art_o ser do humano e o coaching

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1 O SER DO HUMANO E O COACHING Gilberto Braga Minha vida não tem propósito, nem direção, nem objetivo, nem sentido, e mesmo assim sou feliz. Não consigo entender! O que estou fazendo direito? Charles M. Schulz i A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em buscar novas paisagens, mas em ter novos olhos. Marcel Prust ii . Ninguém consegue escapar da sua invidualidade. Arthur Schopenhauer. iii Resumo O coaching tem se tornado instrumento cada vez mais citado como alternativa ao desenvolvimento humano e organizacional e como uma das estratégias de mobilização da subjetividade em gestão de pessoas. Não obstante, seus fundamentos e referências são ainda pouco nítidos, fato que gerou motivações para este texto. Adotou-se como princípio a abordagem qualitativa e o método de revisão bibliográfica em face da natureza do objeto, do tema, objetivo em si da pesquisa e os procedimentos técnicos adotados. No caso, a fenomenologia é a fonte constitutiva dos elementos que dão consistência à práxis do coaching. A adoção de tal enfoque sustenta-se por este caracterizar-se ao mesmo tempo como método científico rigoroso e uma atitude perante o mundo. Enfatiza a consciência e a subjetividade como os caminhos para se desvelar as verdades relativas e provisórias da existência humana, o que traz impactos interessantes para o processo de coaching como estratégia de mobilização da subjetividade. Além do que, sob seu escopo, torna-se possível tanto a busca da compreensão do sujeito em sua relação com o trabalho, como ainda conceber-se uma visão responsável e conseqüente para a ação administrativa. Assim, parece possível a concretização do esforço em se aproximar os temas Subjetividade, Fenomenologia e Coaching, e é esta a tentativa empreendida. Palavras-chave: Fenomenologia existencial, coaching, mobilização da subjetividade, gestão pela formação humana. 1. Introdução O coaching tem se tornado instrumento cada vez mais citado como alternativa ao desenvolvimento humano e organizacional e como uma das estratégias de mobilização da subjetividade em gestão de pessoas. Sabe-se, contudo, que o processo não ocorre no isolamento e, portanto, requer o trânsito por teorias e fundamentos que extrapolam o como fazer apenas. Tanto o seu conceito quanto o contexto no qual se insere são marcadamente atuais e seus fundamentos, entretanto, pouco nítidos. A partir de motivações originárias das lacunas geradas em decorrência deste fato é que este capítulo tomou forma. No caso, a

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1

O SER DO HUMANO E O COACHING

Gilberto Braga

Minha vida não tem propósito, nem direção, nem objetivo, nem sentido,

e mesmo assim sou feliz. Não consigo entender!

O que estou fazendo direito? Charles M. Schulz

i

A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em buscar novas paisagens,

mas em ter novos olhos. Marcel Prust

ii.

Ninguém consegue escapar da sua invidualidade.

Arthur Schopenhauer.iii

Resumo

O coaching tem se tornado instrumento cada vez mais citado como alternativa ao desenvolvimento humano e organizacional e como uma das estratégias de mobilização da subjetividade em gestão de pessoas. Não obstante, seus fundamentos e referências são ainda pouco nítidos, fato que gerou motivações para este texto. Adotou-se como princípio a abordagem qualitativa e o método de revisão bibliográfica em face da natureza do objeto, do tema, objetivo em si da pesquisa e os procedimentos técnicos adotados. No caso, a fenomenologia é a fonte constitutiva dos elementos que dão consistência à práxis do coaching. A adoção de tal enfoque sustenta-se por este caracterizar-se ao mesmo tempo como método científico rigoroso e uma atitude perante o mundo. Enfatiza a consciência e a subjetividade como os caminhos para se desvelar as verdades relativas e provisórias da existência humana, o que traz impactos interessantes para o processo de coaching como estratégia de mobilização da subjetividade. Além do que, sob seu escopo, torna-se possível tanto a busca da compreensão do sujeito em sua relação com o trabalho, como ainda conceber-se uma visão responsável e conseqüente para a ação administrativa. Assim, parece possível a concretização do esforço em se aproximar os temas Subjetividade, Fenomenologia e Coaching, e é esta a tentativa empreendida.

Palavras-chave: Fenomenologia existencial, coaching, mobilização da subjetividade, gestão pela formação humana.

1. Introdução

O coaching tem se tornado instrumento cada vez mais citado como alternativa ao

desenvolvimento humano e organizacional e como uma das estratégias de mobilização da

subjetividade em gestão de pessoas. Sabe-se, contudo, que o processo não ocorre no

isolamento e, portanto, requer o trânsito por teorias e fundamentos que extrapolam o como

fazer apenas. Tanto o seu conceito quanto o contexto no qual se insere são marcadamente

atuais e seus fundamentos, entretanto, pouco nítidos. A partir de motivações originárias das

lacunas geradas em decorrência deste fato é que este capítulo tomou forma. No caso, a

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O SER DO HUMANO E O COACHING

Fenomenologia constitui a fonte em que se buscou elementos que pudessem dar

consistência à práxis do coaching.

Por se opor ao empirismo e ao objetivismo comuns às ciências naturais, � julgados

incompletos para resolver as questões inerentes às ciências humanas e sociais aplicadas �

a abordagem fenomenológica caracteriza-se ao mesmo tempo como método científico, uma

maneira de ver e uma atitude perante o mundo. Enfatiza, ao contrário daqueles, a

consciência e a subjetividade como os caminhos para se desvelar as verdades relativas e

provisórias da existência humana. Traz consigo o rigor que todo fundamento conceitual

requer, propõe um método de pesquisa fiel a ele e ainda vai além da busca restrita de

explicações, definindo seu interesse pela compreensão dos fenômenos e do ser do humano.

Assim, parece possível a concretização do esforço em se aproximar os temas Subjetividade,

Fenomenologia e Coaching, e é esta a tentativa empreendida.

Não há pretensão, é bom que se diga, de esgotar ou mesmo atingir uma abrangência

definitiva. O intuito é contribuir para o ordenamento de referências que sirvam de alicerce

para a atuação de tantos que se interessam pelo tema. A bem da verdade, a necessidade

surgiu não só para cobrir uma lacuna para a atuação do autor, � na medida em que já se

vem praticando o coaching há pelo menos seis anos de maneira regular e estruturada �,

como ainda da necessidade de servir de referência para outros profissionais que buscam

consolidar sua prática. Alguns destes profissionais são parte daqueles que se teve contato

quando da realização de cursos de formação em coaching ou ouvintes em palestras que

versaram sobre o mesmo tema; outros, colegas que espontânea e generosamente têm

debatido o assunto com o autor e outros ainda, alunos de pós-graduação, que têm se

interessado igualmente pela discussão em sala de aula em cursos de Gestão de Negócios e

Gestão de Pessoas em instituições diversas.

Assim, o objetivo deste texto pode ser sintetizado como uma pesquisa bibliográfica

de fundamentos para a prática do coaching em organizações humanas, especificando e

descrevendo os conceitos essenciais como convém ao método fenomenológico que a

sustenta. Adotou-se como princípio a abordagem qualitativa e o método de revisão

bibliográfica em face da natureza do objeto, do tema, objetivo em si da pesquisa e os

procedimentos técnicos adotados.

O pensamento apresentado está estruturado em cinco grandes blocos, a saber: um

primeiro tópico que justifica e arrola as razões para que se tenha “escolhido” a

fenomenologia como base; em seguida, o segundo, percorre o conceito de mobilização da

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O SER DO HUMANO E O COACHING

subjetividade em correlação com a fenomenologia existencial e a prática do coaching. O

terceiro item descreve e analisa os principais conceitos próprios ao método em questão,

além de tomar para si a tarefa de apresentar um modelo de personalidade sob o enfoque

fenomenológico e aproximar estes temas com os contextos organizacional e de gestão.

Associado a eles, tem-se esta introdução que fornece informações e contextualiza o

surgimento do coaching como uma estratégia de mobilização da subjetividade; e, também,

as considerações finais que cumprem o intento de discorrer sobre a adoção da atitude

fenomenológica como enfoque essencial para o processo do coaching e suas implicações,

complementando as idéias.

Portanto, com um único propósito contextual, tecem-se algumas poucas

considerações acerca do que se construiu, até o momento, sobre o fazer em educação

dentro das organizações empresarias e o surgimento do coaching. Conforme nota final, para

um entendimento preciso e retrospecto histórico mais abrangente, sugere-se que se recorra

ao trabalho que deu origem a estas consideraçõesiv.

Grosso modo, pode-se afirmar que a Revolução Industrial e a conseqüente

necessidade de qualificação profissional fizeram surgir a preocupação e a evolução dos

métodos de Treinamento e Desenvolvimento (T&D) de pessoas. No entanto, até as décadas

de 1950 e 1960, permaneceu um forte caráter regulatório nas ações de formação, que só se

esmaece, mas não finda, com o aparecimento da abordagem sistêmica do processo

organizacional (KATZ; KAHNv apud MALVEZZI, 1994, p. 24). O modelo sistêmico teve um

grande mérito de permitir a distinção entre treinamento e desenvolvimento. Neste último

caso, a capacitação deixa de ser somente fornecimento de informações e aquisição de

habilidades, para assumir status de ampliação de potencialidades com vistas ao acesso a

posições hierárquicas superiores. Malvezzi (1994) entende que a noção de desenvolvimento

emerge associada muito mais à carreira do que à formação da identidade profissional, o que

tem conseqüências importantes ideologicamente. Pode-se dizer que a condição humana foi

assumida de forma mais realista em sua complexidade, porém não foi assumida em sua

indeterminância, porque a realização profissional e pessoal ficou configurada em função do

acesso aos níveis de poder. “[...] A capacitação profissional emerge como uma questão do

recurso humano para a empresa e não como uma questão do ser humano” (Ibidem, p. 25).

No novo paradigma que toma forma, tem-se a configuração do know-why em

substituição ao know-how, em que o processo de produção passa, ainda que em parte, das

estruturas administrativas e gerenciais para os grupos de trabalho (Ibidem, 1994). O

trabalhador (um pouco mais próximo de sua condição de sujeito?) deixa de ser mero

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O SER DO HUMANO E O COACHING

seguidor de manuais, sendo solicitado a escolher caminhos e a tomar decisões. Bergamini

(1994) aponta como alternativa de ação e ponto de partida de T&D nesse novo paradigma o

processo de autoconhecimento, enquanto Gil (2001) e Nowack e Wimer (2002) introduzem a

noção de coaching para relatar o mesmo tipo de intervenção ao qual a autora se refere.

Descrevem o procedimento como alternativa ao processo de capacitação e preparação de

pessoas no mundo do trabalho. Como propostas individualizadas e personalizadas, o

coaching na visão deles tende a otimizar a performance. Além do que, revela-se uma

abordagem de capacitação mais coerente com um paradigma contrário ao modelo de

“comando-e-controle”, enfatizando o trabalho em equipe, a colaboração e a participação

para a solução de problemas e a tomada de decisão (NOWACK; WIMER, 2002, p. 94).

O enfoque fenomenológico, como será possível constatar mais adiante, promove a

retomada do “mundo das coisas mesmas” e da compreensão do ser do humano em sua

intersubjetividade, resgatando a consciência e a ação humana em sua intencionalidade.

Trata-se, pois, de resgatar a vivência ou a experiência, tal e qual se apresentam à

consciência. O método permite estabelecer um rigor no processo de conhecimento, sem,

contudo, prender-se na busca da verdade única dada pela visão experimental. Nesse

sentido é que acena com possibilidades e conceitos com grande identidade não só com a

práxis do coaching, como ainda com a compreensão da ação administrativa e do espírito de

co-humanidade necessários às organizações empresarias. É este, pois, o estado da arte em

que o coaching surge como abordagem alternativa voltada ao desenvolvimento humano nas

organizações e estratégia de mobilização da subjetividade.

Ora, se o coaching se configura como uma forma de se desenvolver pessoas, quais

os fundamentos que lhes dão sustentação e quais as implicações éticas e técnicas

decorrentes?

2. Razões para a elaboração de um enfoque fenomenológico para o

coaching

Ao se ministrar cursos de formação em coaching, depara-se sempre com a

indagação: por que coaching fenomenológico? Ou de outra maneira: por que

Fenomenologia?

“Talvez seja conveniente lembrar que existem três grandes abordagens na

psicologia. A psicanálise, o behaviorismo e o humanismo. Hoje agregaríamos um nome

novo, embora associado ao behaviorismo: o cognitivismo.” (ROMERO, 2000, p. 180). Como

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O SER DO HUMANO E O COACHING

microescolas que se autodenominam e se mantêm sob o arcabouço do humanismo o autor

enumera: psicologia compreensiva, psicoterapia centrada, escola humanista americana,

gestalt-terapia, fenomenologia dialética, logoterapia, psicologia transpessoal e análise

transacional. Interessa de imediato a abordagem humanista em sua vertente

fenomenológica e é nessa direção que a discussão deverá caminhar. Espera-se que ao

longo da discussão os argumentos e fundamentos apresentados justifiquem a predileção por

esta abordagem e não por outra, ainda que não haja em princípio quaisquer objeções às

demais.

Sabe-se que a Fenomenologia tem origem no domínio da Filosofia, do final do século

XIX para o início do século seguinte. Contudo, somente nos anos 1950 em diante é que

toma impulso como fundamento dentro da Psicologia (FORGHIERI, 1993), mesmo que não

constitua até atualmente uma unanimidade entre os autores e que não se possa afirmar que

exista um aporte concluído do que se poderia definir como fundamento fenomenológico das

ciências humanas e sociais aplicadas. Entretanto, não há como tratar-se do humano sem

que se retorne a estas áreas de conhecimento para resgatar fundamentos. Até porque a

Fenomenologia tem servido de base para abordagens em Educação (BICUDO, 1999),

espaço ocupado pela Pedagogia, como ainda na Administração de Empresas ou gestão

(FRAGA, 2003; COLTRO, 2000).

Ainda que, conforme lembra Forghieri (1993), o suporte filosófico seja estritamente

abstrato, enquanto as ciências que tratam do humano voltam-se para os fatos e a

concretude da vivência, a Fenomenologia se apresenta como um método de investigação do

fenômeno em si, que propõe um retorno às coisas mesmas, na dimensão do mundo-da-

vida. “Inaugurada por Husserl, inspirado pela preocupação do rigor, não é um sistema

filosófico, mas um conjunto de proposições para um método de pensar, de apreender e

investigar o mundo, tão rigorosamente quanto possível” (RAMADAM, 1999, p. XI). Além do

que, em seus temas centrais, conforma uma identidade peculiar que se presentifica na

concepção do coaching como abordagem contemporânea de formação e apoio ao

desenvolvimento humano.

A propósito, tematizar a educação e o treinamento em organizações sob um enfoque

fenomenológico, é o mesmo que dizer do entendimento do sujeito como um pro-jeto humano

(BICUDO, 1999), configurando um lançar-se adiante, um atualizar-se em ações e programas

temporal e espacialmente - dimensões que se alongam entre passado/presente/futuro e

entre o que já foi/o aqui e agora/o que virá -, “lugares” em que a vivência, o existir acontece

individual e coletivamente. Abrange, portanto, percepções, análises, reflexões, escolhas e

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O SER DO HUMANO E O COACHING

ações compostos todos, em um processo de ensino-aprendizagem em que o sujeito

consciente e intencional apropria-se de sua condição como agente de todo o processo.

Neste escopo, o sujeito-agente (com o perdão da redundância) toma para si o fazer e o

transfazer, este último referindo-se ao como o ser humano sente o mundo e lhe atribui

significados. Assim, o enfoque fenomenológico pressupõe um recriar incessante; o ser

humano é entendido como um ser de possibilidades (Ibidem, 1999).

A contribuição primeira da Fenomenologia reside, pois, na concepção em si de

educação e desenvolvimento, bem como na configuração de um método que por si parte do

rigor e ao mesmo tempo de uma estrutura para a inserção no processo de ajuda e apoio.

Conforme sugere Bicudo (1999, p. 12) sua contribuição à educação se dá em níveis

diversos, a saber: a) como método de investigação, fundamenta procedimentos rigorosos de

pesquisa; b) como procedimento didático-pedagógico, implica a busca de sentido e

atribuição de significados caracterizando um modo de trabalho na realidade que parte do

como o cotidiano é vivido, longe de partir de pressuposições lógicas ou de teorizações; c)

como concepção de realidade e de conhecimento, configura uma postura de busca pelo

sentido e significado do que se faz e do que se escolhe presentificando o autoconhecimento

e o conhecimento do Outro a partir da análise crítica e da reflexão.

Uma outra razão importante está no fato de que o método fenomenológico preconiza

a busca da essência de cada fenômeno, o que quer dizer não simplesmente uma teorização

sobre ele, mas antes partir-se do real tal qual se apresenta no cotidiano, aprendendo-se a

analisar os sinais presentes no percurso do existir. Neste âmbito, a prática do coaching toma

contornos específicos na realidade organizacional e parte daquilo que se vive

intencionalmente no trabalho e a dicotomia sujeito-objeto conforma modos de entendimento

diversos ao fazer cotidiano e à produção. As elaborações teóricas tomam forma ou são

construídas a partir dos fatos, vistos como fenômenos que se dão à consciência. Esta

perspectiva lança possibilidades interessantes para a condução de um processo de apoio ao

desenvolvimento humano.

Mais uma razão que se pode arrolar está inspirada na proposição de Fraga (2003) de

se buscar um fundamento filosófico para a atuação em Administração de Empresas e em

gestão. Ela destaca duas razões para tanto, uma teórica e outra de ordem prática.

No primeiro caso, o interesse em compreender as relações entre as pessoas que ingressam e que deixam a organização e o chamado “espírito da instituição”, bem como a recorrente invocação de seu “modelo”. No caso da prática, decorreu da expectativa das pessoas dessa organização, quanto à postura do agente na ação administrativa e o exercício da autogestão, em

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O SER DO HUMANO E O COACHING

contraste com a carência e a dispersão de fundamentos filosóficos à gestão que pudessem embasar essa prática. Nesse ponto, constata-se que a literatura disponível em gestão privilegia o conhecimento, [...] deixando a lacuna de uma reflexão filosófica que questione qual é o sentido de uma organização.

O que a autora propõe é explicitado como “uma abordagem educacional

fenomenológica à administração”, articulando os critérios científicos em administração, quais

sejam: eficiência, eficácia e efetividade, aos critérios fenomenológico-filosóficos da

relevância do humano e da legitimação da ação. Sua discussão abre espaço para a

coexistência da orientação competitiva natural da organização vivenciada em co-

humanidade, caracterizando o que se poderia denominar como gestão administrativa

responsável e conseqüente (Responsabilidade Social). Faz emergir, então, um novo sentido

complexo e abrangente para as ações na gestão: postura conseqüente e orientada para

autogestão e, finalmente, aponta para a importância de pesquisar significados, apreender o

sentido (propósitos, ações e estratégias) e compreender razões (circunstâncias que movem)

cada fenômeno.

Razões expressas, vale a explicitação dos temas centrais de que tratam o enfoque

fenomenológico naquilo que têm de essencial. É provável que o próprio entendimento dos

mesmos justifique a escolha da Fenomenologia como aporte teórico essencial à prática do

coaching. Na seqüência, investe-se na aproximação dos temas mobilização da

subjetividade, abordagem fenomenológica existencial e coaching. Discorre-se em seguida

sobre a concepção de personalidade sob o enfoque fenomenológico, como ainda detalha-se

um pouco mais a proposição de Fraga (2003) que aproxima os temas fenomenologia e

gestão.

3. Mobilização da subjetividade, abordagem fenomenológica existencial e

coaching.

Tomando de empréstimo as considerações de Lino (s.d, n. p.) acerca da mobilização

social, o verbo mobilizar, nos dicionários, remete a dois significados: “1. dar movimento a,

movimentar; 2. Apelar para os serviços de alguém.”. Inicialmente, longe de se traduzir em

um espontaneismo, o sentido pode ser associado a algo que ocorre a partir da iniciativa de

alguém, ou seja, algum agente que toma para si a iniciativa de por em movimento outras

pessoas ou algum ato. Implica, pois, um encontro em que se partilha alguma intenção,

ideologia, crença ou sonho etc. No outro caso, denota a necessidade de se arregimentar

“recursos” para que o que se pretende seja levado a termo. “Enquanto ‘apelar para os

serviços’ de alguém reforça a cultura da adesão, ‘dar movimento’ serve para criar uma

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O SER DO HUMANO E O COACHING

cultura de participação, em que as pessoas são tratadas como sujeitos, e não como

recursos para viabilizar a vontade de quem quer que seja, por mais legítima e bem

intencionada que seja essa vontade.”.

Mobilização, por seu turno, conforme as mesmas fontes, consiste no ato de mobilizar

e carrega consigo uma forte conotação político-social, qual seja: conjunto de medidas

governamentais e militares destinadas à defesa de um país ou à preparação dele para

determinada ação militar, além de arregimentação para uma ação política ou reivindicatória..

(AURÉLIO, 1995 P. 437). É o mesmo Lino (Ibidem, n. p.) que avança afirmando que em se

tratando da mobilização social, há três elementos fundamentais: o empoderamento, a

irradiação e a convergência. Empoderamento, para ele, traduz-se na promoção da iniciativa

e participação, na desconcentração do poder de decisão. O mesmo é tomado como uma

energia em sua etimologia grega, e deve ser irradiado pressupondo-se a pluralidade, a

diversidade e o fortalecimento crescente do tecido social gerado. E por fim, mas não menos

relevante, todos estes elementos não se sustentam caso não haja convergência de esforços

em prol de propósitos comuns.

Tudo indica que entender o processo pelo qual a mobilização social se dá permite

apreenderem-se contribuições que ressoam na tematização da mobilização da

subjetividade. O intento é entender a que se refere a mobilização, a mobilização do ser do

humano. E mais, a mobilização da subjetividade em um contexto específico, o da

organização empresarial e os mecanismos utilizados para que se obtenha o engajamento e

“compromisso com a causa” corporativa. Igualmente neste contexto, os significados

considerados caminham em direção semelhante, pelo menos no tocante ao discurso

proferido. De início mobilizar a subjetividade remete à busca de adesão a uma cultura, a um

propósito, a uma idéia ou intenção etc. Mas é também um chamado à participação. Não

obstante as correlações existentes, permanece a indagação sobre o quanto o sentido

implícito ou explícito presente no trato das pessoas não como “recursos”, mas como

“sujeitos”, é conservada ao se dizer da mobilização da subjetividade como estratégia dentro

das organizações.

A mobilização da subjetividade dos trabalhadores tem sido uma importante estratégia no processo de modernização sistêmica que vem se consolidando nas organizações brasileiras, no âmbito da reestruturação produtiva em curso no país há mais de uma década. A rigor, trata-se de uma estratégia presente no campo organizacional desde os primórdios da industrialização, como uma dimensão ideológica importante para a sustentação do sistema. No entanto, adquiriu relevo especial, e mesmo central, na gestão de pessoas nas organizações contemporâneas, porque

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O SER DO HUMANO E O COACHING

viabiliza uma finalidade econômica, que é garantir a qualidade dos produtos e serviços. (CORRÊA et al, 2004, p. 2).

Mantendo-se bem distante daquilo que se preconiza no sentido originário visto, a

mobilização da subjetividade, neste caso, toma forma com propósitos bastante diversos

intencionando interesses econômicos. As autoras corroboram que já não basta somente a

adesão dos trabalhadores aos objetivos empresariais, mas sim a sua integração ou

comprometimento pleno, pautado no ideal de conciliação de interesses que por si se

mostram antagônicos.

Nas empresas contemporâneas, o que se busca é o convencimento de que a divergência não existe, ou seja, os interesses e objetivos seriam os mesmos, tanto para os empresários como para os trabalhadores: a sobrevivência da organização num mercado altamente competitivo, por meio da qualidade dos produtos e serviços, das melhorias contínuas de produtividade e do controle de custos. (Ibidem, p. 2)

Entendida, portanto, como uma estratégia de gestão de pessoas nas empresas, a

mobilização da subjetividade toma forma a partir da última década e se presentifica através

da gestão participativa, da formação profissional e da comunicação interna. (CORRÊA et al,

2004). Interessa em especial aos propósitos delimitados neste texto a segunda estratégia

enumerada pelas autoras, qual seja, formação profissional, e, sobretudo, o que denominam

“moldagem de comportamentos”, que vem associada à escolarização e ao desenvolvimento

de competências. O esforço empreendido está voltado para a análise e proposição de

fundamentos para uma prática corrente hoje em dia, cujo objetivo se enquadra quer na

abordagem de competências, quer na modelagem de comportamentos, que é o coaching.

Mudanças não são novidades no teorizar e no fazer da gestão de pessoas em

organizações. Assinaladas insistentemente e reconhecidas no mundo do trabalho, as

mudanças demandam uma revisão do perfil requerido dos trabalhadores, valorizando a

polivalência, a qualificação técnica; a participação criadora; a mobilização da subjetividade;

a capacidade de diagnosticar e, portanto de autonomia na ação e decisão. Tais

pressupostos ou precondições desafiam as ciências que estudam o trabalho no sentido de

identificar as necessidades políticas, sociais, materiais, culturais etc. decorrentes do

processo de reestruturação produtiva. Necessidades que se revelam subjacentes às

exigências de reconfiguração dos procedimentos operacionais, determinando o rearranjo de

competências no contexto da nova divisão sociotécnica do trabalho. Dentre as exigências

que se impõem, pelo menos duas interessam especialmente: o redesenho do papel da

liderança e as técnicas ou estratégias de mobilização da subjetividade em uso nas

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O SER DO HUMANO E O COACHING

organizações empresariais, pois que ambas estão em estreita correlação com o processo de

coaching.

A analogia corrente com o mundo dos esportes referenda que o líder empresarial ao

apropriar-se de seu “novo” papel de coach

tem compromisso tanto com os resultados quanto com a pessoa como um todo, seu desenvolvimento e sua realização. Exerce influências no desenvolvimento de padrões éticos, comportamentais e de excelência. O coach pode ser identificado ainda como um facilitador, um instrutor que age para reunir as capacidades das pessoas, grupos ou instituições com os quais se relaciona. (TOLFO, 2004, p. 270).

Há, portanto, autores que reconhecem que o coach “é um profissional que não se

compromete apenas com os resultados, mas com o próprio desenvolvimento e realização da

pessoa que é designada como seu cliente. Sua função é dar-lhe poder, para que suas

intenções se transformem em ações que, por sua vez, se traduzam em resultados

(ARAÚJO, 1999, p. 26 apud GIL, 2002, p. 283). Neste sentido, deve ser concebido como um

composto de atividades intencionais a fim de que se caminhe em direção às aspirações de

pessoas e de organizações, e que se dá a partir da busca de engajamento e compromisso

com os resultados corporativos. Seus “fundamentos estão na estratégia, na mudança

comportamental e na definição dos valores essenciais.”, não obstante também perpetuem

uma visão de sujeitos organizacionais imaturos que, em sua relação com o trabalho,

demandam ações que possam guiá-los ou conduzi-los. (TOLFO, 2004, p. 270). Enfim,

“coach é o profissional do empowerment, pois o que lhe compete é dar poder para que a

pessoa efetive as mudanças necessárias em seu ambiente de trabalho ou em sua conduta.”

(GIL, 2002, p. 283). Nesta dimensão, apropria-se do papel de treinador, técnico ou educador

naquilo que este tem de mais libertador. Etimologicamente educação, do latim educere,

remete a “conduzir alguém ou algo para fora do lugar onde se encontra: no seu sair fora do

lugar onde estava.” (MICHELAZZOvi, 1988 apud ANDÓ, 2000, p. 193). Originalmente o

próprio sentido da palavra coach guarda o mesmo significado de alguém que conduz de um

lugar a outro. (BRAGA¹ et al, 2006, p. 4).

No esforço empreendido da busca de fundamentos para o coaching encontrou-se no

método fenomenológico existencial uma possibilidade de instrumentalizá-lo. Como método

que inaugura uma perspectiva humanista, entendida como a filosofia que tem no homem

seu elemento central, dá sustentação ao que se poderia denominar psicologia compreensiva

que, por sua vez, mantém sob seu “guarda-chuva” as mais diversas microescolas. A

propósito, método remete a “caminho”. Do grego meta (após) ódos (caminho). “Após o

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O SER DO HUMANO E O COACHING

caminho” se encontra o mundo das coisas mesmas, ou de outro modo, é o caminho que

conduz às coisas em si, desfazendo-se de todos os “pré” existentes (conceitos, teorias,

suposições etc.).

Para além de uma consideração crítica e discussão em si do ato de mobilizar a

subjetividade e as intenções ideológicas subjacentes ou explícitas, confia-se que interessa

aos administradores, psicólogos, educadores e demais profissionais que adotam a prática

do coaching ou quaisquer outras com os mesmos fins, compreender e fundamentar sua

ação. Fala-se obviamente daqueles que se assumem como agentes transformadores,

compromissados não somente com a técnica, mas principalmente com a conduta ética ao

lidar com o ser do humano e todas as implicações decorrentes, “pois essa mobilização da

subjetividade baliza as perspectivas e limites dos projetos educativos que propõem

alternativas às estratégias empresariais.” (CORRÊA et al, 2004, p. 3). Portanto, o foco

presente não está em se explorar a análise crítica em si da estratégia em questão e suas

conseqüências políticas, ainda que indagar, refletir e atentar para o fato são certamente atos

de extrema relevância. Fiel ao método fenomenológico, entretanto, deve-se permitir colocar

entre parênteses a acepção de homem como ser bio-psico-social para que se possa trilhar

um outro caminho em direção à essência do coaching como um processo de mobilização da

subjetividade. Mesmo porque, render-se a determinismos é negar a natureza do humano,

pois que já os gregos confiavam na capacidade de transformação inerente a esta natureza.

Isso quer dizer que, seja pela ação ou pela omissão, todos nós somos sujeitos da história, e não meros espectadores. Como já dizia Paulo Freire na década de 60, “o homem é, por natureza, um ser eminentemente transformador. Não é a acomodação, e sim a capacidade de transformar a realidade que caracteriza o modo de ser do homem no mundo. (LINO, s.d., n. p.).

Os argumentos da fenomenologia existencial reforçam a idéia de que o homem tem

por condição de existência a liberdade de construir-se. Explicita, portanto, um caráter ativo,

de movimento e não de espera. Na solidão, sem indicações de caminho a seguir, rumo a dar

à própria vida, o homem parte na busca incessante de sentido para a existência. Não há,

pois, sentido nem tampouco respostas prontas, estando assim, para a fenomenologia

existencial, condenado a ser livre. Indelevelmente, mesmo na ausência de garantias, trata-

se de fazer escolhas e responsabilizar-se por elas, construir a si próprio e dar sentido à sua

vida. Ante tal indeterminismo se reconhece como um ser de possibilidades, incompleto,

caracterizando-se como um vir a ser permanente, um pro-jeto. Assim, embora os

humanistas levem em conta a máxima de Terênciovii, reconhecem que existem diferenças

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12

O SER DO HUMANO E O COACHING

marcantes e injustas entre os indivíduos, classes sociais etc. que emanam de condições

socioeconômicas ou das circunstâncias de vida de cada biografia. (ROMERO, 2000, p. 184).

É nesta perspectiva que a subjetivação e singularização encontram espaço. Através

de processos intersubjetivos as pessoas, contrariando lógicas do capital e subvertendo

significados culturais, contrapondo-se aos determinismos social, biológico, psicológico ou

religioso, expressam criativamente sua subjetividade. Sabe-se, contudo, que formar-se em

uma cultura capitalista implica, em grande parte, a herança e modelagem da identidade

calcada em códigos de valor de uso e troca. Entretanto,

na fenomenologia subjetividade não significa o contrário de objetividade. A objetividade e a subjetividade estão entrelaçadas e a assimilação do sentido de uma só é possível pela compreensão da outra; podemos falar então de uma objetivação da subjetividade humana na fenomenologia. [...] Em síntese, a fenomenologia é um método que busca conhecer o sujeito que faz ciência e o sujeito para quem a ciência é feita; [...] analisa a subjetividade humana em vários níveis: o transcendental, o existencial, o histórico, o social; [...] é o método que tem seu ponto de partida na especificidade do humano tomado in vivo acto, isto é, em subjetividade viva. (CASTRO, 2000, p. 43-47)

Com isto não se está esquecendo de apontar a perversa inversão da qual o ser

humano é agente e paciente. As organizações não estão a serviço dos homens, são eles

que existem em favor delas. Ao contrário, o que se pretende é, a partir das características

inerentes ao pensar filosófico do ser, obter não só uma compreensão, mas, sobretudo,

encontrar elementos norteadores para a práxis em gestão de pessoas, em especial para o

coaching. Como será possível constatar mais adiante, há que se resgatar o ser do humano,

entendendo a busca de subjetivação no contexto organizacional como ponte para a

eliminação da dualidade agente-ação, sujeito-objeto. Visto que a perspectiva

fenomenológica existencial preconiza que diante da solidão e da liberdade, o homem tem

dois caminhos: aceitar-se numa existência autêntica como sujeito que escolhe

responsavelmente e guia a própria vida; ou, de outro modo, cedendo à inautenticidade

através da fuga para o anonimato do ser social, confundindo-se com a massa, buscando

fora de si as respostas e a determinação de sua vida. Numa vivência inautêntica, se perde

nas preocupações cotidianas, abre mão de sua individualidade em prol do anonimato que

anula a singularidade do existir. Por outro lado, o perceber-se finito o conduz na direção de

realizar seus projetos no presente, na busca de sentidos alternados e dinâmicos para a vida,

ciente de que não há um único e genérico significado existencial que lhe é dado de fora para

dentro.

Page 13: Art_O Ser Do Humano e o Coaching

13

O SER DO HUMANO E O COACHING

4. Fenomenologia, personalidade e ação administrativa: temas

fundamentais.

O coaching fenomenológico existencial busca, então, suas bases na filosofia da

existência. A Fenomenologiaviii surge em um momento histórico específico. A posição natural

se funda no mundo dos fatos e eventos, no mundo da experiência enquanto a

fenomenologia ocupa-se dos valores, significados, sentidos etc., enfim, no mundo-da-vida,

no mundo das vivências. Pode, enfim, “ser entendida como o estudo que reúne os diferentes

modos de aparecer do fenômeno ou o discurso que expõe a inteligibilidade em que o

sentido do fenômeno é articulado.” (BICUDO, 1999, p. 14) ou de outro modo, interessa-se

pela consciência e os objetos da consciência. Assim, o método fenomenológico propôs o

retorno às coisas mesmas ou às coisas em si. Opondo-se ao pensamento positivista, centra

na experiência intuitiva e derruba a crença do senso comum de que as coisas do mundo

existem independentemente dos sujeitos que as percebem. Para Husserl, na consciência

tem-se certeza sobre a apreensão dos fenômenos, quer ilusórios ou reais.

Não há como afirmar que existe “o” método fenomenológico, porém muitos, conforme

se considere estes ou aqueles fenomenólogos. A propósito, está-se falando da

fenomenologia husserliana e de conceitos que surgem entre os seus principais seguidores:

Heidegger e Gadamer, Ricouer e Merleau-Ponty, dentre outros.

De todo modo,

a aproximação da fenomenologia às ciências humanas pode ser de dois modos: uma como elucidação do comportamento humano enquanto modo originário de ser no mundo [...] O outro modo de aproximação é interno ao trabalho científico dessas ciências e toma em consideração as teorias e as explicações acumuladas por métodos não-fenomenológicos. (JOSGRILBERG, 2000, p. 80).

Em princípio, mais que um método, seria pertinente dizer que se está diante de

uma atitude assumida perante o mundo e o conhecimento que não apenas trabalha com um conceito estruturante de consciência, procedendo de modo analítico para esclarecê-lo.[...] Na atitude fenomenológica [...] a coisa não é tida como sendo em si, uma vez que não 1) está além da sua manifestação e, portanto, ela é relativa à percepção e dependente da consciência; 2) a consciência não é parte ou região de um campo mais amplo, mas é ela mesma um todo que é absoluto, não dependente, e que não tem nada fora de si. (BICUDO, 1999, p.15 e 17).

Em sua base distancia-se do empirismo cujo reverso

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O SER DO HUMANO E O COACHING

é o homem mesmo – a sua subjetividade, o seu mundo, o seu modo de ver não empírico. [...] Incluir a subjetividade nos modos de objetivação foi o caminho que Husserl se propôs a explorar tomando como eixo o caráter intencional dos atos de consciência na constituição ativa de objetividades. A crítica ao empirismo tornou claro que há distintos objetos e um tipo de objetividade que se constitui originariamente e imediatamente pela experiência do objeto na consciência. A constituição destes objetos é fundamento para outros tipos de experiência. (JOSGRILBERG, 2000, p.154)

4.1 Consciência. Intencionalidade. Reflexão. Vivência - Consciência e

intencionalidade são noções coincidentes. Ou, dizendo de outro modo, a primeira é a

essência e a característica peculiar da segunda (BICUDO, 1999, p. 18), e é representada

pelo significado, o nome pelo qual o sujeito se dirige a cada objeto. Toda consciência é

sempre dirigida a um objeto, ou seja, consciência não existe sem um objeto de referência,

pois que um pensamento está sempre voltado para alguma coisa. Quando se pensa, se

pensa acerca de algo. Então, refere-se ao próprio ato de estar-se atento a algo. Deste

modo, o que se forma na consciência é o que constitui o mundo exterior ou o mundo-da-vida

ou o mundo das coisas mesmas. A intencionalidade da consciência identifica e constitui os

objetos da percepção, dotando-os de um sentido.

Para Husserl, essa experiência do objeto à consciência, e segundo os modos de se dar na consciência, é mais fundamental que a experiência de fatos. A experiência de fatos só é possível porque antes as coisas são experimentadas como mundo, vida, significado, horizonte etc. em termos de uma consciência [minha consciência] em correlação com o mundo. A contínua explicitação dessa correlação é tarefa da fenomenologia. (JOSGRILBERG, 2000, p. 78-79).

Os fenômenos são, pois, reais na medida em que são parte do mundo que se

concebe na consciência. Existem a partir dos significados que se atribuem a eles. Assim o

objeto da fenomenologia é a experiência vivida do sujeito e não concepções metafísicas que

extrapolam ao trabalho da consciência e não possuem uma intencionalidade em sua

produção.

Recorrendo-se ao sentido etimológico, intenção remete a intento, tendi, tentum, ere,

cujo significado se associa a tender em uma direção, tender para, abrir, tornar atento,

aumentar, sustentar, dar intensidade, afirmar com forçaix. Donde se conclui que consciência

traduz-se em um abrir-se, voltar-se para o mundo das coisas mesmas, um movimento de

estender-se em direção aos objetos. Após tecer estas considerações, Bicudo (1999, p. 18)

adverte que “esse algo não se refere apenas ao visualmente presente, mas abrange o

movimento de efetivação ou o desejo de efetivação do ato em que a vivência se dá.”. Esse

estender-se significa que a consciência “enlaça” o objeto ao qual se dirige e, então, a

dicotomia sujeito-objeto não encontra lugar na atitude fenomenológica. São, antes, uma

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O SER DO HUMANO E O COACHING

mesma coisa, dizendo respeito ao que se denomina síntese noesis-noemax. Mais do que

dirigir-se intencionalmente para o objeto, a consciência, também, intenciona as próprias

vivências. A intencionalidade é um objetivo, mas ainda uma doação de sentido, atribuição de

significados. O verbete “intenção”, para a fenomenologia vai além de projeção de um desejo,

denotando um ato de consciência a partir do qual a percepção, a imaginação, a

conceitualização de um objeto se dá ao sujeito.

Por outro lado, o voltar-se sobre consiste no ato reflexivo e permite a compreensão

das vivências, das experiências. Neste aspecto é um voltar-se às percepções iniciais, às

primeiras percepções, dando-se um passo atrás para olhar o vivido, o ato, a realização.

Pressupõe um afastamento e ao mesmo tempo uma intencionalidade de envolver-se

deliberadamente no ato de refletir. Esse é o sentido de transcendência na fenomenologia:

uma percepção retrospectiva do vivido, de modo que haja evidência dos atos geradores do

noema. Outro conceito importante é o de vivência (Erlebnis), que se refere a todo ato

psíquico. A experimentação consciente e intencional constitui, portanto, o foco de estudo da

fenomenologia. Contudo, em sua intencionalidade, a vivência consciente engloba o estudo

dos objetos das mesmas, pois que são referências essenciais. Trata-se de experienciar

conscientemente a situação factual.

Cobra (2001, n.p.) reafirma que para o expoente da fenomenologia,

os objetos dos fenômenos psíquicos independem da existência de sua réplica exata no mundo real porque contêm o próprio objeto. A descrição de atos mentais, assim, envolve a descrição de seus objetos, mas somente como fenômenos e sem assumir ou afirmar sua existência no mundo empírico. O objeto não precisa de fato existir. Foi um uso novo do termo "intencionalidade" que antes se aplicava apenas ao direcionamento da vontade.

Portanto, os elementos Consciência, Intenção, Reflexão e Vivência estão em relação

estreita e o entendimento de seus significados dentro da fenomenologia tem implicações

relevantes para a prática do coaching.

4.2 O método: Redução Fenomenológica, Redução Eidética e Redução

Transcendental - Husserl designa diferentemente o processo referindo-se a ele como

“redução”, “redução transcendental”, “redução fenomenológica” e epoché. (BICUDO, 1999,

p. 22). “Especialistas em Husserl costumam distinguir até seis espécies diversas de

reduções, donde a grande diversidade de exposições da fenomenologia, [...] as principais

são evidentemente três: a redução filosófica, a redução fenomenológica e a redução

eidética.” (CARMO, 1974, p. 15). Reduzir é diferente de desconsiderar e de ignorar. Reduzir

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O SER DO HUMANO E O COACHING

é “colocar entre parênteses” tudo o que está além da essência da situação factual que se

mostra à consciência. É, pois, um processo intelectual que suspende ou deixa de considerar

determinados juízos ou conhecimentos acerca da situação factual. É antes de tudo um

modo peculiar de abordar um problema. Ou seja, ocupar-se da busca de respostas à

indagação: quais os significados contidos nas afirmações acerca da situação factual

presente na consciência?

Sabaj (2005, p. 53) sintetiza de forma clara o processo:

A través del recurso de la epojé, es posible, primero, una reducción trascendental que abre camino hacia la intuición inmediata que, según Husserl, es la única garantía para alcanzar la certeza. El trásito de lo trascendental a lo inmanente permite acceder a las vivencias puras, a los actos intencionales. Luego, se logra una reducción eidética que se caracteriza por la aprehensión de esencias universalmente válidas [eidos]. A través de la intuición eidética se logra una experiencia directa [vivencia] de los universales.

Redução filosófica. Evidência. Consiste na suspensão de todos os sistemas

filosóficos, teorias existentes e visões de mundo, a fim de que se atinja as coisas mesmas.

Husserl parte da objetividade no mundo-da-vida, mediante a obtenção das idéias claras e

distintas que são próprias da situação factual percebida, direcionando-se para sua

compreensão, seu entendimento. Voltar-se às coisas mesmas nada mais é que um regresso

à análise e reflexão sobre o concreto tal como se apresenta como fenômeno na consciência,

confiando-se que a percepção pura revela a essência primeira das coisas. A proposta vem

impregnada da necessidade de se desfazer totalmente de quaisquer juízos de valor

subjetivos. Assim, trata-se de olhar com olhos de principiante, “em seu sentido mais nobre:

aquele que volta sempre aos princípios de onde parte todo pensamento, às fontes que

alimentam a reflexão.” (CARMO, 1974, p. 18). O que está fora do campo de consciência é

colocado entre parênteses, em certo sentido referindo-se a tudo que pode ser entendido

como uma pré-significação ou pré-conceito acerca daquilo que se apresenta. Deste modo, o

que se apresenta à consciência define “a existência” para o sujeito de algo, o que torna a

relação sujeito-objeto como indissociável. Em outras palavras, na significação presente, ou

no fenômeno, estão contidos sujeito e objeto, um inexiste sem o outro. O que se pretende é

chegar à verdade científica, mas se sabe que nenhuma ciência oferece acesso à verdade

absoluta e para Husserl, ela só nos é dada pela evidência.

A evidência que é uma experiência ou uma intuição na qual as coisas estão presentes por si mesmas à mente. [...] Existem várias espécies de evidência [...] Existem evidências que não excluem totalmente a possibilidade de que alguma dúvida surja a seu respeito e que podem ser chamadas de “evidências assertóricas”. Ora, o de que precisamos é de verdades

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O SER DO HUMANO E O COACHING

absolutamente indubitáveis, que excluam toda dúvida possível. Tal certeza só nos poderá ser dada por um tipo especial de evidência que poderemos chamar de “evidência apodítica”. (CARMO, 1974, p. 19).

Assim, pela redução filosófica é que se torna possível o retorno às coisas mesmas.

Redução fenomenológica. Redução Transcendental. Subjetividade Transcendental.

Percepção. “Num primeiro momento somos convidados a colocar entre parênteses a

existência transcendente do mundo [Redução filosófica] para, no momento seguinte,

considerá-lo unicamente como fenômeno, ou seja, aquilo que está presente, que aparece à

nossa mente e enquanto aparece.” (Ibidem,, p. 21). Como resultado, o que se tem é a

Subjetividade Pura ou Transcendental, o Eu Puro. Deste modo, na redução fenomenológica

o objeto como fenômeno consciente (noema) é o que tem relevância e o próprio ato de

perceber constitui a noesis. Por outro lado, o empiricamente comprovado não é suficiente

para açambarcar tudo o que a situação factual pode revelar ou significar. Interessa,

sobremaneira, o modo como se apreende o mundo, sugerindo que um mesmo objeto pode

se apresentar a diferentes sujeitos com significações distintas. Concentrar na experiência é

focar em sua realidade singular. Importa à fenomenologia como esta experiência se dá e

não se há no mundo-da-vida um objeto empiricamente correspondente. Não se trata de

duvidar do mundo, mas colocá-lo entre parênteses como existência transcendente. A

redução fenomenológica não parte, pois, da dúvida na existência do mundo. Contudo,

colocá-lo entre parênteses traduz-se na busca de se atingir um olhar novo sobre ele.

Redução fenomenológica nada mais é do que chegar-se às realidades constituídas pelos

puros fenômenos; é o processo a partir do qual se atém ao que é consciente, ao que

constitui o mundo-da-vida tal qual se mostra e como se mostra. Dentro desta visão, o mundo

das coisas se torna um correlato da consciência.

Por outro lado, a Redução Transcendental conforme atesta Cobra (2001, n.p.)

“basicamente seria a redução fenomenológica aplicada ao próprio sujeito, que então se vê

não como um ser real, empírico, mas como consciência pura, transcendental, geradora de

todo significado.” Somente a redução transcendental se ocupará de explorar com rigor todas

as afirmações de modo a justificá-las. A reflexão é o componente da redução transcendental

que permite evidenciarem-se as raízes cognitivas das próprias afirmações presentes nos atos

de consciência que são explicitados através da redução. Através dela toma-se consciência

dos atos e de si. Diz respeito ao colocar entre parênteses não só a existência, porém tudo o

que não é correlato da consciência pura. Neste movimento, o produto da redução

transcendental nada mais é do que a maneira como o objeto é dado ao sujeito.

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O SER DO HUMANO E O COACHING

Não obstante, percepção, em sua significação fenomenológica, diz respeito à

experiência de perceber-se uma coisa não só sensitivamente. Diz respeito à tomada de

consciência. É a via pela qual o imbricamento sujeito-objeto se presentifica, conformando a

existência. Implica um sentir integral e diferentemente configurado nas possibilidades que

envolvem os aspectos sensoriais (ouvir, cheirar, ver, tocar). Podem-se obter múltiplas

percepções de uma situação factual, apesar disso não há o risco de se perder em

concepções subjetivas diversas porque para a fenomenologia há uma unidade interna

conservada à qual Husserl denomina síntese de identificação. Ela assegura o

reconhecimento universal próprio e essencial presente na coisa percebida.

Para concluir, ao se colocar entre parênteses o mundo real, procede-se à redução

fenomenológica atribuindo-se valor à visão de mundo do sujeito. “[...] Observemos que uma

vez alcançado seu objetivo, a saber o Eu Puro com seus fenômenos, a fenomenologia não

procura explicá-lo nem, muito menos, prová-lo mas unicamente descrevê-lo”. (CARMO,

1974, p. 22).

Intersubjetividade. Intuição. Redução Eidética ou à idéia (eidos, do grego, idéia ou

essência) remete, por sua vez, à busca do significado verdadeiro, visto que a relação

sujeito-objeto (subjetividade e objetividade) é indissociável. Ver as coisas "como elas são na

realidade" diz respeito menos à comprovação empírica de uma existência objetiva e mais

uma captação sensorial e ao mesmo tempo uma significação. Assim, o fenômeno que se

apresenta à consciência contém em si a representação do objeto em sua significação

subjetiva. Chegar à essência ou idéia primeira é resgatar o que há de universalidade no

apreendido, tornando a experiência individual um processo posto em comum com as

experiências dos demais indivíduos. A intuição é o caminho para se atingi-la, traduzindo-se

em ato que não só capta imediatamente as qualidades sensíveis, como ainda e,

principalmente, capta as essências. A este tipo especial se define como intuição eidética. E,

ao se eleger uma faculdade necessária e que assume uma posição de pré-condição neste

caso, é a imaginação que põe em relevo o que existe de essencial na situação factual.

A noção de intersubjetividade adquire, neste aspecto, crucial relevância. A essência

de cada objeto apreendido o torna único e a um só tempo identificável por qualquer sujeito

que o compartilhe perceptivamente, muito embora as vivências sensoriais (visão, audição

etc.) nunca sejam as mesmas em um mesmo indivíduo, nem tampouco permaneçam

estáveis de um indivíduo para outro, porém ainda assim todos são capazes de nomeá-lo, de

significá-lo de forma inteligível para si e ao mesmo tempo para os demais. Na

fenomenologia cada objeto possui um elemento essencial Invariante.

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O SER DO HUMANO E O COACHING

Não importa para a Fenomenologia como o mundo real afeta os sentidos. Husserl distingue entre percepção e intuição. Alguém pode perceber e estar consciente de algo, porém sem intuir o seu significado. A intuição eidética é essencial para a redução eidética. Ela é o dar-se conta da essência, do significado do que foi percebido. (COBRA, 2001, n.p.)

Para Husserl, todo fato particular guarda em si uma generalidade, algo de essencial

que o faz reconhecível por todos. Para se chegar à essência, não se afasta do fato

particular, ao contrário, volta-se para ele com o intuito de se obter o seu significado mais

profundo. Deste modo,

[...] um fato é um fato e, como tal, não interessa ao fenomenólogo; mas todo fato, todo fenômeno tem um sentido, tem um feixe ou um núcleo de significações que constitui a fonte de todos os seus predicados necessários. A fenomenologia procura atingir esse núcleo de significação necessária, ou seja, a essência do fenômeno. (CARMO, 1974, p. 28).

4.3 O Existir: Ser-no-mundo. Maneiras de existir. Temporizar. Espacializar.

Escolher. Forghieri (1993) trata de apresentar uma concepção de personalidade a “partir” e

“além” de Husserl, de Merleau-Ponty, Heidegger, Buber e Sartre. Todas as considerações a

seguir têm como referência a proposição da autora.

Como se sabe, dependendo da perspectiva que se empresta à realidade, é possível

distinguir as diferentes fenomenologias preconizadas por cada autor: transcendental,

husserliana, existencial (Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty), hermenêutica (Hans

George Gadamer e Martin Heidegger). Não se trata aqui de estabelecer paralelos e nem

tampouco distinguir semelhanças ou diferenças. O propósito é extrair dentre eles os

conceitos que permitem a compreensão humana e servem de fundamentos à prática do

coaching. O destaque deste ou daquele autor, deste ou daquele conceito partiu estritamente

do quão os mesmos trariam essa contribuição. Sabe-se, inclusive, que dentro da

diversidade da abordagem humanista, mesmo em se tratando da vertente fenomenológica

existencial, se torna uma pretensão hercúlea a idéia de construção acabada e definitiva de

fundamentos.

Assim, em Forghieri (Ibidem, p. 26) personalidade é “tomada como o conjunto de

características do existir humano, consideradas e descritas de acordo com o modo como

são percebidas e compreendidas, pela pessoa, no decorrer da vivência cotidiana imediata e

tendo como fundamentos seus aspectos fenomenológicos primordiais.”

Ser-no-mundo. Afirmar que o humano é o único ser existente é dizer que se trata do

único ser que tem consciência de sua existência. Experimenta-se o cotidiano, o mundo com

“uma familiaridade imediata e pré-reflexiva” que não é necessariamente dada pelo

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O SER DO HUMANO E O COACHING

conhecimento das ciências. Desta feita, “ser-no-mundo não quer dizer que o homem se

acha no meio da natureza ao lado de árvores, animais e outros homens [...] é uma estrutura

de realização [...] O homem está sempre superando os limites entre o dentro e o fora”.

(HEIDEGGER, 1988, p. 20). O ser humano está, pois, implicado no mundo e é esta vivência

que confere uma identidade própria a ele; até porque o localizar-se espacial e

temporalmente está imbricado nela. O humano precisa do mundo para ser e vice-versa. A

subjetividade para o ser, é sempre em relação a algo ou alguém, “a essência do homem está

em se ser relativamente” (Ibidem, 1971, p. 54). Não se deve entender o ser do humano como

uma “entidade” que existe independente do mundo e que eventualmente se manifesta. A

existência só faz sentido se vista à luz da significação inerente. As pessoas e coisas existem a

partir do significado que assumem para alguém.

“Mundo” é o conjunto de relações significativas dentro do qual a pessoa existe;

embora seja vivenciado como uma totalidade, apresenta-se ao homem sob três aspectos

simultâneos, porém, diferentes: o circundante, o humano e o próprio. (BINSWANGERxi,

1967 apud FORGHIERI, 1999 p. 29).

O circundante é a relação que se estabelece com o que se denomina ambiente e

cuja modalidade preponderante é a adaptação ou ajustamento (sujeito-mundo). Envolve o

que se poderia considerar tudo aquilo que se apresenta material, incluindo o próprio corpo

do ser humano. Vivencia-se irreflexivamente este circundante em uma experiência sensorial

(ver, cheirar, tocar etc.) e totalizada. As coisas se apresentam tal como são e assumem

relevância à medida que têm significado para o sujeito e que este se relaciona com elas.

Neste sentido, é corporalmente que a vivência se dá, mesmo que esta se configure para

além das sensações. Ao se rememorar, por exemplo, ou imaginar são as sensações

armazenas que são atualizadas. Do mesmo modo, a experimentação de limites origina-se

desta presença corpórea. O ambiente físico apresenta-se com suas demarcações enquanto,

diferentemente, o corpo do sujeito que se relaciona com o circundante se estende para além

daquelas demarcações contidas nos limites da pele que o cobre, visto que as experiências

presentes trazem consigo o já vivido, bem como o que se idealiza viver. O mundo tanto é

constituído de sensações quanto de significação, tornando o existir ilimitado. O

determinismo físico é, para o humano, relativo sob a perspectiva fenomenológica, pois é

possível transcendê-lo, até porque como humano tem consciência dele, mundo, e da sua

própria corporeidade. O humano, diversamente dos outros animais, não se mantém preso

aos condicionamentos e nem está condenado a apenas “reagir” eternamente. Num ato

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O SER DO HUMANO E O COACHING

consciente é capaz de refletir sobre si e sobre as coisas. Na busca de adaptação, na

verdade ele transforma, age sobre a natureza.

O “mundo” humano, por seu turno, refere-se à inter-relação sujeito-sujeito. O existir

humano é fundamentalmente ser-com e como tal vem sempre carregado de reciprocidade e

inter-influência. Compartilhar o mundo com outros seres humanos também contribui,

obviamente, para a construção da identidade individual e é ao mesmo tempo um meio de se

realizar as próprias potencialidades ditas humanas. Ser em comum é o que se espera na

relação sujeito-sujeito; não se trata apenas de uma adaptação como no caso da relação

sujeito-mundo. Entretanto, nem sempre é o que se apresenta. A tentativa de dominação, a

abdicação de responsabilidades não raro são estratégias de que o ser humano se utiliza

neste contexto. Ao fazê-lo, recusa-se a tudo o que representaria possibilidade de realização

plena de suas potencialidades, a saber: o amor, a liberdade e a responsabilidade.

(FORGHIERI, 1999). É, portanto, quando o ser humano se encontra com os outros e entra

em relação é que cumpre sua condição de humanidade.

Relacionar-se consigo mesmo, no que tange à autoconsciência e autoconhecimento,

é a terceira possibilidade de ser-no-mundo e diz respeito ao “mundo” próprio. Configura o

significado que as experiências assumem para o sujeito e pelo conhecimento de si e do

mundo. Se para o “mundo” circundante a modalidade preponderante é a adaptação, para o

“mundo” próprio o pensamento configura-se como função peculiar. O autoconhecimento

possibilita tanto a consciência de si quanto daquilo em que se está implicado, comprometido

ou envolvido. Para ser e realizar-se, o humano se descobre na relação que estabelece

consigo e com os demais; a relação entre o dentro e o fora. No “mundo” próprio, a pessoa

se percebe, ao mesmo tempo, como sujeito e objeto da experiência,

ela dá-se conta de si mesma como um ser existente no mundo, colocando-se tanto na situação concreta do momento como, também, vislumbrando a variedade de suas possibilidades. Assim sendo, a consciência de si e o autoconhecimento implicam a autotranscendência; esta é a capacidade do ser humano [...] de ultrapassar o momento presente, o aqui e agora, o espaço e o tempo objetivos. Pela autotranscendência a pessoa traz o passado e o futuro para o instante atual de sua existência e se reconhece como sujeito responsável por suas decisões e seus atos. (Ibidem,, p. 32)

As funções mentais (entendimento, raciocínio, memória, imaginação, reflexão,

intuição e linguagem) são, pois, como dito, as vias de relação do sujeito consigo e com o

mundo, sem que isto se traduza em um ensimesmamento.

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O SER DO HUMANO E O COACHING

Fechando os aspectos relativos ao ser-no-mundo, Forghieri (1999, p. 34) confirma a

necessidade de se levar em consideração as três formas para que se entenda o existir

humano: “o circundante, que requer adaptação e ajustamento; o humano que se caracteriza

na relação ou nas influências recíprocas entre as pessoas; o próprio, que se caracteriza pelo

pensamento e transcendência da situação imediata.” Sua concepção de personalidade ainda

inclui o que chama de maneiras de existir. O ser humano existe face à tomada de consciência

de si e do mundo. A existência se dá no mundo-da-vida, no cotidiano, e é nele que se tem

intuitivamente e de forma global uma compreensão e um sentimento pré-reflexivos daquilo

que se é enquanto ser. É neste lugar que o ser do humano se configura. O perceber e o intuir

intencionais permitem ao sujeito contextualizar e conectar a vivência do mundo consigo.

Portanto, compreender e sentir estão contidos na experiência cotidiana e “compreendo o meu

existir com um sentimento pré-reflexivo que posso identificar como sendo de mal-estar,

intranqüilidade e preocupação, ou de bem-estar, tranqüilidade e sintonia, em relação a mim e

ao mundo que me cerca.” (Ibidem,, p. 36).

A Maneira preocupada de existir envolve, num continuum, desde uma leve

intranqüilidade ou desconforto por algo até, no outro extremo, a profunda angústia. Sua

expressão pode dizer respeito tanto a uma situação factual presente, quanto referir-se ao

que já se foi ou se receia vir a ocorrer. Ainda que possa assumir uma dimensão intensa em

contextos especiais, a maneira preocupada quase sempre se dá de forma branda e difusa

no cotidiano. É inerente ao existir, o realizar-se, o ser em si e por isto mesmo está-se a todo

instante sendo solicitado a tornar-se algo para alguém ou para alguma coisa. Assim, o

estado de intranqüilidade se torna uma condição natural do próprio ser no mundo. No caso

da angústia, o caráter difuso da intranqüilidade se acentua, nela carece-se de objeto

definido como fonte. Na realidade sua fonte é o “nada”, o vazio existencial. Por isso, como

afiança Forghieri (1999) sente-se a necessidade de transmutá-la em medo para que o

enfrentamento encontre um alvo ao qual canalizar todo esforço para vencê-lo. Por outro lado,

a Maneira sintonizada de existir é demarcada por estados momentâneos, de apenas alguns

instantes, de completa harmonia os quais Buberxii (1977, apud FORGHIERI, 1999) denomina

relação Eu-Tu. Configuram-se em todas as dimensões do existir e das inter-relações que se

estabelece, não só na relação sujeito-sujeito. Nesses estados a perspectiva espaço-temporal

dilui-se completamente no tocante à suas objetividades. E, por fim, a Maneira racional de existir

que nada mais é que o movimento reflexivo que se estabelece numa tentativa de compreensão

dos dois modos precedentes (preocupado e sintonizado).

Como seres racionais, temos necessidade de analisar nossa vivência cotidiana imediata para conceituá-la e estabelecer relação entre nossas

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23

O SER DO HUMANO E O COACHING

experiências, elaborando desse modo um conjunto de conceitos, relacionados por princípios coerentes, que nos permitam explicá-las. Isso nos fornece elementos [...] para conhecermos o nosso existir no mundo, e elaborar uma “teoria” sobre o mesmo [...] (FORGHIERI, 1999, p. 39).

A presença de um mundo concreto, ainda que apreendido diferentemente por quem o

compartilhe, exige uma adequação e ajustamento das ações. A dinâmica do ser-no-mundo

pressupõe que este age em consonância com a peculiaridade de compreensão que tem das

situações, porém não há como prescindir-se deste ajustamento se se deseja obter eficiência e

eficácia no mundo-da-vida. Quando se vive experiências agradáveis ou desagradáveis com

intensidades moderadas, tende-se a concentrar-se apenas no cotidiano a ponto de perder-se a

consciência acerca da própria existência, o que se está sentindo ou qual a significação que a

vida possui. É, pois, a forma inautêntica de existir. Quando há, por outro lado, a intensificação do

desprazer ou se vive a angústia, experimenta-se quase que a exigência de que se reflita a

propósito dela. O estado toma o sujeito de tal modo que o obriga a identificar motivos e meios

para que se auto-supere.

Temporizar. Espacializar. Existir deriva do latim “existire” (ex = fora de; sistere = colocar,

por) que corresponde à palavra grega “extasis” (sair de si mesmo ou transcender). Daí, existir e

transcender se equivalem no significado, dizendo respeito a lançar-se para fora, ultrapassar o

imediato, o que, por sua vez, remete a temporalizar. “A existência humana consiste em estar

continuamente saindo de si mesma, transcendendo a situação imediata, em direção a algo que

ainda poderá ser para completar-se, ou totalizar-se.” (FORGIHERI, 1999, p. 42). O ser humano,

então, é sempre um vir a ser, como também é um ser de possibilidades que nunca chegará a se

realizar em toda a sua amplitude. Neste movimento, o tempo tanto pode ser experiênciado

como monótono e sem sentido, como igualmente perene e pleno. Ao racionalizá-lo, porém, o

ser humano culminou no estabelecimento de uma ordem sintetizada nas dimensões: passado,

presente e futuro. Não obstante, no mundo-da-vida vive-se o tempo em sua totalidade. O

presente contém em si o que se foi, o que se está sendo e o que se pretende ser. Se se vive as

situações factuais de forma sintonizada ou preocupada, define-se uma “velocidade” subjetiva

variável na intensidade, como ainda uma “extensividade” ao existir no tempo. “Nosso

temporalizar estende-se, tanto em relação ao nosso passado como em direção ao futuro, com

amplitude ou restrição”. (Ibidem,, p. 43). No amplo espectro do existir, é a racionalidade a

responsável por estabelecer parâmetros que impeçam o humano de perder-se no vazio. Refletir

sobre as vivências em cada dimensão temporal permite planejá-las.

Assim como o ser do humano se dá no tempo, dá-se também no espaço. As coisas, as

pessoas e dentre elas o próprio sujeito que se insere são constantemente localizadas num

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O SER DO HUMANO E O COACHING

determinado lugar, num dado momento. A referência espacial permite não só a racionalização

geográfica que organiza, dá acesso e delimita, como, sobretudo a consciência de que é um ser

existente, reflete e compreende o seu existir no mundo-da-vida. Tal como no temporizar,

espacializar não se restringe ao “estar aqui”, mas inclui o “ter estado lá” e o “estar acolá”,

sugerindo uma “extensividade” para além de seu próprio corpo e do mundo circundante e,

também, a vivência da proximidade ou do distanciamento. Também neste caso, a maneira de

existir interfere nesta experienciação: pode-se se sentir sozinho em meio a uma multidão ou se

sentir próximo estando-se fisicamente distante. Do mesmo modo, pode-se estar espacialmente

num ambiente físico amplo e sentir-se como se experimentasse o enclausuramento entre quatro

paredes ou vice-versa.

Portanto, igualmente no temporalizar e no espacializar a vivência de amplitude ou

restrição vincula-se estreitamente a visualização de possibilidades e a esperança de poder

concretizá-las ou não. Sendo deste modo, um aspecto no mínimo interessante, vale nota: “o

‘ver’ sob um prisma vivencial, tem um sentido amplo e, de certo modo, paradoxal, pois tanto

pode referir-se ao meu campo perceptual atual como ao meu ‘mundo’, que abrange uma

ampla gama de percepções e significados aquém e além do meu ambiente físico.”

(FORGHIERI, 1999, p. 45). Mais uma característica peculiar do espacializar está

configurada na familiaridade ou estranheza, quer se pense no ambiente concreto ou no

próprio existir no mundo e em conformidade com a maneira de existir preocupada ou

sintonizada.

Escolher. A tomada de consciência constitui ponto fundamental na fenomenologia. Escolher

e exercer a própria liberdade só se tornam possíveis à medida que o sujeito se abre à vivência e

reflete para compreendê-la. Só é possível escolha na presença de alternativas múltiplas e na

compreensão verdadeira. No entendimento da fenomenologia a verdade se dá na relação

estabelecida entre sujeito e coisa, o que confere uma relatividade a ela. Contudo, como assegurar

uma compreensão verdadeira visto que a mesma é relativa?

Primeiro parte-se da necessidade de acordos intersubjetivos, o ser com, para que se

possam minimizar as verdades de cada um. Também, é importante frisar que, para a

fenomenologia, “não há uma verdade existente por si mesma” sob a qual se obtenha certeza e

fundamentos para que se façam escolhas. Têm-se, ao contrário, possibilidades a serem ou não

serem confirmadas em determinadas situações, nas quais o sujeito se comporta de um modo ou de

outro. (FORGHIERI, 1999). Mesmo porque, a verdade ou a realidade se dão ao entendimento a

partir de uma perspectiva histórica, o que se reflete na escolha. Para escolher o sujeito se baseia no

conhecimento relacionado ao que já aconteceu, tanto quanto no que está acontecendo e no que

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25

O SER DO HUMANO E O COACHING

poderá vir a acontecer. São exatamente estes elementos que conferem à escolha seu caráter de

exercício da liberdade e da responsabilidade. Decidir sob certeza absoluta é determinismo, não é

liberdade. “Ao escolher, contamos apenas com nossa abertura à compreensão de nossa vivência e

à de nossos semelhantes, que nos colocam diante de possibilidades, exigindo de nós

responsabilidade para assumir o risco da imprevisibilidade das conseqüências de nossa decisão.”

(Ibidem,, p. 48). De todo modo, fazer escolhas por si já implica o descarte de algo. Assim, a

realização plena nunca é possível visto que fazer algo é também abrir mão de fazer alguma outra

coisa. Por outro lado, agir possibilita a concretização das escolhas. Antes de fazê-las está-se sob a

égide da dúvida. A certeza do que se escolheu e do que se renunciou só vem depois de feitas as

escolhas e de implementá-las.

4.4 Da constituição ontológica do Ego e a consciência. Como visto,

consciência é sempre ligada a algo, ao objeto, ainda que nada a habite. Os objetos da

consciência estão, pois, no mundo transcendente e não dependem dela para existir.

“Constatamos desta forma que a consciência pela própria forma de se dar, não tem como

conter alguma coisa, e, sendo assim, não pode conter o Eu.”, além do que “[...] é

comprovável, visível e descritível que nada a governa [...]”. (EHRLICH, 2000, p. 225-227).

Ao se fazer a redução fenomenológica, acessa-se exatamente esta consciência que se

configura na relação sujeito-objeto. “[...] O ‘Eu’, tanto quanto o mundo, é um existente

relativo, isto é, objeto para a consciência.” (SARTRE, 1965xiii, p. 26 apud EHRLICH, 2000, p.

227); não considerar esta evidência é por em risco todo o pressuposto fenomenológico da

intencionalidade espontânea da consciência. Com este raciocínio é possível chegar-se à

idéia de que se está dispensado da imagem do “[...] Eu - interior porque, finalmente, tudo

está fora, até nós mesmos: fora, no mundo, entre os outros. Então, não será em nenhum

refúgio que nos encontraremos: será na rua, na cidade, no meio da multidão [...].”. (Ibidem,

p. 228).

Assim, “há consciências totalmente absorvidas no objeto, onde o Eu não aparece, e

consciências onde o eu aparece.” (Ibidem, p. 228). No primeiro caso as consciências não se

tomam como objeto. Neste caso, quando a consciência de si não está presente, diz-se que

a mesma se encontra absorvida pelo objeto e são evidentemente consciências irrefletidas,

automáticas e espontâneas, as quais se denominam consciências de primeiro grau. Nelas, o

Eu não está presente. Por outro lado, à medida que se apropria da consciência - a pessoa

se vê no que faz -, é que se configura o que poderia ser compreendido como consciências

de segundo grau. Dizendo de outro modo, as consciências de segundo grau são aquelas

que “se caracterizam exatamente por tomar como objeto outra consciência [irrefletida]. E,

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26

O SER DO HUMANO E O COACHING

com este ato [...] surge um objeto que não estava presente nas consciências de primeiro

grau: o EU.” (Ibidem, p. 230). É o que ocorre comumente quando se retoma uma

experiência anterior. Ehrlich (2000) deixa claro que o Eu não está na consciência irrefletida,

e só se dá conta disso quando se toma essa mesma situação reflexivamente. Ao se refletir

sobre uma experiência anterior, imediatamente o Eu surge.

A constituição do Ego se dá como um pólo de Estados, Ações e facultativamente de

Qualidades, que são totalizados a partir da experiência. Ainda que se possa afirmar que há

ego porque há consciência, o contrário não é verdadeiro. E se ele não habita a consciência,

só pode estar no mundo, na realidade transcendente. Mas como ele se constitui?

Os Estados dizem respeito àquilo que se sente na relação sujeito-mundo e ele se dá

à consciência a partir do ato de reflexão. Através dela se pode intuir o que se sente ou se

experimenta em relação a alguém ou alguma coisa. Já que se trata de uma consciência

refletida, enquadra-se no que se configura como uma consciência de segundo grau; porém

a reação que se experimenta com relação a alguém numa determinada situação específica

e momentaneamente diz respeito à consciência imediata do objeto e o que ele produz. No

primeiro caso, tanto o passado como o presente e o futuro estão comprometidos com o que

se sente, já a consciência imediata do objeto refere-se a uma instantaneidade ( que pode

ser uma experiência irrefletida ou reflexiva, mas que não perdura, não compromete o futuro).

Pode-se, por exemplo, ter ódio de alguém (estado) ou uma repulsão momentânea em

relação a alguém por alguma ocorrência específica (consciência imediata do objeto). O ódio

(estado) pode até se dar em decorrência de uma repulsão instantânea, porém ele a

ultrapassa e faz parte do ser que se é. Também, é bom que se diga que o estado dá-se na

relação com o objeto e é transcendente em relação à consciência, visto que ele permanece

presente no ser mesmo quando a consciência do objeto ao qual este ódio se presentifica

não faça parte todo tempo da consciência. Se este objeto se revela em lembrança ou em

realidade concreta, o estado se atualiza imediatamente, até porque ele existe por um

processo histórico e não devido a uma experiência momentânea. Assim, “o estado é

segundo em relação às experiências irrefletidas, que precisam ser tomadas como objeto

para serem totalizadas num Eu.” (EHRLICH, 2000, p. 237). No estado, totaliza-se e retoma-

se, através da reflexão, um somatório de experiências irrefletidas que o irão consumar em

um continuum de tempo. Então,

é desta forma que constituímos os estados: através da existência, nas relações com as coisas, com os outros, implicando um passado e um futuro para nosso ser. Compreendemos, então, que primeiramente ocorrem experiências irrefletidas, para que, depois, mediados pela reflexão crítica,

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O SER DO HUMANO E O COACHING

possamos fazer alguma coisa delas, incluindo-as ou não numa totalidade. Mas a experiência é anterior ao Eu, ou seja, não depende de nós termos uma experiência de atração ou repulsão [...]. (Ibidem, p. 237).

As Ações, tal como os estados, também são constitutivas do Eu, conformam a

identidade, e são vividas por ele como próprias a si; são intervenções que são reconhecidas

como emanadas de si pelos sujeitos que as desenvolve. O mecanismo para tal não difere do

já descrito para os estados. As consciências irrefletidas precisam ser tomadas como objeto

de uma consciência refletida a fim de que sejam totalizadas e apropriadas pelo sujeito.

Pode-se dizer que os estados e as ações são diretamente o ego.

Diversamente dos estados e das ações que são experimentados concretamente, as

Qualidades se revelam como abstrações, mesmo que se considere que elas são

totalizações que ocorrem a partir deles. Compõem facultativamente o ser do ego,

configurando-se como nada mais do que atributos autodesignados. Possuem a

peculiaridade de ser facultativas na medida em que o sujeito pode possuir concretamente

uma qualidade sem, contudo se reconhecer como tal e neste sentido ela deixa de ser

constitutiva do ser daquela pessoa. Por outro lado, as ações e os estados não decorrem e,

então, não dependem de que a autodesignação de determinada qualidade ocorra para que

se estabeleçam.

Portanto a visão de Sartre é a de que a personalidade se constitui como segue:

primeiramente têm-se as experiências que poderão ser totalizadas em estados e ações e,

ambos, poderão ser totalizados em qualidades, elementos articulados que já são em si

constitutivos do ego. Esta constituição acontece através de um caminho que sempre se dá

por uma via que vai do concreto para o abstrato, da existência para a essência. Não se

nasce com o ego (essência) constituído e vai-se atualizando ao longo da vida, ao contrário.

Assim, pode-se afirmar que “a consciência é, na verdade, a sustentação ontológica do ser

do ego; que ela é anterior a ele e a constitui.” (Ibidem, p. 243). O ego é, pois, realizado pela

criação contínua da consciência.

4.5 Liberdade engajada. Ação administrativa. Gestão pela formação

humana. Gestão de recursos DO humano.

Fraga (2003) traz contribuições relevantes, e acredita-se precursoras, à aplicação da

fenomenologia à prática da gestão. Entre suas considerações, uma parece primordial. Mais do que a

ação sobre coisas e pessoas, a autora compreende a ação administrativa como resultado de uma

liberdade engajada. Para ela antes de tratar-se de uma intervenção sobre, é inserção, é ação em co-

humanidade e diz respeito a assumir a intersubjetividade como processo presente na gestão, o que

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28

O SER DO HUMANO E O COACHING

confere responsabilidades recíprocas. Com base na Filosofia da Experiência e na Fenomenologia

de Merleau-Ponty principalmente, sustenta argumentos que tornam claro um enfoque filosófico

peculiar à gestão, que nada mais é do que buscar significados e sentindo para a ação administrativa.

Compreende o espaço organizacional como o “do mundo concreto, das relações do indivíduo

encarnado com o outro na existência humana, na qual as organizações são permanentemente

espaço e tempo vividos.” (Ibidem, p. 26). Assim, o caráter histórico assume dimensões óbvias para

os fenômenos administrativos, uma vez que resultam de uma articulação passado-presente-futuro,

como ainda da visão do que foi-está sendo-virá a ser. Fala-se, pois, de uma organização existente,

mas que tem história e que faz história. Com esta visão, ao se pensar o humano em interação com

sua dimensão técnica-administrativa, leva-se em conta os fatos como fenômenos, trilhando os

percursos daquilo que os motiva e dá significado, sentido. Além do que, acresce aos critérios

científicos da administração (eficiência, eficácia e efetividade), a “relevância” e a “legitimidade” da

ação em sua representatividade ou, de outro modo, a relevância do humano e legitimidade de sua

ação, as quais deslocam o foco do “resultado”, somente, para a “conseqüência” da ação

administrativa. Pensar em conseqüência é pensar em responsabilidade e intencionalidade. O

humano é a “direção” e o “sentido”, conforme sugere, e deste modo, antes de se falar em gestão DE

recursos humanos, fala-se de gestão de recursos DO humano legitimando as ações sob o teto da

organização. A compreensão do ATO humano exige a compreensão da totalidade do SER do

humano, visto que a ação se dá em conexão com uma totalidade e implica inter-relações

importantes. Neste sentido, a Gestão e seu Agente são intencionados, para Fraga (2003),

caracterizando a relação entre ambos como de implicação em que o sujeito é tomado como parte do

objeto que intenciona. Baseada em Paul Ricoeur (1988 apud FRAGA, 2003 p. 4), é possível

salientar que a ação é atividade essencialmente humana.

Essa abordagem é fundamental para rever a questão de o humano ser considerado um recurso na teoria, o que vem reforçando a prática de uma gestão sobre o humano, um tratamento que, além de orientar o gestor no sentido de reduzir seu semelhante a mero recurso entre os demais em uma organização, ainda o induz a se comportar, ele próprio, como esse mero recurso, submetendo-se a prescrições teóricas que desfiguram o que se constituiria em uma autêntica ação humana como profissional.

O propósito é a inserção do próprio humano na gestão, compreendendo-se que os agentes

na ação administrativa são intencionados, conscientes e conseqüentes. O agente do qual trata a

autora, “não se limita à determinada categoria funcional ou cargo, mas a pessoas em situação de

trabalho com outras pessoas, independentemente de hierarquia ou atribuições.” (Ibidem, p. 4).

Recorrendo-se novamente a Paul Ricoeur (1988, apud FRAGA, 2003) torna-se possível

distinguir três níveis de compreensão da ação: Silogismo prático, traduzido numa “disposição para”,

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29

O SER DO HUMANO E O COACHING

numa intenção implicitamente presente; a explicação teleológica que ao contrário de buscar razões

antecedentes, explica a intenção pelo fim. Reconhece o surgimento de um acontecimento como

dependente de outro acontecimento e que tem como característica, ser exigido para algum fim. E, a

descrição fenomenológica “apreende nessa intenção o agente consciente, entendido como uma

rede de intencionalidades.” (Ibidem, p. 6). Em seguida, analisa as implicações que esta visão da

ação humana tem para a teoria da administração considerando o agente, a formação humana,

espaço e tempo, a concepção de organização, a questão do outro, do público e de Deus e, por fim,

o resultado, a conseqüência, a relevância do humano e a legitimação da ação. A autora chega à

síntese seguinte:

Figura 1

Fonte: adaptado de Fraga (2003)

É com este olhar que Fraga (2003) constrói a concepção do que denomina Gestão

pela Formação Humana em que resgata as noções de que o ser do humano é em aberto,

que formação e desenvolvimento são coincidentes, que se busca um saber que nunca irá

ser alcançado em absoluto, porém que nunca se deixará de buscar e que educar é viver,

implicando gestão/autogestão. Neste escopo, a ação administrativa, como ação

eminentemente humana, tem como significado o que faz e o que busca como sentido, em

que direção caminha. Entender a organização dentro de uma visão compreensiva, para ela,

é compatível com o modelo sócio-técnico ou realidade sistêmica, considerando apenas que

esta abordagem é incompleta visto que interior e exterior coexistem como separados e

unidos. A realidade organizacional sob a perspectiva fenomenológica implica, entretanto,

assumir que: os critérios da Relevância e Legitimação da Ação orientam os objetivos para o

ser do humano como objetivo fim; a Efetividade dirige os objetivos para a intersubjetividade;

Agente/Ação Administrar e Educar

Administrar é fazer algo: Resolver/Administrar Problemas

Agir em lugar do outro Exercício de poder

sobre o outro Educar o outro

Trabalho é o que se faz para o outro Ética Educar é o que se faz pelo outro e com o outro

Administrar Gestão Se Auto Educar Educação

Gestão antes como autogestão e Educação antes como Auto-educação

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30

O SER DO HUMANO E O COACHING

objetivos hegemônicos são incompatíveis com tal proposta e o humano não só significa a

realidade, como ainda lhe dá Sentido; o Desenvolvimento DO SER do humano não se limita

à educação formalizada e à cultura, compreende isto sim a vivência de um ser em aberto.

A Gestão pela Formação Humana, pois, é uma práxis cujos fundamentos não podem

limitar-se à cognição, à intelecção e às sensações, e que não está fechada na cultura e na

experiência social do ser humano, vai além do resultado pré-estabelecido, abrange a

conseqüência, quer da ação, do resultado da ação ou da omissão, podendo antecipar-lhes o

seu sentido. (FRAGA, 2003, p. 150).

5. Considerações

Para que se consiga obter um entendimento pleno das implicações que serão

arroladas, talvez seja necessário que o leitor recorra a outro texto (BRAGA² et al, 2006) do

autor que versa sobre o processo de coaching, o qual descreve fluxos, ações, ferramentas e

a operacionalidade em si das estratégias adotadas. O propósito não foi o de descrever o

processo, nem tampouco ferramentas e a intervenção em si do coaching. Além do mais uma

ressalva parece ainda pertinente. Estas considerações sobre as implicações dos conceitos

discutidos, antes de pretender esgotar, objetiva dar indicações e explicitar aquelas que mais

imediatamente acorreram para o autor, ciente de que outras igualmente relevantes poderão

tomar corpo na visão de quem se dedicar a analisar e refletir sobre o tema.

A realização do processo de coaching, como se sabe, não se limita à capacidade de

reunir um conjunto representativo de ferramentas que possam ser aplicadas e nem

tampouco se restringe ao mero aconselhamento, exige, isto sim, o desenvolvimento de um

conjunto de competências e o domínio de conhecimentos capazes de sustentar o

desenvolvimento global e sistêmico das pessoas em sua relação com o trabalho.

5.1 Do desenvolvimento do processo

Tendo-se como referência um fluxo genérico em que o processo se estabelece,

pode-se dizer que o Coaching Fenomenológico Existencial mantém um compromisso com o

desenvolvimento global do ser do humano e é sob esta perspectiva que todo o trabalho, que

parte de uma situação factual tal como se apresenta, é analisado e considerado.

Na fase inicial de contratação (Fase I), o que está em evidência é a identificação

dos meios a partir dos quais a relação no âmbito do humano dar-se-á (sujeito-sujeito;

coachee-coach). Neste primeiro instante uma questão já se coloca: quem é o cliente a ser

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31

O SER DO HUMANO E O COACHING

assistido, organização ou pessoa? Do ponto de vista do enfoque fenomenológico não faz

sentido tal indagação, pois sujeito-mundo estão em relação de reciprocidade e tanto um

quanto outro só têm significado na co-existência. Ambos, pois, podem ser entendidos como

clientes. A organização é aquilo que se apresenta na consciência dos sujeitos que são, ao

mesmo tempo, parte dela. No tocante a este ato, Agente e Ação são intencionados. Os

critérios norteadores associam eficiência, eficácia e efetividade com a relevância do ser do

humano e a legitimidade de sua ação. Vai além do resultado em seu sentido estrito,

buscando-se estabelecer e analisar as conseqüências de uma ação no contexto do trabalho.

Quais as implicações para si e para os outros que irão decorrer? Partir da compatibilização

de interesses é confiar que a relação empresa-funcionário pode ser harmonizada, que não

há paradoxos e nem muito menos antagonismos. O compromisso primeiro no coaching é,

pois, com o sujeito e sua existência, ou seja, o ser do humano em seu modo de existir e ser

no mundo. Na dimensão da mundaneidade, a adaptação ao circundante é parte da

proposta, tanto quanto o mundo humano, na medida em que o ser-com apresenta-se como

foco, no que tem de implicação intersubjetiva. Porém é na dimensão do mundo próprio que

o autoconhecimento e autoconsciência ganham relevância como possibilidade de

transcendência do imediato, abrindo espaço para o plano pessoal, a intenção de realizar-se

como projeto.

Na adoção da atitude fenomenológica parte-se, pois, da situação factual a que se

tem acesso, quaisquer que sejam as fontes de origem. Utiliza-se, portanto da redução

exatamente como um modo peculiar de abordar um problema, para se atingir a consciências

dos atos e de si. Nas reuniões de coaching, o atendimento, a escuta fenomenológica se

inicia a partir do relato, daquilo que é trazido pelo coachee, ou outro sujeito envolvido no

processo, bem como seus sentimentos conseqüentes. O coach está, desde o primeiro

momento, diante da realidade cotidiana do sujeito tal como ela se mostra em sua

consciência e este constitui seu primeiro instrumento de trabalho, uma vez que vai partir do

que tem, do que é concreto. Há uma personalização e individualização do processo, ele se

atém ao que a consciência intencional do coachee evidencia. Nenhum pré-julgamento ou

seletividade tem lugar, o que não quer dizer que se deva prescindir do ato reflexivo.

Essencialmente parte-se em direção à captação de sentidos e significação da experiência.

Constitui um momento importante para se delimitar papéis e definirem-se as

responsabilidades dos envolvidos. Mesmo porque, como visto, a subjetividade só faz sentido

sempre em relação a algo ou alguém. Parte-se da noção de que há uma relação de sujeitos

(coachee-coach) intencionados, ativos e responsáveis. Ao método ou atitude que é adotada

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32

O SER DO HUMANO E O COACHING

atribui-se o mérito de reforçar a necessidade de que se atente para tudo o que é imediato e

originário, eliminando tudo o que se apresenta como justificação, explicação ou suposição.

O processo de redução (por entre parênteses) vale-se da idéia de desconexão e suspensão

de juízo, apenas descrevendo e registrando a vivência, o ato consciente tal qual se

apresenta e é apresentado pelo coachee. Nesta primeira etapa do processo, está por definir

a natureza e os padrões em que a relação sujeito-sujeito; ainda que um desafio que se

apresenta para o coach seja a compreensão das formas como o coachee configura sua

relação sujeito-mundo.

Delimitado o foco de atenção e os meios para que a relação coachee-coach se

estabeleça, passa-se à fase seguinte que deve ser compreendida como inserção (Fase II)

ao contrário de intervenção. Ao se planejar o processo não se deve perder de vista que o

coachee é o elemento central e com ele deve permanecer a posse do mesmo. Entretanto,

não se pode negligenciar a exigência de que se planeje cada reunião de coaching. Em cada

uma o rigor metodológico deve ser assegurado, delimitando três momentos importantes de

se levar a termo: planejar (esclarecer o que e o como), abordar a questão em tempo real, a

distância ou fora do cenário de ocorrência (inserção do coachee e coach em co-relação no

enfrentamento em si: descrição, reflexão e ação) e por fim, follow up (avaliação da reunião e

inventário da aprendizagem obtida). Refletir sobre a dimensão temporal e o espacializar

permitem uma abertura de perspectivas, criação de horizontes, compreensão de limites e

apropriação consciente e responsável de papéis.

No coaching o sujeito é em aberto, ainda que o processo não o seja. Parte-se

daquilo que se apresenta como fonte de preocupação ou sintonia peculiar ao modo de

existir do coachee. Não obstante se dê no contexto do trabalho e quase invariavelmente os

temas estejam implicados com este, o caráter personalizado e individualizado decorre da

singularidade de cada sujeito entendido como um pro-jeto, à medida que se trata de um ser

com potencialidades ilimitadas, porém que nunca se realizará por completo, haja vista que

deverá fazer escolhas, trilhar caminhos, priorizar interesses e intencionar atos. Torna-se

imprescindível construir os limites e fixar aonde se deseja chegar, para que posteriormente a

inserção funcione como facilitação do desenvolvimento. O que está em jogo, na fase de

inserção, é despertar no coachee a consciência de si e do mundo e sua conseqüente co-

responsabilidade pelas ações que empreende. O mundo do trabalho e o mundo numa

perspectiva ampla são definidos pelo conjunto de relações significativas que se estabelece.

O “mundo” circundante da organização é temporal e espacialmente determinado e, portanto,

fruto do que se é, do que se foi e do que se deseja ser, bem como do estar aqui, do ter

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33

O SER DO HUMANO E O COACHING

estado lá e do estar acolá. Sob esta égide, planejar, conceber, temporalizar e espacializar

são necessidades que delimitam fazeres, imprimem velocidade, ordena e torna o ser

humano existente. A vida não passa, a vida é vivida e o é onde espacial e temporariamente

o ser humano se encontra em seu meio circundante (sujeito-mundo), mas também o é no

“mundo” humano (sujeito-sujeito) e no próprio (sujeito-si mesmo). Um dos primeiros desafios

para além daquele que se apresenta à consciência do coachee é exatamente o despertar

para a necessidade do autoconhecimento, da autoconsciência e do conhecimento do

mundo-da-vida. Planeja-se desde o início do processo o que se dará naquele espaço,

cientes de que não se trata de um contexto fechado em si e com previsões restritas de onde

se é possível chegar. Sabe-se precisamente o ponto de partida, quanto ao ponto de

chegada dependerá das escolhas que ocorrerem ao longo do processo. O espaço do

coaching é, pois, um espaço em que algumas vivências dar-se-ão como, ainda, revela-se

como espaço de abertura à reflexão e de tomada de consciência, além de lugar de

processamento de decisões e escolhas intencionadas, conscientes e responsáveis. Busca-

se, primordialmente, a compreensão de cada fenômeno em seu significado, mas, sobretudo

de seu sentido. Como é sabido, a experiência só faz sentido se vista sob o holofote da

significação que lhe é inerente. Adaptar-se e ajustar-se ao mundo circundante, aprender a

realizar-se em co-participação no mundo humano e transcender-se para além das situações

imediatas no mundo próprio demarca os resultados e conseqüências que se espera

concretizar.

Parte-se da premissa de que o conhecimento resulta de uma criação compartilhada

advinda da interação estabelecida entre sujeito-objeto, coachee-coach. E neste tipo de visão

não há como abandonar a idéia de que a subjetividade ou intersubjetividade serão as vias

de mediação e influência da generalização do conhecimento.

Cada situação factual merece registro e atenção, em outras palavras, requer um

voltar-se sobre ela a fim de que se busque seu significado para o sujeito e, sobretudo, para

que o mesmo aproprie-se dela como uma vivência sua e não algo de que possa se separar

indelevelmente. Como mencionado, a intencionalidade está implicada não só com a

escolha do “tema” em si, como ainda abrange um movimento e/ou um desejo de efetivação

daquilo que se expressa ou se dá à consciência. Tal fluxo nada mais é do que buscar definir

o problema através do uso do ato reflexivo, num movimento de observação/percepção e

reflexão, sendo este o que dará lugar à compreensão do que se trata e em que direção se

irá seguir no processo. As questões primeiras se referem ao “o que está acontecendo?”, “o

que o aflige ou é priorizado pelo sujeito que se apresenta diante do coach?”, “qual é o

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O SER DO HUMANO E O COACHING

problema concreto explicitado na relação sujeito (quem relata) e objeto (o que ou sobre

quem) se fala?”. Entretanto, muito mais do que ensinar, do que dar respostas, o processo de

coaching visa a um esforço concentrado e conjunto no aprender a pensar. Numa relação

triangulada, entende-se que o sujeito se encontra diante de um desafio qualquer e que o

coach é um terceiro elemento que lhe pode auxiliar a perceber a situação factual sob outras

perspectivas. A relação que se estabelece (sujeito-sujeito) em sua intersubjetividade permite

a construção de novas realidades e visualização de outras possibilidades que por motivos

próprios ao coachee não se fizeram presentes em sua consciência.

Para que o foco de aprendizado e desenvolvimento seja assegurado, periodicamente

procede-se ao que se pode definir como resumo analítico (Fase III), que se presentifica em

paradas para pensar acerca do processo, o quanto se caminhou e em que direção. Trata-se

de acertar o rumo, apropriar-se de avanços e conscientemente permitir ao coachee

perceber-se e às suas ações. A intuição no sentido fenomenológico torna-se instrumento

preponderante, assegurando um fazer comprometido com a essência e congruente com o

existir que se escolhe e se esforça por construir. Mais do que conformar-se ante o

determinismo biológico, psicológico e sociológico, a fenomenologia abre uma perspectiva

para o ser do humano em sua busca de compreender e sentir, a fim de que possa implicar-

se, comprometer-se, responsabilizar-se, se visualizando como sujeito e objeto

simultaneamente.

O processo é encerrado através dos procedimentos de finalização (Fase IV), os

quais cumprem importante função de transição suave de uma situação de apoio para outra

de autonomia. A bem da verdade, em todo processo tais cuidados são levados a termo, mas

de qualquer forma esta é a fase em que se apropriam os resultados alcançados e se

confirmam a independência e condição do coachee de dar seqüência ao autoconhecimento,

autoconsciência e autodesenvolvimento. Da perspectiva fenomenológica algumas gestalten

se fecham, porém outras se abrem na seqüência, caracterizando um processo de

crescimento contínuo.

5.2 Da aplicação do método

Para concluir, como mencionado, não se pode definir procedimentos-padrão ou

afirmar a existência de “um” método fenomenológico, senão muitos. Macias (2006), não

obstante, sugere um percurso que parece bastante útil, pertinente e aplicável à atitude que

se deve assumir diante de um fenômeno sob o enfoque fenomenológico do coaching. Ao

descrever o método qualitativo de pesquisa, inicialmente identifica seis fases, quais sejam:

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O SER DO HUMANO E O COACHING

1) Descrição do fenômeno. Parte-se da experiência concreta, descrevendo-a da maneira

mais livre e rica possível, sem entrar em classificações ou categorizações, mas

transcendendo o meramente superficial. 2) Busca de múltiplas perspectivas. Ao refletir sobre

os acontecimentos, situações ou fenômenos se podem obter distintas visões: a do consultor,

a dos participantes, a dos agentes externos, etc. Trata-se de obter toda a informação

possível de diferentes perspectivas e fontes, inclusive quando estas são contraditórias entre

si. 3) Busca da essência e estrutura. A partir da reflexão, o consultor tenta captar a estrutura

do fato, atividade ou fenômeno objeto do estudo, e as relações entre e intra-estruturas. É o

momento de encaixar as peças do quebra-cabeça, estabelecer categorias e as relações

existentes entre elas. 4) Constituição da significação. O investigador aprofunda mais no

exame da estrutura, centrando-se em como se forma a estrutura de um fenômeno

determinado na consciência. 5) Suspensão de julgamentos. Ao mesmo tempo em que

recolhe informações e se familiariza com o fenômeno objeto do estudo, realiza-se a

suspensão dos juízos. Trata-se de distanciar-se da atividade para poder contemplá-la com

liberdade, sem as construções teóricas ou as crenças que determinem uma maneira ou

outra de perceber. 6) Interpretação do fenômeno. Trata-se de chegar à conclusão dos

significados ocultos, extraírem-se da reflexão uma significação que aprofunde para além dos

significados superficiais e óbvios apresentados na informação acumulada ao longo do

processo. Na seqüência, descreve um conjunto de cuidados a serem adotadas a fim de que

se assegurem os resultados desejados, ao qual denomina Processos Metodológicos:

elaboração de perguntas de investigação que auxiliem a explorar o significado que as

pessoas envolvidas conferem às experiências cotidianas, e solicita-se que as descreva;

suspende-se qualquer juízo a respeito do que é real ou não no que é descrito; é importante

que se chegue ao sujeito sem idéias preconcebidas e aberto a receber o quanto este

expresse; obtêm-se informações de quem experimentou o fenômeno em estudo, geralmente

através de entrevistas; realizam-se as análises fenomenológicas dos dados mediante uma

metodologia redutiva, com auxílio da análise do discurso e de temas específicos, e com

busca de significados possíveis. A análise de dados consiste em um processo de leitura,

reflexão, escrita e reescrita, o que permite ao investigador transformar a experiência vivida

numa expressão textual. A pessoa que investiga seleciona palavras ou frases que

descrevem particularidades da experiência estudada. Pode agrupá-las por semelhanças e

formar subconjuntos que revelem a subjetividade dos sujeitos pesquisados.

Referências

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36

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i DRATFIELD, Jim. Um dia de cão: a beleza está nos olhos de quem a vê. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. ii Ibidem. iii Ibidem. iv BRAGA, Gilberto. Novos olhares e saberes: efeitos do imaginário sobre liderança nos procedimentos de treinamento e desenvolvimento de líderes organizacionais. Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Administração; Modalidade Profissionalizante, da FEAD-Minas – Centro de Gestão Empreendedora, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Administração. 2005. v KATZ; KAHN (1970) apud Malvezzi, 1994, p. 24. O autor não inclui a referenciação completa e normalizada da obra citada. vi MICHELAZZO, J. C. Texto. Atendimento psicopedagógico, maio de 1988. A autora não inclui referenciação completa e normalizada da obra citada. vii "Sou um ser humano, vivo entre os homens e nada do que é humano me é indiferente". viii Nome composto: fenômeno tem origem grega (phainomenon) que remete àquilo que se mostra, aparece ou se manifesta, enquanto logos assume significações múltiplas, como “o que reúne, unifica, raciocínio, discurso, reunião” etc. Heidegger (apud BICUDO, 1999) in Introdução à Metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. ix Gaffiot, F. (apud BICUDO, 1999 P. 18) Dictionnaire Latin/Français. Paris: Archette, 1934. x Noesis é o ato de perceber enquanto noema é aquilo que é percebido. Vide p. 95. xi BINSWANGER, L. El caso de Ellen West; Lescuela de pensamiento de analisis existencial; El caso de Ilse. In MAY, R. (Org.) Existencia. Madrid: Gredos, 1967. xii BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Cortez Moraes, 1977 xiii SATRE, J. P. La transcendente de l’ego. Paris: Vrin, 1965.

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O SER DO HUMANO E O COACHING

Filmes Sugeridos

1. Mr. Holland: adorável professor (Mr. Holland’s Opus, EUA, 1995) Em 1964 um músico (Richard Dreyfuss) decide começar a lecionar, para ter mais dinheiro e assim se dedicar a compôr uma sinfonia. Inicialmente ele sente grande dificuldade em fazer com que seus alunos se interessem pela música e as coisas se complicam ainda mais quando sua mulher (Glenne Headly) dá à luz a um filho, que o casal vem a descobrir mais tarde que é surdo. Para poder financiar os estudos especiais e o tratamento do filho, ele se envolve cada vez mais com a escola e seus alunos, deixando de lado seu sonho de tornar-se um grande compositor. Passados trinta anos lecionando no mesmo colégio, após todo este tempo uma grande decepção o aguarda.

2. Meu Mestre, Minha Vida (Lean on Me), EUA, 1989) Vinte anos depois, o professor Joe Clark (Morgan Freeman), que se tornou atleta famoso, retorna à escola pública de onde fora demitido para assumir o cargo de diretor. Em meio à desordem geral, sua missão é educar estudantes violentos e drogaditos. Aplica métodos nada ortodoxos e sua conduta acaba gerando grande polêmica, dentro e fora do ambiente escolar. A trama baseia-se na história real de Joe Clark, ex-ídolo do beisebol norte-americano.

3. Ser e Ter (Être et avoir), França, 2003) Neste premiado documentário, um professor mostra como é possível levar o mundo para dentro de uma pequena sala de aula multisseriada no interior da França. Não apenas o mundo do conhecimento puro e frio, mas aquele em que as relações interpessoais estão acima de tudo: amizade, justiça, lealdade, companheirismo e honestidade permeiam as lições, as conversas entre os colegas de classe e o marcante relacionamento deles com o mestre. Fazendo do respeito e da igualdade a chave da comunicação entre crianças de diferentes idades, o professor mostra a elas que mais importante do que ter é ser.

4. Sociedade dos Poetas Mortos (Dead Poets Society, EUA, 1989) Um carismático professor de literatura nada ortodoxo (Robin Willians) chega a um conservador colégio, onde revoluciona os métodos de ensino ao propor que seus alunos aprendam a pensar por si mesmos. Com o seu talento e sabedoria, inspira os seus alunos a perseguir as suas paixões individuais e tornar as suas vidas extraordinárias. Deixa uma profunda mensagem de vida sintetizada na expressão latina carpe diem (aproveite o dia, goze a vida, ela é muito breve)

5. Coach Carter: Treino para a vida. (Coach Carter, EUA/Alemanha, 2005) O dono de uma loja de artigos esportivos aceita o convite para dirigir o time de basquete de sua antiga escola. Ao chegar ele impõe regras rígidas, que incluem boas notas, comportamento respeitoso e modo adequado de se vestir. Com Samuel L. Jackson. Ref: Livro Identidade e Subjetividade na Gestão de Pessoas