goldenstein, 1997).

    A esperana frustrava-se a cada vez que o dficit comercial aumentava, acompanhando a retomada do crescimento depois de cada crise. A abertura comercial forou as empresas a realizar penosas reestruturaes administrativas e a incorporar ganhos de produtividade materializados, sobretudo, em bens de capital e insumos importados, particularmente (mas no apenas) onde a propriedade estrangeira aumentou por investimentos novos ou fuses e aquisies (Sarti & Laplane, 2002). Mas a reao das empresas abertura com apreciao cambial implicou mudanas na estrutura produtiva e no comrcio exterior que manifestavam um aparente paradoxo: enquanto as empresas sobreviventes tornavam-se mais competitivas, a economia ficava mais vulnervel a choques externos e dependente de alto nvel de importaes, graas perda de densidade das cadeias produtivas internas vinculada ao outsourcing empreendido (por empresas nacionais ou filiais) para defender, sobretudo, parcelas do mercado interno (cf. Bielchowsky, 1993; Miranda, 2001).11

    Assim, ao contrrio de trazer um novo modelo de crescimento sustentado e duradouro, o Plano Real foi sucedido de ciclos curtos de stop-go induzidos por movimentos de poltica monetria destinados a defender a apreciao cambial de ataques especulativos; saindo de cada crise, a expanso ulterior da renda era

    (11) As exportaes, de fato, no acompanharam o surto de importaes, concentrando-se em produtos intensivos em recursos naturais e mo-de-obra barata e perdendo participao, com algumas excees, em produtos intensivos em tecnologia e escala, cujos mercados tendem a crescer mais do que o comrcio mundial e nos quais valor agregado e produtividade so maiores. Como resultado, todos os ramos industriais sofreram deteriorao do saldo comercial (exceto madeira, fumo, couro/peles e alimentos), verificando-se deteriorao maior em ramos intensivos em tecnologia e escala (forte dficit em eletroeletrnicos e telecomunicaes, qumica e bens de capital) e gerando saldo comercial menor nos setores intensivos em recursos naturais (commodities como siderrgicos, papel e celulose, metais no-ferrosos), mas preservando o saldo agrcola. Como esperado pelos proponentes da abertura comercial, ela trouxe maior especializao na alocao de recursos; mas, ao contrrio do que afirmavam, aparentou-se mais quilo que analistas chamaram de especializao regressiva em termos setoriais, macroeconmicos e da insero comercial do pas (Laplane & Sarti, 1997; Sampaio & Naretto, 2000; Carneiro, 2002).

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    limitada pelo vazamento para o exterior dos efeitos multiplicadores e aceleradores do gasto interno, com aumento mais que proporcional das importaes; enquanto o dficit de servios financeiros resultante do crescente passivo externo, aliado ao dficit com fretes, seguros e viagens internacionais, aumentava o dficit de transaes correntes financiado em parte com um ciclo expansivo de IDEs; sujeito, porm, a reverses abruptas do movimento de capitais que foravam o Banco Central a defender a taxa de cmbio apreciada, nas palavras de Cardoso ainda em incio de mandato, atravs de expedientes como juros altos e recesso (que) no surtem efeitos positivos de mdio prazo (Cardoso, 1995). O governo no foi capaz de defender-se do ataque especulativo iniciado depois da moratria russa, embora no hesitasse em recorrer aos juros altos, preferindo no esperar que as reservas cambiais fossem esgotadas antes de admitir a derrota e deixar a moeda flutuar em janeiro de 1999, a contragosto do presidente do Banco Central.12

    Mas a perda de controle do ritmo de desvalorizao cambial se fez a contragosto do prprio presidente. No h bases para afirmar que resultou de uma mudana de orientao ideolgica da poltica econmica, nem de uma opo que refletisse um novo equilbrio poltico entre desenvolvimentistas e monetaristas. Tendo em vista o episdio da demisso, alguns meses depois, do titular do Ministrio do Desenvolvimento, Clvis Carvalho, e a centralidade conferida pelo presidente preservao da credibilidade da poltica econmica perante os mercados financeiros (associada credibilidade do prprio ministro Malan), a balana continuou pendendo a favor das polticas consideradas necessrias pela Fazenda. O que se pode afirmar que mudou foi a crena de que o ajuste cambial poderia ter sido feito mantendo o controle de seu ritmo. Como o presidente Dutra fizera muitos anos antes, Cardoso reconheceria uma perda de iluses: admitiria que a escassez de capitais detonada pela crise da Rssia e a velocidade da perda de reservas o convencera da impossibilidade de manter a poltica cambial, apoiada at ento na crena de que ganhos de produtividade e a

    (12) Para Gustavo Franco, a despeito da velocidade e montante da perda de reservas cambiais que a poltica do BC na prtica no fora capaz de estancar, a defesa da apreciao cambial no foi vencida pelo ataque especulativo: ela foi desmontada sem sangue, no plano da persuaso [] abandonada porque muitas vozes influentes acreditavam que havia uma maneira de fazer as coisas mais fceis, convencendo o presidente a reorientar as polticas de cmbio e juros (Franco, 1999, p. 293). Mas a hiptese de que o BC poderia vencer o ataque especulativo antes que as reservas fossem esgotadas uma conjectura contrafactual que se mostrava mais distante medida que a reduo das reservas aumentava o prprio ritmo do ataque. O principal alvo poltico (e no tcnico) de Franco era certamente Jos Serra, crtico interno da poltica cambial que publicara artigo recente denunciando a armadilha da iluso da oferta de divisas que justifica a tese de que polticas econmicas voltadas especificamente ao setor externo so desnecessrias, uma vez que as polticas monetrias ou fiscais podem dar conta perfeitamente do equilbrio externo desejado (Serra, 1998, p. 9).

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    abundncia de capitais permitiriam a correo lenta do cmbio, prefervel por evitar os riscos inflacionrios de uma correo brusca.13

    De todo modo, o abandono forado da poltica de depreciaes controladas trouxe expectativas de relaxamento da poltica monetria graas retomada do crdito no exterior, depois que o alvo fixo do ataque especulativo fora eliminado. Mas no levou a governo a reverter a liberalizao financeira empreendida at ento, como se estivesse convencido da armadilha da iluso da oferta de divisas de que falavam membros da ala desenvolvimentistas; pelo contrrio, a gesto de Armnio Fraga no BC aprofundou reformas liberalizantes do movimento de capitais visando estimular novos influxos voluntrios, enquanto contava com o emprstimo de reservas cambiais negociado em acordos com o FMI (Freitas & Prates, 2001). Assim fazendo, como no governo Dutra, parecia continuar depositando vasta confiana em uma soluo duradoura para o potencial desequilbrio do balano de pagamentos nacional [] atravs de uma poltica liberal de cmbio que, em estimulando as sadas de capital, pudesse estimular tambm ingressos brutos em proporo ainda mais significativa no futuro (Malan, 1984). Com isto, podia-se at supor que a poltica monetria ganharia amplos graus de liberdade para reduo das taxas de juros: to cedo quanto no anncio do regime de banda diagonal endgena em 13 de janeiro de 1999, Fazenda e Banco Central alegavam que maior flutuao cambial permitiria quedas mais rpidas e sustentveis das taxas de juros (BCB, 1999). Ao contrrio do governo Dutra (protegido pelo acordo de Bretton Woods por uma definio de liberdade cambial que no inclua arbitragens de juros a curto prazo), o governo Cardoso no recuperou amplo grau de autonomia na gesto monetria e continuou subordinando o crescimento econmico desejado pelos desenvolvimentistas poltica de juros considerada necessria pelos monetaristas: elevaes abruptas dos juros continuaram sendo usadas para conter fugas de capital e depreciaes

    (13) Nas palavras do presidente, ainda em fevereiro de 1999, a depreciao [] no demorou, como se fala. O que ocorreu que havia abundncia de capitais no mundo e a desvalorizao podia ser feita lentamente, como vnhamos fazendo. A fonte, entretanto, secou com a crise de setembro (de 1998) na Rssia. Depois disso, tivemos que fazer o acordo com o FMI, buscar fundos, tomar as cautelas possveis para fazer a desvalorizao (Cardoso, 1999). Em final de mandato, o presidente afirmaria que a depreciao no foi acompanhada de qualquer mudana no equilbrio poltico do governo, uma vez que a maioria daqueles que sempre a defenderam j estavam fora do governo, e que perder a credibilidade do ministro Malan junto aos mercados estava absolutamente fora de questo: Como todo mundo sabe, tenho um enorme respeito pelo Gustavo, gosto do Gustavo. Pedi inmeras vezes ao Gustavo que me apresentasse propostas de uma acelerao maior no ajuste do cmbio. Mas ele tinha uma viso diferente. Achava que era questo de persistir e que os fluxos de capital voltariam. A eu decidi mudar. Sozinho, praticamente, porque os que podiam me ajudar na mudana estavam longe [] O ministro Malan pediu demisso. Por escrito. Eu no concordei [] uma coisa que custa a gente admitir, uma inverso de uma das frases do Auguste Comte [os homens so cada vez mais dirigidos pelo passado]. Agora, o contrrio, somos dirigidos pelo futuro Pelas expectativas. Tem que haver credibilidade. E o Malan tem muita credibilidade dentro e fora do Brasil. As pessoas me diziam, fora do Brasil, apesar de tudo o que aconteceu: Esse homem srio. Vocs imaginam o que vale isso no mundo de hoje? Malan tinha credibilidade e a manteve (Cardoso, 2002).

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    cambiais excessivas, buscando limitar seu impacto sobre o regime de metas de inflao e o custo da dvida pblica e privada indexada ao dlar. E nem o recurso a juros elevados nem as reformas liberalizantes detiveram uma tendncia de piora dos termos do financiamento externo que afetaria, nos ltimos anos do governo, tanto desembolsos de crdito quanto influxos de IDE (BCB, 2003, cap. 5).

    A depreciao cambial tambm trouxe expectativas de reverso rpida do saldo comercial, cujo saldo estimado na reviso do acordo com o FMI (5 mar. 1999) foi de US$ 11 bilhes, caindo para US$ 8 bilhes, segundo clculos da Fazenda divulgados duas semanas depois. O processo no foi nem to rpido nem to fcil quanto esperava o governo, de maneira que o primeiro supervit foi experimentado apenas em 2001, chegando a US$2,6b.; em 2002, porm, o saldo atingiu inesperados US$ 13,1b., continuando a crescer em 2003. A lentido do ajuste foi usada como argumento de que o regime cambial de depreciaes lentas no deveria ter sido abandonado (Franco, 1999), embora a necessidade de um ajuste imposto pela crise dificilmente pudesse ser questionada, assim como o impacto da depreciao cambial no ajuste realizado. Comparado a 1998 (dficit de US$ 6,6b.), a reverso em 2002 alcanara quase US$ 20b., com ganhos ligeiramente maiores com reduo de importaes (US$ 10,5b.) do que aumento de exportaes (US$ 9,2b.). O aumento das exportaes concentrou-se no agronegcio e, na indstria, em ramos intensivos em mo-de-obra e recursos naturais (txtil e vesturio, madeira, mveis, calados, couro/peles etc.), exceto onde filiais exportam produtos intensivos em tecnologia com pouca agregao local de valor (material eltrico/comunicaes, farmacutica, material de transporte), freqentemente em ramos com fortes dficits (particularmente qumica, material eltrico/comunicaes, farmacutica, exceo de material de transporte). A reduo de importaes, porm, no pode ser explicada apenas como efeito da depreciao, contando tambm a retrao da demanda interna, particularmente no ltimo binio; deste modo, a economia de divisas escassas pode ser revertida se a economia voltar a crescer, particularmente em ramos onde a criao de capacidade depende de longos prazos de maturao e/ou do controle de patentes e domnio da tecnologia por oligoplios globais (IEDI, 2002, vrios).14

    (14) Substituies efetivas verificaram-se em alguns ramos da mecnica, material de transporte e, sobretudo, em bens de consumo e insumos semimanufaturados aproveitando capacidade ociosa, como txtil e vesturio, madeira, mveis, calados, couro/peles, alimentos, brinquedos, minerais no-metlicos, papel e papelo/grficos, etc. At 2001, ramos de material eltrico/comunicaes, qumica, farmacutica, plsticos apresentaram at mesmo aumento de importaes, a despeito da depreciao cambial, indicando que a substituio de importaes nestes ramos mais difcil em razo da ampla necessidade de investimentos para criar capacidade e do controle de patentes e domnio da tecnologia por oligoplios globais. Em 2002, a queda nas importaes em ramos deficitrios tampouco pode ser de todo explicada por substituies: material eletroeletrnico e de comunicaes explicam algo em torno de 50% da queda total das importaes, caindo desde o racionamento de energia (como bens de informtica e eletrnica de consumo) e da inflexo do ciclo de investimentos nas redes de telecomunicaes privatizadas; importaes qumicas, porm, caram de valor, mas no de volume; farmacuticos e perfumes continuaram aumentando de volume e valor (IEDI, 2002, vrios nmeros).

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    A lentido do ajuste no foi tomada pelo governo como evidncia de que o velho regime cambial no deveria ter sido abandonado mas, de incio timidamente, como um alerta de que o ajuste devia ser acompanhado por polticas de fomento ao investimento. O esforo concentrou-se no ramo eletroeletrnico e de telecomunicaes, de incio por meio do BNDES, cujos Programa de Apoio Implantao da Telefonia Celular e Programa de Apoio a Investimentos de Telecomunicaes (telefonia fixa) condicionaram financiamento a exigncias de nacionalizao de equipamentos e insumos, tentando limitar (com pouco sucesso) o outsourcing praticado pelos novos grupos controladores do setor (cf. Prates, Cintra & Freitas, 2000; Sarti & Laplane, 2002). Em paralelo, linhas destinadas ao financiamento das exportaes foram criadas ou reforadas, como o Programa de Crdito ao Comrcio Exterior (BNDES-exim), o Fundo de Garantia para a Promoo da Competitividade, o Fundo de Garantia de Exportaes (seguro de crdito), ou o Fundo de Aval para Exportao de Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), dentre outros, acompanhados da instalao de oito Fruns de Competitividade e, mais tarde, do Comit de Gesto da Cmara de Comrcio Exterior no MDIC (Prates, Cintra & Freitas, 2000; BCB, 2002; MDIC, 2002). No documento do MDIC apresentando os avanos do comrcio exterior nos oito anos do Real, os programas de apoio exportao so apresentados com a informao (duvidosa, mas significativa) de que a poltica comercial brasileira, nos ltimos oito anos, passou por duas fases distintas. A primeira foi a de abertura comercial, de abertura do mercado interno s importaes. A segunda marcada pela prioridade dada s exportaes (MDIC, 2002, p. 1).

    Ainda que a persistncia da vulnerabilidade externa levasse o governo a reforar polticas de fomento do investimento, nada ilustra melhor a mudana lenta e hesitante de enfoque a respeito da substituio de importaes do que o destino da Lei de Informtica no segundo mandato de Cardoso. Em 1999, expirariam as isenes fiscais previstas na Lei de 1992 (IPI e IRPJ), sob exigncia de que as empresas destinassem 5% do faturamento para P&D, havendo forte presso do MICT

    e MDIC para estender os prazos at 2013. A renovao dos subsdios experimentou resistncia do ministro Malan e envolveu conflitos que acabariam levando queda do ministro do Desenvolvimento, Clvis Carvalho, depois de discurso em que questionou a falta de coragem da Fazenda em estimular o desenvolvimento do pas. O presidente arbitrou a disputa, mandando ao Congresso projeto-lei que eliminava a iseno integral e diminua anualmente seu valor at o mximo de 58% do imposto devido em 2013 (reduzido pelo Congresso at 2009). O processo decisrio indica que o presidente no era avesso demanda da chamada ala desenvolvimentista, mas que a Fazenda retinha poder incomparvel e parecia continuar acreditando na tese de que polticas econmicas voltadas especificamente ao setor externo so desnecessrias, uma vez que as polticas monetrias ou fiscais podem dar conta perfeitamente do equilbrio externo desejado (Serra, 1998).

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    A seguir, o estado do Amazonas perpetrou ao judicial que, provida de liminar pelo STF no final de 2000, obrigou o governo a renovar a tramitao da lei negociando mais concesses Zona Franca de Manaus. A lei foi finalmente regulamentada em maro de 2001, sancionada pelo presidente em dezembro ao definirem-se os percentuais de IPI dos produtos sujeitos iseno (ento sujeitos alquota de 2% desde que a liminar judicial fora concedida, um ano antes). provvel que a ocasio tenha sido usada pela Secretaria da Receita para atrasar o processo decisrio de definio das novas alquotas, visando maximizar a arrecadao antes da iseno parcial. De todo modo, a ocasio tambm foi oportuna para que a lei fosse ajustada percepo de que era necessrio induzir substituio de importaes para deter o crescimento do dficit do complexo eletrnico (a lei aplica-se a produtos de informtica, telecomunicao, eletrnica de consumo e componentes, ou seja, micros, celulares, televisores, rdios, DVDs etc.), uma vez que as iluses quanto rapidez do ajuste que seria propiciado pela depreciao cambial tinham-se perdido. A lei passou a exigir que as empresas no apenas destinassem recursos para P&D como tambm internalizem o Processo Produtivo Bsico, ou seja, respeitassem percentuais de nacionalizao para cada produto final. Em declarao surpreendente, feita 15 dias antes da sano presidencial da lei, o ministro Pedro Malan defendeu a substituio eficiente de importaes como forma de reduzir o dficit em conta corrente, sendo necessrio ampliar tanto a produo exportvel como a substituvel de importaes [] [pois] sempre pensei nas duas coisas juntas (apud Soares, 2001). Implicitamente, o ministro parecia admitir que anos de construo da credibilidade perante o mercado no tinham sido suficientes para assegurar o equilbrio externo desejado.

    No nterim entre a regulamentao e a sano da lei, Srgio Amaral tomava posse no MDIC (23 ago. 2001), em cerimnia na qual Cardoso proclamou o novo lema de seu governo (Exportar ou Morrer), enquanto o novo ministro prometia apoiar tambm a substituio de importaes em setores deficitrios como petrleo, qumico e farmacutico, eletroeletrnicos e bens de capital. Em entrevista concedida a seguir, a resposta pergunta sobre qual seria sua relao com Malan e Everardo Maciel, pois seus antecessores haviam cado depois de desentendimento com eles, foi a seguinte:

    Depois do real, a preocupao no era exportar, mas importar para pressionar os preos e aumentar a competitividade. Agora a realidade mundial diferente. Nesse momento, o peso da exportao no processo de deciso de governo muito maior. Eu vejo o ministro da Fazenda to interessado quanto eu em aumentar as exportaes [] Eu combinei com o Malan que ns dois vamos juntos Fiesp. importante que ele oua o que eu ouo na Fiesp e que a Fiesp oua o que eu ouo dele [] O cmbio tornou mais caras as importaes e mais atraente a produo de insumos internamente. Ento, h um esforo a ser feito para que certas empresas possam substituir importaes, aproveitando a induo que o mercado j est fazendo, dizendo que melhor comprar aqui do que importar. Acho que alguns setores tm um campo muito grande. Por exemplo, o setor eletroeletrnico, que nos ltimos cinco anos teve um dficit comercial de US$ 35 bilhes (Amaral, 2001).

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    No se exagere, porm, a racionalidade da poltica de fomento. As iniciativas continuaram dispersas, sem que se pudesse desvelar um plano que as integrasse, sobretudo na promoo do investimento em nova capacidade. As crticas falta de planejamento chegaram ao auge durante a crise da gerao de energia, mas, ao contrrio do governo Dutra e fiel s restries ideolgicas do primeiro mandato, o governo nem sequer se esforou em conferir aparncia de organicidade s iniciativas dispersas. No Ministrio do Planejamento, o PPA anunciado em 1999 (Avana Brasil) no pode ser confundido com um plano de investimentos voltado superao da vulnerabilidade externa do pas. No MDIC, apesar da preocupao com o dficit no complexo eletrnico expressa na aprovao da Lei de Informtica e na constituio de um Frum de Competitividade para o setor, no foi instalado qualquer Frum ou qualquer poltica de fomento ( exceo do ramo de transformados plsticos) mais geral para o setor qumico, em que o dficit comercial era e maior do que no setor eletroeletrnico e de telecomunicaes. Por outro lado, os esforos de promoo exportao limitaram-se ao financiamento do comrcio exterior (pr e ps-embarque) e promoo comercial, sem qualquer poltica seletiva voltada ampliao de capacidade em ramos sujeitos a gargalos de oferta.15

    Seja como for, o governo Cardoso, forado a uma reverso, como o de Dutra, tambm no conseguia agradar nem a gregos nem a troianos. Velhos aliados liberais exasperavam-se porque a estratgia inicial de incentivo s importaes comeava a ser substituda pelo elogio do planejamento e da substituio de importaes, e a valorizao do dficit pelo supervit de transaes correntes. Gustavo Franco escreveu artigo feroz ao primeiro sinal de preocupao governamental com o dficit do complexo eletrnico (Franco, 2000), continuando a criticar o presidente pelo erro de ter acreditado na tese de que faziam populismo cambial (Franco, 2001).

    Os candidatos de oposio eleio presidencial de 2002, acompanhados pelo prprio candidato da situao, continuavam criticando o presidente pelo erro simtrico: a lentido com que o governo passava a fomentar exportaes e apoiar a substituio de importaes. Acompanhando tambm as polticas do prprio governo, a substituio de importaes incorporava-se como tema central das plataformas de campanha dos candidatos eleio presidencial, exceo do PFL (Zanini, 2002). Velhos aliados do governo exasperavam-se com a evoluo dos tempos, temendo o sebastianismo Juscelinista (Abreu, 2002; Franco, 2002).

    Consideraes finais As sees anteriores mostraram o papel que constrangimentos no

    ideolgicos ou corporativos, mas econmicos, jogaram para restringir um curso de

    (15) Estudo recente indica que estrangulamentos de oferta envolvem em particular ramos exportadores da indstria, como siderurgia e papel-celulose, que podem experimentar esgotamento de excedentes exportveis caso as encomendas internas aumentem no futuro prximo sem novas expanses de capacidade (cf. IEDI, 2003).

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    desenvolvimento econmico menos autrquico no Brasil; nestas circunstncias, muito ao contrrio de relatos liberais, foram crises cambiais e no embates ideolgicos e polticos que levaram governos influenciados por propostas de abertura comercial externa (que explicitamente valorizavam a entrada barata de produtos importados) a terminar com elogios substituio de importaes industriais protegidas (espontaneamente ou no) da competio estrangeira, e a valorizar exportaes capazes de gerar aquilo que a abertura financeira no foi capaz de garantir: um fluxo estvel de reservas cambiais e, assim, a capacidade de realizar importaes essenciais.

    Em ambos os governos, a tentativa de sustentar um regime liberal de importaes contando com um ciclo harmonioso e estvel de influxos de capital acentuou a fragilidade financeira externa e produziu seu contrrio (independentemente da vontade liberal dos governantes): a necessidade de reduzir importaes para arcar servios financeiros. Compelidos por uma oferta de financiamento externo que ficou aqum do necessrio, os governos Dutra e Cardoso precisaram contar com a reverso do dficit comercial para pagar passivos externos, embora continuassem contando com um ambiente favorvel sada de capitais para induzir entradas.

    Nas duas circunstncias, embora os governos alegassem j estar realizando os ajustes que a oposio dizia ser necessrio fazer, um consenso poltico favorvel ao fomento estatal ao desenvolvimento industrial era construdo depois que uma alterao abrupta e indesejada da taxa de cmbio ou da proteo comercial efetiva pressionou o sistema de preos relativos, exigindo dos governos que colaborassem para retirar gargalos que limitavam o livre curso da expanso induzida pela crise cambial. Mas restries polticas, ideolgicas e materiais interveno estatal limitaram o sucesso da poltica de fomento industrial, e, embora a dinmica de produo e investimento privado reagisse modificao de preos relativos, a melhoria resultante do saldo comercial foi insuficiente para que os governos pudessem insistir menos em obter os fluxos financeiros que acreditavam corresponder sua adeso crvel a um ambiente regulatrio atraente ao capital estrangeiro. Restries polticas, ideolgicas e materiais internas que tambm limitaram a profundidade e escopo da interveno estatal no Brasil em outras circunstncias histricas, como, por exemplo, no segundo governo Vargas e durante o II PND do governo Geisel, quando no se valorizou um regime liberal de comrcio exterior (cf. Lessa, 1978; Bastos, 2001).

    Diante disto, o artigo conclui refutando que a distino entre a experincia brasileira e a experincia bem-sucedida de crescimento exportador de manufaturas de alguns pases asiticos possa ser encontrada, ao contrrio das narrativas comparativas liberais, na menor ou maior adeso a um regime liberal de importaes. Pois, nas duas circunstncias recentes em que a liberao das importaes foi defendida como prioridade de governo no Brasil, foram constrangimentos econmicos que a inviabilizaram. Se o desenvolvimento

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    brasileiro pode servir de espelho ao asitico, por apontar precisamente que no bastam polticas liberais de importaes para levar um pas a galgar posies na diviso internacional do trabalho e contornar a fragilidade financeira externa. Inversamente, como apontado por relatos que no se limitam a apontar a existncia de um regime liberal de comrcio exterior (cf. Amsden, 1989; Wade, 1990; Weiss, 1998), se a presena do Estado no desenvolvimento econmico de Coria do Sul e Formosa pode servir de exemplo ao Brasil, por demonstrar as vantagens de menores restries polticas, ideolgicas e materiais participao do Estado no apenas em empreendimentos estatais em atividades essenciais, mas tambm na orientao estratgica de empreendimentos privados e em sua especializao setorial.

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