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39 Artigos A JOVIALIDADE DA RELIGIÃO/RELIGAÇÃO The joviality of religion/a re-linking of faith José Maria Vigil, Cmf * RESUMO: Este texto não tem, como tal, um caráter teológico, antes a sua é uma perspectiva de antropologia da religião. A religiosidade humana vive uma jovialidade, em constante mudança. Para compreender isso, torna-se necessário percebê-la em diferentes níveis e elementos da realidade global que as religiões implicam: experiência religiosa, explicação religiosas, realização institucional e fundamento “objetivo” da religião. Tudo o que é a substância, o coração da religiosidade continua vivo e jovial, cheio de força e criatividade, de mil maneiras diferentes, inclusive nas aparências mais estranhas. A religião está viva, goza de boa saúde e de muita jovialidade, inclusive onde classicamente acreditávamos que já nem existia mais. Ela se recompõe a si mesma, se renova, adota novas formas, até mesmo onde parecia estar ausente: e nisso demonstra uma jovialidade permanente, apesar de alguns sinais de vetustez. PALAVRAS CHAVE: religião, experiência, explicação, jovialidade, religação. ABSTRACT: This text has not, as such, a theological character, but a perspective of anthropology of religion. Human religiosity lives a joviality constantly changing. To understand this, it is necessary to see it at different levels and elements of the global reality that religions involve: religious experience, religious explanation, realization and institutional foundation “goal” of religion. All that is the substance, the heart of religiosity, is still alive and jovial, full of energy and creativity, in a thousand ways, including the strangest appearances. The Religion is alive, in good health and lots of joviality, even where classically we believed no more existed. She rebuilds herself, renews itself and adopts new forms, even where it seemed to be absent: and it demonstrates a permanent joviality, despite some signs of dilapidation. KEY WORDS: religion, experience, explanation, joviality, re-linking. * Espanhol, naturalizado nicaragüense e vive no Panamá, doutor em Teología e Psicologia. Colabora em Servicios Koinonía en Internet e coordena a edição anual da “Agenda Latinoamericana Mundial”. É um dos coordenadores da Asociación de Teólogos y Teólogas del Tercer Mundo; pesquisa teologia do pluralismo religioso.

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Artigos

A JOVIALIDADE DA RELIGIÃO/RELIGAÇÃO

The joviality of religion/a re-linking of faith

José Maria Vigil, Cmf *

RESUMO: Este texto não tem, como tal, um caráter teológico, antes a sua é uma perspectiva de antropologia da religião. A religiosidade humana vive uma jovialidade, em constante mudança. Para compreender isso, torna-se necessário percebê-la em diferentes níveis e elementos da realidade global que as religiões implicam: experiência religiosa, explicação religiosas, realização institucional e fundamento “objetivo” da religião. Tudo o que é a substância, o coração da religiosidade continua vivo e jovial, cheio de força e criatividade, de mil maneiras diferentes, inclusive nas aparências mais estranhas. A religião está viva, goza de boa saúde e de muita jovialidade, inclusive onde classicamente acreditávamos que já nem existia mais. Ela se recompõe a si mesma, se renova, adota novas formas, até mesmo onde parecia estar ausente: e nisso demonstra uma jovialidade permanente, apesar de alguns sinais de vetustez.

PALAVRAS CHAVE: religião, experiência, explicação, jovialidade, religação.

ABSTRACT: This text has not, as such, a theological character, but a perspective of anthropology of religion. Human religiosity lives a joviality constantly changing. To understand this, it is necessary to see it at different levels and elements of the global reality that religions involve: religious experience, religious explanation, realization and institutional foundation “goal” of religion. All that is the substance, the heart of religiosity, is still alive and jovial, full of energy and creativity, in a thousand ways, including the strangest appearances. The Religion is alive, in good health and lots of joviality, even where classically we believed no more existed. She rebuilds herself, renews itself and adopts new forms, even where it seemed to be absent: and it demonstrates a permanent joviality, despite some signs of dilapidation.

KEY WORDS: religion, experience, explanation, joviality, re-linking.

* Espanhol, naturalizado nicaragüense e vive no Panamá, doutor em Teología e Psicologia. Colabora em Servicios Koinonía en Internet e coordena a edição anual da “Agenda Latinoamericana Mundial”. É um dos coordenadores da Asociación de Teólogos y Teólogas del Tercer Mundo; pesquisa teologia do pluralismo religioso.

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Vamos tomar a palavra «jovialidade» não em sentido de caráter de

juvenil de uma realidade, equiparando-a ao conceito de vitalidade, como

antônimo de decrepitude ou velhice; uma pessoa ou entidade é jovial quando

tem vitalidade suficiente para crescer, desenvolver-se, superar dificuldades

e afastar o perigo de morte. É neste sentido que nos perguntamos - e nos

perguntam - pela jovialidade das religiões. Consideramos que a pergunta tanto

é teórica quanto prática: têm futuro (jovialidade , vitalidade) as religiões? E em

que se fundamenta esse futuro?

A HISTÓRIA DAS RELIGIÕES TEM SIDO PURA JOVIALIDADE

Um primeiro dado do que dispormos, que salta à vista, é a história

das religiões. Hoje em dia, o tema está ao alcance de qualquer um, dada a

disponibilidade de excelentes obras de estudo dessa temática. Referimo-nos

só à monumental obra de Mircea Eliade, acessível em qualquer biblioteca

especializada (inclusive na internet). São muitos volumes e dezenas de milhões

de páginas, até mesmo para uma leitura rápida. Porém, ninguém deveria

privar-se de realizar uma leitura «em diagonal», revisando estes volumes

mesmo superficialmente, com alguma atenção, para deixar-se impactar um

pouco pelo portentoso e inabarcável desenvolvimento das religiões humanas,

desde que temos alguma noticia histórica sobre elas. Basta «perder» umas

poucas horas nessa leitura, ainda que «transversal», para surpreender-se diante

da imensa vitalidade-jovialidade que o impulso religioso da humanidade

tem manifestado em sua história. A religiosidade humana tem sido pura

jovialidade, em constante atividade.

Um livro mais acessível ainda que com alcance também de globalidade

seria uma História de Deus, não que Karen Armstrong pretende apresentar uma

história de Deus (4000 anos) «da forma em que homens e mulheres o tenham

experimentado desde Abraão até nossos dias». Armstrong nos presta o serviço

de haver lido uma infinidade de investigações e de resumir-nos essa pujante

e inabarcável história da ebulição das idéias, sentimentos e representações

religiosas nestes poucos milênios que nos é permitido conhecer desde uma

perspectiva histórica. A história conhecida das religiões nos mostra que elas,

ou a força religiosa humana que as move, é de uma vitalidade tremenda,

inabarcável e imprevisível. As religiões têm estado continuamente em

movimento, em transição e mútua fecundação, em transformação constante:

pura vitalidade.

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DISTINGUINDO NÍVEIS E ELEMENTOS

Sem dúvida, para tratar de descobrir onde reside concretamente essa

jovialidade – essa vitalidade - convém discernirmos as diferentes realidades,

elementos ou níveis que podem estar confusamente agrupados nesse conjunto de

pujante realidade que chamamos «as religiões», ou «o religioso». Já sabemos que

«tudo está relacionado com tudo», e que, nesse sentido, muitas realidades da vida

não são separáveis, porém, pode-se distinguí-las intelectualmente, por motivos de

inteligência (intus-legere, ler dentro, descobrir o escondido...). Vejamos: no mundo

da religião, um mundo tão vital e com frequência tão caótico, tão difícil de apreender

e de «ordenar» segundo nossas necessidades humanas de compreensão, podemos

distinguir distintos níveis de realidade em todo esse mundo do religioso.

• Poderíamos considerar em primeiro lugar o mundo da experiência

religiosa. Referimo-nos à experiência religiosa que as pessoas têm.

O ser humano tem sido homo religiosus desde tão cedo quanto tem

sido homo1. Tem «experimentado» uma realidade transcendente, maior,

superior... poderosa que por vezes se escapa... da que tanto tem sentido a

necessidade de proteger-se, como o desejo incoercível de invocá-la e gozá-

la (Otto: mysterium tremendum et fascinosum). Tem-se lhe dado muitos

nomes, ela é sentida de maneiras muito diferentes. Porém, a experiência

mesma da transcendência, mais além de seus nomes e suas formas

mutantes, não há dúvida de que tem tido uma constante histórica

universal. Mística, interiorização, contemplação, êxtase, transe, estados

modificados (superiores) de consciência... experiência religiosa.

• Outro nível diferente do mundo do religioso seria o nível da explicação

religiosa. Seja qual for a sede da experiência religiosa, o ser humano

nunca deixará de ser, por sua vez, racional, inteligente, com uma

inteligência veiculada pela linguagem, e não pode deixar esta capacidade

e esta exigência à margem de sua experiência religiosa. Não lhe basta

experimentar/sentir; necessita também sentir desde sua inteligência.

Inteligência senciente, dizia Zubiri. Necessita explicar-se-lhe tudo: a

natureza das coisas, a natureza global, a realidade global (a famosa

pergunta que Leibniz formularia: «porque existe algo ao invés de não

existir nada?»), e a própria realidade pessoal: porquê eu existo e para

quê?

1 Até há bem pouco tempo, pensavamos que homo religiosus era apenas o homo sapiens sapiens... Hoje isto começa a não estar tão claro. Também pensavamos o mesmo a respeito do pensamento simbólico, da arte rupestre, da utilização sofisticada de instrumentos... e hoje as

provas arqueológicas começam a sugerir o contrario. Nossa humanidade se enraizaria mais no homo que no sapiens...

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Não é uma necessidade meramente racional... É tão experiencial e

«senciente» como a outra. O «sentido» da vida, o sentido da realidade, o sentido

de si mesmo, não é uma resposta intelectual meramente teórica, uma necessidade

que só as pessoas com curiosidade intelectual sentiram... A nossa própria escala,

todos necessitamos de sentido. O ser humano, o homo - e a mulier - sapiens, tem-

se caracterizado ancestralmente pela necessidade de colocar sua vida - ainda

que seja virtual, imaginativa, miticamente - em contextos mais amplos. Não

necessitamos saber só o que é, porquê é e para quê estamos fazendo isto a curto

prazo, senão que, aqui também,temos uma sede de infinito: desejariamos colocar

nossa vida num contexto mais amplo, o do «plano de Deus», os arcanos desígnios

dos deuses... para «sentir» como nossa vida participa do sentido da mesma

realidade global, da Realidade divina, do cosmo...

Neste nível entram em jogo os desenvolvimentos incontáveis e

inabarcáveis das explicações religiosas: os relatos cosmogônicos, as teogonias

originarias, os relatos ou narrativas, os mitos, boa parte das Escrituras Santas,

as incontáveis doutrinas com seu anexo debate doutrinal tecido de ortodoxia e

heterodoxia, os dogmas como supostas opiniões definitivas...

• Outro nível é o da realização institucional que, ainda que nem

sempre, acompanha ordinariamente a estas experiências religiosas, são

as instituições globais das religiões, que servem de alguma maneira

como proprietárias ou representantes de uma determinada corrente

ou família de correntes religiosas. Ainda que estando vinculadas

originariamente ao religioso, são instituições humanas, entidades

realmente sociológicas, que funcionam como tais, com as leis que a

sociologia reconhece nas instituições, com sua própria concupiscência

institucional.

Muito frequentemente, estas instituições monopolizaram o nome das

«religiões», de forma que quando falamos do presente, o futuro (ou a jovialidade)

das religiões, é nessas instituições que estamos pensando... Para um pensamento

atento às exigências da verdade, é claro que a instituição religiosa mesma não tem

fundamento senão pelos outros dois níveis da realidade religiosa: desconectadas

das experiências e das explicações religiosas, as instituições se convertem em

fantasmas institucionais que não representam nada mais que a si mesmas,

num dos mais contraditórios aspectos da dinâmica das instituições sociais, bem

conhecido desde a sociologia.

• Obviamente, além desses três níveis de realidade, cabe pensar num

último nível da realidade religiosa, o mais dificilmente exprimível,

que poderíamos denominar simplesmente como «isso que está aí»,

quer dizer, o Mistério último ao que precisamente sempre se refere a

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experiência religiosa, com qualquer nome com que o faça. Referimo-

nos ao que - sem duvida incorretamente - poderíamos denominar o

fundamento «objetivo» da religião, algo que cada experiência ou

movimento religioso tem interpretado de uma maneira própria, lhe

há posto um nome diferente, e o «imagina» com toda criatividade -

inclusive pela vía apofática, da renuncia à toda «imaginação».

De que «religião», de qual de seus elementos que acabamos de tentar

demolir, desmontar rudimentarmente, é a jovialidade pela que nos estamos

perguntando? Vai ser muito útil que tenhamos intentado primeiro esta distinção

entre níveis bem diferentes da «religião» como realidade global, porque é provável

que cada um deles tenha uma jovialidade bem diferente.

A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Respeito à experiência religiosa, não cabe duvidar de sua jovialidade,

de sua vitalidade perene, de sua capacidade de superar dificuldades e de viver

em uma eterna juventude, sempre renovada, renascendo e atropelando-se a si

mesma com novos impulsos que ultrapassam os anteriores. Diríamos que esse

nível da religião, o da experiência religiosa, não é algo exterior ao ser humano.

É o mesmo ser humano enquanto devidamente capacitado para sintonizar com

uma dimensão que lhe transcende, que é capaz de sair-lhe ao encontro tanto na

realidade de sua vida diária como nas experiências limites extremas.

As experiências religiosas não cessam de acompanhar o ser humano em

todo seu caminho evolutivo.

Que um ser seja «humano» significa, precisamente, entre outras cosas,

que terá chegado a este estágio evolutivo, em que - como o mamífero tenha

chegado ao nível dos afetos, caricias, sentimentos... apoiados por seu cérebro

límbico - o ser humano está permanentemente ligado, de uma maneira ou outra,

à experiência da transcendência, ao sentimento religioso, à espera dessa energia

misteriosa com que, com tanta frequência, se encontra e a cujo acesso quisera

poder controlar e disponibilizar.

O tempo presente segue mostrando a sobrevivência desta jovialidade

da experiência religiosa. Apesar das transformações dos últimos séculos,

apesar da revolução científica, industrial, tecnológica... apesar, também, desse

certo «desencantamento do mundo» que o cientificismo, o mecanicismo e o

mercantilismo atuais trouxeram consigo, continua a brotar, incontida, a experiência

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religiosa, em movimentos de revival (reavivamento) religioso por todo o planeta,

com movimentos carismáticos e neopentecostais que numericamente levam

vantagem nas estatísticas. E não só nos movimentos de retrocesso conservador até

formas religiosas antigas; também num mundo urbano, industrial, metropolitano,

profissional, tecnológico e supercomunicável, nos encontramos, ainda onde

menos poderíamos esperá-lo, formas de expressão do sentimento religioso com

as que o homem e a mulher moderna cidadãos convivem e aos que com não

pouca frequência voltam.

Não é que tudo neste nível da experiência religiosa seja simples e sem

problemas, nem que se possa deixar de observar que se está numa grave crise,

pois as formas, os meios, as expressões da dita experiência, numa parte não

majoritária; porém, qualitativamente muito significativa da sociedade, estão

mudando. As formas e chavões clássicos da experiência religiosa já não seduzem

com a necessidade religiosa dos homens e mulheres que se consideram mais

«atuais», da nova sociedade... Porém, em todo caso, as religiões podem contar

com a forca sempre renovada da experiência religiosa, que tem acompanhado o

ser humano desde sempre e não vai abandoná-lo na hora presente. Quer dizer:

a religião como sentimento/experiência religiosa está viva, e goza de muita boa

saúde, é pura jovialidade, apesar de qualquer crise.

A «EXPLICAÇÃO» RELIGIOSA

Dissemos que forma parte também das religiões esse mundo abarrotado

de interpretações, doutrinas, cosmogonias, teologias, dogmas... são também

fruto inevitável do componente heurístico-racional do ser humano, junto com

sua inerente necessidade de indagação de sentido. Por isso, também este nível da

religiosidade tem exibido uma fecundidade e uma jovialidade tremendamente

criativa no passado. Recordávamos, no início, que as obras enciclopédicas de

Mircea Eliade nos serviam para percorrer rapidamente uma visão panorâmica

desta inabarcável criatividade, tão jovial. Podemos recordar também aqueles

séculos nos quais a própria sociedade laica discutia com veemência os debates

teóricos sobre as mais complexas doutrinas teológicas, sobre sua ortodoxia ou

heterodoxia. A tremenda divisão e subdivisão interna das grandes religiões dá

conta das feridas históricas que esta mesma jovialidade, tão fecunda em novas

«explicações»˝ religiosas produziu na história.

A inadequação entre o pathos religioso e o logos racional é a responsável

desta fecundidade explicativa das religiões, tão jovial e tão polêmica. Um mesmo

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sentimento pode ser expresso por um sem fim de obras literárias de ficção (poesias,

narrativas, dramas, mitos...) diferentes, e todas o expressam adequadamente.

No religioso ocorre outro tanto: uma mesma experiência religiosa poderia ser

expressa por mil construções teóricas explicativas diferentes, dependentes em

cada caso da cultura, da filosofia e da idiossincrasia da sociedade. O mundo do

pensamento não é fácil de dirigir, nem de se uniformizar. É livre por sua própria

natureza. E por isso é um desafio aos afãs do controle e da dominação por parte

de poder quando este entra (tão frequentemente) o mundo das religiões; daí

que os impérios nos tenham deixado por herança religiões controladoras do

pensamento e das «explicações» religiosas.

Pois bem, à diferença do que dizíamos no item anterior, cremos que este

nível religioso das explicações (teologias, relatos, mitos, doutrinas, dogmas...)

entraram em crise e não gozam já da jovialidade da que durante os milênios

passados fez sucesso. É fato que durante todo esse tempo a inteligência e a

imaginação religiosa têm ido de mãos dadas, numa dança de liberdade sem

competidores. Podiam improvisar e criar qualquer dança, com a mais pura

criatividade. As páginas do livro estavam em branco, e poderia se escrever nelas

qualquer interpretação com a mais pura criatividade e jovialidade.

Porém, os tempos mudaram neste campo. Passamos de um mundo

ignorante e pré-científico, para uma sociedade profundamente marcada por um

desenvolvimento extraordinário da ciência, com sua atual explosão científica.

Hoje o livro da natureza, do cosmos - macro e micro - se abre diante de nós com

inimaginável generosidade, e o conhecimento se amplia a cada dia, ao ritmo de

investigações que nos enchem de quantidades imensas de novas informações

que não somos capazes de processar.

Neste novo contexto, o costume religioso de se aventurar em novas

interpretações, novas explicações sobre o mundo, a realidade e seu sentido,

explicações que os espíritos religiosos mais criativos costumavam inovar ou

aventurar-se sem outra base que sua própria genialidade, se vê condenada hoje

em dia num contexto de recusa. Já não vivemos em tempos adequados para que

as religiões se aventurem em novas explicações. Nem os melhores gênios vão ser

bem acolhidas. Neste tempo de ciências, é ela a que leva e dirige o roteiro pela

qual a Humanidade trata de chegar à verdade.

A necessidade religiosa de sentido segue igualmente viva, é constitutiva

de nossa humanidade. Porém, no novo contexto de uma sociedade que superou

a época pré-científica, a explicação religiosa que mais acolhida tem é aquela que

se produz no diálogo profundo com a ciência. E aí sim, diríamos que a parte mais

jovial das novas explicações religiosas tem a ver com a nova cosmologia. Dito

de outro modo: a nova cosmologia, o novo relato sobre o mundo que a ciência

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nos oferece hoje, é o fator que mais profundamente está mudando o imaginário

e o sentimento religioso atualmente, o foco de maior jovialidade. De fato, esta

jovialidade - criatividade inabarcável - está em movimento permanente: há

uma quantidade imensa de grupos, pessoas e comunidades que buscam e que

encontram novas «explicações religiosas», e os encontram por caminhos novos

marcados, sobretudo, pela ciência. Outra coisa é que as instituições religiosas não

querem reconhecê-los nem acolhê-los.

AS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS

E as religiões/instituições gozam atualmente dessa jovialidade? Estão

reagindo com flexibilidade e adaptabilidade às situações atuais de crise que

atravessam? Irão superá-las com facilidade?

Recordemos em primeiro lugar que falamos das instituições que

acompanham às religiões como um de seus níveis do religioso global. A religião,

cada religião é muito mais que la instituição. Ainda que esta desaparecesse um

dia, não desapareceria com isso a religião à que serve; a religião é, sobretudo, o

mundo da experiência e das explicações religiosas que se dá nas pessoas e nos

povos. A instituição é muito importante - para alguns aspectos podemos dizer

que é imprescindível - porém, não é equiparável adequadamente à religião, que

tem uma identidade mais profunda, sempre transbordante diante de qualquer

camisa de força institucional.

Feita esta memória, devemos reconhecer que nem todas as

institucionalizações da religião são iguais, nem todas têm o mesmo valor. Umas

estão envelhecendo e decrescendo, enquanto alguma continua crescendo

numericamente - o que atualmente não significa sem mais que elas estejam indo

bem. É fácil generalizar e falar de um modo semelhante a todas, Porém, há religiões

tremendamente institucionalizadas, e há outras com uma institucionalização

muito menor, mais ágil e por isso mesmo menos afetada pelas dificuldades

próprias desta época para com as instituições/religiões. Quais seriam estas

dificuldades?

Compartilhamos, neste ponto, com a hipótese interpretativa da Comissão

Teológica Internacional da EATWOT, em sua proposta de um «paradigma pós-

religional» (Revista VOICES 2012-janeiro). Um dos atrativos da proposta é sua

simplicidade estrutural: as religiões não existem desde sempre, provém do

período agrário; antes havia religião, porém, não religiões; são a forma concreta

que a religiosidade do ser humano adotou para ajudar a sua sobrevivência

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naquela época, onde a humanidade devia reinventar-se a si mesma para passar da

configuração de hordas tribais de coletores e caçadores nômades, para viver em

sociedade (urbanização). As religiões (insistamos: não a religiosidade) foram uma

inovação genial que, efetivamente, ajudou à humanidade a auto-configurar-se

em um modo novo, a superar a dificuldade para sobreviver. Pois bem, as religiões

foram dessa maneira um instrumento adequado ao tempo agrário. Porém, é essa

época agrária a que está atualmente em vias de desaparecimento ao desembocar

na «sociedade pós-agrária» que vem. Nesta situação, as religiões (agrárias), ou se

adaptam e deixam de ser «agrárias», buscando um novo modo de configuração

que requer a sociedade do futuro, ou provavelmente desaparecerão no mesmo

ritmo em que vai desaparecendo a sociedade agrária.

Isto quer dizer, se é assim realmente, as religiões se veem a si mesmas num

momento como nunca antes se tinham podido ver: ameaçadas de dissolução

pelo final da época que lhes deu origem, na que elas nasceram. É a conjuntura

histórica ou evolutiva na qual mais que tudo a jovialidade vai a ser necessária, a

base de flexibilidade, adaptabilidade e capacidade de reconversão inteligente.

Vão ter as religiões essa jovialidade necessária?

Mostrar isto requereria um tratamento mais acurado - não para este

momento -, porém, em todo caso podemos aludir ao essencial do que deveria ser

aduzido. O mais importante seria detectar e trazer à luz quais são os elementos

fundamentais que configuram a estrutura interna das «religiões agrárias», para

ver na continuação se estes elementos pode sobreviver na nova época que

há de sobreviver à progressiva desaparição da sociedade agrária. Dito muito

brevemente: os estudos antropológicos mostram que os elementos estruturais

essenciais das religiões agrárias têm sido a epistemologia mítica, as crenças

e a absolutização da submissão (com a exceção do budismo em relação a este

terceiro elemento). A epistemologia mítica, o considerar os mitos como fonte de

conhecimento sagrado e sua interpretação literal veiculada nas crenças impostas

sobre os fiéis seguidores, são elementos não só inaceitáveis, senão realmente

impossíveis numa sociedade da informação e/ou do conhecimento. A submissão

(a fé no judaísmo, os fiéis/infiéis no cristianismo), (a palavra «islã» significa

submissão), como o maior mérito exigido pela religião agrária, parece também

impossível na sociedade humana depois que as conquistas da Ilustração e da

emancipação política se estenderam virtualmente por todo o planeta.

Ante esse desafio cabe pensar que a religiosidade, a religião profunda,

a experiência religiosa de que falávamos, vai sobreviver e há de exibir um

comportamento extremamente jovial e cheio de vitalidade. Porém, as formas

religiosas institucionais, «religionais» (usa-se esta palavra para evitar as confusões

que sobreviriam se se dissera «religiosas»), não vão poder resistir, não vão ser aceitas

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na nova sociedade. Nesse sentido, as religiões poderão subsistir se deixarem de

ser religiões «agrárias», quer dizer, se forem capazes de desprenderem-se destes

elementos fundamentais que estruturavam o essencial das religiões agrárias.

Se forem capazes de abandonar estes elementos «agrários» que escondem seu

passado e de encontrar novos elementos estruturais, adequados aos valores que

configuram a nova consciência humana evolutiva pós-agrária, poderão sobreviver

e seguirão ajudando à humanidade e a sua evolução. Se não lograrem fazê-lo,

ficarão pelo caminho.

Perguntamos: Existe jovialidade suficiente nas religiões?

Minha opinião pessoal é que, por si mesmas, por sua própria natureza,

de iure, são capazes, pode, transformar-se. O passado é testemunha das grandes

transformações que nelas se ocorreram. É certo que nenhuma das transformações

históricas registradas foram tão profundas como a que está em curso, pelo que

não cabe extrapolar o passado para adivinhar o futuro; porém, a lucidez que

demonstram muitas pessoas religiosas na atualidade - pensadores, teólogos/as,

leigos/as carismáticos - faz pensar que não estamos falando de um impossível. As

religiões poderiam, podem, devem transformar-se.

Junto a essa percepção intuitiva do que deveria ser, está a percepção de

que de facto está ocorrendo nas não poucas décadas passadas, mas que vamos

tomando conhecimento crescente desta perspectiva de mudança epocal e

de análise antropológico-cultural da estrutura das religiões agrárias. Há várias

décadas as religiões têm reduzidos, até certo ponto, suas polêmicass, não têm

conseguido ainda digerir, desde um perspectiva pluralista, a nova consciência

de sua própria diversidade, elas parecem estar presas numa atitude imobilista,

quando não francamente involucionista.

Teoricamente, de iure, têm, devem ter essa jovialidade, porém, de facto

parecem demonstrar o contrário. Esta contradição nos deixa ao menos o bom

sabor na boca de que, ainda que as coisas de fato não estejam bem, parece que

de direito poderiam mudar a qualquer momento. Seja a esperança o último

elemento a ser abandonado.

CONCLUSÃO: RELIGAÇÃO JOVIAL

Esta poderia ser uma conclusão provisória, à espera de que os

acontecimentos evoluam e nos deixem entrever mais claramente para onde

vamos. Tudo o que é a substância, o coração da religiosidade, a saber, a experiência

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religiosa e a busca de sentido, continua vivo e jovial, cheio de força e criatividade,

de mil maneiras diferentes, incluso nas aparências mais estranhas. Por exemplo,

nas formas que até agora considerávamos o analogatum princeps da negação da

religião, no ateísmo, hoje descobrimos profundidades religiosas e espirituais,

«pagãos» que se reivindicam como religiosos, ateus que proclamam «a alma do

ateísmo» ou a espiritualidade do ateísmo (Comte Spoville). Hoje já é óbvio que

foi um erro considerar não religioso o paganismo, ou não se ter tido lucidez para

descobrir a possibilidade simplesmente pós-teísta do ateísmo clássico. O coração

da religião, a «religação» mesma, não está em crise, não está em decadência

decrépita nem em retirada. Está viva, goza de boa saúde e de muita jovialidade,

inclusive onde classicamente acreditávamos que não estava. Recompõe-se a si

mesma, se renova, adota novas formas, inclusive até onde há pouco nos parecia

estar ausente. É, quiçá, a fonte mesma de qualquer forma de jovialidade que

aparece no mundo do religioso.

Agora pois, as religiões agrárias, suas estruturas fundamentais, sua

institucionalização tradicional... não parecem gozar da mesma jovialidade, e

parecem encaminhar-se para um ocaso incerto. Porém, como dizíamos: tudo

pode mudar, deveria mudar e a esperança seria a última a se perder.

POST DATA: O CRISTIANISMO CONCRETAMENTE

Estivemos falando desde a perspectiva da antropologia cultural e da

epistemologia, não desde a teologia. E abordamos o tema com uma visão

conscientemente ampla, buscando abarcar o problema das religiões em sua

pluralidade. Porém, o que dizer do cristianismo concretamente? Como perceber aí

a jovialidade, a vitalidade, a capacidade de afrontar a hodierna crise das religiões?

É outro tema, e é muito importante. Porque, queiramos ou não, o

cristianismo, como os outros dois monoteísmos, é uma religião agrária, neolítica e

as observações que nos faz a ciência (antropologia cultural e epistemologia) não

podem ser despachadas a golpe de citações bíblicas ou simplesmente ignoradas.

Um cristianismo lúcido e sincero tem que escutar a ciência e dialogar com ela. Se

faltasse este mínimo e primeiro jeito jovial, tal seria sinal de uma falta, todavia,

maior da própria jovialidade para resolver o problema fundamental. Trata-se de

um tema que nos desafia e nos convida a estudá-lo, quanto antes.

Tradução: Hr.

Page 12: Artigos - intranet.redeclaretiano.edu.br juvenil de uma realidade, equiparando-a ao conceito de vitalidade, como antônimo de decrepitude ou velhice; uma pessoa ou entidade é jovial

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