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cadernos de campo

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cadernos de campo

cadernos de campoREVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL DA USP

ISSN 0104-5679

A n o 1 4 • 2005 13

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

REITORA Prof. Dr. Adolpho José Melfi VICE-REITOR Prof. Dr. Hélio Nogueira da Cruz

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DIRETOR Prof. Dr. Sedi HiranoVICE-DIRETORA Profª. Drª. Sandra Margarida Nitirni

DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

CHEFE Prof. Dr. John Cowart DawseyVICE-CHEFE Profª. Drª. Marta Rosa Amoroso

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

COORDENADORA Profª. Drª. Paula MonteroVICE-COORDENADOR Prof. Dr. Júlio Assis Simões

COMISSÃO EDITORIAL

André-Kees de Moraes Shouten, Cecília Rodriguez Sant’Ana, Daniela do Amaral Alfonsi, Danilo Paiva Ramos, Érica Peçanha do Nascimento, Francisco Simões Paes, Íris Morais Araújo, Isabela Oliveira, Lílian Sales, Maíra Santi Buhler, Rachel Rua Baptista e Rafaela de Andrade Deiab.

CONSELHO EDITORIAL

Alejandro Frigerio (FLACSO/CONICET, Buenos Aires), Carlos Sandroni (UFPE), Carlos Steil (UFRGS), Ciméa Bevilaqua (UFPR), Clifford Geertz (IEA, Princeton), Ellen F. Woortmann (UnB), Esther Jean Langdon (UFSC), Joaquim Pais de Brito (Museu Nacional de Etnologia, Lisboa), John Cowart Dawsey (USP), Márcio Ferreira da Silva (USP), Márcio Goldman (MN/UFRJ), Paula Montero (USP), Rose Satiko (USP), Tânia Stolze Lima (UFF), Terence Turner (Universidade de Cornell, Nova Iorque).

COLABORADORES DESTE NÚMERO

Alexandre Barbosa Pereira, Francirosy Campos Barbosa Ferreira, Giovanni Cirino, Herbert Rodrigues, Janine Helfst Leicht Collaço, John Cowart Dawsey, José Guilherme Cantor Magnani, Júlio Assis Simões, Lilia Moritz Schwarcz, Lilian Krakowski Chazan, Madian de Jesus Frazão Pereira, Marcelo Tadvald, Márcio Ferreira da Silva, Marcio Goldman, Maria Angela Gemaque Álvaro, Marisol Rodriguez Valle, Melissa Santana de Oliveira, Paula Siqueira, Peter Fry, Renata Bortoletto Silva, Renato Sztutman, Rita Amaral, Ronaldo Lobão, Tânia Stolze de Lima e Vagner Gonçalves da Silva.

PREPARAÇÃO E REVISÃO DE TEXTO

Com-Arte Jr.Comissão Editorial Cadernos de Campo

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E CAPA

Pedro Barros e Wildiney Di MasiPonto & Pixel (www.pontoepixel.com)

PROJETO GRÁFICO ORIGINAL

Ricardo Assis

FOTO DA CAPA

Peter FryFamília Fashu, aldeia Mangengwa, Zimbabwe, 1964

Cadernos da Campo – revista dos alunos de pós-gradua-ção em antropologia social da USP. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofi a, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. N. 13, ano 14, 2005 – São Paulo: USP, FFLCH. Publicada desde 1991.

Anual

ISSN 0104-5679

1. Antropologia, 2. Etnografi a, 3. Teoria e Método, 4. His-tória da Antropologia

Cadernos de Campo – revista dos alunos de pós-gradua-ção em antropologia social da USP é uma publicação anual dedicada a divulgar trabalhos que versem sobre temas, resultados de pesquisas e modelos teórico-metodológicos de interesse para o debate antropológico contemporâneo e que possam contribuir no desenvolvimento de pesquisas em nível de pós-graduação, no país e no exterior.

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA

ADDRESS FOR CORRESPONDANCE

Cadernos de Campo – revista dos alunos de pós-graduação em antropologia social da USPDepartamento de Antropologia/FFLCH/USPAv. Professor Luciano Gualberto, 315 - 05508-900São Paulo/ SP - Brasile-mail: [email protected]

Esta revista é indexada peloÍndice Brasileiro de Ciências Sociais – IUPERJ/RJUlrich’s International Periodical Directory

Publicação Anual / Anual publicationSolicita-se permuta / Exchange desired

Tiragem: 600 exemplares

Todos os direitos reservadosCopyright © 2005 by Autores

FINANCIAMENTO: PPGAS/USP e NAU/USP

Para adquirir a Cadernos de Campo entre em contato pelo e-mail: [email protected]

sumário

editorial ..........................................................................................................................9

artigos e ensaios .....................................................................................................13

Vestindo o jaleco: refl exões sobre a subjetividade e a posição do etnógrafo em

ambiente médico

............................................................................................15

Os caminhos da memória

....................................................................................

Ipanema e suas modas: passado x presente

............................................................................................

“Filhos do Rei Sebastião”, “Filhos da Lua”: construções simbólicas sobre os nativos

da Ilha dos Lençóis

.................................................................................

Nhanhembo’é: infância, educação e religião entre os Guarani de M’Biguaçu, SC

.......................................................................................

Oloniti e o castigo da festa errada: relações entre mito e ritual entre os Paresi

.............................................................................................

Relendo Walter Benjamin: etnografi a da música, disco e inconsciente auditivo

- ..............................................

Imagens perigosas: a possessão e a gênese do cinema de Jean Rouch

......................................................................................................

artes da vida ............................................................................................................

Escrita urbana: a pixação paulistana

.......................................................................................

entrevista ..................................................................................................................

Entrevista com Peter Fry

, , , ,

.......................................................................................

traduções ..................................................................................................................

Jeanne Favret-Saada, os afetos, a etnografi a

.......................................................................................................

“Ser afetado”, de Jeanne Favret-Saada

....................................................................................

Victor Turner e antropologia da experiência

. ..........................................................................................................

Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em Antropologia da Experiência (primeira parte),

de Victor Turner

............................................................................

resenhas ....................................................................................................................

FABIAN, Johannes. Th e Time and the Other: how anthropology makes its object. ..........................................................................................................

LEWGOY, Bernardo. O grande mediador: Chico Xavier e a cultura brasileira. .......................................................................................................

informe

Os circuitos do NAU: informe das atividades desenvolvidas pelo Núcleo de

Antropologia Urbana da USP ......................................................................................

instruções para colaboradores .....................................................................

números anteriores ..............................................................................................

contents

editorial ..........................................................................................................................

articles and essays ................................................................................................

Wearing the white coat: thoughts about the subjectivity and the ethnographer’s

place in a medical environment

............................................................................................

Ways of memory

....................................................................................

Ipanema and its vogues: past x present

............................................................................................

“Children of King Sebastião”, “Children of the Moon”: simbolic constructions about

Ilha dos Lençóis’ natives

.................................................................................

Nhanhembo’é: childhood, education and religion among Guarani from M’Biguaçu, SC

.......................................................................................

Oloniti and the punishment of the wrong party: relashionships between mith and

ritual among the Paresi

.............................................................................................

Rereading Walter Benjamin: ethnography of music, record and aural unconscious

- ..............................................

Dangerous images: possession and genesis of Jean Rouch’s cinema

......................................................................................................

arts of life ..................................................................................................................

Urban writing: the pixação in São Paulo

.......................................................................................

interview ....................................................................................................................

Interview with Peter Fry

, , , ,

.......................................................................................

translations ..............................................................................................................

Jeanne Favret-Saada, the feelings, the ethnography

.......................................................................................................

“Being aff ected”, by Jeanne Favret-Saada

................................................................................

Victor Turner and the Anthropology of Experience

. ..........................................................................................................

Dewey, Dilthey and drama: an essay in the Anthropology of Experience (fi st part),

by Victor Turner

........................................................................

reviews .......................................................................................................................

FABIAN, Johannes. Th e Time and the Other: how anthropology makes its object. ..........................................................................................................

LEWGOY, Bernardo. O grande mediador: Chico Xavier e a cultura brasileira. .......................................................................................................

information

Th e NAU’s circuits: information about the activities of Urban Anthropology

Group from USP ........................................................................................................

instructions to collaborators ..........................................................................

previous editions ...................................................................................................

editorialTreize – j’eus un plaisir cruel de m’arreter sur ce nombre.

Às vésperas de seu début, já que completan-

do catorze anos de existência, é com uma espé-

cie de “prazer cruel” que trazemos a público o

décimo terceiro número de Cadernos de Campo,

revista editada pelos alunos de Pós-Graduação

em Antropologia Social da USP.

O número treze sempre esteve associado ao

infortúnio, à falta de sorte, ao risco, ao perigo.

De fato, contando com uma comissão editorial

quase que inteiramente renovada e ainda neófi -

ta nas artes da editoria, os riscos e perigos que

corremos na formatação desse número foram

imensos. Daí aquele prazer cruel, fórmula para-

doxal que talvez refl ita o nosso sentimento como

jovens editores, preocupados em realizar um tra-

balho condizente com a já consolidada tradição

da revista, em meio às difi culdades impostas ao

longo dessa iniciação. É certo que, durante o

processo, contamos com gentis ofi ciantes, an-

tigos editores sempre dispostos a nos ajudar na

superação dos percalços dessa jornada.

Mesmo estando sob um signo malfazejo, ou

mesmo por estar sob ele, arriscamos algumas

inovações na revista. A começar pelo projeto

gráfi co, procurando acertar minúcias e incor-

porar as alterações feitas nos últimos cinco

anos, num trabalho de passar a limpo aquilo

que foi acumulado nesse período. Este esforço

está presente também nas esquecidas “Instru-

ções para colaboradores” ao fi nal da revista,

onde procuramos tornar as informações mais

objetivas, eliminando algumas ambigüidades

constantes nas versões anteriores. Tais altera-

ções têm como norte os critérios Qualis (CA-

PES) de avaliação dos periódicos científi cos, na

tentativa de manter a boa avaliação que tive-

mos em 2004.

E já que revisávamos a revista, arriscamos

algumas ampliações nas seções que compõem

a Cadernos de Campo. Essas dizem respeito ao

número de traduções apresentadas nesta edição

e, especialmente, à seção de artigos, que passa

a contar também com ensaios teóricos, exercí-

cios que jovens antropólogos têm empreendido

em conjunto com suas pesquisas empíricas. Já

a seção batizada com o poético nome “Artes da

vida” – criada inicialmente para valorizar outras

linguagens que não o texto acadêmico, mas que

nos últimos números restringiu-se aos ensaios

fotográfi cos de pesquisadores em seus campos

de pesquisa –, está agora aberta para outras

produções visuais que possam iluminar o de-

bate antropológico por novos e surpreendentes

ângulos, no intuito de retomar a sua proposta

de origem. Nossa nova política editorial tam-

bém consagra às entrevistas uma outra dinâmi-

ca, uma vez que aceitaremos, para o próximo

número, colaborações de outros pesquisadores,

não apenas dos membros da própria comissão

editorial. Uma última ampliação diz respeito à

possibilidade da eventual publicação de traba-

lhos em língua estrangeira (espanhol, francês e

inglês), com o intuito de expandir o leque de

colaboradores da revista, sobretudo nossos vizi-

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

nhos hispano-americanos. Para usar uma fór-

mula consagrada neste espaço: Novos tempos, novos desafi os!

Mesmo que fi éis ao objetivo de apresentar a

variedade de temas com os quais lidam os an-

tropólogos do Brasil e do exterior, o presente

número traz trabalhos de autores ligados não

só aos programas de pós-graduação nas ciên-

cias sociais, mas também de colegas da área da

saúde, campo de estudos que há muito tempo

fl erta com a antropologia. É com grande prazer

que publicamos tais trabalhos, e nos colocamos

assim abertos às contribuições que, em diálo-

go com a nossa disciplina, propõem-se a ver o

mundo a partir de outras paragens. Assim, o

artigo que abre esta edição, “Vestindo o jale-

co: refl exões sobre a subjetividade e a posição

do etnógrafo em ambiente médico”, de Lilian

Krakowski Chazan, discute os procedimentos

de pesquisa que resultaram em seu trabalho

– acerca da construção do feto como Pessoa,

mediada pela tecnologia da imagem – a partir

da ambigüidade de suas identidades como pes-

quisadora, médica e antropóloga.

Já o texto de Maria Angela Gemaque Ál-

varo, “Os caminhos da memória”, nos leva ao

modo com que foram elaboradas as memórias

sociais de duas famílias consideradas tradicio-

nais em Belém (PA). A autora desvenda, pela

análise de depoimentos orais e de versões es-

critas dessas histórias de família, como se dá

a construção de lembranças, de relações entre

passado e presente.

Por sua vez, Marisol Rodriguez Valle em

“Ipanema e suas modas: passado X presente”

refl ete sobre como os livros e a imprensa cria-

ram representações sobre Ipanema, compa-

rando compreensões, passadas e atuais, deste

bairro carioca sobre modos de vida, percepções

de mundo, ícones e espaços de sociabilidade.

Madian de Jesus F. Pereira, em seu artigo

“‘Filhos do Rei Sebastião’, ‘Filhos da Lua’:

construções simbólicas sobre os nativos da Ilha

dos Lençóis”, nos revela diferentes construções

sobre os albinos da Ilha dos Lençóis (MA), ao

analisar as práticas discursivas acerca desses

ilhéus levando em consideração um “universo

de fora” e um “universo de dentro”.

O texto de Melissa Santana de Oliveira,

“Nhanhembo’é: infância, educação e religião

entre os Guarani de M’Biguaçu, SC”, apresen-

ta o modo com que três espaços de socialização

infantil – as rezas, o coral e a escola – foram

pensados pelas lideranças locais, tendo em vista

a participação ativa das crianças no processo de

“valorização da tradição” deste grupo Guarani.

Temos ainda o exercício etnográfi co de

Renata Bortoletto Silva, intitulado “Oloniti e

o castigo da festa errada: relações entre mito e

ritual entre os Paresi”, que descreve o Oloniti, ritual intercomunitário, e um mito Paresi, O castigo da festa errada. As relações de simetria e

inversão entre mito e rito possibilitam analisar

códigos que governam relações sociais, cujos

valores são a reciprocidade e a predação.

Partindo das mudanças provocadas na arte

à época das alterações dos meios de percepção

da mesma na contemporaneidade, o ensaio de

André-Kees de Moraes Schouten e Giovanni

Cirino, “Relendo Walter Benjamin: etnogra-

fi a da música, disco e inconsciente auditivo”,

retoma as refl exões de Walter Benjamin, Th e-

odor Adorno e Marcel Mauss, visando pensar

as possibilidades de uma etnografi a da música

a partir de materiais fonográfi cos.

Fechando esta seção, Renato Sztutman em

“Imagens perigosas: a possessão e a gênese do

cinema de Jean Rouch” procura compreender

a obra de Jean Rouch a partir do fi lme Les maîtres fous, já que é nele que esse cineasta

traz, pela primeira vez, uma discussão mais

apurada sobre a linguagem do fi lme etno-

gráfi co. Enquanto Jean Rouch refl ete sobre

imaginário e realidade, o autor costura uma

outra, acerca do cinema e suas relações com a

antropologia.

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

A seção “Artes da vida”, por sua vez, se abre

a todas as possibilidades da arte – incluindo a

dúvida e o dissenso em relação a ela – ao apre-

sentar “folhinhas” de pixadores paulistanos,

material de pesquisa recolhido por Alexandre

Barbosa Pereira. O autor chama a atenção para

a forma dada, pelos pixadores, às letras usadas

para inscrever suas marcas, bem como os su-

portes desse tipo de intervenção – os espaços

urbanos e as “folhinhas” trocadas entre pixado-res, um modo de buscar perenidade a um tipo

de intervenção efêmera –, visto essencialmente

como poluição visual.

Já nossa entrevista foi realizada com Peter

Fry, antropólogo que desde os anos 1970 se in-

seriu no debate brasileiro estudando temas re-

lacionados a questões raciais, gênero e religião.

O mote da conversa foi dado pelo lançamento

de A persistência da raça, livro que reúne textos

sobre o trabalho do autor em Moçambique, no

Zimbábue e no Brasil. Na entrevista, Fry tra-

tou de pontos polêmicos que estão em pauta

na produção antropológica contemporânea,

como as políticas públicas específi cas para a

população negra. Além de tantas experiências

compartilhadas e problematizadas, Peter Fry

também nos forneceu a imagem da capa desta

edição, feita em sua pesquisa de campo entre os

Zezuru nos anos 1960.

Neste número 13, apresentamos, como já

mencionado, duas traduções. Seguindo um

procedimento consagrado da revista, apre-

sentamos textos ainda inéditos em português,

tornando-os mais acessíveis principalmente

aos alunos dos cursos de graduação. Com essa

prática, buscamos divulgar trabalhos de auto-

res importantes para a nossa disciplina. Nesta

seção, ainda contamos com a colaboração de

professores que se propuseram a apresentar o

material traduzido e, desta maneira, apontar

para a relevância das refl exões de cada autor

para o debate antropológico. Assim, o texto

“Ser afetado”, da antropóloga francesa Jeanne

Favret-Saada, foi traduzido por Paula Siquei-

ra e conta com uma apresentação de Márcio

Goldman. Já “Dewey, Dilthey e drama: um en-

saio em antropologia da experiência”, de Victor

Turner, foi traduzido por Herbert Rodrigues e

é discutido por John Cowart Dawsey.

As resenhas de Marcelo Tadvald e Ronaldo

Lobão, por sua vez, visam apontar para a rele-

vância da leitura dos livros de Bernardo Lewgoy,

O grande mediador: Chico Xavier e a cultura bra-sileira, e de Johannes Fabian, Th e Time and the Other: how anthropology makes its object.

Por fi m, nossa última modifi cação para

atender as exigências dos critérios Qualis foi

a reformulação de nosso Conselho Editorial.

Esse espaço agora agrega especialistas não ape-

nas da nossa própria casa, mas privilegia o diá-

logo com professores de diferentes instituições

acadêmicas, brasileiras e internacionais. Gosta-

ríamos, portanto, de agradecer o interesse dos

novos conselheiros que ao aceitar nosso con-

vite, passaram a partilhar conosco – tentando

aprimorar, sempre – a Cadernos de Campo.

Ao ver a Cadernos 13, assim, pronta, só nos

resta agradecer aos autores que, acreditando em

nosso projeto editorial, confi aram seus traba-

lhos em nossas mãos, e aos pareceristas externos

que, com rigor e generosidade intelectual, nos

auxiliaram na escolha dos textos aqui apresenta-

dos. Ademais, uma série de pessoas nos ajudou

a materializar essa edição. Agradecemos a co-

laboração da Profª Bela Feldman-Bianco, que

nos forneceu a lista completa dos critérios Qua-lis (CAPES); ao Prof. Peter Fry, que gentilmente

nos concedeu a entrevista e cedeu a imagem da

capa; ao Prof. Julio Assis Simões, que nos aju-

dou a organizar a entrevista com Fry; ao Prof.

Márcio Silva, editor chefe da Revista de Antro-pologia, que forneceu dicas preciosas para o tra-

balho editorial; à Profª Lilia Moritz Schwarcz,

que nos ensinou sobre os meandros de direitos

de tradução; e aos professores José Guilherme

Magnani e Vagner Gonçalves da Silva, que,

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

em nome do Núcleo de Antropologia Urbana

(NAU), colaboraram fi nanceiramente para a

publicação deste número. Por fi m, mas não me-

nos importantes, deixamos os agradecimentos

às professoras Beatriz Perrone-Moisés e Paula

Montero, respectivamente ex e atual responsáveis

pela coordenação Programa de Pós-Graduação

em Antropologia Social da USP. Foi graças ao

apoio dado nesses 14 anos por esse programa

que a revista existe e será com a intenção de me-

lhorá-la ainda mais que continuaremos nesse

prazeroso, porém cruel, ofício editorial.

artigos e ensaios

resumo A autora discute questões surgidas no

decorrer do trabalho de campo, parte da tese de dou-

torado, cuja temática consiste na construção do feto

como Pessoa, mediada pela tecnologia de imagem.

Foram observadas ultra-sonografi as obstétricas em

clínicas do Rio de Janeiro, RJ, e neste texto é pro-

blematizado o fato de buscar um olhar antropológi-

co em ambiente médico, sendo ela própria médica.

O pedido de que vestisse o jaleco em duas clínicas

gerou questões acerca da identidade da observadora,

como médica e como antropóloga. Discute-se como

esta dupla inserção opera no decorrer da pesquisa,

em relação aos atores deste universo e no olhar da

observadora. A presença desta pareceu ser mais per-

turbadora para os médicos do que para as gestantes.

O modo como a perturbação era expressa diferiu de

acordo com o gênero do ultra-sonografi sta. A for-

mação médica facilitou a entrada no campo e a acei-

tação da pesquisa por parte de seus sujeitos e por

outro lado há uma tensão quando a pesquisadora

busca estranhar uma situação duplamente familiar.

palavras-chave pesquisa qualitativa; etno-

grafi a; observação participante; identidade do pes-

quisador; subjetividades.

Vestindo o jaleco: refl exões sobre a subjetividade e a posição do etnógrafo em ambiente médico*

* Este texto é uma segunda versão do trabalho apre-

sentado na 24a Reunião Brasileira de Antropologia,

Olinda, PE, 2004, no FP 36: Antropologia, trabalho

de campo e subjetividade: desafi os contemporâneos.

LILIAN KRAKOWSKI CHAZAN

Doutora em Saúde Coletiva pelo PPGSC/IMS/

UERJ e bolsista FAPERJ.

Artigo aceito para publicação em 18/09/05

abstract Th e author discusses some issues

that arose in the course of fi eldwork, part of her

doctorate thesis about the social construction of

the foetus as a person through imaging technology.

Th e research involved the observation of obstetrical

ultrasound scans in private clinics in Rio de Janei-

ro-Brazil. Th e problem in point was the search for

an anthropological view in a medical environment,

the observer herself being a physician. Th e request

that she wear a white coat caused questions to arise

concerning the identity of the observer, as a doctor

as well as an anthropologist. It is queried how this

duality operates in the course of the research, with

regard to the actors in this universe and in the view

of the observer. Her presence appeared to be more

perturbing to the doctors than to the mothers-to-

be. Th e way in which the perturbation was expres-

sed diff ered according to the gender of the doctor.

Th e researcher’s medical background facilitated the

author’s attendance at the examinations and the ac-

ceptance of the research by the subjects observed;

on the other hand, there is a tension raised by the

observer’s attempt at reaching an anthropological

view in a situation that is doubly familiar to her.

keywords qualitative research; ethnography;

participant observation; researcher’s identity; sub-

jectivities.

cadernos de campo n. 13: 15-32, 2005

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

Introdução

Neste texto são discutidos alguns aspectos

das relações intersubjetivas surgidas no decor-

rer do trabalho de campo observando ultra-so-

nografi as (US) obstétricas em clínicas privadas

– designadas por A, B e C – do Rio de Janeiro,

RJ, parte da pesquisa desenvolvida para a tese

de doutorado. O foco da investigação consistia

na construção social do feto como Pessoa me-

diada pela tecnologia de ultra-som, produtora

de imagens fetais.1 Ao longo da realização da

etnografi a surgiram diversas questões envol-

vendo a identidade profi ssional da observado-

ra. O principal ponto em discussão neste artigo

consiste no fato de ser graduada em medicina

e buscar um olhar antropológico em ambiente

médico. Esta dupla identidade, por assim dizer,

necessariamente confi gurou meu olhar e o re-

lacionamento com os atores do universo obser-

vado. Por um lado, facilitou os contatos iniciais

e a aceitação da pesquisa pelos responsáveis pe-

las clínicas, por se tratar de uma ‘colega’.2 Por

outro, a familiaridade com o ambiente médico

vez por outra difi cultava o distanciamento e o

estranhamento necessários para uma etnografi a.

O fato de ser psiquiatra e psicanalista também

emergiu como uma questão identitária no cam-

po mas, pelo prisma do estranhamento antro-

pológico, foi secundária à duplicidade principal

de ser médica e estar realizando uma pesquisa

antropológica naquele ambiente.3 Na clínica A,

1. A partir de fi ns da década de 1980, a US obstétrica tor-

nou-se uma prática médica considerada indispensável

no pré-natal. Na década de 1990, na América do Norte

e Europa, produziu-se uma série de estudos antropoló-

gicos sobre as práticas e os signifi cados da expansão do

uso do US na gravidez. A revisão desta literatura é par-

te de minha dissertação de mestrado (Chazan 2000).

2. Aspas simples são minhas; uso aspas duplas para ci-

tações de autores ou falas dos informantes, estas em

itálico.

3. Existe uma produção brasileira recente de etnografi as

em ambiente médico (Gonçalves 2001; Rojo 2001;

durante todo o tempo usei trajes comuns. O

pedido de que vestisse o jaleco nas clínicas B e

C catalisou diversas questões acerca da subjeti-

vidade presente no trabalho de campo e da mi-

nha inserção identitária como médica e como

antropóloga. Utilizo essa ocorrência como um

ponto-chave para a discussão sobre como esta

dupla inserção, de caráter dinâmico e bastante

signifi cativo, operou no decorrer da pesquisa,

em relação aos atores deste universo e ao meu

olhar.4 De um modo geral, a minha presença

na sala de exames pareceu perturbar mais aos

médicos do que as gestantes. O modo como a

perturbação era expressa diferiu de acordo com

o gênero do ultra-sonografi sta. Para situar em

que contexto se desenvolveram as questões que

abordo aqui, apresento de modo breve o de-

senho da pesquisa e características das clínicas

etnografadas, retomando adiante a entrada no

campo e o detalhamento do contexto.

Pouco depois de iniciada a observação na

primeira clínica, percebi a necessidade de mu-

dar o escopo do campo,5 por verifi car que, se se-

guisse o projeto original, o número de variáveis

em jogo tornaria a análise inviável no tempo de

que dispunha.6 Durante o ano de 2003 observei

Monteiro 2001; Luna 2004; Menezes 2000, 2004).

Dentre elas destaco especialmente a última, por dia-

logar de perto com o presente trabalho. Decorrente

do fato de termos formação similar, essa autora en-

frentou questões muito semelhantes às aqui aborda-

das. Rojo, em contraste, destaca o fato de “na maior

parte do tempo não me [sentir] estudando meu pró-

prio grupo” (Rojo 2001: 18).

4. Por conseguinte, é impossível escapar, neste texto, de

algum grau de confessionalidade.

5. A princípio, pretendia comparar a prática do US obs-

tétrico em um hospital público, um universitário e

uma clínica particular. Rojo (2001: 14) também dis-

cute a mudança de escopo ao entrar no campo e per-

ceber a complexidade e difi culdade de se estabelecer

uma abordagem comparativa em tempo exíguo.

6. Outros pontos relevantes para a mudança foram

a constatação da existência de uma interatividade

constitutiva dessa tecnologia de imagem e de um

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

exames, buscando compreender de que ma-

neira profi ssionais, gestantes e acompanhantes

lidavam com a US obstétrica, em termos de

discursos e práticas. Meu foco de observação

estava nas negociações ocorridas em torno das

imagens fetais, motivo pelo qual optei por não

realizar entrevistas com as gestantes.7 As con-

versas com elas e seus acompanhantes restrin-

giam-se em geral à explicação sobre a pesquisa

e ao pedido de autorização para observar. Entre

um e outro exame ocorreram diversas intera-

ções com os profi ssionais – meus principais

informantes – que constituem o núcleo das

refl exões e da discussão que desenvolvo neste

texto. Durante os exames tomava notas e mais

tarde construía relatos das situações e dos diá-

logos ocorridos em cada dia. As clínicas A e B

eram conveniadas com planos de saúde de pre-

ços variados que, em termos de renda, distribu-

íam a clientela. A clínica B costumava atender

a um grupo claramente menos abastado do que

as outras duas. A clínica C só realizava exames

particulares, com preços a partir de R$ 110,00,

à época. A peculiaridade de sua clientela advi-

nha de existir um vínculo com um centro de

reprodução assistida, motivo de ali encontrar

mais gestações consideradas de risco – do pon-

to de vista médico – e múltiplas do que nas

outras duas. Grosso modo, estimei que a clínica

processo de construção de uma cultura visual espe-

cífi ca dos atores do universo observado, temas que

me pareceram merecedores de uma investigação mais

aprofundada (Chazan 2005: 203-234). Daí decorreu

o trabalho de campo ser redirecionado para a obser-

vação de mais duas clínicas privadas que, por motivos

de ordem variada, atendiam a gestantes de diferentes

estratos das camadas médias da população (ver abai-

xo, nota 9).

7. Outro motivo da opção envolve ter considerado que,

por ser a psicanálise minha área original de atuação, se

me aproximasse de modo mais individualizado com

os sujeitos da pesquisa seria difícil me desvencilhar de

referenciais familiares. As interações me interessavam

mais do que apenas os discursos.

A atendia mais a clientes de camadas média e

média/alta, a B, média e média/baixa, e a C,

média/alta e alta.8

1 O familiar e o exótico: sobre o olhar e o estranhamento

Ao longo do tempo em que permaneci

no campo, as indagações foram mudando à

medida que construía uma identidade como

pesquisadora. Começando pelo problema que

inicialmente me ocupou, o de buscar um olhar

antropológico em ambiente médico sendo

graduada em medicina, existem ainda outras

particularidades que complexifi cam o proble-

ma do estranhamento necessário à análise do

material. O fato de explicitar esses aspectos e

delinear a minha posição no campo permite

que implicitamente se estabeleça uma discus-

são sobre as relações de poder que aí têm lu-

gar, conforme aponta Cliff ord (1986: 15). Por

questões pessoais, as imagens radiográfi cas e

uma noção, mesmo que incipiente, de ‘trans-

parência’ do corpo humano, estiveram presen-

tes em minha vida desde muito cedo, fazendo

parte da construção do meu olhar em termos

de cultura visual.9 Anos depois, cursei medici-

na, enveredando pela psiquiatria e, em seguida,

pela psicanálise. Estas peculiaridades produzi-

ram dois níveis distintos de familiaridade com

o universo etnografado: um primeiro, quase in-

trínseco, relacionado à construção cultural do

corpo e do meu olhar, e um segundo, vincula-

do ao conhecimento posterior de medicina. As

8. A divisão não é rigorosa, pois não investiguei o perfi l

sócio-econômico das gestantes. Estabeleci essa classi-

fi cação baseada na observação dos trajes e da lingua-

gem das gestantes, além da localização das clínicas na

cidade. A clínica A se situava na Zona Oeste, moradia

de camadas médias em ascensão, a B na Zona Norte,

área de grupos de menor poder aquisitivo, e a C en-

contrava-se na Zona Sul, área ‘nobre’.

9. Refi ro-me especifi camente ao fato de meu pai ser mé-

dico e radiologista.

18 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

pesquisas no decorrer da pós-graduação proble-

matizaram aspectos relacionados à visualidade,

ao uso de tecnologias visuais em medicina com

a conseqüente ‘transparência’ do corpo, e à

própria medicina. A proximidade com aspec-

tos constitutivos do campo que me propunha

a observar de um ponto de vista antropológico

eram, conforme apontado por Latour, o gran-

de desafi o, em termos de “disciplinar o olhar,

manter a distância” (Latour & Woolgar 1997:

27).10 Meu primeiro ‘aliado’ na possibilidade de

manter alguma distância residia na quase total

incapacidade – desde os tempos de graduanda

do curso médico – em decodifi car as imagens

sobre as quais meus informantes trabalhavam

e com as quais interagiam cotidianamente. Se-

gundo DaMatta,

(...) [S]ó se tem Antropologia Social quando se

tem de algum modo o exótico, e o exótico depen-

de invariavelmente da distância social (...) vestir a

capa de etnólogo é aprender a realizar uma dupla

tarefa (...) transformar o exótico no familiar e/ou

transformar o familiar em exótico. E, em ambos

os casos, é necessária a presença dos dois termos

(que representam dois universos de signifi cação)

e (...) uma vivência dos dois domínios por um

mesmo sujeito disposto a situá-los e apanhá-los

(DaMatta 1978: 28; grifos originais).

O primeiro passo, portanto, ao abordar

meu campo de pesquisa, consistia em trans-

formar o que me era bastante familiar em

‘exótico’, de modo a poder torná-lo objeto de

estudo e, em seguida, fazer o caminho de vol-

ta, transformando este exótico em familiar em

outro nível, por meio de tradução para uma

linguagem antropológica.11 Ainda conforme

DaMatta,

10. Sobre a tensão entre familiaridade e estranhamento

pelos mesmos motivos, cf. Menezes (2000: 22).

11. Sobre o exótico e o familiar, ver também o texto clás-

sico de Velho (1978).

As duas transformações estão, pois, intima-

mente relacionadas e ambas sujeitas a uma

série de resíduos, nunca sendo realmente per-

feitas. De fato, o exótico nunca pode passar

a ser familiar; e o familiar nunca deixa de ser

exótico (DaMatta 1978: 29).

O trânsito entre as duas esferas distintas

em termos epistemológicos e práticos esteve

presente todo o tempo durante o trabalho de

campo e operou em diversos níveis, dos mais

concretos aos mais abstratos. Do ponto de vista

prático, a ‘iniciação’ prévia na medicina, além

de propiciar contatos pessoais entre os especia-

listas em imagem, facilitou a minha aceitação

e a entrada no campo.12 Pode-se compreender

esta acolhida como os médicos me tomando

por ‘nativa’, pois mesmo informando-os que

me propunha a uma investigação antropo-

lógica, freqüentemente os profi ssionais em-

penhavam-se em me fornecer explicações de

cunho especializado, ‘de colega para colega’.13

Compreendi este comportamento como uma

estratégia não proposital dos meus informan-

tes visando neutralizar o desconforto provo-

cado pela minha presença como observadora,

em outras palavras, pela “violência irredutível

12. Considero aqui o estudo da medicina como um pro-

cesso iniciático sem me estender nele. Cf. o clássico

de Becker et al. (1997). A formação psicanalítica tam-

bém pode ser considerada como outra ‘iniciação’, mas

focalizo apenas a primeira por ser qualitativamente

a mais signifi cativa. As difi culdades iniciais de um

pesquisador não-médico em ter acesso ao ambiente

médico estão bem descritas por Rojo (2001: 21). Em

contraste, Monteiro, socióloga, assinala a facilidade

e a informalidade com que foi aceita na unidade do

hospital onde observou cateterismos cardíacos, em

Albany, NY (Monteiro, 2001: 45). O que parece

ocorrer é que, dependendo do campo a ser etnografa-

do, mesmo para o observador com formação médica

esse acesso pode ser bastante difi cultado, conforme

descreve Menezes (2004: 20-21).

13. Menezes (2000: 10) relata o mesmo tipo de atitude

‘didática’ em seus informantes do CTI observado.

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

do trabalho etnográfi co”, conforme Rabinow

(1977: 129), ou pela “intrusão” nos termos de

Cliff ord (1983: 140) – inerente a este tipo de

abordagem e parte essencial da produção dos

fatos a serem observados. Em um plano mais

abstrato, esta atitude ‘didática’ deles, conjuga-

da à minha reação, resultou em uma espécie

de aprendizado paralelo à minha revelia tendo

como fruto uma modifi cação efetiva na minha

[in]capacidade em decodifi car as imagens ul-

tra-sonográfi cas que eram exibidas na tela do

monitor. Aos poucos, involuntariamente, as

imagens tornaram-se mais familiares para mim

e tal mudança passava a obscurecer a estranhe-

za do fato de como diferentes manchas cinzen-

tas eram ‘subjetivadas’ pelos atores. De início,

a situação me preocupou, pois a incapacidade

em compreender as imagens era a minha prin-

cipal ferramenta para obter o distanciamento

de que necessitava. À medida que prosseguiu o

trabalho, contudo, percebi que o fato de conse-

guir, embora precariamente, entender sozinha

o que estava sendo visibilizado14 na tela per-

mitia-me acompanhar em ‘tempo real’ o que

estava sendo decodifi cado pelo médico e passar

a focar a atenção nas estratégias discursivas ou

visuais do operador para, por exemplo, dar ou

evitar fornecer más notícias à gestante.15 Em al-

guns momentos, contudo, notava estar dema-

siado interessada em questões médicas em si, e

aí percebia a necessidade de disciplinar minha

curiosidade. Ao afastar a medicina como foco

de curiosidade, aproximava-me do meu objeti-

vo. Duas atividades correlatas eram o principal

14. Utilizo ‘visibilizar’ e não ‘visualizar’ porque é um ter-

mo nativo e, a rigor, a tecnologia do US – assim como

todas as tecnologias de imagem médica – ‘torna visí-

vel’ algo não acessível ao olhar.

15. Monteiro refere experiência semelhante: ao se fami-

liarizar com as imagens de cateterismo sobre as quais

seus sujeitos trabalhavam cotidianamente, tornou-se

mais rápida nas anotações e passou a focar a aten-

ção em outros aspectos das interações entre os atores

(Monteiro 2001: 48).

modo de retomar a distância: o ato de tomar

notas durante as observações e a posterior

construção dos relatos.16 Essa última ativida-

de, em especial, permitia-me resgatar o foco da

observação. A oscilação entre duas identidades

profi ssionais foi constante e tornou-se consti-

tutiva do trabalho, como não poderia deixar de

ser. Em várias ocasiões utilizei-me consciente-

mente da familiaridade com o discurso médi-

co e de ter genuína curiosidade sobre temas da

medicina como estratégia para estabelecer um

contato menos formal e – porque não dizer –

menos persecutório para os profi ssionais. Com

freqüência percebia estar falando a ‘língua dos

nativos’, utilizando um jargão que me era fami-

liar, para perguntar e debater assuntos variados

dentro do campo médico. Esse comportamen-

to era bem recebido pelos meus informantes

e reduzia eventuais inquietações sobre “o que você tanto anota?”17 no pequeno fi chário utili-

zado para as notas de campo.18

Conforme aponta Geertz (1984: 134), um

aspecto essencial necessariamente presente em

uma etnografi a repousa na interpretação do

que está sendo focalizado. Para tal, é necessá-

rio conhecer-se e entender os elementos que

se apresentam, decodifi cando seus signifi cados

16. Sobre a alternância entre aproximação e afastamento

do objeto, cf. Menezes (2004: 23,24).

17. Nos exemplos do campo usei sublinhado sempre que

a ênfase era do autor da fala. Negritos são ênfases

minhas. Editei o mínimo possível o material visando

preservar ao máximo a vivacidade e a espontaneida-

de das falas dos atores. Adiante, a descrição extensa

e mais detalhada das clínicas visou contextualizar a

observação e, também, mantê-la “abert[a] à interpre-

tação acadêmica (e à reapropriação pelos nativos)”

como apontaram Codere e Hymes nesse tipo de abor-

dagem (Cliff ord 1998: 239).

18. Usava um fi chário de tamanho mínimo, repondo fo-

lhas após cada dia de observação, porque a capa dura

oferecia apoio para que eu tomasse notas – o que em

geral acontecia de pé, durante os exames – e também

porque isto permitiu que as folhas com os registros

diários fossem arquivadas separadamente.

20 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

para o grupo em questão. Nesse sentido, estar

familiarizada com a cultura médica e com o

jargão corrente entre os profi ssionais foi faci-

litador para a elaboração da etnografi a e pou-

pou um tempo precioso de aprendizagem da

‘língua nativa’. Foi como se eu ‘pulasse’ uma

etapa de iniciação na cultura do universo et-

nografado.19 Esta se deu, em um segundo mo-

mento, por meio do treinamento involuntário

do meu olhar. De acordo com Becker e Geer,

erros de interpretação sobre o teor do material

fornecido pelos informantes estão calcados no

fato de que “freqüentemente não entendemos

o que não estamos entendendo e assim fi ca-

mos propensos a cometer erros ao interpretar

o que nos é dito” (Becker e Geer 1978: 77).20

Ter sido ‘iniciada’ na linguagem e na cultura

próprias do universo que pretendia observar,

muito antes de pensar na área médica em ter-

mos antropológicos, produziu um deslocamen-

to da experiência de ‘iniciação’ no campo para

a esfera mais estrita da etnografi a, da qual in-

clusive o presente texto pode ser considerado

um dos elementos, como assinalam Marcus &

Fischer (1986: 21). Sentia-me segura de estar

entendendo meus informantes por seu próprio

ponto de vista, sendo este o lado positivo de

ter uma formação médica buscando uma visão

antropológica naquele ambiente. Por outro

lado, era um fator problemático para a segunda

‘iniciação’, antropológica, por difi cultar o es-

tranhamento necessário à elaboração da etno-

grafi a. A construção dos primeiros relatórios de

campo e, mais adiante, do texto etnográfi co em

si, produziram de fato um efeito de distancia-

mento da minha primeira ‘iniciação’ e o início

da segunda.

19. Acerca da questão de aquisição de conhecimento téc-

nico – “aquisição de competência nativa” – em etno-

grafi as médicas ou em ambientes tecnológicos, cf. a

discussão de Monteiro (2001: 47).

20. A tradução dos textos citados é de minha autoria, sal-

vo menção expressa.

2 Primeiros contatos e entrada no campo

O primeiro contato que obtive foi com

dra. Lúcia,21 da clínica B, indicada por uma

ginecologista-obstetra como uma competente

especialista em US obstétrico. Dr. Henrique,

da clínica A, foi recomendado nos mesmos ter-

mos, por um radiologista, meu conhecido de

longa data. Em diferentes ocasiões, ambos me

receberam para conversar após o expediente.

Os dois encontros antecederam em cerca de

um ano a entrada efetiva no campo. Dr. Hen-

rique, diferentemente de sua colega, discorreu

longamente sobre a especialidade, contou casos

e teceu críticas a certos usos – e, no seu en-

tendimento, abusos – da utilização de US na

gravidez. Nas duas vezes iniciei a conversa per-

guntando pela ‘rotina’ em US na gestação. Em

retrospecto, verifi quei que já nesses primeiros

contatos surgiu uma diferença de atitude que

emergiu como padrão ao longo da observação,

vinculada à questão de relações de gênero no

campo: os médicos sempre se mostraram muito

mais prolixos do que suas colegas, tema ao qual

retornarei. Para além desse aspecto, as longas

explicações e ‘palestras’ informais apontaram

para o fato de que meus informantes estavam

mais acostumados a serem eles os decodifi cado-

res de imagens e enunciadores de ‘verdades’ do

que objeto de uma observação que permitiria

produzir um texto etnográfi co sobre eles e sobre

as verdades produzidas por eles.

Cerca de um ano depois desses primeiros

contatos, iniciei a observação na clínica A, se-

manalmente, nela permanecendo por 3 me-

ses. Nesse período acompanhei em especial

dr. Henrique, o preferido pelas gestantes e

referência principal desta clínica para os exa-

mes obstétricos, embora outros profi ssionais

também os realizassem. Surgiu-me então uma

21. Nome fi ctício, como todos neste trabalho.

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

dúvida acerca do quanto certas práticas seriam

peculiares ao dr. Henrique, por singularidades

pessoais, daí decorrendo, entre outros motivos,

ter resolvido mudar o escopo da etnografi a, es-

tendendo a observação para mais duas clínicas

particulares. O contato com dr. Sílvio, dono da

clínica C, ocorreu por intermédio de dr. Hen-

rique, algum tempo após o início do trabalho

de campo.22 Ao telefone, ele aceitou que eu ob-

servasse em sua clínica, pois dr. Henrique lhe

teria dito que eu “só assistia e tomava notas”;23

fez ainda questão de me dizer que foi “o pri-meiro a fazer US no Rio de Janeiro” e pediu que

levasse jaleco para observar os exames. Na pri-

meira vez que fui à clínica, para preencher uma

formalidade,24 ele veio ao meu encontro em

trajes de centro cirúrgico25 e me reconheceu de

reuniões que participara com alguns psicanalis-

tas. Conversamos sobre a pesquisa e, sabedor

de que eu observara a clínica A, disse: “Aqui você vai observar uma situação completamente diferente de clínica de convênio, os exames levam uma hora ou mais...”, o tom de sua fala cono-

tando ‘aqui você vai ver como é que se faz de

verdade, para valer’. Na despedida, indicou-me

às atendentes, dizendo-lhes que eu freqüentaria

a clínica. Muito receptivo, satisfeito em mos-

trar sua clínica e seu renome profi ssional, de

modo análogo às explicações científi cas acima

mencionadas, este conjunto de atitudes deno-

tou um outro modo de delimitação e reafi rma-

22. Ver nota 6, acima. Como o contato com a clínica B já

havia sido estabelecido, foi a obtenção de permissão

para observar pelo dono da clínica C que emprestou

à etnografi a seu contorno defi nitivo.

23. A rigor, conhecia Dr. Sílvio há muitos anos, mas ele

não se lembrava de mim, obviamente.

24. Nas 3 clínicas apresentei o projeto para ser assinado

pelo responsável, sendo a seguir submetido ao comi-

tê de ética do IMS/UERJ, vinculado ao CONEPE.

Após essa aprovação iniciava as observações.

25. Nesta clínica eram realizados procedimentos tais

como biópsia de vilo corial e amniocentese, que re-

queriam ambiente asséptico.

ção de posição dentro das relações de poder no

campo. A noção veiculada por ele, de que ali eu

teria acesso à ‘coisa certa’, de um ponto de vista

de protocolos científi cos, sugeria uma tentati-

va de direcionar meu olhar para um campo no

qual ele seria o detentor de conhecimentos e

de uma posição privilegiados – como médico,

dono da clínica e precursor da especialidade no

Rio de Janeiro.

3 As clínicas

Alguns detalhes da decoração das três clí-

nicas, assim como os espaços de circulação e

das salas de exames eram signifi cativamente di-

ferentes e remetiam ao nível sócio-econômico

da clientela atendida.26 Os donos das clínicas

B e C são os primeiros profi ssionais que se es-

tabeleceram na área de US no Rio de Janeiro.

O dono da clínica A investe pesadamente na

aquisição de equipamentos de última geração

em diversas tecnologias de imagem médica e

representaria, por assim dizer, o ‘futuro’ em

termos de diagnóstico por imagem no Rio de

Janeiro. De certo modo, sua credibilidade re-

pousa parcialmente neste aspecto, em contras-

te com a autoridade mais calcada no peso da

‘tradição’, das clínicas B e C. A preocupação

em estarem atualizados, com a compra de equi-

pamentos cada vez mais sofi sticados, é comum

aos três, que investem grandes somas neste sen-

tido. A clínica B é uma fi lial modesta de uma

grande clínica de US, em cuja matriz estão os

equipamentos mais modernos.

A clínica A, denominada ‘A’-mulher, confor-

me o nome explicita destina-se exclusivamente

à clientela feminina: realiza US ginecológico e

obstétrico, mamografi as e densitometrias ósse-

as, sendo uma das unidades de uma clínica de

26. Em termos do nível de especialização e profi ciência

dos profi ssionais, as três clínicas se equivalem e, do

ponto de vista técnico, são igualmente bem conceitu-

adas entre ginecologistas e obstetras.

22 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

imagem. Encontra-se em um grande shopping,

na mesma área das lojas, e a fachada da clínica

é facilmente confundida com as outras: envi-

draçada, com portas de vidro com o logotipo

pintado. A sala de espera é ampla e na entrada

há um aparelho para retirada de senhas, como

em bancos, laboratórios de análises clínicas e

certos supermercados. À esquerda de quem

entra, existe uma bancada com três compu-

tadores e recepcionistas com crachás, unifor-

mizadas. Atrás delas, em um grande nicho na

parede, vê-se máquinas eletrônicas de cobran-

ça de cartões de crédito. O chão é de granito

polido e as cadeiras em série, fi xadas ao chão,

totalizam cerca de 30 lugares. Há uma TV de

20” permanentemente ligada e revistas de ‘ce-

lebridades’ em mesinhas de canto.27 Duas das

paredes desta sala são envidraçadas, permitindo

que se observe o movimento dos corredores do

shopping e vice-versa, como se os que aguardam

atendimento estivessem dentro de uma vitrine.

O conjunto todo evidencia os cuidados de um

decorador, criando um ambiente asséptico e

impessoal que tanto poderia ser uma recepção

de banco como de companhia aérea: não há

nenhuma indicação evidente de que se trate de

uma clínica para exames.28 Passando-se a por-

ta de vidro que separa a sala de espera da área

de exames, há dois corredores paralelos. No da

esquerda estão a sala do aparelho de US 3D de

última geração e as duas seguintes, com apare-

lhos mais antigos. Em frente às portas das salas

há dois banheiros e uma fi leira de 4 vestiários

pequenos; no fi nal deste corredor encontra-se a

sala de laudos, bastante acanhada, se compara-

da com os outros espaços da clínica. A ‘assepsia’

da decoração está coerente com as idéias high-tech e de cientifi cidade que são valores centrais

para os profi ssionais desta clínica. A distribui-

27. Do tipo Caras, Quem, Ricos e famosos e congêneres.

28. Mesmo o logotipo da clínica não pode ser imedia-

tamente associado a nenhum símbolo indicativo de

atividade médica.

ção dos espaços suscita algumas questões re-

lativas à privacidade oferecida para a troca de

roupa das gestantes; a exigüidade e o relativo

desconforto da sala de laudos remetem a um

certo grau de desvalorização dos profi ssionais,

tema que mais tarde surgiu na reclamação de

uma das médicas, à guisa de ‘cooptação’ e de

cumplicidade comigo.

A clínica B situa-se em um prédio comer-

cial modesto na Zona Norte do Rio. A sala de

espera é pequena, com uma TV de 10”, sempre

ligada, de cor e imagem instáveis. Na parede há

quadrinhos reproduzindo aquarelas com paisa-

gens de Paris. Na bancada da recepção há um

computador e uma atendente. Atrás dela exis-

tem máquinas manuais para emissão de boletos

de cartão de crédito, diversas pastas e, na pare-

de, um cartaz: “Vendemos fi tas de VHS”.29 Os

bancos são em alvenaria, com encosto pregado

na parede; em um canto há revistas de ‘genera-

lidades’.30 Ao entrar na clínica, à direita, está a

porta de acesso para um pequeno corredor que

leva às salas de exames e à sala de laudos, que

é ampla e tem diversas funções: nela, profi ssio-

nais e atendentes fazem refeições, preparam os

laudos, agendam exames, discutem casos com

outros médicos pelo telefone, trocam de roupa

e fofocam.31 A multiplicidade de funções dessa

sala, permitindo uma razoável mistura de ati-

vidades, é coerente com o aspecto mais mar-

cante desta clínica: a inexistência de qualquer

tipo de isolamento acústico entre os diferentes

compartimentos, provocando uma confusão de

sons análoga à mistura de atividades da sala de

laudos, apesar do cartaz na parede solicitando

que se fale baixo. Esta situação se deve ao modo

29. Muitas gestantes trazem suas próprias fi tas de vídeo

para gravar US ao longo da gravidez. O consumo da

imagem, um aspecto pregnante deste universo, é um

tema complexo e foge ao escopo deste artigo.

30. Veja, Isto é, Casa Cláudia.31. Por acaso, só havia mulheres nesta clínica durante o

período em que realizei a observação.

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

como os espaços da área de exames foram dis-

tribuídos: parece ter sido um único recinto que

foi subdividido n vezes, com divisórias de eu-

catex, às vezes de modo oblíquo; excetuando

a sala de laudos, todos os outros espaços são

exíguos, fechados com portas sanfonadas. Das

duas portas de madeira – a da sala de laudos e

a do corredor dos exames – uma está despen-

cando. O consultório tem relativo conforto,

mas é muito mais modesto do que a clínica

A, correspondendo ao padrão sócio-econômi-

co da clientela, bem abaixo do da primeira. A

aparelhagem tem mais de 5 anos de fabricação,

o que, traduzido em termos nativos, signifi -

ca ‘ultrapassados’, ou quase. A inexistência de

isolamento acústico produz uma situação de

praticamente total falta de privacidade, a não

ser que se sussurre todo o tempo. A ausência

de um espaço bem delimitado para as gestantes

trocarem de roupa aponta para a mesma ques-

tão. Estas características, associadas à decoração

modesta da sala de espera e ao tempo destinado

a cada exame, produzem a impressão de que ali

há um atendimento ‘de massa’.

A clínica C localiza-se em um prédio co-

mercial de alto luxo, e só atende a clientes

particulares; logo na entrada há uma placa in-

dicando que a clínica de US está vinculada a

uma de reprodução assistida. Entra-se por um

longo corredor com grandes quadros com fotos

coloridas de bebês gordinhos, ‘fofos’, trajados

de fl or e congêneres32 e desemboca-se em um

balcão perpendicular ao corredor, com alguns

computadores e atendentes. Para a direita e

para a esquerda da recepção se enfi leiram pe-

quenos compartimentos separados por vidros,

como ‘mini-salas’ de espera, cada uma com

capacidade para 4 pessoas sentadas, com ban-

cos de alvenaria estofados e revistas ‘materno-

32. A fotógrafa (Anne Geddes) que criou este estilo de

fotos registrou a marca que hoje movimenta fortunas,

com sites na Internet e toda uma indústria de artigos

para bebês, além de livros, posters etc.

infantis’.33 A parede oposta à entrada de cada

‘casulo’ é envidraçada, com uma vista absolu-

tamente deslumbrante da paisagem à volta. O

teto é rebaixado, as paredes são cor salmão até

80cm do chão e, daí até o teto, amarelo-claro.

Há uma certa saturação visual no ambiente;

possivelmente o intuito original era torná-lo

‘alegre’ e ‘aconchegante’.34 Para a direita, o cor-

redor dos ‘casulos’ desemboca no das salas de

US, uma de cada lado, ambas muito amplas

e confortáveis e com aparelhagem de última

geração. No fi nal desse corredor encontram-se

dois grandes toaletes e a pequena sala da admi-

nistração. O ambiente geral evidencia os dois

valores centrais que norteiam as atividades aí

desenvolvidas: tratamento vip privativo, ‘perso-

nalizado’, ‘aconchegante’, e tecnologia de ponta

– tanto a de imagem quanto a relativa às novas

tecnologias reprodutivas.

O aspecto principal que saltava aos olhos

na comparação da arquitetura das três clíni-

cas consistia na distribuição de espaços que

propiciavam o direito à privacidade, que te-

ria como que um ‘gradiente’ decrescente cujo

ponto máximo seria a clínica C, com suas salas

de espera individuais e o ponto mínimo a clí-

nica B, sem isolamento acústico algum. A clí-

nica A, neste particular, ocuparia uma posição

mediana. Este ‘direito à privacidade’ também

era evidenciado pelo espaço destinado à troca

de roupa das gestantes: na clínica C, nos dois

grandes toaletes estavam disponíveis chinelos e

aventais de pano para as clientes. Uma vez tro-

cada a roupa, a gestante dirigia-se diretamen-

te para a sala de exames, onde já estava sendo

esperada pelo profi ssional. Na clínica A havia

os pequenos vestiários individuais no qual as

gestantes deveriam permanecer até serem cha-

madas pela atendente; dirigiam-se então para

as salas de exame, onde aguardavam a chegada

33. Como Seu fi lho e você, Pais e fi lhos e outras que tais.

34. Também aí percebe-se o ‘dedo’ de um decorador, em-

bora de gosto – a meu ver – um tanto duvidoso.

24 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

do médico. Na clínica B existia um pequeno

nicho sem porta dentro de uma das salas, no

qual a gestante poderia se trocar, e tudo acon-

tecia ao mesmo tempo, sendo comum a mé-

dica e eu entrarmos e a gestante estar ainda se

despindo e colocando o avental, teoricamente

descartável.35 O mesmo ‘gradiente’ – C, A e B

– ocorria no tocante ao grau de sofi sticação da

aparelhagem e ao tempo disponibilizado para

cada exame. Nas clínicas A e C, as gestantes

costumavam dirigir-se aos profi ssionais e a

mim utilizando ‘você’. Na clínica B, o termo

em geral utilizado era ‘senhora’.36

4 Vestindo o jaleco

Ao chegar para o primeiro dia de observa-

ção, na clínica A, enquanto internamente me

debatia em questões de como me inserir nos

exames, Dr. Henrique me chama, dizendo:

“Vamos?” Sigo-o ainda desconcertada, ele en-

tra na sala de US, cumprimenta a gestante já

deitada na maca: “Olá, como vai?”, em seguida

aponta para mim, dizendo, calmamente: “Esta aqui é a dra. Lilian, ela está me acompanhando hoje.” A gestante me olha, sorri cumprimen-

tando, e em seguida volta toda a sua atenção

para o exame, que é iniciado imediatamente.

Preocupo-me com o fato de ser uma presen-

ça imposta pelo médico, mas ninguém parece

se incomodar com esse ‘pormenor’. Durante o

período em que permaneci na clínica A, este

foi o procedimento usual. Quando passei a

tomar notas no meu mini-fi chário, por vezes

fui inquirida pela gestante ou acompanhante

35. ‘Teoricamente’, porque havia ali apenas um avental

pendurado, de material descartável.

36. Este detalhe remete à existência de diferenças entre

as clínicas, no tocante às relações hierárquicas médi-

co-paciente-observadora baseadas em fatores sócio-

econômico-culturais, que fi caram evidentes ao longo

da observação, um aspecto que foge ao escopo deste

trabalho. Sobre o tema cf. Menezes (2000: 66).

sobre que tipo de estudo estava fazendo. De

todo modo, por estar trajando roupas comuns

e pela forma como o médico me apresentava,

pareceu-me ser evidente para gestantes e outros

presentes que eu não pertencia ao staff da clí-

nica. As gestantes tinham um vínculo afetivo

signifi cativo com dr. Henrique,37 o que possi-

velmente foi um dos fatores que tornaram mi-

nha presença ‘aceitável’ sem questionamentos.

Os exames duravam cerca de 20 minutos, e

com freqüência havia longos intervalos entre

um e outro, durante os quais interagia com os

profi ssionais. Passado o período que havia de-

terminado para esta clínica e tendo modifi cado

o projeto original, resolvi prosseguir as obser-

vações alternando entre as clínicas B e C, visan-

do uma perspectiva contrastante por conta de

suas diferenças sócio-econômicas.

O primeiro contato com dr. Sílvio havia me

alertado para a necessidade eventual do uso de

jaleco e, por via das dúvidas, resolvi levar um

guardado comigo no primeiro dia de observa-

ção da clínica B.38 Sem que eu dissesse nada,

foi-me solicitado que o vestisse para entrar

na sala de exames. Dra. Lúcia convidou: “Va-mos?”, acompanhei-a, ela entrou na sala e não

me apresentou à gestante. Percebi estar pouco

à vontade para tomar notas, parte por não ter

sido apresentada, o que tornava minha presen-

ça inexplicável para as grávidas, mas sobretudo

por estar de jaleco. Em suma, senti-me uma

intrusa, desconfortável em relação às gestantes,

como se estivesse ‘disfarçada’, praticando algo

ilícito. Contudo, nada me ocorreu parecido

com uma solução para este mal-estar. Percebi

37. Eram mais clientes dele do que da clínica, buscando-o

também em outras clínicas onde trabalhava.

38. Menezes vivenciou duas situações distintas no to-

cante a este quesito (2000: 10; 2004: 19). Outros

pesquisadores, oriundos da área de Ciências Sociais

e desenvolvendo etnografi as em ambiente médico,

também fazem referências e problematizam a solici-

tação de vestir o jaleco. Cf. Cussins (1998: 69).

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

que ter de vestir o jaleco havia introduzido um

elemento novo na observação, no tocante a

como me situava no campo, mas naquele mo-

mento não fi cou claro o porquê. O desconforto

experimentado apontou para o questionamen-

to sobre a explicitação da minha posição em

campo, em termos éticos. Estando de jaleco,

estava ‘disfarçada’ de médica, e a observação et-

nográfi ca fi cava impregnada por uma inverdade

– principalmente considerando a presença do

etnógrafo como parte integrante da etnografi a

(Cliff ord 1983: 140). Os exames nesta clínica

duravam entre 5 e 10 minutos e sucediam-se

sem intervalo; nesta primeira tarde observei o

dobro do número de exames que costumava

observar em dias inteiros na clínica A. Era uma

atividade exaustiva, sem tempo para pensar, e

o mal-estar fi cou como uma questão inconclu-

sa, a ser elaborada. A solução só surgiu na se-

mana seguinte quando, na clínica C, também

trajando jaleco, fui apresentada pelo dr. Sílvio

à gestante e acompanhante, dentro da sala de

exames, nos seguintes termos: “Esta é a dra. Li-lian, que trabalha conosco aqui na clínica.”

Obviamente não era o caso de desdizer o mé-

dico naquele momento, mas defi nitivamente a

apresentação não correspondia à verdade. Meu

desconforto tornou-se completo. O ‘disfarce’,

antes vago, havia sido verbalizado. Ao elaborar

o texto etnográfi co, dei-me conta de que, en-

tre outros fatores, esse foi um dos modos de o

médico se colocar em uma posição hierárquica

‘superior’, por ser ele o dono da clínica. Ocor-

reu-me então adotar um procedimento diverso

do que até então: apresentar-me às gestantes na

sala de espera, explicar brevemente a pesquisa e

pedir permissão para observar seu US. Solução

simples e óbvia, mas de implementação deli-

cada: tive medo que dr. Sílvio vetasse meu in-

tento, por receio de que esta interferência fosse

‘espantar’ a clientela que, rica, não gostaria de

ser ‘objeto de estudo’. De fato, dr. Sílvio estra-

nhou quando o consultei mas, embora relutan-

te, acedeu ao meu pedido. A partir de então,

passei sempre a conversar brevemente com as

gestantes, tanto da clínica C quanto da B sobre

o que estava pesquisando e o que signifi cava

o tomar notas, penitenciando-me por não ter

tomado esta atitude na clínica A. Um aspecto

digno de nota é que, em geral, as gestantes se

surpreendiam com o meu pedido de permissão

para assistir ao exame. Apenas uma vez a ges-

tante recusou, pedindo desculpas e alegando

encontrar-se em um momento delicado. Exce-

to ela, nenhuma grávida pareceu considerar a

minha presença como invasão de privacidade,

provavelmente por o exame conter de modo

intrínseco uma ‘naturalidade’ de expor suas

entranhas. Essa naturalização evidenciava-se

também na não-percepção, pelos médicos, da

minha presença como possivelmente invasiva

para as gestantes, fato que interpretei como re-

fl exo de sua atividade cotidiana: devassar o in-

terior dos corpos. Com meu reposicionamento

diante das gestantes e acompanhantes, percebi

estar muito mais à vontade para anotar e fi cou

claro o quanto o esclarecimento sobre minha

posição de observadora para todos os atores da

cena observada, e não apenas para os profi ssio-

nais, tivera uma repercussão signifi cativa sobre

o modo como me sentia como pesquisadora.

Essa decisão marcou um momento de tomada

de posição como etnógrafa no campo – para

meus sujeitos e para mim mesma.

5 Vicissitudes da presença da obser-vadora

Na clínica A, desde o início percebi que os

profi ssionais se sentiam mais desconfortáveis

com minha presença, na sala de US e na de

laudos – entre os exames –, do que as gestantes.

Durante as sessões este desconforto era expresso

de modo muito sutil, perceptível através de de-

masiadas explicações científi cas supostamente

fornecidas à gestante, mas evidentemente diri-

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

gidas a mim, pois observei que à medida que o

tempo passou elas diminuíram, denotando que

seu exagero estava vinculado à ‘novidade’ da

presença de uma observadora.39 Na sala de lau-

dos, o desconforto se manifestava sempre sob a

forma de brincadeiras, diretas ou indiretas. Pelo

fato de haver longos intervalos entre os exames,

meu convívio com os profi ssionais desta clínica

foi mais prolongado do que nas outras duas.

Estes mantinham entre si um relacionamento

muito bem-humorado, sendo comum haver

troças, piadas e gozações recíprocas, nas quais

fui logo incluída.40 Conjugando estes três as-

pectos – contato mais prolongado, explicações

e brincadeiras – e, sobretudo, considerando a

forma jocosa como um modo mais fácil de ex-

pressar constrangimento, fi ca claro porque há

mais exemplos interpretados por mim como

desconforto advindos desse grupo.

As manifestações diretas de mal-estar pela

minha presença consistiam em dizerem rindo,

no meio de uma conversa: “Ih! Cuidado com o que ela vai pensar da gente! Um bando de ma-lucos!”41 Nestes momentos entendia que estava

sendo vista efetivamente como alguém de fora

do grupo, embora fosse um tanto vago em qual

categoria me inseriam, se psicanalista ou antro-

póloga – assim como qual das duas percepções

provocava maior desconforto neles. Esta noção

um tanto confusa sobre o que eu estava a fazer

lá também surgia sob a forma de colaboração,

como:

Logo que chego, dr. Henrique me cumprimenta

dizendo: “Puxa, você perdeu! A descompensação de um pai quando soube o sexo! A clínica parou! Aquilo é para analisar. Tive que parar o exame,

39. Menezes passou pelo mesmo processo em sua primei-

ra etnografi a (Menezes 2000: 11).

40. Assim como apontado por Geertz em Bali, ali “ser

caçoado [era] ser aceito” (Geertz 1989b: 282).

41. Menezes observou o mesmo tipo de comentários em

sua etnografi a do CTI (Menezes 2000: 11).

dizer ‘Pera aí’... Parecia jogo de futebol! O cara berrava feito um louco!” Dra. Ana entra na sala

e comenta: “Puxa! Um exame (...), o pai deu um berro, eu até saí para ver (...)! Você tinha que es-

tar aí! P’ro teu trabalho...” (Clínica A).

Por vezes surgiram manifestações indiretas de inequívoco caráter persecutório:

Sentada em um canto, ocupada tomando notas,

presencio uma conversa sobre um panetone que

Henrique dera para Priscila e que fi cara na pra-

teleira de uma semana para a outra porque esta

não o levara consigo. O médico diz, brincando,

que vai pegar de volta e alguém ri: “Panetone? Isso não é panetone coisa nenhuma! Isso é uma

câmera escondida!” [Risos gerais] Ele comple-

ta no mesmo tom gaiato: “Mas isso é antiético!

Tinha que ter aquele cartaz ‘Sorria, você está

sendo fi lmado’! Vou processar...” Continuo ano-

tando, agora o episódio. (Clínica A).

Outro comportamento que interpretei

como desconforto com ‘toques persecutórios’

foram tentativas, em tom semi-jocoso, de ‘co-

optação’, sugerindo que eu estava sendo perce-

bida como uma espécie de ‘auditora’ externa:42

Dra. Priscila comenta comigo que os ultra-sono-

grafi stas são tratados como a “escória” da clínica,

porque “Ultra-som não dá lucro” e além disso há

o contato médico-paciente, o que não ocorre em

outras tecnologias. “As reclamações são sempre do US... é o único serviço que não tem chefe, cada um é responsável pelos exames que faz... Você vê que todos os outros serviços têm um chefe. Vê se você

42. Menezes refere que um de seus informantes pensou

a princípio que ela seria “fi scal do [Anthony] Garo-tinho” (Menezes 2000: 10), à época governador do

Estado do Rio de Janeiro. Monteiro relata que seus

sujeitos de pesquisa acharam inicialmente que ela es-

taria avaliando o desempenho dos fellows em catete-

rismo (Monteiro 2001: 46).

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

fala bem da gente, aí!” [Aponta para minhas

anotações]. (Clínica A).

Na clínica A, acompanhava em especial

dr. Henrique, embora observasse por vezes

outras médicas. Percebi que elas eram mais

silenciosas durante a realização dos exames,

e me perguntei acerca da possibilidade de ele

estar se exibindo para mim.43 Ao longo do

tempo, comparando as atitudes de médicos e

médicas nas clínicas B e C, no tocante a este

aspecto, consolidou-se a impressão de que,

para além das peculiaridades pessoais, havia

uma questão de gênero atravessando o campo:

via de regra as profi ssionais mantinham ati-

tudes aparentemente mais relaxadas, menos

tensas e exibiam menos ‘conhecimentos cien-

tífi cos’ durante os exames do que seus colegas

homens. Curiosamente – ou nem tanto – em

conversas meus informantes, ao perguntar-

lhes diretamente se durante as sessões minha

presença os incomodava, à exceção de dra.

Lúcia todas as médicas confessaram-se tensas

nos primeiros exames que observei, enquan-

to a resposta dos médicos – dr. Henrique e

dr. Sílvio – foi enfática: “Em absoluto, não me incomoda em nada!”, tendo dr. Sílvio acres-

centado: “Eu até gosto!”. No entanto, minha

impressão era justo o contrário. Pelo prisma

das relações de gênero, os médicos pareciam

apelar para os conhecimentos científi cos para

demarcar a posição de poder. Além disso, na

clínica C, durante os exames ocorria um tipo

de conversa entre dr. Sílvio, gestante e acom-

panhantes em torno de questões ‘médicas’

que evidenciava uma preocupação marcan-

te dele de que o exame se constituísse mais

como procedimento científi co do que como

‘evento social’ – um dos fantasmas temidos

43. A questão em foco consiste na exibição de conhe-

cimentos médicos ‘para a colega’. Menezes comenta

aspectos similares em suas duas etnografi as (Menezes

2000: 10; 2004: 95).

e depreciados pelos profi ssionais da área.

Na prática, contudo, não deixava de ser um

evento social, apenas revestido do que deno-

minei, para meu uso, de uma ‘medicalidade

explícita’.44

Na clínica A, as gestantes pareciam não

atentar para a minha presença. Apenas algumas

vezes percebi que me observavam de esguelha

enquanto tomava notas, e só eventualmente

perguntavam o que eu estava estudando. Um

aspecto a ressaltar é que as imagens ultra-so-

nográfi cas parecem exercer um poder quase

‘hipnótico’, sendo difícil para todos – inclusive

eu, nos primeiros tempos de observação – des-

pregar os olhos da tela do monitor do aparelho

ou da TV a ele conectada (existente nas clíni-

cas A e C).45 Nesse sentido é que pareceu-me

que, para as gestantes, o fato de eu estar na sala

tinha um caráter secundário. Por outro lado,

contudo, na clínica A, em situações tensas, em

especial diante de preocupação com possíveis

patologias, dei-me conta um dia de que eu estar

ali poderia representar um acréscimo de preo-

cupação para as grávidas, relacionado ao fato de

ser visivelmente mais velha que dr. Henrique e

44. Por ‘medicalidade explícita’ refi ro-me a um tipo de

explanação fornecido às gestantes em tom solene,

professoral, durante os exames. Era um discurso re-

buscado, com muitos termos científi cos. Mesmo já

familiarizada com os termos do campo, freqüente-

mente me perdia nessas explicações. Pergunto-me se

as gestantes e acompanhantes eram capazes de enten-

der a fala do médico e se esta atitude dele os tranqüi-

lizava. A rigor, pareceu-me que essa atividade tinha

um caráter de ‘exibição de conhecimentos’ para todos

os presentes na sala, eu incluída, e era, sobretudo, um

reasseguramento para o próprio médico.

45. As imagens polarizavam o olhar de todos os presentes

na sala de exame. No início do trabalho de campo

por diversas vezes dei-me conta do quanto era difícil

desviar a atenção do monitor, sendo necessário me

disciplinar para não ser ‘cooptada’ pela cultura nati-

va, magnetizada pelas imagens, e conseguir focalizar

a observação nos discursos, interações e negociações

que ocorriam incessantemente.

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

de ter sido apresentada por ele como “dra. Li-lian”. Percebi que, para elas, a minha presen-

ça podia signifi car algo como uma 2ª opinião,

‘mais abalizada’ sobre o assunto do que a dele;

neste caso eu estaria sendo percebida como

médica e não como pesquisadora. Ao me dar

conta disso, sempre que se evidenciava alguma

ocorrência similar eu parava de tomar notas e

dava a entender, implícita ou explicitamente,

que minha observação não se vinculava a moti-

vos ‘médicos’. Nas clínicas B e C, do momento

em que passei a pedir autorização para assistir

ao exame, ou seja, ao me posicionar como et-

nógrafa, tal não voltou a ocorrer. Ainda assim,

em momentos difíceis,46 em respeito à gestan-

te, deixava para anotar depois, pois parecia-me

uma atividade inadequada para situações de

tanta angústia e dor.47

Finalmente, o mini-fi chário como um fa-

tor de interferência. Inicialmente tomava no-

tas ao chegar em casa, mas diante da variedade

e da quantidade de informações, assim como

da rapidez com que as situações se sucediam,

a partir do 3o dia de observação na clínica A

optei por mudar o método. Senti que a única

saída era tomar notas no ‘local da ação’, sob

pena de empobrecer muito a etnografi a. Com

o tempo desenvolvi um tipo de registro quase

estenográfi co. Nas três clínicas, meu fi chário

minúsculo foi sempre uma fonte inesgotável de

curiosidade, comentários e gozações por parte

46. Refi ro-me à descoberta – esperada ou inesperada – de

patologias fetais durante o exame.

47. Menezes descreve o mesmo tipo de experiência (2004:

19-20). Aparentemente, nestas situações, surge para o

pesquisador uma sensação de desconforto por estar

presente ali nesta condição, concretizada pelo ato de

anotar. Parar de tomar notas teria o signifi cado de,

diante de questões literalmente de vida ou morte,

colocar temporariamente em segundo plano uma

questão comparativamente ‘menor’ – a sua própria

pesquisa. É impossível avaliar o quanto a formação

médica – minha e de Menezes – modela essa escala

de valores.

de médicos, médicas e atendentes.48 As reações

variavam desde perguntas do tipo “O que você tanto escreve aí? Vou querer ver...” até a mais re-

corrente de todas: “O que você vai fazer com es-sas anotações? Dá mesmo pra extrair alguma coisa daí?”. Eu costumava responder que fazia relatos

reconstituindo o que tinha visto e que esperava

sinceramente poder ‘extrair alguma coisa daí’.

De algum modo meus sujeitos de pesquisa

captavam um problema central de qualquer

etnografi a: a transformação das notas em texto

etnográfi co. A perturbação provocada pela mi-

nha atividade de anotar pode ser compreendida

como sendo resultado da explicitação do que

eu estava fazendo ali. Estar quieta observando

era uma coisa, anotar o que se passava era ou-

tra. As anotações por assim dizer ‘encorpora-

vam’ a atividade etnográfi ca e a intrusão. Meus

informantes mantinham uma atitude ambígua

em relação a este último aspecto em particular,

pois apesar do evidente incômodo provocado

pela minha atividade de registro, diversas ve-

zes fui inquirida por eles por que não fi lmava

ou usava gravador. Possivelmente o uso de um

dispositivo de registro mecânico, para eles, ha-

bituados à tecnologia, seria mais familiar, mais

‘neutro’, ‘objetivo’ e menos incômodo. Para

mim, contudo, o sentido de invasão contido

no uso de um dispositivo mecânico era exata-

mente o oposto.

Organizei os relatórios de observação no

computador de maneira modular, divididos

entre as observações das sessões ultra-sono-

gráfi cas, uma a uma, e uma parte relativa às

conversas, impressões e o que eu observava de

um modo geral – o diário de campo. Assim,

adotei a prática de, na observação seguinte,

trazer para quem eu observara a cópia do re-

lato de um dos exames. Selecionava algum

no qual houvesse mais registro de conversas e

poucos comentários meus sobre as práticas do

48. Menezes (2000: 11) foi alvo do mesmo tipo de reações.

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

profi ssional, visando evitar aumentar o senti-

mento persecutório daquele. Todos eles fi ca-

vam muito satisfeitos com esse procedimento

e muitos se surpreendiam: “Nossa! Como você vê tanta coisa acontecendo!”, ou então: “A gente fi ca só ali procurando imagens, nem repara nisso tudo que você viu.” A reação dos profi ssionais

ao meu texto de certo modo me apontou de

que ele estaria na linha da “fi cção verdadeira”

(true fi ction), delineada por Cliff ord e Marcus

(1986: 6). Um dia, dr. Sílvio pediu-me o re-

lato de certo exame que fora particularmente

difícil, pois pretendia discutir a situação com a

equipe; nessa ocasião fi quei satisfeita em poder

retribuir a acolhida que estava recebendo. O

pedido do médico – a quem eu já havia forne-

cido o relato de uma sessão – validou que parte

da “difi cílima transformação” (Pratt 1986: 32)

do trabalho de campo – mediado pelas notas

– em etnografi a formal encontrava-se em cur-

so. Percebi então que estava sendo vista como

alguém que trazia um outro olhar de alguma

‘utilidade’ para os profi ssionais, fornecendo

subsídios a eles para uma refl exão sobre sua

própria prática.49

6 Subjetividade e relações de poder na observação etnográfi ca

As relações de poder estabelecidas no campo

tinham um caráter dinâmico e cambiante. De-

pendendo do momento e da situação, mudava

o ator ‘detentor’ do poder, havendo áreas, por

assim dizer, de concentração deste. O profi s-

sional que realizava o exame era quem o con-

centrava na maior parte do tempo, parte por

estar investido do poder médico, mas principal-

mente por ser quem tinha o olhar treinado para

49. ‘Ter utilidade’ é um atributo bastante valorizado no

campo médico em geral e meus informantes não es-

capavam à regra. Atividades ‘apenas’ refl exivas e ana-

líticas eram bem menos respeitadas e, eventualmente,

sutilmente depreciadas por eles.

decodifi car e traduzir as imagens do monitor.

Contudo, não apenas muitas vezes as gestantes

‘aprendiam’ a ver, decodifi cando sozinhas o que

estava sendo exibido na tela como, a partir do

momento em que certas estruturas do feto eram

identifi cadas e explicadas pelos médicos, preen-

chendo de signifi cado as sensações maternas,

as grávidas eram ‘empoderadas’ e se sentiam de

alguma forma ‘mais donas’ de seus fetos. Além

desse aspecto, com freqüência as gestantes ou

acompanhantes solicitavam que fosse exibida

determinada parte do corpo fetal – em especial

a genitália – em tons que variavam de ‘pedidos’

até verdadeiras ‘ordens’, que via de regra os pro-

fi ssionais se apressavam em atender: as razões de

mercado aí se impunham.

Diferentemente do relatado na literatura

antropológica sobre o tema, na qual comumen-

te as gestantes declaravam sentir-se devassadas

e submetidas pelo poder médico, no grupo et-

nografado estas relações fl uíam de modo har-

mônico. É possível que neste universo o poder

médico tenha sido de tal modo ‘naturalizado’

no tocante à gestação, que os profi ssionais de

US, ‘permitindo’ às gestantes ‘ver’ seus fetos

e, desse modo, ‘se apropriarem’ deles, passa-

ram a ser vistos como ‘aliados’ das mulheres,

mais do que seus próprios obstetras. Conforme

uma gestante citada orgulhosamente por dr.

Henrique, “meu médico é você, que me mostra

o neném... o obstetra só mede, me pesa e mais nada...”. O contexto mais amplo da medica-

lização da gravidez e o conseqüente devassa-

mento do corpo feminino50 podem explicar,

em alguma medida, o espanto e a pronta anu-

ência das gestantes diante da minha solicitação

para assistir aos seus exames, indicando que o

pressuposto básico seria de que o interior de

seus corpos estivesse, por princípio, disponível

para ser visto por quem estivesse na clínica. O

fato de me apresentar como médica, realizando

50. Para aprofundamento deste tema, cf. Rohden

(2001).

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

uma pesquisa antropológica, e de ser mulher

com idade para ser mãe da maioria delas pos-

sivelmente contribuía para essa aquiescência

imediata. Porém, o aspecto que de fato me pa-

receu inusitado foi menos a pronta aceitação

do que o espanto manifestado por boa parte

das grávidas quando eu fazia tal pedido. Refl e-

tindo a posteriori sobre o período no qual não

pedi autorização alguma às gestantes, emerge

um sentimento de desconforto vinculado ao

entendimento de que minha presença na sala

de exames representou – do ponto de vista das

relações de poder – uma imposição do médico

para as pacientes, mesmo que não tenham ma-

nifestado nenhum mal-estar.

Conforme vimos, considerado pelo prisma

da possibilidade de decodifi cação das imagens,

o profi ssional era quem concentrava o poder

durante os exames. Contudo, tal situação pare-

cia sofrer um abalo quando eu me encontrava

na sala, pois, analogamente aos ultra-sonogra-

fi stas, de modo implícito dispunha-me a tam-bém decodifi car algo que ali se passava, ‘ver’ nos

gestos, imagens, interações e falas algo que não

era visível de imediato. Isto pode explicar em

parte o desconforto deles com minha presença.

Como já mencionei, as médicas confessaram

abertamente sentirem-se tensas, embora na prá-

tica me parecessem mais à vontade do que os

médicos. Estes desdobravam-se em explicações

às gestantes que mais sugeriam ser exibições de

conhecimentos e reafi rmação de posição hie-

rárquica do que esclarecimentos de fato para

elas. O exemplo mais evidente desta atitude

foi observado na clínica C quando o médico,

mediante a ‘medicalidade explícita’, reafi rmava

claramente quem detinha o conhecimento e,

portanto, o poder. O aspecto certamente incô-

modo e possivelmente persecutório da minha

presença pode ser atribuído a um velado desafi o

à posição hierárquica do especialista: em vez de

estar presente na sala apenas um profi ssional de-

tentor de conhecimentos esotéricos, havia uma

observadora, com conhecimentos outros, fora

da área médica, além do mais anotando coisas

em um misterioso fi chário, sabia-se lá para quê.

As médicas – possivelmente pelo fato de serem

mulheres diante de uma observadora mulher

–, mesmo se confessando incomodadas, eram

menos levadas à demonstração de competência

científi ca, de ‘disputa’ hierárquica e de gênero

do que os médicos que, de certa maneira, pare-

ciam sutilmente instigados a mostrar “who’s the boss” na situação.

Na clínica A, o fato de não usar jaleco, as-

sim como os termos utilizados pelo médico

para me apresentar ao entrarmos na sala de

exames, de algum modo indicavam que eu não

fazia intrinsecamente parte daquele universo –

embora atualmente eu não esteja muito certa

disso. Em geral não me sentia desconfortável

ao tomar notas durante os exames, deixando

o registro para depois apenas em poucas situ-

ações: morte ou patologias fetais. O ato de to-

mar notas sempre teve para mim o signifi cado

de uma intrusão, embora muitas vezes as ges-

tantes não parecessem sequer tomar conheci-

mento da minha presença, em especial a partir

do momento em que surgiam as imagens fetais

na tela do monitor. A solicitação de que vestis-

se o jaleco provocou-me um leve sentimento

de estranheza, sem contornos muito bem defi -

nidos, mas foi a surpresa experimentada na clí-

nica C – quando fui apresentada como médica

do staff – o elemento-chave para dar-me conta

da necessidade de reafi rmação, agora para ges-

tantes e acompanhantes, de qual era a minha

inserção naquele universo. Assim fazendo,

também construí para mim um self como pes-

quisadora. Fui notando que dispunha de várias

identidades e, sobretudo, que era assim perce-

bida pelos profi ssionais com quem convivi. O

fato de ser médica, psicanalista e aprendiz de

antropóloga foi sendo processado lentamente

pelos meus interlocutores e por mim mesma

à medida que a pesquisa prosseguia. Aos pou-

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

cos fui fi cando à vontade para transitar entre

as várias identidades no campo, o que se dava

quando, de uma conversa sobre temas médi-

cos – geralmente a partir de perguntas minhas

– passava-se para pedidos de explicação sobre

temas de sociologia ou antropologia e mesmo

à solicitação de um relatório de um exame. Em

algumas ocasiões, fui requisitada informal-

mente para consultas sobre questões pessoais

e dramas familiares dos profi ssionais. Embora

relutante de início, à medida que o trabalho

prosseguia fi quei gradual mente mais à vontade

e foi possível deixar os câmbios de identidade

fl uírem. Tenho certeza que essa fl exibilidade

permitiu que meus informantes adquirissem

confi ança e me fornecessem um material pre-

cioso de pesquisa. Como ocorre nas relações

que se aprofundam ao longo do tempo, a in-

teração com os profi ssionais foi multifacetada,

e ao mesmo tempo em que percebi neles sen-

timentos persecutórios, em outras revelou-se

uma confi ança – evidenciada parte pelo teor

de certas revelações, parte pela surpresa e a

leve decepção manifestadas sempre que eu

reiterava que os todos os nomes, inclusive das

clínicas, seriam mantidos em sigilo – que me

surpreendeu.

Embora qualquer análise envolva neces-

sariamente a busca de diversos ângulos para

abordagem do ponto em foco, considero que

as várias identidades entre as quais transitei ao

longo do trabalho de campo contribuíram de

maneira relevante para obter uma visão dinâ-

mica do universo pesquisado. Embora tenha

buscado todo o tempo manter um ponto de

vista antropológico, seria ingênuo supor que a

formação prévia, especialmente em medicina,

não tenha interferido e desempenhado algum

papel. Meu intuito neste artigo foi delinear de

que modo esta formação esteve presente no de-

correr do trabalho de campo e na elaboração

do texto etnográfi co. Mesmo correndo o risco

de ter sido demasiado confessional, espero ter

podido aqui avançar na discussão de alguns dos

aspectos metodológicos que me ocuparam ao

longo da etnografi a. Consolo-me de antemão

apoiando-me em Geertz (1989a), quando este

declara ironicamente que

A antropologia, ou pelo menos a antropologia in-

terpretativa, é uma ciência cujo progresso é mar-

cado menos por uma perfeição de consenso do

que por um refi namento de debate. O que leva

a melhor é a precisão com que nos irritamos uns

aos outros (39).

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resumo Este trabalho analisa a maneira de

construção da memória de dois grupos familiares

considerados tradicionais na cidade de Belém do

Pará, em virtude de uma trajetória histórica excep-

cional que é tornada pública. O fi o condutor dessa

discussão é a memória social, com atenção especial

à forma como ela é tratada nos estudos teóricos de

Maurice Halbwachs. Utilizando depoimentos orais

e a versão escrita da memória familiar, é feita uma

refl exão de como as trajetórias individuais, o per-

curso do grupo e as articulações entre passado e pre-

sente interferem na estruturação das lembranças.

palavras-chave memória, família, indiví-

duo, sociedade, tempo social.

Os caminhos da memória*

MARIA ANGELA GEMAQUE ÁLVARO

Mestranda pelo PPGCS/CFCH/UFPA e tecno-

logista em Análise Sócio-econômica do IBGE.

Artigo aceito para publicação em 19/09/05

abstract Th is paper analyses memory cons-

truction in two families considered to be traditional

in the context of their hometown, the city of Belém

do Pará, these groups being so judged in virtue of

an exceptional historic trajectory. Th e central con-

ducting element in such a discussion is social me-

mory, with emphasis on the way it is considered in

the studies by Maurice Halbwachs. Based on the

study of oral and written narratives, a refl ection is

made on the ways individual and group trajectories

as well as the links between past and present inte-

ract to form memory structure.

keywords memory, family, individual, socie-

ty, social time.

* Estas refl exões se integram ao projeto de pesquisa

intitulado “Memória emblemática: o que os tradi-

cionais nos contam sobre seu passado?”, que estou

desenvolvendo dentro do Programa de Pós-graduação

em Ciências Sociais, no nível de mestrado, do Centro

de Filosofi a e Ciências Humanas da Universidade Fe-

deral do Pará. O material etnográfi co foi coletado em

1990, consistindo em entrevistas com descendentes

dessas duas famílias, assim como em livros publicados

por cada uma delas, e pode ser encarado como um

documento revelador da memória familiar num mo-

mento específi co. O termo tradicional deve ser enten-

dido aqui como um adjetivo que é aplicado a famílias

cujos nomes e trajetórias estão associados à história

da cidade, na medida em que membros situados em

gerações distintas exerceram continuamente o poder

político e econômico, e/ou tiveram amplo destaque

social. São famílias que têm uma visibilidade pública

e a possibilidade de cruzarem a história familiar com

uma dada versão da história local voltada para o feito

(ou para a construção) de personagens. Para as famí-

lias enfocadas neste estudo, trata-se de um adjetivo

que é tanto assumido internamente, quanto reconhe-

cido pelos de fora do grupo.

cadernos de campo n. 13: 33-46, 2005

34 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

I

A partir das lições de Halbwachs (1990)

sobre a articulação entre memória individual e

os grupos nos quais o indivíduo toma parte,

farei uma abordagem sobre os processos sociais

que interferiram na formulação das lembranças

de duas famílias consideradas tradicionais no

contexto da cidade de Belém do Pará: os Albu-

querque e os Duvignaud.1

Trabalhei com dois grupos que, embo-

ra tenham um traço em comum – o adjetivo

tradicional que lhes é aplicado –, apresentam

diferenças no que se refere à trajetória e aos

vínculos com o Pará, o que me permitiu vis-

lumbrar duas construções distintas de memó-

ria. As diferenças se expressam nas imagens

formuladas acerca do passado do grupo, assim

como nos fenômenos que interferiram na es-

truturação das lembranças, e podem ser com-

preendidas com base no referencial fornecido

por Halbwachs (1990).2

1. Os nomes de família, assim como os nomes pessoais,

citados ao longo do trabalho são fi ctícios. Procedi des-

sa forma em virtude de alguns aspectos da memória

familiar terem sido tratados com parcimônia e certo

incômodo por alguns, havendo casos de solicitação

de não identifi cação pessoal. Procurei adotar nomes

que guardassem alguma proximidade com a ênfase

dada pelos entrevistados às suas origens (francesa no

caso dos Duvignaud, e portuguesa/nordestina para os

Albuquerque). Esclareço, ainda, que quando utilizo o

termo família para falar dos Albuquerque e dos Duvig-

naud, estou delimitando os grupos a partir do nome de

família. Assim, investigo dois grupos de parentes que

se reconhecem enquanto tal por possuírem um nome

de família em comum, o qual remete a uma história

cuja divulgação ultrapassa o âmbito do grupo.

2. Na teoria formulada por Halbwachs (1990) destacam-se

duas relações: entre o passado e o presente e entre o indi-

víduo e a sociedade. Ao considerar o ato de rememorar

como uma viagem ao passado que tem sempre como

referência o tempo e o espaço vivenciado por quem re-

lembra, o autor deixa claro que a memória estabelece

uma relação entre esses dois tempos sociais. Essa relação

torna-se dialética na medida em que o passado é visto,

A ligação histórica dos Duvignaud com o

Pará remete à época colonial, com a chegada

em 1760 do primeiro membro desta família no

que era, então, a Capitania do Grão-Pará. Sua

condição de ofi cial militar lhe dava uma apro-

ximação conveniente com o poder, que ele sou-

be potencializar ao casar-se com a descendente

de uma família já consolidada como grande

proprietária de terras. Nas gerações seguintes

esse patrimônio foi ampliado num processo de

concentração de riqueza, em que o estabeleci-

mento de alianças matrimoniais com outros

membros da elite fundiária local desempenhou

importante papel.

Essa família alcançou o ápice de seu des-

taque social, político e econômico durante a

Época da Borracha (1850-1910), quando a

exploração do látex se tornou a principal ati-

vidade econômica, representando um fl uxo de

capitais signifi cativo para a região, em virtude

dos interesses do capital internacional. Atentos

às novas oportunidades, os Duvignaud soube-

ram diversifi car seus negócios, até então situa-

dos no ramo pecuário, e criaram aproximações

– inclusive matrimoniais – com o grupo dos

comerciantes.

Embora a base de seu poder fosse local, con-

seguiram penetrar no cenário mais amplo da

política, tornando-se fi guras de destaque nos

primeiros anos da República, movimento fren-

te ao qual alinhavam-se entre os precursores no

também, como um referencial orientador para o presen-

te. Assim, a memória não é algo dado, mas um fenôme-

no construído. É a partir dessa percepção que a relação

indivíduo/sociedade adquire um caráter onde as forças

sociais são devidamente consideradas, mas não subju-

gam o papel do indivíduo. Nessa memória, vista como

construção, caberá ao indivíduo o papel de agente, pois

é ele que, ao transitar entre diferentes grupos sociais no

interior de uma sociedade, estabelece a articulação de

tempos e espaços sociais distintos. Confrontando suas

lembranças com as dos outros membros do grupo, ele

forja a sua memória individual e ajuda a estruturar a do

grupo.

|

cadernos de campo • n. 13 • 2005

Pará. Seus cargos políticos vieram somar-se aos

títulos de nobreza outorgados a eles durante o

Império, como elementos de distinção social da

família. Distinção que era marcada, também,

pelo estilo de vida que cultivavam, espelhados

nos padrões europeus amplamente dissemina-

dos entre os grupos cada vez mais enriquecidos

com o crescimento da exploração da borracha.

A partir do fi m desse ciclo econômico, a

família começou a se dispersar pela migração

de alguns ramos em direção à capital federal

da época: a cidade do Rio de Janeiro. Mas só

perdeu efetivamente sua expressão a partir da

década de 30, tanto em função da diluição de

seu patrimônio, como das novas articulações

que surgiram na política.

Já a família Albuquerque surge no Pará no

início do século XX, a partir da migração de

Pedro Albuquerque, descendente de um grupo

oligárquico nordestino já arruinado fi nancei-

ramente. Seus ancestrais maternos, de origem

portuguesa, haviam se fi rmado numa região do

Rio Grande do Norte, ainda no século XVIII,

consolidando-se como grandes proprietários

rurais da lavoura canavieira e chefes políticos

locais durante o Império. A decadência fi nan-

ceira da família, ocorrida na segunda metade

do século XIX, conduziu o pai de Pedro Al-

buquerque a investir na educação do mesmo,

empenhando-se pessoalmente do assunto, ao

assumir o papel de professor do fi lho até o seu

ingresso na Faculdade de Direito do Recife,

procedimento que é descrito nos livros e nos

depoimentos orais em termos artesanais.

Já formado em Direito, e não podendo con-

cretizar suas expectativas, que voltavam-se para

o principal centro político e cultural da época,

a cidade do Rio de Janeiro, Pedro Albuquerque

consegue carta de recomendação endereçada

ao governador do Pará, Augusto Montenegro,

diante do qual se apresentou em 1902, obten-

do uma colocação como promotor numa cida-

de do interior.

Nessa cidade, que chamaremos aqui de Re-

manso, ele se entronizou rapidamente nos qua-

dros da elite local, o que é confi rmado pelo seu

matrimônio poucos anos depois com a fi lha do

principal chefe político da cidade, que, como

o próprio Pedro, podia citar uma ascendência

nobiliárquica em sua biografi a: era, também,

neta de um barão do Império. No momento

em que se celebrava o casamento, a família So-

ares de Cabral, da qual provinha a noiva, vivia

em uma situação bastante favorável, tanto do

ponto de vista político quanto econômico, em

função de seu posicionamento ao lado dos per-

sonagens que dominavam a política paraense

e de suas participações no negócio da borra-

cha. Poucos anos depois, a queda do preço da

borracha amazônica no mercado internacional

reverteu esse quadro, respondendo pelo declí-

nio econômico dos Soares de Cabral, agravado

ainda mais por mudanças na política local, que

afastaram seus antigos pares do poder. Para Pe-

dro Albuquerque, que vivia então na capital do

Estado, para onde havia obtido sua transferên-

cia como promotor, as mudanças no cenário

político lhe custaram o cargo.

Embora as difi culdades fi nanceiras tenham

marcado sua trajetória, ele conseguiu construir

um nome a partir de sua atuação como pro-

fessor da Faculdade de Direito do Pará, como

advogado, como político e como homem das

letras (publicou vários livros e inúmeros ar-

tigos em jornais). Mais que isso, conseguiu

dar uma orientação bastante uniforme a sua

numerosa prole, basicamente masculina, que,

tendo como modelo a trajetória paterna, pro-

curou consolidar sua posição no cenário local,

articulando o exercício de uma profi ssão libe-

ral respeitada (medicina, direito, engenharia)

com funções públicas (às vezes políticas) e com

a participação em instituições voltadas para o

campo intelectual (Academias de Letras, Ins-

titutos Históricos, Ordens Profi ssionais). A

visibilidade da família, e seu reconhecimento

36 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

como tradicional no contexto da cidade de

Belém, resulta, portanto, da somatória destas

trajetórias e de seu passado familiar glorioso,

pontualmente divulgado.

II

Para os dois grupos familiares, entrevistei

pessoas próximas em termos de laços de paren-

tesco e de convívio, enfocando para cada um

deles um grupo de siblings. No caso da família

Albuquerque, os entrevistados foram três fi lhos

e dois netos de Pedro Albuquerque. Para a fa-

mília Duvignaud, coletei depoimentos de três

irmãos, de uma prima destes, e da fi lha dela,

que era também esposa de um dos irmãos en-

trevistados.

Pedro Albuquerque é a fi gura central das

memórias de seus descendentes, e é, também,

o grande articulador de práticas que ajudam

a preservar a memória familiar e torná-la co-

nhecida entre os paraenses. Nota-se nas me-

mórias – especialmente na oral – uma ligação

mais íntima com as raízes nordestinas da fa-

mília. As raízes paraenses são mencionadas e

valorizadas (títulos de nobreza, poder político

e econômico), mas os entrevistados não de-

monstram em relação a ela a mesma intimi-

dade, a mesma riqueza de detalhes. Um dos

fi lhos de Pedro Albuquerque nos dá indícios

que ajudam a esclarecer tal fato: a postura re-

servada da mãe, que falava muito pouco sobre

sua terra de origem, à qual não mais retornou

após o casamento, e, também, a dispersão dos

parentes.

Halbwachs (1990) levanta a importância

dos testemunhos para a formação e permanên-

cia das lembranças. Na formação da memória

individual, sobressai o papel dos laços de con-

vivência que estabelecemos com os membros

dos diversos grupos que fazem parte do nosso

dia-a-dia e da nossa trajetória, e que permitem o

contínuo confronto entre nossas lembranças e a

dos outros. Afi rma, também, que se o grupo se

dissolve e se já não temos com quem partilhar

nossas lembranças, o quadro vivido se esmaece

e as imagens tornam-se fugidias. Afastada da

sua cidade, do seu grupo familiar que se disper-

sa, dos amigos e vizinhos que compunham sua

rede de relações, parece ter faltado a Mariana

– esposa de Pedro Albuquerque – o apoio do

testemunho alheio.

Pedro Albuquerque também afastou-se de

sua terra natal, mas encontrou no Pará grupos

de convívio com os quais pôde partilhar suas

lembranças: famílias nordestinas de posição e

trajetória semelhantes às dos Albuquerque. Um

dos seus fi lhos afi rma:

quando o meu pai chegou aqui – chegou em

Remanso3 e depois veio pra Belém –, muitas fa-

mílias originárias do Nordeste já fl oresciam aqui

no Pará. Lá em Remanso mesmo, ele veio en-

contrar uns primos dele, o Juliano Albuquerque, que era um homem eminente lá em Remanso

e Manaus. Ele foi encontrar a família Tavares, que está vinculada com a nossa ancestralmen-

te, umas três ou quatro gerações mais pra trás.

Que eram famílias já implantadas no Pará (...)

Se formos verifi car, por exemplo, os professores

da Faculdade de Direito, vinte anos passados,

quase todos eles eram nordestinos e quase todos

formados pela Faculdade de Direito do Recife

(Arthur Albuquerque, 73 anos).

Pedro Albuquerque foi promotor numa ci-

dade pequena, onde fi gura pública de destaque

tinha linha de parentesco consigo. Depois, tor-

nou-se professor de Direito, numa faculdade

onde o corpo docente era, predominantemen-

te, oriundo da Faculdade de Direito do Recife.

Além disso, sua atividade de escritor conduziu-

o a tornar-se membro fundador da Academia

3. As palavras em itálico substituem outros termos utili-

zados pelos informantes em seus depoimentos, ou são

esclarecimentos que julguei necessário fazer.

|

cadernos de campo • n. 13 • 2005

Paraense de Letras, onde encontrou o campo

propício para o cultivo da memória familiar e

sua divulgação.

Representando o início de uma nova tradi-

ção, e procurando guiar seus fi lhos pelos mes-

mos caminhos, Pedro transita entre o passado

e o presente, tecendo uma história que é, tam-

bém, um respaldo ao seu projeto de ascensão.

Qual a tônica dos depoimentos dos seus fi lhos

e netos? O que sempre vai ser lembrado é a

trajetória do próprio Pedro, tendo por pano

de fundo o passado mais remoto de fausto e

poder. É a história da dedicação absoluta do

pai à sua formação, seu mestre desde a alfabeti-

zação até a entrada na faculdade de Direito. É

a descrição dos percalços e sacrifícios vencidos

através de um esforço ímpar, mas que conduz

à glória representada pela construção de uma

carreira pública.

Através do contar e recontar dessas histórias,

vai-se criando uma semelhança de elementos

narrativos nos discursos dos diferentes mem-

bros da família. E é nessa uniformidade e nessa

repetição que a memória dos Albuquerque se

aproxima de uma lenda. Pedro Albuquerque

narra sua trajetória, e, ao fazê-lo, orienta e

aconselha os seus. De acordo com Bosi:

Há episódios que gostamos de repetir, pois a

atuação de um parente parece defi nir a natu-

reza íntima da família, fi ca sendo uma atitude

símbolo. Reconstituir o episódio é transmitir a

moral do grupo e inspirar os menores. Podemos

reconstruir um período a partir desse episódio

(1987: 345-346).

Em seu papel de orientador e conselheiro,

Pedro Albuquerque adota uma prática com-

patível com o discurso. Ao dedicar-se a acom-

panhar os estudos de seus fi lhos, ele reproduz

rotina artesanal de ensino, semelhante àquela

levada a efeito por seu pai em sua educação.

Seus fi lhos afi rmam:

O meu pai foi um homem sempre voltado aos

livros, desde... Ele estudou, se alfabetizou, com

meu avô, no engenho, com vela de cera de car-

naúba feita pela minha avó. Não tinha luz elé-

trica, não tinha querosene, não tinha nada. Era

cera de carnaúba. Minha avó fazia aquelas velas

e o meu avô fez uma cartilha de abc, por onde

ensinou meu pai. Esta cartilha de abc, salvo en-

gano, está em mãos da minha irmã Lígia, não

sei bem por onde está. Mas ela existe, ela foi

feita pelo meu avô e nela, nessa cartilha de abc,

meu pai aprendeu a ler e a escrever (Arthur Al-

buquerque, 73 anos).

Papai deu um valor tão grande... como já lhe

disse, colocava um fi lho aos cinco anos no pri-

mário, onze no ginásio e dezessete nas faculda-

des. Quem nos visitava naquele tempo, que nós

morávamos na avenida das Andorinhas 21, era

uma coisa espantosa. Oito horas da noite estava

o papai na cabeceira, e todos os fi lhos, ele ensi-

nando. Um ensinando Geografi a, outro Histó-

ria. Todo mundo que viveu naquele tempo dizia:

“quando nós íamos à casa do Pedro Albuquerque, nós encontrávamos vocês todos estudando.” (...)

Papai só nos liberava do estudo sábado (Paulo

Albuquerque, 76 anos).

Indo além das narrativas, ele põe os fi lhos

em contato com o ambiente em que viveram

os antepassados, através das viagens constantes

a um dos engenhos da família no Nordeste,

que ele procurou recuperar e manter. As des-

crições dessas viagens remetem à importância

das mesmas na construção e permanência de

uma memória familiar. O mundo físico que

circundava os antepassados passa a ser vivido e

usufruído. Conforme Pollack: “Nas lembran-

ças mais próximas, aquelas de que guardamos

recordações pessoais, os pontos de referência

geralmente apresentados nas discussões são,

como mostrou Dominique Veillon, de or-

dem sensorial: o barulho, os cheiros, as cores”

38 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

(1989: 11). Ouvem-se narrativas diversas,

contadas pelos personagens desses engenhos,

que vão compondo um quadro vivo do que foi

a vida do bisavô major ou do tataravô barão.

Papai me dizia: “meu fi lho, nunca na mesa do

meu avô Carlos Seabra, ele comeu sozinho com

a Maria Antônia, com a Dindinha. Sempre

tinha gente. Quatro, cinco, seis, oito, dez co-

mensais. Vinham do sertão, vinham do Pontal, vinham de Natal”. Entravam na casa de meu bi-

savô como se entrassem na própria casa. Sempre

a mesa farta (Paulo Albuquerque, 76 anos).

Pollack (1992) indica que os acontecimen-

tos, personagens e lugares são elementos cons-

titutivos da memória, e podem resultar de um

conhecimento direto, quando fazem parte do

espaço-tempo de uma pessoa e foram viven-

ciados ou conhecidos pessoalmente. Mas a

memória de uma pessoa pode, também, incor-

porar lembranças que correspondem ao legado

do grupo – embora não advenham diretamente

de suas biografi as –, através de um processo de

socialização que leva a uma identifi cação com

determinado passado. Trata-se, neste caso, de

uma “memória herdada”, já que diz respeito a

experiências pessoais de outros.

O engenho é um lugar conhecido e usufruí-

do pessoalmente pelos fi lhos de Pedro Albuquer-

que, mas sempre com referência a personagens

e relações passadas. A perda da importância

econômica da região, após a queda da economia

açucareira, parece ter criado um nicho do pas-

sado, pois as narrativas revelam muitas perma-

nências, muitas continuidades. Nas descrições

do engenho permanece a ausência de certas co-

modidades, pois, como na época dos antepas-

sados, não havia sanitários. Os fi lhos de Pedro

Albuquerque tiveram, também, a oportunidade

de conviver com personagens que acompanha-

vam a família há anos, como ex-escravos e seus

fi lhos. E o proprietário, embora não dispusesse

da mesma situação que seus antepassados, ainda

se apresentava aos criados da mesma forma que

aqueles, deixando de lado as roupas domésticas

e envergando calça, camisa, paletó e gravata, já

que o traje distinguia o dono.

Halbwachs (1990) toca nos signifi cados

que o espaço assume ao ser marcado pelas re-

lações estabelecidas entre os homens. Regido

pelos mesmos símbolos que impregnam a vida

social, o espaço torna-se ponto de referência na

estruturação da memória. O passado é evocado

não apenas nas histórias de Pedro, mas o am-

biente, os personagens do engenho e vários as-

pectos da rotina diária parecem trazer de volta

os antepassados.

Ainda quando eu fui com doze anos – onze ou

doze anos – pro engenho, ainda conheci muitas

escravas. A Tamunda – que era Raimunda –, a

Cotó, a Sinhazinha. Ainda conheci essas escra-

vas e, inclusive, o grande amigo do papai, que

era um preto, que era tão preto que o apelido

dele era Cambraia. (...) E também da Maria que

era empregada de casa. Quando ia lavar as pane-

las à noite – sete horas da noite – o luar bonito,

ela cantava: “Luar da lua/ Sereno das estrelas...”.

Eram os primeiros versos. A canção era longa,

mas nunca me esqueci dela lavando, esfregando.

(...) Acabava a cozinha, sete horas da noite, ela

ia... não lavava dentro de casa. A panela era la-

vada do lado de fora, com areia, bem esfregada

(Paulo Albuquerque, 76 anos).

Ele fala, também, com tal intimidade da

avó que parece ter convivido com ela.

(...) minha avó, mãe do papai, dona Albertina,

era também uma mulher muito altiva e muito

dura. Muito, muito segura e de muito pulso.

Diferente da minha avó [na verdade, sua bisa-vó], que era a Dindinha, chamada Dindinha,

casada com o Major Carlos Seabra, que a fun-

ção dela era colocar as mucamas – quinze, vinte

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

mucamas – em torno dela, com bilro, ela ensi-

nando a fazer rendas. Ela fi cava na cabeceira e

botava as mucamas – as moreninhas – todas, ela

ensinando renda pra todas elas.

Assim, através das lembranças dos Albu-

querque é possível resvalar o cotidiano da fa-

mília, desde a época do seu apogeu enquanto

parte da oligarquia canavieira nordestina, pas-

sando pelo seu declínio e chegando à constru-

ção mais recente de uma tradição que enfatiza

a erudição do grupo e suas carreiras públicas.

Os membros dessa família – especialmen-

te os entrevistados mais velhos – conseguem

reconstruir verbalmente a trajetória da famí-

lia, e de forma muito semelhante a como ela

está escrita e publicada em livros e crônicas.

Nota-se que, aqui e acolá, aparecem informa-

ções que demonstram a existência, entre os

membros da segunda geração, de um trânsito

de informações e objetos de família – fotogra-

fi as, manuscritos, quadros, objetos pessoais e

aqueles que assinalam a distinção dos antepas-

sados –, revelando que o passado se constitui

em matéria de interesse a que continuamente

retornam. O fato de alguns membros da fa-

mília terem se dedicado à construção de uma

versão da história familiar, não individualmen-

te, mas através de um esforço conjunto, em

que contribuições particulares foram sendo

incorporadas, após serem reveladas ao grupo

e se tornarem recorrentes – talvez por expo-

rem alguma faceta que se pretendia destacar –,

criou uma aproximação entre o registro escrito

da história familiar e as memórias particulares

de seus descendentes. As vinculações de vários

deles a instituições culturais valorizadoras de

uma dada versão histórica, centrada nos gran-

des personagens e em biografi as, foi também

importante na criação de uma uniformidade

no discurso.

III

Embora tanto os Albuquerque quanto os

Duvignaud sejam adjetivados de tradicionais,

percebe-se que se trata de duas construções

distintas de memória familiar. As diferenças

compreendem a extensão temporal que as lem-

branças recobrem, a intimidade com o passado

dos antecedentes e a imagem fi xada sobre as fa-

mílias a partir daí. Também envolvem a ênfase

dada ao retorno ao passado, e sua articulação

com estratégias de manutenção ou recuperação

de posição social. Considerando a memória

como um fenômeno social, compreende-se a

formulação dessas diferenças a partir da obser-

vação das trajetórias – individuais e do grupo

familiar – em suas relações com o contexto

mais amplo.

A iniciativa de um dos membros da família

Duvignaud de pesquisar e registrar por escri-

to o passado de sua família, divulgando uma

versão, nos faz vislumbrar, na sua fi gura, um

guardião da memória familiar. Lins de Barros

nos fala destes sujeitos que, “ciosos da impor-

tância da família na construção da identida-

de dos indivíduos, tomam para si a tarefa de

preservar os arquivos da memória familiar”

(1989: 37).

Pollack (1989, 1992) destaca que toda

memória coletiva corresponde a um “tra-

balho de enquadramento”, no qual são es-

tabelecidas as referências sobre as quais

se constroem as fronteiras que defi nem a

identidade do grupo. Este trabalho apóia-se

sobre a história, material que permite dife-

rentes interpretações, sendo o limite dado

pelo reconhecimento, por parte do grupo, de

sua imagem na versão construída. Os guar-

diões da memória agem como atores desse

processo, controlando a imagem do grupo

pela divulgação de uma dada versão, que só

se consolida e permanece, obviamente, en-

quanto o grupo se reconhece nela.

40 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

Na versão de Antônio Duvignaud, autor da

obra, o destaque é dado à proeminência eco-

nômica e política dos Duvignaud, construída

através de várias gerações, assinalando não uma

situação passageira, mas uma tradição. Partindo

dos ramos e personagens destacados do grupo,

o autor enfatiza o período áureo da família no

Pará, vivido no início do século, momento maior

de expressão do seu refi namento e proximidade

com o poder. O livro não só diz quem eram os

Duvignaud, mas procura estabelecer linhas de

continuidade entre o passado e o presente, natu-

ralizando o que é fruto de circunstâncias históri-

cas e enxergando, na atual descendência, traços

do que seria a marca deste grupo familiar.

Em termos de narrativa oral, não encon-

trei nada parecido com a sistematização feita

no livro. Está claro que ele não foi escrito com

base apenas na memória do autor, mas em um

minucioso trabalho de investigação que incluiu

não só os depoimentos de familiares, mas uma

ampla pesquisa de fontes escritas. Para que o

conteúdo das entrevistas tivesse uma aproxi-

mação maior com o do livro, a busca de in-

formações sobre o passado familiar e o cultivo

dessa memória deveriam ser algo recorrente

entre os entrevistados. Nesse caso, o próprio

livro teria se tornado uma fonte importante na

composição de um discurso sobre o passado

familiar. No entanto, os entrevistados fazem

menção ao livro, mas não costumam repetir o

seu conteúdo, mostrando que ele não foi ple-

namente incorporado. Não apresentam, como

o autor, uma versão que reconstrua a trajetória

do grupo. Cabe notar que tanto as representa-

ções sociais, quanto o uso social da memória,

podem ser afetados por diferenciações inter-

nas a essas famílias e pelas particularidades das

trajetórias individuais. Assim, pode haver um

grupo de parentes que se destaca por contro-

lar, efetivamente, os recursos materiais, sociais

e simbólicos herdados e que compõem o atual

patrimônio familiar.

Dos cinco entrevistados, os três irmãos enfati-

zam apenas as marcas que caracterizariam os Du-

vignaud e denotariam sua distinção. Já nos outros

dois casos, mãe e fi lha reconstituem fragmentos

de trajetórias individuais de antepassados próxi-

mos, mas não sintetizam o percurso da família.

Remetendo, em especial, à “memória herdada”

de uma antepassada comum, falam sobre com-

portamento, hábitos do cotidiano e interação de

um grupo de parentes que viveu o fi nal do sécu-

lo XIX e parte do século XX. É possível, assim,

enxergar aspectos da vida dos Duvignaud tanto

em seu período de apogeu, como num momento

já marcado pelo declínio de sua expressão mas

no qual os traços de distinção social eram ainda

muito atuantes. Se não sintetizam a história do

grupo, dão vida a pedaços de uma história fami-

liar, ao traçarem um perfi l dos antepassados, que

completa a descrição de Antônio Duvignaud,

voltada para a descrição de carreiras públicas e

para a análise do percurso da família.

Ressalto que as entrevistas que realizei não

negam, absolutamente, a imagem de distinção

da família, tal como está traçada no livro de

Antônio Duvignaud. Se fosse de outra forma,

a fi gura do autor não seria a de um guardião da

memória. Ou então, isso indicaria modos dife-

renciados dos membros do grupo enxergarem

a si próprios, havendo múltiplas versões que,

provavelmente, disputariam entre si o papel de

versão válida. Vale lembrar a aproximação feita

por Pollack entre memória e identidade, a par-

tir da consideração da primeira como “(...) um

elemento constituinte do sentimento de iden-

tidade, tanto individual como coletiva” (1992:

204), chamando a atenção para o processo

contínuo de construção que as engendra. E isso

envolve uma permanente negociação entre os

agentes envolvidos nas defi nições construídas.

Mas, nesse caso em particular, as diferenças não

dizem respeito à natureza das versões, e sim aos

graus de envolvimento do autor e dos entrevis-

tados com o cultivo de uma memória familiar.

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

Os três irmãos em questão tiveram o nome

Duvignaud transmitido pelo pai – que foi pe-

cuarista, político e empresário –, sendo fi lhos

do segundo casamento deste. O que nos dizem

quando solicitados a falar sobre o passado dos

Duvignaud? Em linhas gerais, enfocam as mar-

cas da família: sua riqueza, a vocação política,

o gosto por posições de mando, o refi namento

de seus hábitos, a vinculação do nome da fa-

mília às terras da Ilha do Marajó e, até mesmo,

semelhanças físicas (beleza e altura). Embora o

nascimento do pai deles remeta ao auge do ci-

clo da borracha, são lembrados apenas aspectos

mais recentes de sua trajetória. Um refi namento

pessoal é evocado, como que traçando uma cor-

respondência entre o pai e o nome de família.

Então, ele gostava tudo dele do bom e do me-

lhor. Pra você ter uma idéia, na fazenda, a his-

tória que a mamãe conta – eu realmente não

conheci – era que todos os talheres eram de pra-

ta, prata importada, etc. Todas as louças eram

de porcelana. Papai tinha um cais na fazenda

que durou até quase... um sobrinho que fi cou

com essa parte da fazenda me diz que esse cais,

até uns cinco anos atrás, ele existia ainda. E os

lençóis de linho... papai sempre foi um homem

que gostou desse aspecto, se vestia muito bem,

talvez até melhor que a gente. Sempre uma ele-

gância a toda prova, não só de vestir, como da

roupa de dormir, da maneira de se alimentar,

etc. E a gente ouvia todas essas histórias (Carlos

Duvignaud, 41 anos).

Praticamente nada é dito sobre os avós pa-

ternos. Como compreender que um passado tão

próximo, já que vivido por pai e avós, chegue

até eles de forma tão residual? A resposta parece

estar, em grande parte, nas rupturas que acom-

panharam a formação desse núcleo familiar. A

primeira delas é o rompimento do pai, Olavo

Duvignaud, com sua primeira união, que havia

sido realizada com pessoa de origem familiar

semelhante. Em seguida, ele casa-se de novo,

agora com pessoa bem mais jovem e de origem

mais humilde, dando início a esse novo núcleo

familiar.4 Finalmente, ele reorienta a sua vida

profi ssional, deixando de ser pecuarista – ati-

vidade que marcou a trajetória da família –, já

que a fazenda que possuía foi legada aos fi lhos

do primeiro casamento. Essas rupturas pare-

cem ter contribuído para um distanciamento

em relação ao grupo familiar mais amplo e a

uma rede de relações que lhe servisse de apoio

ao cultivo de lembranças ligadas a um passado

comum ou entrelaçado.

Afi rmam que foi preservado pelo pai ape-

nas o convívio próximo com uma irmã, já que

dois irmãos morreram muito cedo, um terceiro

morava no Rio de Janeiro e uma outra irmã, no

exterior. Assim, há uma dispersão na geração

anterior aos nossos informantes que, associada

às quebras anteriores já citadas, conduz a um

distanciamento do passado pela ausência da-

queles com os quais se poderia compartilhar e

cultivar lembranças.

Voltando à memória dos três entrevistados,

podemos dizer que, embora não reconstituam a

vida dos antepassados nem o percurso familiar,

apontam com nitidez as marcas da família. Em

parte, porque foi possível extrair isso da própria

conduta do pai, e, também, por conta de aspec-

tos da vida da família vislumbrados em jornais,

livros e conversas com pessoas próximas, que

4. Sua segunda esposa vinha de uma família de peque-

nos criadores do Marajó, lugar onde os Duvignaud

fi caram conhecidos como grandes pecuaristas. As

diferenças de origem fi cam claras nas fotografi as de

família, sendo que uma delas é particularmente es-

clarecedora da distância social entre os dois grupos:

de um lado, aparece Olavo e um dos fi lhos do casal,

e de outro, os pais da segunda esposa. Todos estão de

pé, olhando para a câmera, e a distância que separa

os dois lados é muito grande, causa estranhamento e

sugere ausência de intimidade e um afastamento res-

peitoso da parte dos pais da esposa. A indumentária e

a postura reforçam essa sugestão.

42 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

servem a eles como um espelho. É como se eles

tivessem tido acesso a fragmentos de um cená-

rio e a uma conduta peculiar à família, mas não

à vida de personagens específi cos, pelo menos

não de modo a incorporá-las a sua memória.

Entre as pessoas citadas como importantes

canais de acesso ao passado familiar, a que parece

ter desempenhado melhor esse papel foi uma tia

paterna, Tereza Duvignaud, a única que perma-

neceu em Belém e com quem havia uma relação

de proximidade. Conquanto a vida desta tam-

bém tenha sido marcada por várias rupturas, ela

manteve uma ampla rede de relações, composta

predominantemente por parentes, e é retratada

pelos entrevistados como contadora recorrente

de histórias que remetiam ao passado familiar.

Essa senhora é mãe e avó das outras duas entre-

vistadas, que demonstraram maior desenvoltura

ao falar de parentes que as precederam.

E isso nos remete a um outro dado importante

para esclarecer a ausência de lembranças entre os

irmãos entrevistados: eles não conviveram, sequer

conheceram, seus avós paternos um importante

canal de ligação com o passado familiar, pois os

“avós reconstroem suas vidas, relembrando a tra-

jetória familiar e estabelecendo, na lembrança, o

espaço familiar, a representação da família e suas

relações internas” (Lins de Barros 1987: 77).

A importância dos avós para a atividade

mnemônica é reforçada pelo depoimento de

Vitória, neta de Tereza Duvignaud, que a criou

enquanto seus pais trabalhavam e residiam na

Ilha do Marajó. A sua entrevista apresenta uma

diferença signifi cativa em termos de intimidade

com o passado, reconstituindo em suas lem-

branças a trajetória da avó e remetendo a muitas

situações cotidianas que envolvem ela própria,

enquanto companhia constante daquela. São

relembradas as visitas de fi m de tarde a parentes

– denotando a força de uma parentela ainda nas

décadas de 1950 e 60 –, os lugares freqüentados

– para passeio, compra, atividade religiosa –, as

viagens ao Rio de Janeiro, aspectos da educação

que recebeu – a maneira de se vestir, de se por-

tar à mesa, de pensar sua condição de mulher

– e as reuniões familiares em datas festivas.

A partir da avó, surgem outras mulheres em

suas lembranças, que são pessoas próximas, tan-

to pelo parentesco e convivência, como pelo es-

tilo de vida. A entrevista de Vitória traz à tona,

portanto, um mundo feminino. Nem os homens

que se pressupõe mais próximos – pai, avô, irmão

– têm espaço em sua narrativa. Ela reconstitui a

história da avó desde as circunstâncias privilegia-

das em que passou a infância e parte da juven-

tude, assinalando os estudos feitos em Paris, seu

traquejo social e sua elegância. Descreve, tam-

bém, os percalços de sua vida, iniciados com um

matrimônio acordado pelo pai, e que se revelou

desastroso, não apenas pela ausência de sentimen-

tos, mas porque a trajetória do marido de Tereza

foi marcada pela ruína econômica, seguida de sua

morte precoce. Desse casamento resultaram dois

fi lhos, uma mulher e um homem. Posteriormen-

te, Tereza Duvignaud voltou a se casar e teve mais

uma fi lha, Flávia, mãe de Vitória.

Quando Vitória fala da avó materna, a

descreve como uma mulher forte e articulado-

ra de relações, que mesmo já não tendo um

patrimônio que se igualasse a alguns de seus

parentes, manteve a proximidade com eles,

inclusive através do estilo de vida que culti-

vou. Esta proximidade converteu-a, primeiro,

em protegida e, posteriormente, em herdeira

do patrimônio da viúva de um tio consangüí-

neo, a qual não possuía herdeiros diretos.5

5. A proximidade dessa relação fi ca evidente não só neste

fato, mas também em outras informações fornecidas por

Vitória e Flávia. O nascimento de Flávia, por exemplo,

ocorreu na casa desta senhora, tendo ela e o marido tor-

nado-se seus padrinhos. Já Vitória relata as freqüentes

visitas de fi m de tarde a ela e a outra tia de sua avó. Por

fi m, vale notar que esta senhora, ao repassar seus bens

para Tereza e sua fi lha Flávia, converteu em herdeiras

não parentes consangüíneas suas, mas sim de seu mari-

do, já falecido. Por intervenção de Tereza, coube a ela os

imóveis e jóias, sendo a fazenda repassada à Flávia.

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

Os lugares de passeio, a maneira de se vestir,

o exercício da fi lantropia, a formalidade e o

respeito que exigia durante as refeições, assim

como seu comportamento rígido, são aspectos

de uma vida que, nos detalhes, elaborava um

estilo e marcava uma distinção.6

A minha avó, sempre era a palavra dela que pre-

dominava, ela que controlava o dinheiro, ela que

decidia as coisas, tudo ela é que fazia. Ela domi-

nava a família toda, mas assim de uma coisa que

ninguém sentia. Todo mundo gostava muito

dela: avô, mãe [Vitória refere-se ao seu próprio avô e mãe], fi lhos, genro – meu pai tinha verdadeiro

pavor dela. E não era dominação pelo dinhei-

ro, era dominação pela palavra, dominação pela

vontade, dominação, assim, pela maneira dela

ser. Ela transava para que tudo saísse da manei-

ra que ela queria. Ela chantageava, ela usava de

todas as armas possíveis e imagináveis (...) Na

mesa, antigamente, ninguém podia falar, a não

ser quando a vovó desse a palavra pra todo mun-

do. A primeira que falava na mesa era ela, ela

que servia todo mundo (Vitória Duvignaud, 42

anos).

A mãe dessa entrevistada também deu um

depoimento no qual revela não apenas o passado

que foi vivido, mas aquele que lhe foi contado,

demonstrando conhecimento da trajetória do

avô materno e seus irmãos, assim como da gera-

ção de sua mãe. Essas informações particularizam

alguns antepassados em aspectos que marcaram

a sua feição dentro do grupo familiar, lembran-

do a afi rmação de Bosi de que “nenhuma comu-

nidade consegue como a família valorizar tanto

a diferença de pessoa a pessoa” (1987: 346). É aí

6. Provavelmente, alguns desses aspectos só se viabili-

zaram quando Tereza recebeu a herança de sua tia, o

que explicaria porque Vitória remete a eles, mas sua

mãe não. A trajetória delas é, também, bem diferente,

estando claro que Flávia viveu a infância e juventude

em circunstâncias mais modestas.

que aparece o tio-avô gourmet, um outro que era

fi lósofo, o tio dos carros importados, a avó que

adorava enterros, a pitoresca bisavó que vivia en-

tre Belém e Paris, sem saber falar francês, e de lá

trazia maçãs em penicos. Os parentes são, assim,

revelados através de “(...) uma face ideal que se

perpetua” (Bosi 1987: 352).

Flávia também fornece dados sobre o estabe-

lecimento de relação de propriedade, por parte de

membros da família, com algumas fazendas do

Marajó. Um aspecto interessante é a visualização

da endogamia de classe das famílias que compu-

nham a elite paraense, cujo domínio, em alguns

casos, se estendeu do período colonial até a Repú-

blica, como é, aliás, o caso dos Duvignaud.

As distinções entre as entrevistas de Vitó-

ria e Flávia se concentram no relato de sua

trajetória pessoal e no seu cotidiano durante

a infância e juventude, o que interfere no dis-

curso através do qual trazem à tona o passa-

do familiar. Enquanto Vitória nos mostra os

Duvignaud sob a ótica com a qual enxergava

a avó, evidenciando sinais de elegância, im-

ponência, refi namento e riqueza, sua mãe re-

porta uma infância e juventude mais distante

do passado de fausto que assinalou a trajetória

da família. Embora ela enfatize a riqueza dos

Duvignaud e sua proximidade com o poder,

não os descreve em termos de seu refi namen-

to, preferindo caracterizá-los por sua afobação

e pelo senso de humor, arrolando histórias

correntes na família sobre gafes cometidas por

antepassados e outras histórias pitorescas, que

passaram a fazer parte do anedotário familiar.

Mas seu relato – como o de Vitória – tam-

bém remete mais a antepassados femininos.

Embora o avô paterno de Tereza seja o único

membro consangüíneo da família homenage-

ado com um título nobiliárquico brasileiro,

sendo esse fato destacado no livro de família,

as duas entrevistadas não o enfatizam e nem

mesmo têm histórias a contar sobre esse an-

tepassado. Mas Flávia fala da bisavó, esposa

44 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

daquele, relatando diversos episódios vividos

por ela, quando já idosa e viúva. Em sua resi-

dência encontram-se dois móveis que não só

pertenceram à bisavó, como estão intrinseca-

mente ligados a sua fi gura:

As duas cadeirinhas, tu notas que são baixas,

que a mamãe diz que ela era pequenina. E a que

está dentro do closet era pra ela botar... que ti-

nha bota, mas bota de mulher era com botão, do

lado, assim. Era baixinho pra ela abotoar as bo-

tas. Isso é outra coisa que eu me lembro (Flávia

Duvignaud, 64 anos).

Como ponto comum a esses dois relatos,

pode-se dizer que ambos dão vida a persona-

gens que no livro de família não aparecem,

ou são tratados apenas em termos de sua vida

pública. O que mãe e fi lha contam sobre os

Duvignaud, mergulhando nas histórias de uma

antecedente feminina, são outras faces desse

passado, nas quais é assinalada a distinção da

família, mas remetendo principalmente ao co-

tidiano e a elementos de uma trajetória que foi

acompanhada de perto e passou a fazer parte

das conversas domésticas.

IV

Conforme assinalei no início deste trabalho,

ao levantar a memória oral e escrita de membros

das famílias Duvignaud e Albuquerque, encarei

a herança mnemônica de cada uma delas den-

tro da perspectiva de Halbwachs (1990), ou

seja, como uma construção em que indivíduo

e sociedade desempenham, cada qual, seu papel

para que ela se efetive. O ritmo das lembranças,

os lapsos do discurso – resultantes do oculta-

mento ou do esquecimento –, a extensão tem-

poral percorrida e o teor básico das recordações

são aspectos que podem ser entendidos quando

articulados à trajetória do grupo e a traços espe-

cífi cos de vidas particulares.

Ao enfocar o indivíduo, Halbwachs (1990)

enxerga-o como um ser social, ponto de con-

fl uência e de articulação das perspectivas de di-

ferentes grupos no contexto de uma sociedade

complexa. A memória individual resulta, por-

tanto, de um trabalho elaborado pelo sujeito

– de seleção, destaque, ocultamento, reelabo-

ração –, a partir da confl uência das lembranças

resultantes de sua experiência social. De acordo

com Lins de Barros:

Ao pretender expor o caráter social da reconstru-

ção das lembranças, Halbwachs acaba realçando o

aspecto individual da memória, que encerra um

sentimento próprio e particular. Sua existência

tem um caráter único, decorrente de sua posi-

ção espacial e temporal e que apenas um único

e determinado indivíduo possui em sua biografi a

(1989: 31).

Para evidenciar o papel que cabe ao indiví-

duo na arquitetura da memória, ressaltei aqui o

papel dos guardiões da memória, ou as especi-

fi cidades de falas individuais no interior de um

discurso que retrata o grupo. Tereza Duvignaud

foi, sem dúvida, uma guardiã da memória fami-

liar, e sua retomada do passado foi enriquecida

por sua vida social intensa e, em especial, pelo

cultivo das relações com parentes. A manuten-

ção de uma agenda com nomes e datas de nasci-

mento de parentes, a vasta correspondência que

manteve ao longo de sua vida, e sua constitui-

ção como uma fi gura adequada para lidar com

problemas familiares, mostra uma mulher para

quem a vida familiar extrapolava os limites de

sua residência ou de sua família nuclear.

Em sua dedicação ao passado, os guardiões

formam coleções – de objetos, fotografi as, his-

tórias – que permitem entrever o passado, não

como fragmentos esparsos e exteriores ao su-

jeito, mas como vibrações que trazem à tona a

atmosfera vivida pelos antepassados. Em suma:

em suas recordações, o passado é recriado de

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

forma vívida. Ressalto aqui que Halbwachs

(1990) encara a memória como um elemento

dinâmico, a construir continuamente o pas-

sado tendo por base os fatos ocorridos. Ecléa

Bosi, interpretando as palavras de Halbwachs,

afi rma: “Na maior parte das vezes, lembrar não

é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar,

com imagens e idéias de hoje, as experiências

do passado. A memória não é sonho, é traba-

lho” (1987: 17).

Pedro Albuquerque também agiu como

um perfeito guardião, tanto pelas histórias que

“colecionou” e contou, como por mediar o

contato dos fi lhos com os locais onde havia se

desenrolado a vida dos avós. Os engenhos da

família, no Nordeste, assemelham-se a “ilhas

de passado conservadas”, onde nos sentimos

“subitamente transportados” a um tempo an-

terior (Halbwachs 1990: 68).

A existência dessas fi guras chaves na preser-

vação da memória chama a atenção para como

o indivíduo pode tornar-se ponto de confl u-

ência de propósitos de manutenção do grupo,

ou das representações a ele vinculadas. Tereza

Duvignaud e Pedro Albuquerque são sujeitos

atuantes, interessados em preservar, resgatar ou

criar imagens para os grupos nos quais se in-

cluem. É interessante notar que desempenham

esse papel após vivenciar rupturas, o que mostra

que a tessitura das lembranças torna-se ainda

mais urgente nos momentos em que todo um

passado e uma tradição parece se esvanecer.

O papel do indivíduo na estruturação da

memória pode ser percebido, também, nas

diferenças que marcam as narrativas feitas por

membros de um mesmo grupo familiar. Embo-

ra exista entre os fi lhos de Pedro Albuquerque

um discurso bastante uniforme, o fi lho caçula

apresentará o passado num tom diferente dos

demais, por não enfatizar a distinção familiar.

Não tendo se incorporado, como os irmãos, a

instituições culturais e profi ssionais valorizado-

ras de um discurso enaltecedor de personagens

e suas origens, apresentará o passado sob uma

ótica que conjuga alguns aspectos caros à famí-

lia – como, por exemplo, a trajetória de Pedro

Albuquerque – com noções desenvolvidas em

outros círculos que fazem parte de sua vida.

Do lado dos Duvignaud, as diferenças entre o

depoimento de Vitória e o de sua mãe também

dão conta de como dois indivíduos podem

recriar um passado em comum, cada qual de

uma forma particular. De novo entra em cena

a vivência do indivíduo e seu trânsito entre os

diversos grupos, permitindo que ele elabore sua

memória individual através de uma tessitura,

em que a memória coletiva é um referencial,

mas um referencial assumido sob uma perspec-

tiva bastante particular.

Para ambos os grupos é possível destacar as-

pectos uniformes que marcam o que é recorda-

do, gerando um discurso que defi ne a imagem

do próprio grupo. As narrativas dos Albuquer-

que enfatizam a austeridade, a disciplina e a

dedicação à consolidação de uma formação

exemplar que, somadas à pontuação e naturali-

zação de seu passado oligárquico, tornam pos-

sível associar seus membros ao perfi l adequado

para o trato da coisa pública. No caso dos Du-

vignaud, é ressaltado o refi namento e poder

dos antecedentes, associando-os à recriação em

Belém de uma civilização dentro dos moldes

europeus por ocasião do ciclo da borracha.

No entanto, há diferenciais em termos da

extensão, da intimidade e da importância que

o passado assume no contexto presente dessas

famílias. Nesse ponto, é fundamental con-

siderarmos o peso do grupo na estruturação

das lembranças. Halbwachs (1990) chama a

atenção para o fato de que construímos nossa

memória recorrendo ao testemunho daqueles

que fazem parte dos grupos nos quais toma-

mos parte, e que partilham conosco não apenas

fatos de uma vida em comum, mas modos de

pensar muito próximos, desenvolvidos no inte-

rior dos mesmos.

46 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

Observamos que Pedro Albuquerque e seus

fi lhos homens vão compor um grupo bastante

homogêneo em termos de suas trajetórias, co-

mungando objetivos próximos a partir da sóli-

da orientação do patriarca da família. Usando

as mesmas noções, e tendo a memória do pai

como guia, eles vão partilhar um vasto repertó-

rio de lembranças, as quais dizem respeito não

apenas aos fatos vividos, mas àqueles trazidos à

tona por Pedro Albuquerque e pelos cenários a

que ele os conduz.

A situação é bem distinta entre os Duvig-

naud. No momento em que realizei as en-

trevistas, era clara a dispersão familiar, assim

como a ausência de um convívio próximo com

parentes por parte dos informantes. Os nú-

cleos de convívio remontavam ao passado, tal

como é revelado pela história de vida de Tereza

Duvignaud. O grupo subsiste enquanto uma

realidade genealógica que partilha um referen-

cial simbólico em comum: o nome de família.

Mas esse por si só já não permite delimitar um

grupo unifi cado em torno de uma vivência em

comum, havendo um enorme fosso entre o

passado e o presente familiar.

As lembranças colhidas junto a essas famí-

lias evidenciam, assim, uma outra importante

lição de Halbwachs (1990): se por um lado é

o presente que desencadeia as lembranças, por

outro lado é mergulhando no passado que os

homens buscam sentido para suas experiências

cotidianas. O distanciamento de alguns des-

cendentes dos Duvignaud frente à memória do

grupo mostra que novos caminhos estão sen-

do trilhados, e que eles já não remetem tanto a

esse passado: os referenciais são outros. E se as

lembranças da segunda geração dos Albuquer-

que no Pará inclui de forma tão signifi cativa os

seus antepassados, não é só porque suas histó-

rias lhes foram continuamente contadas, mas

porque elas davam sentido a um projeto que só

se viabilizaria enquanto gerido pelo grupo.

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_____. 1989. “Memória e Família”. Estudos Históricos. 2

(3): 29-42.

POLLACK, Michael. 1989. “Memória, esquecimento,

silêncio”. Estudos Históricos. 2 (3): 200-215.

_____. 1992. “Memória e identidade social”. Estudos Históricos. 10 (5): 3-15.

resumo O objetivo deste artigo é analisar a

contrução social do bairro de Ipanema nos meios

de comunicação. Realizo uma análise aprofundada

de três livros e três suplementos de imprensa e es-

tabeleço uma comparação entre as representações

sobre o passado e o presente do bairro. Verifi co os

espaços, as personalidades, as visões de mundo e os

estilos de vida que caracterizam a Ipanema de hoje

e de ontem.

palavras-chave representações, bairro, espa-

ços urbanos e estilo de vida.

Ipanema e suas modas: passado x presente

MARISOL RODRIGUEZ VALLE

Mestre em Sociologia e Antropologia pelo PPG-

SA/IFCS/UFRJ.

Artigo aceito para publicação em 22/09/05

abstract Th e objective of this article is to

analyze the social construction of the quarter of Ip-

anema in the media. I carry trough a comment on

three books and three supplements of the press and

establish a comparison between the representations

of the past and the present of the quarter. I verify

the spaces, the personalities, the world visions and

the life style that characterize Ipanema of before and

today.

keywords representations, neighborhood, ur-

ban spaces, life style.

A província da ousadia

Responder à pergunta “onde você mora?”

pode ser constrangedor para muitos cariocas. A

simples menção ao nome do bairro é capaz de

suscitar um conjunto de idéias sobre seu morador.

Quando a resposta é “Ipanema”, algumas reações

como “que chique!” ou expressões faciais como a

de levantar a sobrancelha revelam que existe um

determinado imaginário sobre esse bairro. Expe-

riências como essas fazem com que, em determi-

nadas circunstâncias, eu evite dizer onde moro ou

sinta vergonha de minha resposta.

No meu caso, o constrangimento se agrava

por não me perceber como alguém que corres-

ponda aos quesitos “típicos” do morador de

meu bairro. Morar em Ipanema sempre signi-

fi cou, sob meu ponto de vista, ter de sacrifi car

certas comodidades para poder pagar elevadas

taxas de aluguel, condomínio e impostos. Mui-

tas vezes me percebo como “peixe fora d’água”

nesse bairro, sobretudo ao constatar o elevado

padrão de vida dos vizinhos ou quando pas-

so em frente às vitrines das luxuosas grifes que

se encontram nos arredores. Há, contudo, um

aspecto simbólico muito forte em “morar em

Ipanema”, e a força desse simbolismo se tra-

duz nas práticas e nos projetos dos indivíduos,

como foi o caso da escolha de minha mãe por

morar ali apesar das conseqüências que essa

decisão sempre acarretou. Em grande núme-

ro de sociedades urbanas, e de forma muito

marcante no Rio de Janeiro, o espaço constitui

elemento importante para a defi nição do status dos indivíduos. Há, nessa cidade, uma nítida

hierarquia de bairros e, através desta, os indiví-

duos percebem a sociedade e se situam dentro

dela (Velho 1978).

cadernos de campo n. 13: 47-60, 2005

48 |

Estranhar o bairro em que se vive pode se

converter em uma experiência bastante sig-

nifi cativa, principalmente para quem preten-

de exercitar uma visão antropológica sobre o

próprio meio social. Proporciona, talvez, uma

maior facilidade para “transformar o familiar

em exótico”, como sugere Da Matta (1978).

Este exercício refl exivo que pratico cotidiana-

mente no bairro onde moro fez com que Ipa-

nema se tornasse, para mim, além de um local

intrigante, um objeto a ser pesquisado.

Uma vez decidida a realizar uma investiga-

ção sobre Ipanema, iniciei uma busca por refe-

rências bibliográfi cas sobre o local. Deparei-me

com livros que continham descrições, fotos e

comentários que em nada se assemelhavam ao

que costumo observar no bairro. A Rua Gar-

cia D’Ávila, por exemplo, que me surpreende

às vésperas do Natal com seu tapete vermelho

estendido na calçada de lojas como Louis Vuit-

ton, Cartier, Mont Blanc e H. Stern, não ocu-

pava uma página sequer de tais livros. Aquelas

evidências que para mim atestam que Ipane-

ma é uma das localidades mais caras do Rio

de Janeiro passavam quase despercebidas nessas

obras sobre o bairro. O que encontrei foi uma

certa regularidade no modo como os autores re-

tratam Ipanema, como por exemplo, através de

uma referência constante a épocas passadas. A

Ipanema dos livros é uma Ipanema “de memó-

rias”, aparecendo como um local que vivenciou

grandes mudanças comportamentais, artísticas

e culturais nas décadas de 1960 e 1970.

Enquanto era transportada para uma Ipa-

nema por mim desconhecida – um bairro

“provinciano”, “boêmio” e “libertário” – os

jornais e revistas de grande circulação no Rio

de Janeiro celebravam os 110 anos de uma

Ipanema “moderna”, “luxuosa” e “cosmo-

polita”. Notei, portanto, o caráter subjetivo

e simbólico das informações contidas nos

meios de comunicação. Mais do que apresen-

tar fatos sobre Ipanema, os livros e a imprensa

contêm versões que produzem e reproduzem

concepções específi cas sobre esse bairro. Foi a

partir dessa percepção que o material no qual

esperava obter informações “documentais” e

“objetivas” se transformou em um objeto de

refl exão para minha pesquisa.

Neste trabalho realizo uma análise sobre

os meios de comunicação para compreender o

modo como Ipanema é percebida, elaborada e

divulgada.1 Busco examinar os valores, símbolos

e noções que constroem o passado e o presen-

te do bairro comparando os diferentes espaços,

personalidades e características que representam

a Ipanema de ontem e a de hoje. Considerando

que “Ipanema”, mais do que um espaço físico de-

limitado, exprime um conjunto de crenças e de

representações culturalmente elaboradas, busco

analisar o processo de construção social de um

bairro emblemático da cidade do Rio de Janeiro.

Um bairro carioca

Ipanema possui 1,67 quilômetro quadrado.

Seu território consiste em uma estreita faixa de

terra, de formato quase retangular, banhada ao

sul pelo oceano Atlântico e ao norte pela Lagoa

Rodrigo de Freitas. Em comparação com a maio-

ria dos bairros do Rio de Janeiro, Ipanema pode

1. Os livros que constituem o material do trabalho são:

Ela é carioca (1999), de Ruy Castro; Ipanema, se não me falha a memória (2000) de Jaguar e Os degraus de Ipanema (1997), de Carlos Leonam. Dentre as ma-

térias publicadas na imprensa no ano de 2004, esti-

pulei como critério de seleção aquelas dedicadas ao

aniversário de 110 anos do bairro de Ipanema. Utili-

zei como objeto de refl exão suplementos dos jornais

O Globo, Jornal do Brasil e da revista semanal Veja Rio que apresentavam “Ipanema” estampada em suas

capas. Trata-se, respectivamente de Caderno Zona

Sul – “Ipanema, 110 anos na vanguarda” (O Globo,

22.abr.2004); Caderno H – “O garotão de Ipane-

ma – Ipanema 110 anos, edição especial” (Jornal do Brasil, 25.abr.2004) e “Ipanema 110 anos: Histórias

e personagens do bairro mais charmoso da cidade”

(Veja Rio 26.abr.2004-02.maio. 2004).

cadernos de campo • n. 13 • 2005

: X |

ser classifi cada como pequena, no entanto, suas

dimensões espaciais não são proporcionais às

simbólicas: Ipanema é entendida como um em-

blema de sua cidade e até mesmo de seu país.

Essa representação aparece de diversas manei-

ras no material selecionado para este estudo, como

por exemplo, através das noções de “moda”, “ca-

pital cultural”, “boemia” e “estilo de vida”: “Ipa-

nema está para o Rio como Paris para o mundo.

É sinônimo de moda. Tudo o que a menina de

Ipanema usa a caminho do mar, da universidade,

das compras, as meninas de todo o Brasil copiam”

(Jornal do Brasil: 8); “o bairro era a capital cultural

do Rio, e portanto, a capital cultural do Brasil”

(O Globo: 34); “Talvez seja impossível defi nir o

carioca sem o espaço informal de cordialidade...

Em Ipanema, como bairro carioquíssimo que é,

não podia faltar botequim” (Jornal do Brasil: 14)

e “Ipanema traduz um estilo de vida bem carioca:

praia, calçadão e espontaneidade” (O Globo: 16).

O livro de Ruy Castro sobre Ipanema ex-

pressa as mesmas idéias encontradas na impren-

sa. O título Ela é carioca sugere que o bairro

não poderia estar localizado em outra cidade

que não fosse o Rio de Janeiro. Em abril deste

ano, esse escritor foi convocado por uma livraria

para tratar o aniversário de 110 anos do bairro.

Em suas primeiras palavras, Ruy Castro sugeriu

que Ipanema é um bairro típico do Rio através

da oposição “formalidade x informalidade” que

comumente se estabelece entre paulistas e ca-

riocas. O autor negou que naquela ocasião faria

uma “palestra com viés acadêmico”, pois “isso

só seria possível se Ipanema fosse em São Pau-

lo”, e preferiu denominar de “bate-papo” a sua

participação na homenagem ao bairro.

A importância de um projeto de preservação

cultural para o bairro de Ipanema fundamenta-se

no decreto publicado em julho de 2003, no Di-

ário Ofi cial da Prefeitura do Rio de Janeiro, por

meio de considerações como estas: “...Ipanema,

pela sua história, tornou-se uma referência do

modo de vida do carioca, refl etindo-se em todo

o país”. O depoimento do Secretário Municipal

das Culturas também dissemina a mesma idéia:

“Pela peculiaridade de Ipanema não poderíamos

tombar apenas imóveis. Ipanema resume bem o

espírito do carioca, seu comportamento, suas ati-

tudes. E é isso que estamos preservando também”

(O Globo 20.jul.2003).

Ao considerar a relação metonímica que

se estabelece entre bairro, cidade e país, pode-

se pensar que as representações sobre Ipanema

apresentam dimensões mais amplas do que as de

um simples bairro e se estendem a um imaginário

sobre “ser carioca” e “ser brasileiro”. Apesar dis-

so, os elementos que estabelecem a ligação entre

o ipanemense, o carioca e o brasileiro, como os

conceitos de moda, boemia e estilo de vida, são

tratados aqui como típicos de Ipanema. É preci-

so ter em mente, contudo, que essa simbologia

é capaz de transcender os limites territoriais de

1,67 quilômetro quadrado desse lugar.

A Ipanema do passado

Nos suplementos de imprensa pesquisa-

dos, a idéia de moda é recorrentemente utili-

zada para designar o passado de Ipanema: “Nos

anos 60 e 70, Ipanema viveu uma espécie de

fase áurea, exportando personagens, moda, ar-

tistas, posicionamentos políticos e modos de

vida” (Jornal do Brasil: 4). O bairro é qualifi ca-

do como “Laboratório de moda... centro irra-

diador de tendências” (O Globo:18) ou “Lugar

onde não faltaram musas, modismos, aconteci-

mentos e polêmica” (Veja Rio: 12). Nos livros,

a idéia também é freqüente. Jaguar acredita que

o bairro “se intrometia na cidade e no estado,

ditava moda, hábitos e costumes para o Brasil e

o mundo; cagava regras” (: 12).

A concepção de moda utilizada para qua-

lifi car Ipanema não se relaciona somente ao

sentido mais comum de inovações nas vesti-

mentas ou nos acessórios de uso pessoal; en-

volve também outros signifi cados. A associação

cadernos de campo • n. 13 • 2005

50 |

entre Ipanema e moda fundamenta-se na idéia

de que os ipanemenses do passado tinham uma

habilidade peculiar de transgredir, criar e in-

ventar estilos de vida, comportamentos e ati-

tudes. Para ilustrar esta idéia não é preciso ler

os livros ou as matérias de jornais e revistas que

falam sobre o bairro, bastando observar as foto-

grafi as que se repetem nesse material.

A praia serve como o cenário privilegiado

das imagens mais emblemáticas do passado de

Ipanema, como a da atriz Leila Diniz grávida de

biquíni; a do ex-guerrilheiro Fernando Gabeira

de “tanga” tomando uma limonada ou a de um

grupo de mulheres com os seios à mostra, rode-

adas de repórteres e de curiosos. Ipanema teria

sido, sob esse ponto de vista, um local pionei-

ro, onde nasceram costumes e comportamen-

tos que romperam com padrões tradicionais de

conduta. De acordo com os livros e o material

de imprensa, as atitudes ipanemenses teriam

sido posteriormente difundidas e até copiadas

em outros locais do Rio de Janeiro e do Brasil.

A barriga grávida de uma personalidade pú-

blica, o “topless” feminino e a semi-nudez de um

militante de esquerda são imagens estrategica-

mente utilizadas para tornar concretas as idéias

de “moda”, “inovação” e “ousadia” que também

contribuem para o imaginário que associa Ipane-

ma ao conceito de “vanguarda”. Percebe-se que

essas fotos não são selecionadas arbitrariamente,

já que são justamente aquelas em que a “trans-

gressão” está mais evidente por recair no próprio

corpo das personalidades fotografadas.

A partir da pesquisa de Velho (1998) sobre

jovens da década de 1970, nota-se que a idéia

de ser “vanguarda” aparece como um valor

fundamental para as camadas médias da zona

sul do Rio de Janeiro nessa década. Esse grupo

apresentaria forte anseio por mostrar um esti-

lo de vida “vanguardista”, que se traduziria no

valor atribuído ao tema da mudança como um

modo de se opor a uma visão de mundo tradi-

cional e conservadora:

O grupo defi nia-se como sendo orientado para a

mudança. O vanguardismo implica na inovação,

na invenção... ser um artista de vanguarda, por

exemplo, implicaria não ser pessoalmente “qua-

drado”, “careta”, “pequeno-burguês”. Mesmo as

pessoas que não desempenhavam uma atividade

que não fosse considerada especialmente inova-

dora ou vanguardista aceitavam, em princípio, a

importância de ser “aberto”, rejeitando as escalas

de valores das famílias de origem, consideradas

hipócritas, repressivas etc. (: 63-64).

Se Ipanema é entendida como um bairro

onde se desenvolveram comportamentos “van-

guardistas”, é no espaço da praia – mais propício

para a exposição corporal – que as novas mora-

lidades de Ipanema ganharam um destaque pú-

blico. A partir da análise de Goldenberg (1995)

sobre a trajetória da atriz Leila Diniz, pode-se

argumentar que é na praia que o corpo ipane-

mense aparece sob sua forma “transgressora”,

“polêmica” ou “libertária”. Lembrando que na

década de 1970 as mulheres grávidas evitavam

freqüentar espaços como a praia ou procuravam

disfarçar suas barrigas com trajes de banho apro-

priados, Goldenberg (1995) sustenta que a bar-

riga grávida de Leila Diniz, tornada pública em

1971, materializou e corporifi cou seus compor-

tamentos transgressores. “A barriga grávida de

Leila Diniz, exibida de biquíni nas praias de Ipa-

nema, é ainda hoje lembrada como símbolo da

liberação da mulher no Brasil...” (: 208-209).

Para compreender a crença de que Ipanema

“lançou modas” é preciso atentar para o desta-

que atribuído às personalidades desse bairro. O

material pesquisado sugere que falar de Ipane-

ma não signifi ca apenas descrever um espaço

geográfi co delimitado, mas principalmente,

lembrar de indivíduos “ousados”, “irreveren-

tes” e “polêmicos”. O bairro recebe as mes-

mas qualifi cações que são atribuídas aos seus

freqüentadores e habitantes, o que faz pensar

em uma espécie de “contágio” que se estabelece

cadernos de campo • n. 13 • 2005

: X |

entre o espaço e os indivíduos e vice-versa. O

ipanemense teria a capacidade de “contagiar” o

bairro, ao mesmo tempo em que é contagiado

pelas características desse espaço.

A imprensa endossa esta associação entre

Ipanema e suas personalidades quando se refere

ao “bairro de Tom e Vinícius”, “da Garota de

Ipanema” e divulga as fotos da tanga de Gabei-

ra e da gravidez de Leila Diniz. O formato de

Ela é carioca – que se apresenta sob a proposta

de uma enciclopédia – também induz à idéia de

que cada indivíduo retratado na obra é porta-

dor de uma defi nição particular. A descrição dos

comportamentos, manias, gostos, preferências e

vontades de cada ipanemense, demonstra uma

valorização das escolhas individuais e enfatiza o

caráter autônomo de um grupo social, sobretu-

do de jovens de classes médias, que vivenciavam

de modo pioneiro no Brasil, um processo de

socialização marcadamente individualista. Ruy

Castro salienta, ainda, que a experiência com a

prática psicanalítica tornou-se recorrente entre

aqueles jovens de Ipanema na década de 1970.

Não seria incorreto afi rmar que é apenas

em sociedades que tomam o indivíduo como

um valor moral que a moda poderia despontar

como um tema possível para análise acadêmica.

A maneira como a maioria dos fi lósofos, soci-

ólogos e historiadores concebem o fenômeno

– por meio de mecanismos constantes de imita-

ção e de distinção – revela a tensão do indivíduo

moderno ocidental que oscila entre o desejo de

receber apoio e aceitação de grupos sociais e as

exigências internas e externas por criar os con-

tornos de uma individualidade singular. Esse

“dualismo de nossa existência”, como se refere

Simmel (1988), auxilia o entendimento das

sociedades metropolitanas e individualistas co-

laborando também para a compreensão da as-

sociação entre Ipanema e a idéia de moda.

Sem deixar de lembrar que o foco desta pes-

quisa é um bairro e, portanto, uma estrutura

física delimitada, é interessante observar que

as representações elaboradas pelos livros e pela

imprensa recaem, muitas vezes, sobre espaços

específi cos de Ipanema. Nem todas as ruas, casas

e esquinas recebem as mesmas qualifi cações que

são atribuídas ao bairro como um todo. Existem

localidades que recebem maior destaque por

“assumirem” o “espírito ipanemense”. É eviden-

te que os espaços emblemáticos do passado são

precisamente aqueles onde os indivíduos “criati-

vos” e “que lançam modas” se encontravam.

Além da praia, antigos botequins são lem-

brados como locais da “efervescência” cultural

ipanemense da década de 1960. No livro de

Ruy Castro, os botecos e “pés-sujos” ocupam

oito verbetes da enciclopédia: Bar Lagoa, Bo-

fetada, Calypso, Jangadeiro, Mau Cheiro, Va-

randa, Veloso e Zeppelin. Na imprensa, esses

locais aparecem como os principais pontos de

encontro de artistas brasileiros, como os mú-

sicos da Bossa Nova e os cineastas do Cinema

Novo. O Caderno Zona Sul do Jornal O Globo

diz que os artistas cariocas da década de 1960

“fi zeram nascer uma nova Ipanema a partir dos

movimentos nascidos em mesas de bar. Crias

dessa geração foram a Bossa Nova e o Cinema

Novo” (: 35). A imprensa especifi ca cada bar

ipanemense segundo seu tipo de público: “Es-

critores e jornalistas reuniam-se no Zeppelin...

músicos no Veloso... Havia também o Jangadei-

ro, reduto da Banda de Ipanema... e o pé-sujo

Mau Cheiro freqüentado pelo pessoal do Cine-

ma Novo” (Veja Rio: 14).

Assim como o Mau Cheiro é pensa-

do como o “pé-sujo” do “pessoal do Cinema

Novo”, os músicos da Bossa Nova são recor-

dados por freqüentar, principalmente, o Bar

Veloso. O signifi cado do Veloso como um dos

espaços que associam a Bossa Nova ao bairro

de Ipanema relaciona-se, em primeiro lugar, à

criação de “Garota de Ipanema”, a música mais

famosa desse estilo musical. Em decorrência do

grande êxito alcançado por Garota de Ipanema

no Brasil e no exterior – a canção está entre as

cadernos de campo • n. 13 • 2005

52 |

mais executadas do mundo – a história da cria-

ção dessa música, que envolve os compositores

Tom Jobim e Vinícius de Moraes, a musa ins-

piradora Helô Pinheiro e o bar Veloso, trans-

formou-se em uma lenda do bairro, narrada

por todas as matérias analisadas:

Nenhuma canção nacional foi – e continua sen-

do – tão executada quanto “Garota de Ipane-

ma”.... A música de Tom e Vinícius, de 1962,

foi inspirada em Helô Pinheiro quando passa-

va a caminho do mar em frente ao bar Veloso

– hoje Garota de Ipanema (O Globo: 38).

Uma das mais executadas canções do mun-

do foi composta em 1962, na casa de Tom Jo-

bim. A idéia nasceu nas mesas do bar Veloso,

onde Tom e Vinícius passavam horas beberi-

cando, jogando conversa fora e observando

as mulheres, entre elas a musa Helô Pinheiro

(Veja Rio: 14).

A ligação entre o Cinema Novo e a Bossa Nova

com o bairro de Ipanema se faz pelo caráter

“vanguardista” desses dois movimentos; ambos

são entendidos como estilos artísticos que rom-

peram com os padrões estéticos e musicais tradi-

cionais. Todavia, nota-se que o vínculo da Bossa

Nova com o bairro aparece de modo ainda mais

peculiar se comparado ao do Cinema Novo.

Como a própria imprensa menciona, embora a

troca de idéias entre os cineastas brasileiros se

desenrolasse nos botecos de Ipanema, os fi lmes

desse movimento voltaram-se para cenários nada

parecidos com o bairro, como, por exemplo, o

sertão nordestino. No caso da Bossa Nova, Ipa-

nema aparece não apenas como um ponto de

encontro de seus principais representantes, mas

fi gura também como temática de suas canções

mais famosas.

A construção simbólica de Ipanema como um

bairro que “lançou moda” e que se consolidou

como vanguarda dos costumes e das manifes-

tações artísticas brasileiras edifi ca-se por uma

associação entre espaços e pessoas. O bairro

como um todo é tomado por suas partes. A

valorização da praia e dos bares demonstra que

Ipanema não era apenas o local onde os indiví-

duos se encontravam, criavam e executavam os

acontecimentos pioneiros. Mais do que isso, o

bairro é entendido como um local propício para

as inovações por servir de fonte de inspiração e

motivo de celebração para os ipanemenses.

O livro de Jaguar fornece outras evidências

de que os botequins foram importantes para

defi nir o passado de Ipanema. O autor expres-

sa essa idéia a partir da caracterização dos ipa-

nemenses, narrando histórias bem humoradas

ocorridas no espaço dos bares:

Aquela história do coelho no Jangadeiros acho

que todo mundo já conhece. Quando um ga-

roto gritou “papai, olha um coelho!” foi um alí-

vio geral. Ninguém ousava dizer que tinha um

coelho correndo entre as mesas; pensavam que

estavam tendo alucinação alcoólica (: 52).

Entre os “ipanemenhos padrões” descritos

no livro de Jaguar, quase todos são apresenta-

dos como assíduos freqüentadores de bares e

botecos, ou lembrados pelas “loucuras” come-

tidas em estados alterados de consciência, sob

o efeito de bebidas alcoólicas. O próprio autor

não se exclui dessa caracterização, desculpan-

do-se, em pelo menos dois trechos do livro,

pela sua “amnésia alcoólica” que o fez esquecer

de pessoas ou “embaralhar as lembranças”. O

estilo de vida boêmio do autor e de seus ami-

gos de Ipanema está evidenciado no capítulo

dedicado ao “ipanemense ilustre” “Carlinhos

de Oli”:

Nunca marcamos encontro, mas durante anos a

gente se esbarrava na ronda dos bares... chegáva-

mos em horários diferentes mas amiúde éramos os

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últimos a sair. Só íamos embora quando os garçons

começavam a jogar baldes d’água nos nossos sapa-

tos. Numa dessas madrugadas, no Degrau, estáva-

mos tomando a saideira em pé porque as cadeiras

já estavam empilhadas em cima da mesa. Carli-

nhos pagou a conta com um cheque que assinou

contra a parede. Teve um ataque de fúria quando o

cheque foi devolvido; a assinatura “José Carlos de

Oli” não conferia. O “veira” restante estava escrito

na parede (: 31-32).

O trecho acima poderia representar uma des-

continuidade nas representações sobre o bairro

de Ipanema, já que o bar mencionado locali-

za-se no Leblon. Contudo, Jaguar insiste que,

embora o seu grupo freqüentasse outros locais

da cidade, inclusive os bares da Lapa, Leblon e

Copacabana, o “clima” que emprestavam a esses

ambientes era marcadamente “ipanemense”:

As festas que Albino e eu dávamos na Estudan-

tina Musical, na praça Tiradentes, no Silvestre,

em Santa Teresa, no Elite, na Praça da Repúbli-

ca, e na Banda Portugal, na Presidente Vargas,

eram festas ipanemenses... A turma de Ipanema

aprontava no Degrau (Leblon)... no Alfredão

(Lido), no Bar Brasil (Lapa), na Gôndola, Ka-

takombe e Galeria Dezon (Copacabana)... e até

em Petrópolis (: 17).

Com base nessa idéia de Jaguar, pode-se pen-

sar que a categoria “Ipanema”, pensada como

um adjetivo que qualifi ca pessoas, lugares e com-

portamentos, não precisa estar necessariamente

vinculada ao espaço físico do bairro. Da mesma

forma, “ipanemense” ou “ipanemenho” são iden-

tidades utilizadas para designar pessoas que não

têm, necessariamente, um vínculo direto com os

limites territoriais de Ipanema. Morar no bairro,

por exemplo, não é uma condição necessária, nem

tampouco sufi ciente, para que um indivíduo as-

suma essa identidade. De modo análogo, “ipane-

menses típicos” podem ser habitantes de outras

localidades, como é o caso do próprio Jaguar:

Nós, ipanemenses dos anos 60, estávamos nos

lixando para os limites geográfi cos do bairro.

Eu mesmo, enchendo a boca falando em “nós,

ipanemenses”, morava em Copacabana.... Havia

uma espécie de imperialismo ipanemense. Como

grileiros, invadíamos a cidade e até o estado do

Rio (: 17).

Na obra de Ruy Castro essa idéia também

é marcante já que nem todas as personalidades

que aparecem em seu livro foram moradoras

de Ipanema. Exemplos paradigmáticos da “au-

tonomia” que esse conjunto de representações

apresenta diante das fronteiras do bairro são os

artistas internacionais que aparecem na enci-

clopédia desse autor.

Um verbete interessante é o de Isadora Dun-

can, que esteve de passagem pelo Rio de Janeiro,

em 1915, na seqüência de uma turnê mundial.

Percebe-se que o que explica a presença dessa

dançarina na “enciclopédia de Ipanema” não é

somente o fato da artista ter conhecido a praia

do Arpoador durante sua estadia na cidade, mas

a percepção de que seu “perfi l” assemelha-se ao

da típica mulher ipanemense, defendido por

Ruy Castro. O autor descreve Isadora Duncan

como “uma modernista radical, na dança e no

comportamento: escolhia os homens que queria

como amantes, tinha fi lhos com eles, dispensa-

va-os de casar e aonde fosse, arrastava séquitos

de todos os sexos” (: 174). Aqui, o bairro é as-

sociado não ao imaginário “boêmio”, mas às

noções de “ousadia” e “liberdade”, que também

são empregadas na descrição de quase todas as

mulheres da enciclopédia. A percepção de que

as ipanemenses teriam uma inclinação para

romper com os papéis de gênero convencional-

mente prescritos aparece no seguinte trecho:

As mulheres de Ipanema tinham desprezo por

conceitos como virgindade, casamento burguês,

cadernos de campo • n. 13 • 2005

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fritar bolinhos, monogamia e maridinho-prove-

dor-do-lar. Elas estudavam, trabalhavam, mo-

ravam sozinhas, namoravam quem quisessem

e não davam satisfações. Nada que fi zessem era

chocante em Ipanema (: 210).

Ao qualifi car como “ipanemenses” a ameri-

cana Isadora Duncan e as festas na Praça Tira-

dentes e em Santa Tereza, Ruy Castro e Jaguar

sugerem que os aspectos simbólicos atribuídos à

Ipanema transcendem os limites territoriais do

bairro. Ao contrário do que pode parecer, esse

aspecto somente comprova a importância do

espaço para a criação de classifi cações sociais.

Como sugeriu Mauss (1974) – ao pesquisar a

sociedade esquimó – e Halbwachs (1990) – ao

refl etir sobre o tema da memória – o espaço é

uma categoria de pensamento que estrutura re-

presentações e práticas sociais. Assim, embora

o imaginário sobre Ipanema seja sólido o sufi -

ciente a ponto de se desligar das fronteiras do

bairro, é somente em referência àquele espaço

que esse conjunto de representações e de me-

mórias se consolida, adquirindo sentido.

São muitas as representações evocadas pela

palavra “Ipanema”, podendo designar tanto

estilos de vida “livres”, “transgressores” e “mo-

dernos” quanto “boêmios”, “criativos” e “infor-

mais”. De uma maneira ou de outra, “Ipanema”

é uma categoria repleta de signifi cados, e vale

a pena pensar que, se por um lado, essas ela-

borações são utilizadas para enaltecer o bairro,

por outro, elas também podem assumir valores

negativos e transformar a identidade “ipane-

mense” em uma categoria de acusação.

Para compreender de que modo “Ipanema”

simbolizou um rótulo negativo é interessante

buscar alguns emblemas capazes de traduzir

aquilo que se considera como o “espírito” do

bairro em épocas passadas. Dentre todas as per-

sonalidades, acontecimentos e lugares recor-

rentemente citados nos livros e na imprensa,

acredito que a atriz Leila Diniz e o jornal O

Pasquim podem ser “bons para pensar” um tipo

de representação atribuído à Ipanema contra o

qual voltaram-se alguns discursos acusatórios.

A associação entre Leila Diniz e o passado

de Ipanema é evidente. A atriz integrava a “tur-

ma de Ipanema” de que falam Jaguar e Carlos

Leonam, e na enciclopédia de Ruy Castro sua

descrição possui um número de páginas supe-

rior ao da grande maioria dos demais verbetes.

A imprensa também sustenta que “poucas mu-

lheres encarnaram tão bem o espírito de Ipa-

nema. Bem-humorada, curiosa, transgressora,

Leila Diniz foi a grande musa do bairro.” (Veja Rio: 13). Na célebre entrevista ao jornal O Pas-quim, comenta Goldenberg (1995), Leila Di-

niz transgrediu as regras de linguagem, negou

os principais valores do campo artístico afi r-

mando que escolhia o trabalho pela “patota” e

pela diversão e mostrou viver sua sexualidade

de forma livre e intensa. A fotografi a de sua

gravidez de biquíni amplamente divulgada pela

imprensa da época (e de hoje também) simbo-

lizou a transgressão em relação aos usos do cor-

po feminino, além de trazer para a polêmica a

rejeição da atriz pelo casamento convencional

e pelos papéis tradicionais de “ser mulher”. As-

sim, se a fi gura de Leila Diniz é apropriada pe-

los meios de comunicação para exemplifi car o

“tipo ideal” ipanemense, isso se deve, em gran-

de medida, pelo fato de a atriz ter demonstrado

publicamente sua recusa a uma série de valores

predominantes na sociedade brasileira das dé-

cadas de 1960 e 1970.

A partir das acusações que recaíram sobre os

comportamentos dessa atriz, é possível pensar

sobre o modo como a identidade “ipanemen-

se” foi vivenciada como um rótulo negativo. O

trabalho de Goldenberg (1995) mostra que as

acusações de desvio variam conforme o grupo

que cria o rótulo. Enquanto Leila foi chamada

de “puta” e de “subversiva” pela “direita”, a “es-

querda” e as feministas da época acusavam-na

de ser “alienada”, “superfi cial” e “porra-louca”.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

: X |

Outro ícone do passado de Ipanema capaz

de colaborar para o entendimento das acusações

de desvio é o jornal O Pasquim. Vale dizer que os

três autores aqui analisados – Jaguar, Carlos Leo-

nam e Ruy Castro – já trabalharam ou, pelo me-

nos, colaboraram com esse semanário. Em fi ns

de 1970, nove integrantes de O Pasquim foram

presos pelo governo militar e o jornal foi man-

tido sob censura. Na enciclopédia ipanemense,

Ruy Castro defende que o jornal era “engraçado,

provocativo e desrespeitoso, mesmo quando tra-

tava de assuntos sérios” (: 281) e faz ressalvas ao

classifi cá-lo como um jornal de oposição:

Nitidamente era um jornal “de esquerda” – mas

não da esquerda ofi cial, do Partidão... ou mes-

mo da esquerda estudantil, maoísta, que já co-

meçara a assaltar bancos e a fazer caixa para a

luta armada. Era uma esquerda de humoristas,

mais para festiva, tipo Ipanema, que os militares

ainda não levavam a sério (: 280).

Era o apogeu da Esquerda festiva, da qual o Pas-

quim era um alegre porta-voz, e do mito de Ipane-

ma, de que ele foi o grande estimulador (: 282).

No livro Os degraus de Ipanema, Carlos Le-

onam mostra que as críticas dirigidas aos ipa-

nemenses eram uma preocupação para Jaguar,

fundador d’O Pasquim, nas primeiras tiragens

do jornal. Em resposta ao pedido de Carlos

Leonam para colaborar com o tablóide, Jaguar

teria advertido: “queremos fazer um jornal que não seja rotulado de ipanemenho” (: 218). Se-

gundo Braga (1991: 193), uma acusação fre-

qüente que se fez a O Pasquim é que, apesar

de crítico e politicamente avançado, o jornal

era machista. De acordo com o autor, embora

O Pasquim abrisse espaço para artigos escritos

por colaboradoras que participavam das lutas

da mulher, ele também ironizava as feministas

mais engajadas em algumas frases de capa como

“Pasquim – um jornal ao lado da mulher. E se

for o caso, sobre e sob”; “Pasquim – Um jornal

por dentro das feministas” ou “Desculpe Dona

Betty [Friedan], mas nós vamos dar cobertura

às furadoras da greve do sexo”.

Se Ipanema representava, de um lado, uma

“ameaça” ao governo militar por ter sido, se-

gundo Ruy Castro, “um reduto permanente

de oposição que combateu ou criticou todos

os governos dos últimos sessenta anos” (: 11),

muitas acusações dirigiam-se, por outro, à pos-

tura excessivamente “descontraída” e à falta

de compromisso e seriedade dos ipanemenses

frente às questões mais “importantes” do país.

Talvez seja em referência a esses aspectos que o

autor comenta a condenação da cantora Nara

Leão à “alienação de Ipanema” (: 59).

As acusações dirigidas a O Pasquim e à atriz

Leila Diniz variaram conforme grupos sociais

distintos. De um lado, sofreram perseguições

por representarem uma ameaça à ideologia do

governo militar; eram considerados “perigosos”

pelos segmentos mais conservadores da socie-

dade brasileira da década de 1960. De outro,

aos olhos dos militantes políticos de oposição

ou das lutas feministas, esses ícones de Ipanema

simbolizavam o “desbunde”, a falta de serieda-

de e a alienação. Sob esse aspecto, os ipane-

menses típicos ocupavam uma posição peculiar

em um sistema de rotulação e de acusação. A

ameaça apresentada por esses jovens resultava

de uma condição que oscila entre pólos anta-

gônicos, como o de “subversivo”, de um lado, e

o de “alienado”, de outro. Estes exemplos mos-

tram de forma paradigmática a idéia de Becker

(1971) segundo a qual não existem condutas

essencialmente desviantes, mas diferentes ma-

neiras de se reagir a elas. Para o autor, o desvio

não é criado por aquele que o realiza mas pelos

grupos que o classifi cam como desviante.

A Ipanema do presente

Os autores aqui investigados sugerem que

Ipanema não é mais como antes pois os locais

cadernos de campo • n. 13 • 2005

56 |

e acontecimentos mais representativos de suas

memórias, como os bares, a praia e a Banda

de Ipanema perderam o seu caráter distintivo e

“autêntico”. Sob o ponto de vista de Jaguar e de

Carlos Leonam, Ipanema é “aquela Ipanema”,

ou seja, o bairro que marcou os “anos glorio-

sos” de sua geração. Já o material de imprensa,

embora também celebre o passado de Ipane-

ma, apresenta uma versão mais positiva sobre

o bairro. Ipanema teria adquirido, segundo os

jornais e revistas, novos atributos igualmente

valorizados. Os maiores responsáveis por em-

prestar um novo caráter ao bairro teriam sido

os serviços de alto luxo inaugurados nos últi-

mos anos em Ipanema. Esta idéia pode ser vista

nos três suplementos pesquisados:

Tudo está muito distante da velha Feira Hippie

que marcou os anos loucos do bairro. O comér-

cio sofi sticou-se para atender uma rica clientela

de várias partes do mundo....Ipanema se profi s-

sionalizou... A maioria dos velhos casarões do

bairro já não existe mais. Eles deram lugar a

hotéis de luxo, edifícios comerciais modernos e

inteligentes ou a condomínios residenciais sofi s-

ticados (Jornal do Brasil: 4).

Além de uma volta ao passado, este especial

do Globo-zona sul revela que a história do bair-

ro, da qual fazem parte Tom Jobim e Vinícius de

Moraes, continua sendo escrita, hoje, por em-

presários da moda que, sediados em Ipanema,

exportam seu estilo de vida (O Globo: 16).

Nas últimas décadas, enquanto os saudosistas la-

mentavam o fi m do agito cultural que marcou o

bairro dos anos 40 aos 70, estilistas, designers e

restaurateurs foram, aos poucos, mostrando mais

uma vocação de Ipanema... o bairro hoje é o mais

luxuoso shopping a céu aberto da cidade. É tam-

bém praia de modismos e corpos esculturais, mesa

de inovações gastronômicas, vitrine de roupas e

acessórios impecáveis (Veja Rio: 11).

A Ipanema atual é retratada pela impren-

sa por meio das categorias “luxo”, “charme” e

“sofi sticação”. Essas noções ganham contornos

mais específi cos quando se observam quais são

as localidades percebidas como “luxuosas” e

“sofi sticadas”. O Caderno H do Jornal do Bra-sil, por exemplo, fundamenta o “glamour” de

Ipanema quando ressalta que no bairro “es-

tão reunidas as joalherias mais sofi sticadas do

mundo como Amsterdam Sauer, H. Stern,

Mont Blanc, Cartier...” (: 4). Os restaurantes,

as livrarias e algumas lojas também aparecem

como exemplos do caráter “moderno” e “re-

quintado” da região. A importância conferida a

esse novo comércio para a nova feição do bairro

se manifesta através da freqüência com que os

proprietários ou representantes desses locais são

solicitados pela imprensa. As matérias abrem

espaço para os indivíduos dessa categoria justi-

fi carem suas escolhas por Ipanema, e eles argu-

mentam tratar-se de um local estratégico:

‘Hoje Ipanema é fundamental para projetar uma

marca no país e internacionalmente. Como a

Rua Oscar Freire em São Paulo’, explica o esti-

lista Tufi Duek, que inaugura na terça uma me-

galoja da sua Forum na Praça Nossa Senhora da

Paz (Veja Rio: 14).

O prestígio conquistado por esse grupo en-

volvido com o novo comércio do bairro é tal

que eles são solicitados não apenas para discu-

tirem o caráter rentável ou promissor de Ipane-

ma, mas também para revelarem suas opiniões

pessoais sobre o bairro:

‘Minha mulher está sempre descobrindo coisas

fantásticas por aqui’, conta Rui Campos, o Rui

da Livraria da Travessa.... ‘A gastronomia é hoje,

sem dúvida, um dos trunfos de Ipanema’ diz

Angela Hall, gerente da Louis Vuitton e mora-

dora do bairro... ‘É um bairro cheio de vida’,

afi rma a arquiteta Bel Lobo, que deu forma a

cadernos de campo • n. 13 • 2005

: X |

vários restaurantes e lojas da região... (Veja Rio:

15-16).

Não é difícil imaginar que a imprensa de-

monstre outros interesses – para além da co-

memoração do aniversário de 110 anos – para

elaborar uma imagem positiva sobre Ipanema.

Seria ingênuo desconsiderar os interesses econô-

micos dos meios de comunicação nos empresá-

rios atuantes no bairro. Nesse sentido, é possível

pensar que muitas matérias acabam cumprindo

uma função publicitária que visa tornar mais

atrativos os serviços dos anunciantes por meio

de uma exaltação do bairro onde estes se locali-

zam. De qualquer maneira, é possível refl etir que

se o passado do bairro – conforme expressam os

livros – é elaborado por uma elite intelectual que

se coloca como protagonista das memórias do

bairro, a atualidade de Ipanema – como reve-

la a imprensa – é elaborada por uma elite co-

mercial que também se inclui com destaque nas

representações simbólicas desse bairro. Pode-se

sugerir que os critérios que tornam determina-

das pessoas “legítimas” para falar sobre Ipanema

variam segundo o recorte temporal que se pre-

tende abordar. Enquanto os portadores das “me-

mórias autênticas” ou do relato mais “confi ável”

sobre o passado são artistas e intelectuais, a hie-rarquia de credibilidade (Becker, 1977) se trans-

forma quando o tema é a atualidade, em que os

indivíduos que ganham maior legitimidade são

os representantes do comércio de luxo.

Dentre os profi ssionais ligados ao campo da

moda e da gastronomia, há dois indivíduos que

merecem atenção por receberem destaque nos

três suplementos analisados. São eles, Oskar

Metsavaht e Alexandre Accioly. O primeiro

é proprietário da cadeia de lojas Osklen, gri-

fe que vende roupas para um público jovem

de classe média/alta. Já o segundo é sócio de

quatro restaurantes de elevado padrão relativa-

mente recentes no bairro. Ambos são descritos

como fortes investidores na região:

Ipanema fi rma-se como endereço predileto

das grifes e atrai novos investidores. Entre eles,

Oskar Metsavaht, dono da Osklen há 15 anos,

que há apenas dois abriu a primeira loja no lo-

cal: – “Ipanema foi o bairro que escolhi para fi n-

car a primeira loja internacional da Osklen...”

(O Globo: 18).

Alexandre Accioly, capa deste H, acredita em

Ipanema. Ele é seguramente quem mais inves-

te no bairro nos últimos anos... Somando tudo,

são US$ 12 milhões jogados no pano verde que

hoje se tornou investir no Brasil (Jornal do Bra-sil: 11).

Não é apenas a imagem de “proprietários de

negócios” que torna curiosa a aparição desses

dois indivíduos na imprensa. Accioly e Metsa-

vaht parecem “corporifi car” um tipo de represen-

tação sobre o bairro. Nas fotografi as e em alguns

trechos presentes nessas matérias, os hábitos e as

preferências de ambos, como a prática de espor-

tes ao ar livre, são descritos por meio de uma re-

lação estreita com os espaços do bairro. A praia

de Ipanema, por exemplo, é representativa de

seus hábitos cotidianos, servindo inclusive como

o cenário de quase todas as fotografi as em que os

dois aparecem nos jornais. A relação de Accioly

com a praia surge na descrição de sua trajetória

como morador do bairro desde a infância:

Pedra do Arpoador, o point de suas tardes, onde

[Accioly] curtia o pôr-do-sol... Adulto, transfe-

riu-se para a rede de vôlei em frente ao Country,

onde dava plantão nos fi ns de semana. Das nove

até a noitinha’ (Jornal do Brasil: 11).

Esse empresário foi eleito “O garotão de Ipa-

nema”, aparecendo em uma enorme fotografi a

de capa do Caderno H. Alto, de pele bronzeada

e aparência jovial, o empresário está vestido com

camisa social, calças compridas e chinelo, sen-

tado à noite no calçadão da praia de Ipanema.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

58 |

Essa mistura de elegância com informalidade

também é transmitida na foto do interior da

matéria, onde Accioly está de trajes “sociais”, to-

mando água de coco mas com os pés descalços

na praia. O texto localizado abaixo diz: “Coco

verde, areia no pé e o privilégio de ser, desde

sempre, um garoto de Ipanema” (: 11). Outra

matéria ressalta que Accioly vive no edifício Cap

Ferrat, “supra-sumo do luxo à beira-mar, onde

não se compra um imóvel por menos de 3,5 mi-

lhões de dólares” (Veja Rio: 15).

De modo semelhante, Oskar Metsavaht

aparece no Caderno Zona Sul do jornal O Globo com a praia ao fundo, vestindo uma ca-

miseta que diz “United Kingdom of Ipanema”.

Seu depoimento é colocado em destaque abai-

xo dessa fotografi a: “Ipanema é muito privile-

giada, com uma vida cosmopolita integrada à

natureza” (: 20). Essa mesma opinião está pre-

sente na Veja Rio, que dedicou um trecho da

reportagem para a apresentação das atividades

físicas realizadas por Metsavaht em Ipanema:

“O bairro simboliza uma vida urbana integra-

da com a natureza, o que não existe em ne-

nhum lugar do mundo”, diz o estilista gaúcho

Oskar Metsavaht, que há vinte anos mora,

surfa, corre, pedala e anda de skate no bairro.

(Veja Rio: 16).

A idéia de que Ipanema é um bairro de pes-

soas “jovens”, “ricas” e “descoladas” também

está implícita na escolha de suas atuais musas.

Esse bairro está fortemente associado a uma

dimensão lúdica que se constrói por meio de

uma exaltação de elementos “naturais”. A praia,

o mar, os coqueiros e a pedra do Arpoador, por

exemplo, são símbolos que associam o bairro à

idéia de beleza. Insistindo na percepção de um

contágio entre espaço e pessoas, Ipanema é per-

cebida como um local que produz pessoas be-

las, sobretudo, mulheres. Na medida em que o

imaginário do bairro sofre transformações com

o passar dos anos, o perfi l das musas de Ipa-

nema também se modifi ca. Se Leila Diniz foi

considerada musa do bairro na década de 1960,

a imprensa atual elege a apresentadora de um

programa televisivo de esportes como um ícone

da Ipanema de hoje. Cíntia Howlett já foi eleita

“musa do verão” e é lembrada por habitar em

uma localização de prestígio em Ipanema; em

um edifício de frente para a praia do Arpoador.

Fotos ou depoimentos ligados a essa ipanemen-

se são recorrentes em matérias sobre Ipanema:

Entre os rostos manjados de Ipanema está a

apresentadora Cíntia Howlett, moradora do

Arpoador. Geração saúde, Cíntia corre no calça-

dão, nada, anda de bicicleta na ciclovia. “Minha

ginástica é Ipanema, e isso não tem preço”, ob-

serva. (Veja Rio: 16)

Assim como os emblemas masculinos an-

teriormente citados, Cíntia Howlett também

representa uma dimensão “nobre” combinada

a um estilo de vida “despojado”, “jovem” e “es-

portivo”. No suplemento da revista Veja, outras

mulheres são assim percebidas na matéria de pá-

gina dupla “Ipanema, uma jovem de 110 anos”.

Na página direita, a fotografi a revela uma mu-

lher branca, jovem, cabelos lisos, de óculos es-

curos, caminhando na calçada da Rua Visconde

de Pirajá: “A estilista Joana Saladini: compras a

pé pelas ruas do bairro” (: 11). Na outra página

há uma garota de short e biquíni na praia com

a seguinte descrição “A wakeboarder Juliana na

Praia de Ipanema: beleza no Posto 10.... corpo

moldado pelo treino de wakeboard” (: 10-13).

Segundo a matéria, as duas moças de Ipanema

“não hesitam em apontar o mesmo passatempo

para as horas vagas: bater perna de olho nas vi-

trines que se espalham pelas ruas dali” (: 13).

Assim como um único ipanemense pode

reunir as diferentes características atribuídas ao

bairro, o estilo de vida “descontraído” e “requin-

tado” também pode ser identifi cado em uma

cadernos de campo • n. 13 • 2005

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mesma localidade. O Caderno Zona Sul destaca

que os restaurantes com varandas e mesas na cal-

çada se multiplicaram em Ipanema nos últimos

anos e sugere que “sem perder a descontração da

cidade praiana, eles têm o típico requinte ipane-

mense”(: 45). A Veja Rio destaca o “almoço na

varanda” e a “vida saudável à beira mar” como

programas típicos de Ipanema: “além da vida

saudável à beira-mar, programa em Ipanema é o

footing pelas ruas aos sábados, compras todos os

dias, almoços na varanda do Gula Gula, cinemi-

nha no Estação” (Veja Rio: 16).

A categoria “Ipanema”, tal como é transmi-

tida pelos jornais e revistas, parece representar

algo mais do que o espaço geográfi co de um

bairro. Ela denota, acima de tudo, um estilo

de vida. A descrição de personalidades como

Oscar Metsavaht, Alexandre Accioly e Cíntia

Howlett é apenas uma maneira de expressar

algumas das representações associadas ao bair-

ro, como a de um lugar informal, com belezas

naturais, propício para os esportes e, ao mesmo

tempo, urbano, de elevado padrão e sofi stica-

do. Essa junção de atributos se transfere para

os indivíduos do bairro. Ipanema teria produ-

zido pessoas que assumem um estilo de vida

“esportivo” e “espontâneo” sem deixarem de ser

“elegantes” e “cosmopolitas”.

Para tornar essas representações mais con-

cretas, vale mencionar a estratégia do estilista

Oskar Metsavaht em explorar comercialmen-

te esse imaginário através da criação de uma

identidade “ipanemense” para sua grife de

roupas Osklen. Vale lembrar que mesmo an-

tes da instalação da Osklen de Ipanema, a

marca, voltada para um público de elite, já

era identifi cada com as idéias de valores como

“juventude”, “esportes” e “natureza”. Com a

chegada à Ipanema, a estratégia de marketing

parece ter sido a de reforçar esses conceitos

associando a Osklen a um estilo de vida típico

“de Ipanema”:

Ipanema é admirada no mundo inteiro e tem

uma condição privilegiada com uma vida urba-

na cosmopolita integrada à natureza – diz Met-

savaht, que estampou “Arpoador” e “Posto 9”

em blusas da última coleção da Osklen e criou a

campanha “United Kingdom of Ipanema”, que

dá a dimensão do quanto ele gosta do bairro (O Globo: 20).

Através dessa “jogada” publicitária nota-se

que o bairro de Ipanema também se apresenta

sob a forma de um bem de consumo. O que

se vende na Osklen não são simples camisetas,

mas um estilo de vida “ipanemense” que é so-

cialmente valorizado.

Dois bairros, duas moralidades

A partir da análise sobre os livros e as matérias

de imprensa observou-se que, mais do que um

território espacial, Ipanema é pensada como um

adjetivo capaz de qualifi car pessoas, comporta-

mentos e estilos de vida. De uma visão de mun-

do orientada para a vanguarda comportamental,

a criatividade artística e a boemia, o bairro passou

a simbolizar uma dimensão “de elite”, inclinada

para o consumo e para as atividades físicas.

Notou-se, portanto, a elaboração de duas

Ipanemas; uma do passado e outra do presen-

te. Enquanto a primeira é caracterizada como

um bairro “transgressor”, que “lançou modas”,

a Ipanema atual é um local “sofi sticado” e “des-

colado”. Essas duas construções simbólicas se

elaboram por meio de uma associação entre

espaços e indivíduos, evidenciando-se através

de uma mudança nas personalidades e nos lo-

cais tidos como emblemáticos do bairro. Se os

ipanemenses do passado são artistas, cineastas e

músicos, os de hoje são empresários, estilistas e

esportistas. Enquanto os bares representaram o

“espírito ipanemense” do passado, as joalherias,

os restaurantes e as grifes de roupa defi nem o

“espírito atual” desse bairro.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

60 |

Para ilustrar essas variações de imaginário é

interessante refl etir sobre o perfi l das musas e

sua relação com o principal espaço do bairro;

a praia. Foi na praia que a musa de Ipanema

na década de 1960 – Leila Diniz – fi cou pu-

blicamente conhecida por seu comportamen-

to “transgressor”. As musas atuais de Ipanema

percebem a praia como o local da “ginástica” e

dos “esportes”. Se a praia “de antes” simbolizou

o espaço da “transgressão” às normas, onde o

corpo ipanemense se apresentou de modo “po-

lêmico” e “livre”, a praia de hoje é o local das

atividades físicas, da moralidade da boa forma

onde o corpo valorizado é “trabalhado”, “sau-

dável” ou “sarado” (Goldenberg 2002).

Esta pesquisa permitiu pensar sobre algumas

mudanças sociais dos últimos quarenta anos na

medida em que os valores utilizados para enalte-

cer um bairro emblemático da cidade do Rio de

Janeiro tornaram-se quase antagônicos. Embora

permaneça a noção de um bairro lúdico, “bonito

por natureza” e propício para um estilo de vida

“descontraído” e “informal”, pode-se pensar em

uma mudança de atitude frente às normas so-

cialmente prescritas. O signifi cado de Ipanema

como um bairro peculiar da cidade do Rio de

Janeiro na década de 1960 foi construído por

uma exaltação de aspectos contestadores e trans-

gressores, como a liberação do corpo e da sexua-

lidade, a arte de vanguarda e a boemia. De modo

contrário, esse bairro é atualmente celebrado por

representar uma conformidade com os valores

predominantes, como a produtividade, a rique-

za, o consumo, o corpo saudável e estético.

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mais charmoso da cidade”. 26 abr. 2004-02 maio

2004. Veja Rio.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

resumo Este artigo aborda a construção do

imaginário de uma ilha considerada “encantada”: a

Ilha dos Lençóis, no Estado do Maranhão. Apresen-

ta uma simbologia sobre os ilhéus, principalmente

acerca daqueles singularizados por marcas corporais,

os albinos. Enfatiza a compreensão explicativa das

práticas discursivas do “universo de fora” (sobretu-

do matérias veiculadas na imprensa de uma manei-

ra geral) e do “universo de dentro” (representações

nativas) sobre duas denominações que sintetizam o

imaginário sobre os albinos da Ilha dos Lençóis: “fi -

lhos da Lua” e “fi lhos do Rei Sebastião”.

palavras-chave imaginário, práticas discur-

sivas, albinos, ilha encantada.

“Filhos do Rei Sebastião”, “Filhos da Lua”: construções simbólicas sobre os nativos da Ilha dos Lençóis

MADIAN DE JESUS FRAZÃO PEREIRA

Mestre em Antropologia Social pelo PPGAS/

UFPA e doutoranda em Sociologia pelo PPGS/

UFPB.

Artigo aceito para publicação em 28/09/05

abstract Th is article approaches the construc-

tion of the imaginary of an island considered “en-

chanted”: the “Ilha dos Lençóis” (Lençois Island),

in the State of Maranhão. It presents a symbology

about the islanders, principally about those indivi-

dulized by body birthmarks, the albinos. It empha-

sizes the explanatory understanding of the discursive

practices of the “outside universe” (above all matters

transmitted in the press in a general way) and of the

“inside universe” (native representations) on two

denominations that synthesize the imaginary on the

albinos of the “Ilha dos Lençóis”: “children of the

Moon” and “children of King Sebastião”.

keywords imaginary, discursive practices, al-

binos, enchanted island.

Na rota de lugares que incitam o imaginário

sobre paraísos insulares, com uma verve que enal-

tece a “vida natural” e elementos “fantásticos”,

insere-se a Ilha dos Lençóis, situada no litoral

norte do Estado do Maranhão. Pertencente ao

município de Cururupu, numa área denomina-

da Reentrâncias Maranhenses, a Ilha dos Lençóis

é singular e merece uma apreciação no intercru-

zamento de suas características naturais, culturais

e simbólicas. Digamos que uma pluralidade sim-

bólica reveste a Ilha, considerada “encantada”, en-

quanto morada do “encantado” Rei Sebastião, e

que abriga uma comunidade de pescadores, com

cerca de 450 habitantes, que pode ser considera-

da sui generis pela presença signifi cativa de quase

3% de albinos em sua população, onde todos os

nativos, albinos e não-albinos, autodenominam-

se como “fi lhos do Rei Sebastião”.

Os nativos da Ilha dos Lençóis afetados

pelo albinismo – uma anomalia congênita ca-

racterizada principalmente pela ausência total

ou parcial da melanina, do pigmento da pele

– incitam uma simbologia muito rica a partir

de suas marcas corporais e do espaço onde seus

cadernos de campo n. 13: 61-74, 2005

62 |

símbolos estão alocados – numa ilha “encanta-

da”, “isolada”1 e “misteriosa”.

A Ilha dos Lençóis é considerada uma ilha

encantada, enquanto lugar privilegiado para mo-

rada de El Rei Dom Sebastião, fi gura histórica,

morto em batalha contra os mouros, nos campos

de Alcácer-Quibir, na África, no ano de 1578.

Segundo a crença messiânica, difundida em vá-

rias partes do Brasil, Dom Sebastião, o jovem rei

de Portugal, não morrera, ele havia se encantado

com todo o seu reinado, por sortilégio dos mou-

ros, numa ilha (provavelmente marcada por mui-

tas dunas à semelhança do deserto marroquino

onde ocorrera a batalha), e que um dia ele há de

emergir do fundo do mar, onde está sediado seu

palácio de riquezas, para instaurar seu Império e

distribuir bens materiais para os seus adeptos.

Crenças e mitogeografi a permeiam a cons-

trução de um imaginário fantástico sobre a Ilha

dos Lençóis. Segundo Pedro Braga (2001: 32):

Os primeiros portugueses que se instalaram na-

quela região, provavelmente escolheram as praias

dos Lençóis para habitat do Rei pelo fato de suas

dunas sugerirem alguma semelhança com a pai-

sagem do Norte da África, onde desaparecera

Dom Sebastião; ou talvez porque era presumi-

velmente a Ilha Afortunada a que se referem os

textos antigos.2

1. A Ilha dos Lençóis, caracterizada pelo seu imponente

conjunto de dunas, é uma ilha déltica (fl uviomarinha),

localizada no arquipélago de Maiaú, a 160 km noroes-

te da capital do Maranhão, São Luís. O acesso à ilha é

muito difícil, somente de barco ou de avião mono ou

bimotor. A viagem de barco dura, em média, 12 horas

a partir de São Luís e 7 horas a partir de Cururupu.

Essa difi culdade de acesso é signifi cativa na constru-

ção do imaginário sobre os mistérios de Lençóis. Uma

“ilha encantada” não é para ser conhecida facilmente;

as difi culdades fazem parte de um processo de desafi o

imposto aos aventureiros, àqueles que querem olhar o

“Reino Encantado de Dom Sebastião”.

2. Poderia ser considerada uma das “ilhas afortunadas”

(Insulae Fortunae), na medida em que se localiza no

Oceano Atlântico, à esquerda da Mauritânia, como

O sebastianismo foi transplantado para o

Brasil sob várias vertentes, tais como: a dos mo-

vimentos messiânicos ocorridos no século XIX,

com caráter de fanatismo, em torno de líderes

carismáticos que se diziam reis e que pregavam

o desencantamento de Dom Sebastião à cus-

ta de muito sangue, como nos movimentos da

Cidade do Paraíso Terrestre (Monte Rodeador

– PE), da Pedra Bonita (Vila Bela – PE) e do

Império de Belo Monte (Canudos – BA) (cf.

Queiroz 1976; Ribeiro 1982); e a vertente da

Encantaria. Interessa-nos aqui destacar esta

última vertente, na qual o gentil ou fi dalgo

Dom Sebastião surge como Rei Sebastião, uma

entidade de cultos afro-brasileiros identifi ca-

da como “encantado”, categoria – retirada da

Pajelança amazônica – utilizada para se referir

àqueles que viveram na Terra há muitos anos,

“venceram a morte” e continuam “vivos” nas

“encantarias”: “...que geralmente são conce-

bidas como mundos situados no fundo das

águas, dentro das árvores, ou abaixo da Terra

(em outro planeta).” (Ferretti 2000: 108).

Segundo Maués & Villacorta (2001: 19),

o Rei Sebastião “...habita em várias praias de

ilhas existentes ao longo do litoral entre Belém

e São Luís...”. No Pará, na região do Salgado,

as “moradas” que se destacam são a da ilha de

Maiandeua (no município de Maracanã) e a da

ilha de Fortaleza (no município de São João de

Pirabas). No Maranhão, muitos pescadores e

adeptos do Tambor de Mina – religião afro-

brasileira predominante neste Estado – não

têm dúvidas de que o “encante” mais forte está

na “Praia do Lençol”.3

sugeria Santo Isidoro de Sevilha, a respeito da exis-

tência dessas ilhas, consideradas “ditosas”, que não

deveriam ser confundidas com o paraíso bíblico. (Cf.

Holanda 1994: 159).

3. “Praia do Lençol” ou “Praia de Lençóis” são os termos

mais populares, utilizados sobretudo pelos ilhéus, re-

ferentes tanto ao povoado quanto à parte desabitada

da ilha.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

“ ”, “ ” |

O imaginário sobre a Ilha dos Lençóis é

muito rico. Seja no discurso de jornalistas, de

literatos, de compositores,4 seja no discurso de

pescadores, de adeptos das religiões afro-brasi-

leiras, muito já se comentou sobre o “encante”

da ilha: relatando-se que muitas pessoas de lá

já viram El Rei Dom Sebastião em sua forma

humana, ou em forma de um animal, mais pre-

cisamente de um touro negro; que na praia é

possível encontrar-se objetos de ouro, mas que

ninguém deve ousar em retirá-los de lá, pois os

mesmos pertencem às riquezas do Rei Sebastião;

e que a conhecida toada de caráter messiânico

– “Rei, ê Rei, Rei Sebastião, quem desencantar Lençóis, vai abaixo o Maranhão” – aponta que

no momento em que Rei Sebastião se desencan-

tar, o seu reinado emergirá e a ilha de São Luís,

capital do Maranhão, submergirá. Além de tudo

isso, o alto índice de albinismo verifi cado na

“ilha encantada” suscitou diversas interpretações

imaginárias sobre a comunidade local.

O índice de albinismo na ilha é considera-

do alto, já que é bastante superior à freqüência

normal que é de 0,0005% numa dada popu-

lação. O alto índice de albinismo chamou a

atenção de pesquisadores da área médica que,

patrocinados pela Organização Mundial da

Saúde (OMS) e outras instituições, foram até

a localidade, em 1972. A explicação científi -

ca sobre o albinismo local foi dada por uma

junta de médicos (oftalmologista, dermatolo-

gista, cardiologista e especialista em genética

celular), interessada em estudar esta anomalia

genética numa amostragem isolada. A expedi-

ção foi liderada pelo geneticista Newton Freire-

Maia, da Universidade Federal do Paraná, que,

4. O patrimônio simbólico-cultural dessa comunidade

é de certa forma conhecido, pois por várias vezes foi

enredo de escola de samba, roteiro de peças teatrais,

temas literários etc.; no entanto, não é reconhecido,

pois a comunidade continua desassistida, seja pelo

poder público, seja por aqueles que se apropriam de

sua imagem.

através do levantamento de uma genealogia de

seis gerações (com quase 400 pessoas), cons-

tatou a presença “...de uma forma muitíssi-

mo rara de albinismo” em 18 pessoas (dentre

estas, 3 falecidas e 5 não residiam na ilha), o

que corresponde a uma freqüência aproxima-

da de 3% (Freire-Maia 1973: 13), decorrente

de casamentos consangüíneos entre pessoas

descendentes de Sebastiana Silva, fi lha de um

português e de uma albina, que chegou à Ilha

em 1900 – data em que, segundo fontes orais,

o povoamento da Ilha é iniciado.

Embora haja uma explicação científi ca sobre

a presença de uma concentração de albinos (de

origem branca – descendentes de portugueses)

bastante signifi cativa numa amostragem isolada,

o caráter de “mistério” que envolve essas pesso-

as ainda é muito grande e refl ete um conjunto

de representações dadas pelos moradores locais,

albinos e não-albinos (na defi nição nativa, res-

pectivamente, “brancos” – ou “louros” – e “mo-

renos” – que podem ser considerados como

caboclos, descendentes, em grande maioria, de

índios e brancos),5 pela religiosidade local (in-

tercruzamento da Cura/Pajelança e do Tambor

de Mina), e pela imprensa que de uma maneira

geral vem veiculando matérias sobre a “excentri-

cidade” da Ilha dos Lençóis e dos albinos que ali

vivem.

Em meio a tantos dados instigantes, lan-

cei-me a fazer uma pesquisa antropológica que

resultou na minha dissertação de Mestrado,

intitulada “O Imaginário Fantástico da Ilha dos Lençóis: estudo sobre a construção da identidade

5. A população de Lençóis, bem como a de outras praias e

ilhas do litoral cururupuense, caracteriza-se principal-

mente pela presença de pessoas de pele clara, indício

da fraca penetração do contingente populacional negro

expressivo nas áreas urbana e rural (campo) do municí-

pio de Cururupu. Tal contingente negro é representa-

do por descendentes de africanos trazidos, sobretudo,

da Costa D’Ouro e do Daomé (hoje, Benin) para ser-

virem de mão-de-obra escrava na fabricação do açúcar

e da farinha de mandioca, nos engenhos da região.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

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albina numa ilha maranhense” (Pereira 2000),

por meio da qual busquei analisar as práticas

discursivas do “universo de fora” (sobretudo ma-

térias veiculadas na imprensa, de uma maneira

geral, e fragmentos encontrados na literatura,

nas artes e nos registros de visitantes da ilha) e

do “universo de dentro”, através de pesquisa de

campo, apreendendo representações nativas, no

sentido de perceber a construção do imaginário

possibilitada por tais discursos e representações.

Colocando em evidência pontos dessa

empreitada, através do intercruzamento das

temáticas sobre corpo, imaginário e encanta-

ria sebastianista, o presente artigo apresenta,

de forma mais detida, uma parte do material

proposto na dissertação, em que procuro es-

miuçar as duas denominações que são funda-

mentais na construção da comunidade da Ilha

dos Lençóis: 1) “os Filhos da Lua” – criação de

fora, sobretudo de repórteres, a qual os ilhéus

(albinos e não-albinos) rejeitam, posto que a

consideram numa concepção negativa, que os

estereotipa numa imagem de anormalidade;

2) “os Filhos do Rei Sebastião” – vertente da

Encantaria, aceita por eles, na qual se pensam

coletivamente nessa descendência mitológi-

ca cujo imaginário marca uma fi liação com o

“dono da ilha”.

O discurso de fora sobre os “Filhos da Lua”

Como ilha encantada, cheia de mistérios,

ainda considerada isolada, criou-se um imagi-

nário sobre o desconhecido:

Conta-se que lá vive um bando de gente bran-

ca, de pele e cabelos da cor das dunas, que não

suportam a luz do sol. Cognominaram-nos de

‘Filhos da Lua’, supondo que ela os teria con-

cebido. E nas noites de luar mais intenso, essa

mesma gente saía em longas caminhadas pelas

praias (romarias), cantando hinos estranhos

numa linguagem indecifrável (Vasconcelos in Manchete 1980: 36).

A divulgação de um exotismo da Ilha dos

Lençóis e de seus habitantes – dos albinos, em es-

pecial – se dá sobremaneira pelo discurso literário

da imprensa, que ao exaltar “o natural” mantém

estereótipos sobre esses ilhéus que entranham

no imaginário dos receptores de tal discurso. A

imprensa sensacionalista, de uma maneira geral,

utiliza a expressão “os Filhos da Lua” para se refe-

rir aos albinos da Ilha dos Lençóis, com o intuito

de “vender” uma imagem de exotismo.

O levantamento desse aspecto discursivo,

que apresento em minha pesquisa,6 consiste na

apreciação de um material que se pode designar

como documento de divulgação sobre a Ilha

dos Lençóis e seus habitantes. Nesse material,

estão inseridos, por exemplo, artigos de revistas

de circulação nacional, artigos disponibilizados

na internet, artigos de jornais locais, catálogos,

informativos turísticos e vídeos-documentários

transmitidos em canais televisivos.

De antemão, coloco que, dentre o material

analisado, a divulgação do imaginário sobre os

albinos é exaltada com uma reportagem da re-

vista Manchete, de 24 de maio de 1980.7 Em tal

6. Durante a elaboração da dissertação de Mestrado fi z

um levantamento, sobremaneira, de matérias veicula-

das na imprensa que discorrem sobre a excentricidade

da Ilha dos Lençóis. Atualmente, estou dando conti-

nuidade a esse levantamento (sem pretensões de fazê-

lo exaustivamente) na minha pesquisa de doutorado,

cujo projeto de tese intitula-se Ecoturismo e patrimônio cultural na “ilha encantada”. Nesse empreendimento,

colocam-se questões emergentes no momento em que

em que a Ilha dos Lençóis é apresentada como vitrine

num dos pólos de ecoturismo do Estado do Maranhão,

procurando identifi car o que e de que forma está sendo

exposto como atrativo turístico e em que medida os

nativos estão re-elaborando suas posições nesse novo

cenário, com vistas tanto à conservação da biodiversi-

dade local como do seu patrimônio cultural.

7. Em conversa com alguns nativos da ilha e com outras

pessoas de São Luís que tiveram acesso às primeiras

cadernos de campo • n. 13 • 2005

“ ”, “ ” |

matéria, lê-se a afi rmação de que durante muito

tempo a presença da colônia de albinos na ilha

foi fruto de lendas e histórias fantásticas, mas

que uma tentativa de desmistifi cação foi feita

quando da expedição organizada pela OMS ao

local, para estudar as características de tal albi-

nismo e a sua origem. Alguns resultados da in-

vestigação, realizada por essa expedição médica,

foram apontados na matéria jornalística. Contu-

do, o estilo de um jornalismo literário encontra-

do na matéria contribuiu para que o imaginário

sobre os albinos continuasse vivo, através de um

discurso que concebe os albinos como pessoas

arredias, desconfi adas e de difícil contato, prin-

cipalmente em relação ao assédio da imprensa.

Pela força de tais práticas de linguagem, os

albinos ainda hoje são pensados como seres arre-

dios. Uma gente estigmatizada por um discurso

que além de ter sido impresso repetidamente, é

expresso, transmitido de “boca em boca”, por

aqueles que têm um conhecimento superfi cial

ou ao menos já “ouviram falar” da Ilha dos Len-

çóis e seus mistérios. Mas se os albinos são assim

considerados, não se descarta a hipótese de que

haja uma base para que o estigma se perpetuasse;

ou seja, apreendendo-se algumas representações

nativas sobre o conteúdo dessa matéria, nota-se

que alguns albinos tornaram-se por certo tem-

po arredios numa atitude reativa ao contato que

para eles foi mal sucedido.

Entre os escritos analisados, um dos que

chama maior atenção é o do jornal Vagalu-me (jan.-fev. 1989) – suplemento cultural do

Diário Ofi cial do Estado do Maranhão – que

formulações escritas sobre os albinos da Ilha dos Len-

çóis, essa construção primeva se deu no ano de 1972

com duas reportagens: uma da revista O Cruzeiro e a

outra da revista Veja. A referência da matéria principal-

mente da revista O Cruzeiro está no discurso dos nati-

vos, como a reportagem que primeiro lançou mão da

denominação “Filhos da Lua” para se referir aos albinos

da localidade, cujo conteúdo é criticado pelos nativos

porque, segundo seus relatos, foi muito pejorativo em

relação a eles e cheio de “invenção de repórter”.

é uma compilação de várias matérias sobre a

Ilha dos Lençóis em que se percebe, de uma

maneira geral, um discurso naturalista presen-

te nos textos. Uma matéria (sem autoria) do

referido jornal apresenta o povo da Ilha como

fatalmente marcado pelo determinismo do

meio, reforçando a idéia de que tudo é pro-

visório e precário, e, ainda mais, a ressaltar o

destino a que os albinos da Ilha estão sujeitos,

devido ao envelhecimento precoce e doenças

de pele.

Para o nativo, principalmente os albinos, tudo é

provisório, precário.

Existencialistas, os seres humanos da Ilha dos

Lençóis constroem suas casas de estrutura leve,

isto é, de madeira, sobre jiraus – casas modestas,

simples, sem a expectativa da permanência, do

imóvel construído para durar.

Tem o habitante de Lençóis o instinto de que

a vida para eles é breve e não alimenta sonhos

para o futuro. Existe e aproveita o tempo pre-

sente (Vagalume 1989: 6).

Além do discurso naturalista, nota-se que

em todos os escritos há uma exaltação da beleza

fantástica do lugar, e que a maioria privilegia

o mito sebástico e os mistérios da Ilha. Senão

vejamos:

Tal qual o mito que a cerca, Lençóis, uma das

muitas ilhas das Reentrâncias Maranhenses, pa-

rece impalpável. Vista do ar, das janelas de um

velho Sêneca que a sobrevoa, é como uma pérola

luzidia em meio ao oceano, tantas e tão brancas

são as suas areias. Neste pedaço do mar ociden-

tal do Maranhão, banhado e escurecido por um

incontável número de rios a fazer meandros e

a criar mangues, ela salta aos olhos. Ilha-mito-

miragem (Rocha 1996: 78).

São miragens que despontam no desenho irre-

gular desse litoral, o mais recortado do Brasil,

cadernos de campo • n. 13 • 2005

66 |

já em terras da Amazônia.[...] Ali confl uem o

bafo quente do deserto e o verde da fl oresta. Da

memória ancestral saltam fantasiosas visões que

deram origem a lendas. Numa delas aparece o

rei D. Sebastião. Em noites de lua, o monarca

derrotado pelos mouros toma a forma de um

touro negro, com uma estrela na testa. [...] Na-

vega também pelos “furos”, canais formados pe-

las águas das marés mais altas da nossa costa, que

invadem o continente e encontram os rios. [...]

A imensidão de águas serve de refeitório para

bandos de aves pernaltas de colorido averme-

lhado, símbolo dessas paragens. São os guarás.

Estamos na costa oeste do Maranhão, fronteira

com o Pará. Bem-vindos às Reentrâncias. Bem-

vindos à fl oresta dos guarás (Pavone. Disponível

em http://www.jt.estadao.com.br/suplementos/

turi/2002/01/31/turi003.htm).

O Maranhão é uma terra de alma negra. Disso

não há dúvida. As tradições africanas, trazidas

na pestilência do navio negreiro, criaram raízes

profundas na cultura regional, transformando

o Estado num pedaço de Mãe África no Brasil.

[...] Há um lugar, porém, onde o Maranhão é,

antes de tudo, branco, muito branco: na Ilha

dos Lençóis, no Arquipélago de Maiaú. Para

começar, o panorama é dominado pela palidez

monocromática de dunas sem fi m, a Morraria,

segundo os locais. Os habitantes deste lugar,

aliás, merecem destaque especial: são brancos,

branquíssimos, mais até que as próprias dunas.

De tão brancos que são, fi caram conhecidos

como os “Filhos da Lua” pelos poucos viajantes

que se aventuravam pela região (Ajl. Disponí-

vel em http://www.terra.com.br/turismo/dia-

rio/2003/03/14/).

A geografi a exótica da “ilha-mito-miragem”

fornece matéria-prima para a construção do

imaginário fantástico, dado pela perplexidade

ou deslumbramento diante do diferente, con-

tribuindo para a imaginativa popular. O que

dizer então de ilhas isoladas que oferecem praias

desertas, paisagens desconhecidas que abrigam

um povo e sua cultura quase intocados?

Se há por um lado questões sobre a natureza

do espaço, há também questões sobre as gentes

que ocupam esse espaço. O foco central conti-

nua sendo a busca desse “outro”. A busca se dá

ou como forma de exploração ou como forma

de refl exão e anseio por um “retorno” a uma

vida mais natural.8

Os nativos da Ilha dos Lençóis são apresen-

tados, pela análise que faço, ora na visão infer-

nista (principalmente pelos artigos de matérias

sensacionalistas), ora na visão edênica (princi-

palmente sob a ótica dos relatos dos visitantes e

das incipientes propagandas ecoturísticas).9 Os

8. Se os viajantes de outrora se aventuravam além-mar

em busca do éden bíblico que se acreditava perdido

em algum lugar recôndito ou de um eldorado pagão

– as “Ilhas Afortunadas” que “...se achavam perdi-

das entre as águas do oceano, quase inacessíveis aos

mortais...” (Holanda 1994: 160) – os viajantes atuais,

como os que visitam a Ilha dos Lençóis, parecem con-

tinuar envolvidos com a busca de espaços desconheci-

dos, de preferência, terras distantes e isoladas, só que

agora em busca de um outro tipo de “riqueza”: a pos-

sibilidade de encontrar um refúgio paradisíaco para

que possam se afastar dos problemas das sociedades

urbanizadas e industrializadas. A observação sobre os

viajantes é interessante para se perceber como se dá

a construção de um mercado simbólico do exotismo

que propaga a imagem da Ilha dos Lençóis no projeto

de desenvolvimento do ecoturismo na região. Nessa

construção vem à tona o mito do paraíso perdido,

através da idéia da natureza intocada (cf. Diegues

1998), o que faz crescer um consumo visual do meio

ambiente atrelado à ilusão do primitivismo.

9. Na esteira do Programa de Desenvolvimento do Eco-

turismo na Amazônia Legal (PROECOTUR), perce-

be-se que a divulgação do lugar está crescendo através

do programa de turismo do Governo do Estado do

Maranhão denominado “Plano Maior”. A Ilha dos

Lençóis faz parte do pólo ecoturístico intitulado, pelo

referido programa, de “Floresta dos Guarás”, cuja porta

de entrada é o município de Cururupu. Chamo a aten-

ção para que não se confunda a Ilha dos Lençóis com

o Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses, que se

cadernos de campo • n. 13 • 2005

“ ”, “ ” |

discursos analisados são reveladores de como as

imagens sobre a Ilha dos Lençóis são reinter-

pretadas e reapresentadas constantemente. O

imaginário em torno da Ilha é marcado por es-

sas leituras através de lentes. Tem-se uma visão

ofuscada pela rememoração dos muitos mitos

contados e pelo contato direto com a “geogra-

fi a fantástica”. São construídos, assim, discur-

sos literários, entre a fi cção e a realidade.

Ainda sobre meios de comunicação que par-

ticipam da construção do imaginário sobre os

albinos da Ilha dos Lençóis, não poderia deixar

de mencionar uma das matérias sobre o assun-

to em que fui solicitada a conceder entrevista,

como pesquisadora do universo de representa-

ções sobre os albinos da “ilha encantada”.10

A respeito da referida matéria, da revista

Seara, há uma deturpação muito grande das

informações passadas por mim ao repórter, e

que não pude revisar porque não tive acesso ao

material antes de sua publicação. E um fato a

mais a destacar: como se trata de uma revista

evangélica, sua divulgação fi ca muito restrita ao

circuito das igrejas evangélicas, em especial, da

Assembléia de Deus, ou à compra pelo sistema

de assinaturas.11

A matéria é construída por fragmentos da

minha entrevista (por três vezes são citadas fa-

las minhas) e por depoimentos de um pastor

que faz pesquisa sobre o mito do sebastianismo

e que esteve na ilha no ano de 1984. E o que

chama muito a atenção são os estereótipos atri-

buídos aos albinos e a insistência na urgente

localiza na porção oriental do Estado, ocupando uma

área de 155 mil hectares, e que vem se consolidando

como o carro-chefe do turismo no Maranhão.

10. Concedi entrevistas a jornalistas das seguintes revis-

tas: Parla (Garrone & Fávia Regina fev. 1999), Se-ara (Soarez abr. 1999), National Geographic Brasil (Moura & Correa fev. 2004) e Almanaque JP Turismo (Moura & Correa ago./set. 2004).

11. Lamentavelmente, só recebi um exemplar da revista

em dezembro de 1999, enquanto que a mesma foi

posta em circulação desde abril daquele ano.

propagação do evangelho na comunidade de

Lençóis. Assim, encontram-se na matéria de

Soarez (Seara abr. 1999) trechos tais como:

O fenômeno genético chamado albinismo está

presente em toda população local [...] Seriam

extra-terrestres? Gente de outro mundo? Afi nal,

que seres humanos são esses que assustam uns e

chamam a atenção de outros?! (: 13).

O pastor acredita que um trabalho de evangeli-

zação adequado deva ser feito com urgência, pois

atualmente, embora seus descendentes estejam

nascendo de cor diferente e conseguindo pro-

longar um pouco mais seus anos de vida, outro

fator constitui desafi o para a obra missionária:

os moradores cultuam o rei Sebastião e afi rmam

que um dia ele virá para arrebatá-los. (: 14).

Na exaltação da diferença são atribuídos

fortes estigmas e preconceitos. No discurso

evangélico os albinos estão fora da cultura e

fora da religião que lhes possibilitaria a salva-

ção. Há um clamor para que um forte trabalho

de evangelização não tarde a chegar na “comu-

nidade de albinos” que, para os evangélicos, se

encontra adormecida sob o mito sebastianista,

sem conhecer a salvação em Jesus Cristo.

A grande maioria das matérias da impren-

sa escrita sobre o imaginário da Ilha dos Len-

çóis procura instigar o leitor sobre as lendas e

mistérios do lugar, enfatizando a excentricida-

de dos albinos que ali residem, através de um

estilo de discurso que designo como pseudo-

documentário (apresentado por meio não só

de textos como de imagens),12 interessado em

12. Chama-se a atenção aqui para uma das matérias mais

recentes de circulação nacional que foi a da revis-

ta Isto É – Filhos do Encanto (06 fev. 2002). O fato

é que “o diferente” é apresentado como uma peça

à visitação de curiosos, como foi mostrado – pelos

responsáveis da reportagem – o corpo de Seu Ma-

cieira, um dos albinos mais velhos da comunidade

cadernos de campo • n. 13 • 2005

68 |

propagar o imaginário sobre lugares e pessoas

“exóticas”. O fato é que essas reportagens aca-

baram gerando muito constrangimento para a

comunidade, principalmente para os albinos.

Desde a década de 1970, a Ilha sofre visitas, so-

bretudo de repórteres que por lá aportam, em

busca do exótico ou da sua invenção, o que de

alguma forma agrediu a população. Chega-se

a essa conclusão através do bloqueio colocado

por alguns albinos e moradores mais antigos da

Ilha. Tal bloqueio se dá, por exemplo, na forma

de taxas cobradas para entrevistas e fotografi as

aos visitantes, com certas exceções a pesquisa-

dores que conseguem estabelecer uma relação

de maior confi ança.

O discurso de dentro: albinismo, en-cantaria e os “Filhos do Rei Sebastião”

Além de me enveredar em destrinchar os

discursos de fora, o empreendimento antropo-

lógico vigente consiste na abordagem da com-

preensão explicativa, tomando a cultura como

um texto a ser interpretado, investigando como

os observados representam e através de quais

lentes percebem suas próprias crenças e con-

dutas, apreendendo, assim, as representações

nativas pelo exercício da interlocução.

Como entender então um pouco do “uni-

verso de dentro”? Como os nativos da Ilha dos

Lençóis se auto-representam? Diante disso, co-

mecei as minhas indagações sobre a genealogia

da suposta genitora da “história” da localidade,

D. Sebastiana Silva. Para tanto, busquei apre-

ender fragmentos de narrativas biográfi cas de

três albinos, descendentes de D. Sebastiana

– atualmente, residente em Cururupu – que sempre

se mostrava muito simpático e receptivo para dar

informações às pessoas de fora. E com tanta recepti-

vidade, e talvez ingenuidade, foi alvo de exploração,

no que se refere à exposição indelicada que teve de

suas marcas corporais, já tão combalidas pelo câncer

de pele.

Silva: D. Neusa (80 anos), Seu Macieira (72

anos) e Telma (38 anos).13 Os dois primeiros

são netos de D. Sebastiana Silva e são primos

paralelos. Telma é bisneta de D. Sebastiana Sil-

va, sendo fi lha de uma prima paralela de D.

Neusa e de Seu Macieira. Segundo seus rela-

tos, da união de D. Sebastiana Silva com Seu

Tributino Marino Oliveira nasceram quatro fi -

lhas não-albinas – Basília, Vicência, Raimunda

Amada e Alzira – que geraram fi lhos albinos.14

Uniões entre parentes são freqüentes na

comunidade de Lençóis, o que nos leva a pen-

sar numa tendência endogâmica. Difi cilmente

uma mulher se casa com um homem “de fora”.

Aliás, casamento não é um termo muito utili-

zado pelos nativos de Lençóis. Como a maioria

dos casais não são reconhecidos pelo contrato

civil e/ou religioso, isto é, não são casados for-

malmente, alguns interlocutores, no início da

minha investigação, diziam que em Lençóis não

havia casamentos entre parentes, muito menos

entre primos. Fiquei então intrigada: como se

justifi ca a tese de que o alto índice de albinismo

na Ilha é devido a casamentos consangüíneos?

Somente com a observação direta e com

conversas informais junto a diversas pessoas da

localidade é que percebi que eu estava formu-

lando perguntas “atropeladas”, sem, portanto,

utilizar o vocabulário nativo. Quando as re-

formulei, indagando se havia parentes que se

“amigavam”, a resposta era bem diferente da

anterior. Como diz Seu Macieira:

Aqui o pessoal não são muito à distância uns dos

outros. A maioria aqui tudo é parente. [...]Essa

fi lha aqui minha é amigada a bem dizer com

um primo dela, que é o Domingos Araújo. Ele

13. Os trechos das entrevistas apresentados neste ensaio

foram coletados, em sua maioria, em 1999, porém as

idades dos meus interlocutores estão atualizadas, isto

é, referentes ao ano de 2005.

14. D. Neusa é fi lha de Basília, Seu Macieira é fi lho de

Vicência, e Telma é neta de Alzira.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

“ ”, “ ” |

é fi lho duma prima minha. Tem outro fi lho que

é parente da mulher. Eu sou fi lho do pai que é

irmão do pai dele. Meu primo era fi lho do pai

que é irmão do pai dele (18.01.1999).

As descrições do grau de parentesco parecem

um tanto confusas; no entanto, são reveladoras da

freqüência com que se dão as uniões e de como

são consideradas corriqueiras. Não são considera-

das, portanto, algo inusitado, que seja observado

com tantas minúcias. Sabe-se apenas que “todo

mundo é parente”, porque são “do lugar”.

A tendência endogâmica na comunidade re-

monta a uniões de duas fi lhas não-albinas de D.

Sebastiana Silva (Basília e Alzira) com dois irmãos

não-albinos (Saturnino e Nazaseno) de uma outra

família. “Daí para frente o casamento entre primos

foi o responsável pelo grande número de albinos

na Ilha.” (Vasconcelos in Manchete, 1980: 37).

Aqui começa uma confusão terminológica

que frutifi cou uma “maldição” sobre os ha-

bitantes da Ilha dos Lençóis. Segundo relato

de um primo não-albino de Seu Macieira, Zé

Mário,15 que é curador/pai-de-santo, quando

a imprensa noticiou que a história dos albinos

de Lençóis tivera início com a união conjugal

entre dois irmãos e duas irmãs, interpretou-se

que se tratava de uma relação incestuosa, en-

tendendo-se que seriam irmãos e irmãs, fi lhos

dos mesmos pais. Isso levou muitas pessoas “de

fora”, até mesmo de lugares vizinhos, a consi-

derá-los como uma “raça amaldiçoada”.

Apesar dessa defi nição de que o povoado de

Lençóis seria habitado por uma “raça amaldiço-

ada” não se encontrar de forma corriqueira nas

representações dos nativos, conforme indaga-

ções feitas por mim a várias pessoas, ela aparecia

quase sempre como alguma “invenção” de re-

pórter para “maltratar na revista os brancos” (D.

15. O pai de Zé Mário, Flaviano, era irmão de Basília,

Vicência, Raimunda Amada e Alzira. Ele quase nun-

ca é citado pelos ilhéus na reconstituição genealógica,

porque não teve descendentes albinos.

Neusa 02.07.1999). Também se pode dizer que

a representação quanto ao termo “amaldiçoa-

do”, em outras apreensões do discurso nativo,

reforçava a idéia de que essa designação dada a

um povo resulta da quebra de uma regra uni-

versal: a proibição do incesto (cf. Lévi-Strauss

1976). Embora esse dado seja interessante, o

mesmo não foi aprofundado devido à carência

de informações a seu respeito.16 Com isso, pas-

sei a observar outros aspectos referentes às rela-

ções de parentesco encontradas em Lençóis.

Entre os ilhéus de Lençóis o parentesco apre-

senta um marcado bias matrilateral. Do universo

de parentes conhecidos de uma pessoa, a maio-

ria é formada por parentes matrilaterais, e os la-

ços de solidariedade e afetividade são mais fortes

entre estes. Outro dado que deve ser observado

é quanto à transmissão do albinismo. Os relatos

dos meus interlocutores convergem no sentido

em que atribuem às quatro irmãs, fi lhas de D.

Sebastiana Silva, a procriação dos fi lhos e dos

demais descendentes albinos.17 Os companhei-

ros dessas mulheres nunca são citados, a não ser

16. O que se pode destacar do contexto narrativo aqui

ventilado são elementos estruturais que evidenciam

as categorias de incesto como sendo base lógica em

quase todos os mitos, conforme indicações de Leach

(1983: 67) em sua análise sobre mitos bíblicos, de

onde se extrai os seguintes fragmentos: “...o tema do

incesto homossexual da estória de Caim e Abel reapa-

rece na saga de Noé quando este, bêbado, é seduzido

por seu próprio fi lho Cam (9, 21-5). Os cananeus,

descendentes de Cam, são por isso amaldiçoados. [...]

Bêbado, Lot é seduzido por suas próprias fi lhas (19,

30-8). Os moabitas e amonitas, descendentes dessas

fi lhas, são por isso amaldiçoadas”.

17. Vale ressaltar que pela explicação científi ca (da gené-

tica) não há nenhum dado que indique que a mãe, e

não o pai, seja a principal transmissora dos genes re-

cessivos que condicionam o albinismo. “Como cada

pessoa recebe um ou outro desses genes [A e a], atra-

vés de cada gameta que recebe de seus pais, há indiví-

duos AA, Aa e aa. Os indivíduos AA e Aa são normais

(o alelo A é dominante; o a é recessivo); os indivíduos

aa são albinos.” (Freire-Maia 1987: 33; grifo meu).

cadernos de campo • n. 13 • 2005

70 |

que se insista em perguntar quem eram eles. A

ausência dos nomes dos “maridos” das fi lhas de

D. Sebastiana na rememorização da árvore ge-

nealógica dos albinos acentua, portanto, o viés

matrilateral da comunidade.

A rede de parentesco de qualquer pessoa na-

tiva é bastante signifi cativa. Todos sobrevivem

através de suas relações com parentes, principal-

mente no que diz respeito às pescarias, das quais,

geralmente em grupo, eles obtêm seu sustento.

Os albinos, como os outros ilhéus, participam

das pescarias sem nenhum tipo de discriminação.

Entretanto, não se pode dizer que eles interagem

em perfeita harmonia com o ambiente natural

que os cerca, pois sentem na pele, literalmente,

os efeitos de um trabalho sob o sol escaldante.

Sem poderem se proteger habitualmente

(com óculos escuros, chapéu, camisa de manga

comprida e bloqueador solar) contra os raios ul-

travioletas, os albinos são vítimas de doenças de

pele, e alguns foram levados ao mais grave tipo

de câncer de pele: o melanoma. Estes albinos

morreram precocemente por falta de uma assis-

tência médica adequada. A única assistência que

tinham, de fato, segundo alguns depoimentos,

era a de suas mães (principalmente), de fi lhas ou

de irmãs. A maioria dos outros parentes tinham

“nojo” e nem chegavam perto do convalescen-

te. Esta constatação leva-nos à observância do

princípio de “distância de sangue”, trabalhado

por Woortmann: “...quanto maior a distância,

tanto menor a obrigação. [...] Teoricamente os

laços mais fortes seriam aqueles entre dois pa-

rentes afastados um grau (irmãos, pais e fi lhos)

que vivem próximos um do outro e que man-

têm contato constante...” (1987: 156).

A “doença que come as partes do corpo”18

18. O câncer de pele é denominado pelos nativos através dos

termos “canco”, “ferida”, “doença que come as partes do

corpo”, “doença que maltrata os brancos”. A presença do

“canco” só é reconhecida quando a doença se apresenta

bastante explícita. Muitas pessoas de Lençóis com certo

grau de albinismo apresentam uma pele bastante espessa

de certa forma é um assunto tabu para os ilhéus

que se consideram, pelo menos por enquanto,

estar livres da doença. O câncer é uma doença

da qual se evita comentar, pois é “a antivida em

estado puro, objeto de vergonha e de escânda-

lo” (Laplantine 1991: 103). O câncer do qual

os albinos padecem, particularmente, manifes-

ta-se no mais exposto órgão humano (o mais

exteriorizado e visualizado), a pele, e, portanto,

sujeito à percepção dos sinais corporais e à es-

tigmatização.

Embora os ilhéus não exprimam com cla-

reza a origem ou as causas das “feridas” ma-

lignas, eles consideram que os “brancos” estão

mais sujeitos à doença por conta da fragilidade

de suas peles em exposição excessiva ao sol. Os

nativos colocam as representações do câncer

assentadas em causas naturais, ou simples-

mente acham que a doença seja uma fatalida-

de; isto é, que alguns podem ser acometidos,

outros não. Assim, o câncer é pensado como

doença individual e não coletiva. Em contra-

partida, a anomalia congênita caracterizada

pela falta de pigmentação na pele é tida como

uma manifestação corporal muito mais coleti-

va que individual, não importando o pequeno

número de albinos da localidade que expressa

essa coletividade.

Para acrescentar um ponto já ventilado,

uma das representações coletivas sobre os albi-

nos de Lençóis é a de que eles se confi guram

como uma “raça amaldiçoada”. Aqui recorro

a Laplantine (1991: 229), que nos faz pensar

na categoria “doença-punição”, que é a repre-

sentação da doença como “...conseqüência de

uma transgressão coletiva das regras sociais, [...]

conseqüência do pecado coletivo e individual”.

Desse modo, os albinos de Lençóis puderam

ser pensados na categoria de “raça amaldiçoa-

da”, como relatou o curador/pai-de-santo Zé

com manchas na pele e pequenas feridas, mas afi rmam

que isso é uma coisa normal, uma conseqüência da expo-

sição excessiva ao sol, sem maiores complicações à saúde.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

“ ”, “ ” |

Mário, como um castigo merecido para a co-

letividade pelo fato de determinados integran-

tes do grupo terem transgredido a uma lei: a

proibição do incesto. Porém, há de se levar em

conta que essa defi nição é a mais fracamente

percebida no universo das representações nati-

vas sobre o albinismo; talvez porque seja muito

mais interessante os ilhéus se pensarem en-

quanto uma “raça” privilegiada, “Filhos do Rei

Sebastião”, partícipes da corte “encantada”, a se

pensarem enquanto uma “raça” castigada.

O que está em questão é que nas represen-

tações nativas o albinismo sempre se manifes-

tará: “Essa raça dos ‘brancos’ sempre vai ter,

porque acredito que isso é do lugar.” (Zé Mário

26.05.1999); “...uns morrem, outros já nascem:

assim é que é.” (Seu Macieira 19.01.1999).

Independente da causa da morte, pessoa al-

guma falecida é enterrada na Ilha dos Lençóis,

a não ser natimortos, os “anjinhos”. Na Ilha

dos Lençóis não há cemitério. O receio, então,

não é só com as pessoas acometidas pelo câncer

de pele. Alguns depoimentos sobre a ausência

de cemitério na ilha fornecem representações

sobre o fato:

O fi nado Sissi e a Zuca tentaram reunir algumas

pessoas do Lençol pra fazer um cemitério, mas o

pessoal não tinha coragem de fazer o cemitério

aqui no lugar. Morre uma pessoa tem que enter-

rar lá no Bate-Vento... (D. Neusa 04.07.1999).

Não tem cemitério por causa do encante e porque a terra anda muito. Eles têm medo. Eu tenho certeza que Lençóis é encantado (Zé Mário 26.05.1999;

grifo meu).

A partir desses depoimentos, extrai-se o se-

guinte dado: os nativos de Lençóis têm medo

de construir um cemitério no lugar, uma mo-

rada (no plano material) para os mortos, por

causa do “encante” da ilha – mundo do fundo

onde “vivem” pessoas que nunca morreram.

Os mortos, situados “nas fronteiras do no man’s land antropológico” (Morin 1997: 24),

são seres ambíguos que precisam ser colocados

em seus devidos lugares, de acordo com o tra-

tamento dado pela cultura especifi cada. Para

os nativos de Lençóis, enterrar o corpo morto

“é um meio de a comunidade assegurar a seus

membros que o indivíduo morto caminha na

direção da ocupação do seu lugar determinado,

devidamente sob controle.” (Rodrigues 1986:

53). E é justamente isso que não aconteceria

em Lençóis se ali fossem enterrados os seus

mortos, pois supõe-se que debaixo daquelas

areias há um mundo da Encantaria que repro-

duz o mundo real, cheio de vitalidade.

Com a constatação desse fato, pude perce-

ber o quão é signifi cativa a crença na Encan-

taria sebastianista, interferindo no ethos e na

visão de mundo dos nativos, dando subsídios

para se analisar as construções simbólicas em

torno da nominação “Filhos do Rei Sebastião”.

Por outro lado, muitas pessoas “de fora” fazem

referência aos albinos através da seguinte des-

cendência mitológica: “Filhos da Lua”. Essa de-

nominação foi memorizada através da recepção

de um discurso dos meios de comunicação que

assim faziam suas “chamadas”. Na matéria da

revista Manchete (1980), o repórter atribuiu a

origem dessa cognominação a uma história in-

ventada pelo patriarca da Ilha, Saturnino Oli-

veira, pai de D. Neusa. Com uma conotação

de um furo jornalístico, o repórter diz o que o

patriarca da Ilha lhe confessou:

O patriarca da ilha, Saturnino de Oliveira, que

diz ter oitenta e tantos anos, bom de conversa e

com a vitalidade de um pescador mais jovem,

ri quando se fala nos Filhos da Lua: ‘Essa his-

tória foi inventada por mim para me livrar de

um português perguntador que apareceu por

aqui, senhor. Ele vivia sempre olhando meus

fi lhos, com tanta admiração que dava até pra

desconfi ar. Um dia ele tomou coragem e veio

cadernos de campo • n. 13 • 2005

72 |

falar comigo. Disse que na sua terra havia mui-

tos brancos e louros, mas ninguém tão branco

como meus fi lhos. E perguntou como eu ex-

plicava aquilo... Aí para não estender muito a

conversa, eu disse que quando as mulheres, nos

primeiros meses de gravidez, saíam a passear nas

noites de lua cheia pelas dunas, o clarão da lua

transformava os meninos, dando-lhes à pele e

aos cabelos a brancura de sua luz’... (in Manche-te 1980: 38).

Como Seu Saturnino já é falecido, recorri à

D. Neusa para que ela desse a sua versão sobre

esse depoimento posto na reportagem. Ela diz

que seu pai gostava muito de conversar com as

pessoas “de fora” e que falava que a natureza do

lugar poderia ter alguma relação com o nascimen-

to de albinos, mas que essa suspeita nunca chegou

a ser afi rmada categoricamente para ninguém, e

que tudo não passa de invenção dos repórteres.

De qualquer forma, cabe ainda instigar a

consideração sobre o princípio associativo que

rege a simbologia do nascimento dos albinos

com a atuação do brilho da Lua sobre as mães

grávidas que passeiam sobre as dunas em “noite

de lua”. Ou seja, a simbologia da transmissão de

cor de um corpo (humano ou não) para outro

nos remete ao princípio da “magia simpática”,

trabalhado por Frazer (1982: 35), o qual supõe:

“...a possibilidade de interação entre coisas que

estão distantes umas das outras, através de uma

simpatia secreta, sendo o impulso transmitido

de uma a outra por meio do que poderíamos

conceber como um éter invisível...”. Daí o ima-

ginário sobre a Lua e o nascimento de albinos

ser frutifi cado por um princípio simpático.

Também não se pode desprezar que a Lua

acompanha a imaginação desde as primeiras

civilizações, estando associada à fertilidade e à

mulher. Há de se notar que a Lua fomenta uma

pluralidade de representações associadas à “...

morte e renovação, obscuridade e clareza...” (Du-

rand 1997: 295). O imaginário sobre os “Filhos

da Lua” busca emitir uma explicação fantástica

sobre fenômenos naturais envoltos numa redoma

de “mistério”, como é o caso do nascimento de

pessoas albinas numa incidência fora do comum

constatada numa amostragem isolada. Mas tam-

bém há de se chamar atenção para o fato de que

essa é uma explicação mais “de fora” que “de den-

tro”, buscando-se uma lógica, uma invariabilida-

de no conjunto das representações universais.

Buscando-se as representações nativas, per-

cebe-se que os albinos sempre fi cam contraria-

dos com essa alcunha a que foram relegados

porque lhes dá a impressão de que seriam pes-

soas desconhecedoras do processo de fecunda-

ção, e assim rejeitam a idéia de que o astro lua

substitua o genitor masculino. Conforme a in-

dignação de Telma e de D. Neusa:

Dona, como é que Lua vai fazer fi lho?! Lua

não ‘nhanha’... Isso é só invenção. (Telma

06.09.1998).

Como é que a gente vai ser Filho da Lua,

senhora?! (risadas). Foi isso que inventaram.

Foram botar isso numa revista. Isso foi o que o

papai também se aborreceu: que o fi lho do Sa-

turnino mais a Basília Oliveira Silva era Filho

da Lua.” (D. Neusa 19.01.1999).

O “diferente” é apresentado na Ilha dos

Lençóis por discursos internos e externos que

exaltam a Encantaria do lugar e a misteriosa

presença de pessoas de pele tão alva como a cor

das dunas ou da Lua, e cuja referência a tais

pessoas se dá por uma postura de exotismo e

perplexidade advinda, sobretudo, de reporta-

gens que têm interesse em lançar mão da moda

ocidental do exotismo. A Ilha dos Lençóis,

quando é retratada pelos meios de comunica-

ção, pelo teatro e pela literatura, é apresentada

sob os adjetivos: encantada, misteriosa, fan-

tástica, fascinante, isolada etc. Tais adjetivos

tornam-se ícones do imaginário sobre o lugar,

tanto pela formação geográfi ca marcada por

cadernos de campo • n. 13 • 2005

“ ”, “ ” |

um imponente conjunto de dunas, como pela

Encantaria, morada do Rei Dom Sebastião. O

“cenário fantástico” se completa com a presen-

ça de “nativos exóticos”: os albinos.

Re-signifi cações sobre a fi liação dos nativos da “ilha encantada”

A representação do “diverso”, através da pig-

mentação da pele, está em pauta. Identifi ca-se

a construção de um estigma a partir de marcas

corporais e também do imaginário mítico que

o envolve, onde se dá a explicação da existência

desses seres humanos “descoloridos” através da

fi liação no universo mítico, ora como “Filhos

do Rei Sebastião”, ora como “Filhos da Lua”.

E através desta última designação, alguns ele-

mentos dão subsídios para ser pensada a cria-

ção de um imaginário fantástico – a cor da pele

(a “não-cor”) dos albinos e o lugar “encantado”

onde vivem – com a possibilidade de se refl etir

sobre uma gênese ambígua:

Brilho da Lua Cheia Mulher Grávida Feto (atingido) = Albino

↕ ↕ ↕

(Natureza) (Humanidade) (Natureza/Humanidade)

Se levarmos em conta que esta tríade apon-

tada seja uma operação de uma estrutura mítica,

logo devemos pelo menos suspeitar que haja em

seu conjunto uma mensagem cifrada que precisa

ser interpretada. O mito sobre “os Filhos da Lua”,

embora rechaçado pelos albinos, possui um gran-

de valor não em termos de uma “verdade”, mas

sim por possuir uma efi cácia ao criar e projetar

para o “universo de fora” uma imagem “exótica”

dos ilhéus “descoloridos” de Lençóis. Imagem

essa reforçada pelos princípios estruturais do

mito, no qual a gênese dos albinos não pressupõe

um tempo cronológico e é marcada pelo desapa-

recimento de barreiras entre Natureza e Cultura

(Humanidade), e por isso a comunicação e a fer-

tilidade entre esses planos tornam-se possíveis.

Concebo que, pela análise privilegiada na

presente abordagem, a perplexidade é o foco

instaurador da identidade/alteridade. Forneci-

da pelos discursos “de fora”, a perplexidade con-

tribui para apresentar os albinos numa imagem

estereotipada, em que o ethos do grupo é condi-

cionado pela natureza somática dos indivíduos,

tendo sua gênese condicionada também à “exó-

tica” natureza mesológica da “ilha encantada”.

E assim tem-se uma identidade sobre os albi-

nos construída, sobretudo, pela terminologia

“os Filhos da Lua”. Por outro lado, os nativos

reforçam uma identidade de pertencimento a

um povo, mas não como descendente do saté-

lite natural, e sim como descendente do rei que

se encontra “encantado no fundo” da Ilha dos

Lençóis: seriam “os Filhos do Rei Sebastião”.

As representações “de dentro” a respeito de

símbolos diferenciadores, contrastados em rela-

ção a outros grupos, como por exemplo em rela-

ção às comunidades vizinhas de pescadores, vêm

à tona quando propagam que os nativos da Ilha

dos Lençóis são “Filhos do Rei Sebastião”, con-

cebendo a presença dos sinais adscritos marcados

nos corpos de determinados ilhéus como revela-

dora de uma identidade que se estende a toda co-

letividade nativa. Ou seja, é reveladora de que não

são só as pessoas estigmatizadas que representam

o sobrenatural, mas que toda a Ilha dos Lençóis

é misteriosa, cujo o reinado é do Rei Sebastião, e,

portanto, todos os nativos são seus fi lhos/súditos.

Dessa forma, o “outro” não quer ser apresentado

como “exótico” no plano da natureza, mas sim

identifi cado no plano da sobrenatureza, identifi -

cação esta em direção a uma identidade onírica de

pertencimento a um povo “eleito”.

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

resumo Este artigo tematiza a participação

das crianças no processo de “valorização da tradi-

ção” na Aldeia Guarani M’Biguaçu, SC. A partir

de uma abordagem etnográfi ca, discorro sobre a sua

atuação nas rezas, no coral e na escola, três espaços

considerados fundamentais neste processo. Com

base nos pressupostos recentes da Antropologia da

Educação e da Infância, mostro que a construção da

Opÿ (casa de rezas Guarani), e mais especifi camen-

te, a formação do coral e a implantação da escola

revelam uma intenção pedagógica das lideranças na

organização de espaços de ensino-aprendizagem da

“tradição” voltados para a educação das crianças.

Além disso, demonstro que a participação das crian-

ças nesses contextos está pautada numa noção de

educação que concebe o ensinar (mbo’é) e o apren-

der (nhanhembo’é) como ações que se constituem

mutuamente, de modo que tanto aquele que ensina

como aquele que aprende são considerados sujeitos

atuantes no ensino-aprendizagem.

palavras-chave antropologia da educação e

da infância, ensino-aprendizagem, “valorização da

tradição”.

* Este artigo foi redigido com base em minha disserta-

ção intitulada “Kÿringue y kuery Guarani – Infância,

educação e religião entre os Guarani de M’Biguaçu,

SC”, defendida pelo Programa de Pós-Graduação em

Antropologia Social da Universidade Federal de Santa

Catarina em 2004. Apesar de ter estabelecido contato

com o grupo desde o ano 2000, o trabalho de campo

Nhanhembo’é: infância, educação e religião entre os Guarani de M’Biguaçu, SC*

MELISSA SANTANA DE OLIVEIRA

Mestre em Antropologia Social pela UFSC.

Artigo aceito para publicação em 25/11/05

abstract Th is article has as its theme children

participation in “tradition valorization” process in

M’Biguaçu village, SC. Th rough an ethnographic

boarding, it discourses upon their atuation in pray-

ing, choral and school, three fundamental spaces in

this process. With base in recent presuppositions

of Anthropology of Education and Childhood, it

shows that construction of Opÿ (Guarani Praying

House), and most especifi cally, the formation of a

choral and the implantation of a school in the vil-

lage reveal a conscious and systematic leaderships’

pedagogical intention in the constitution of con-

texts for “tradition” teaching and learning, directed

to children education. Besides, it shows that chil-

dren active participation in these spaces is suited in

an education notion in which the act of learning

(nhanhembo’é) and the act of teaching (mbo’é) are

conceived as mutually implicated actions and both

who teaches and who learns are considered subjects

in the teaching and learning.

keywords anthropology of education and

childhood, teaching and learning, “tradition valo-

rization”.

direcionado para a problemática da dissertação foi rea-

lizado mais sistematicamente entre os meses de março

e agosto de 2003. Os dados de campo são aqui apre-

sentados como recurso de fl uidez textual. Agradeço aos

Guarani de M´Biguaçu pela receptividade e colabora-

ção em campo e a Antonella Maria Imperatriz Tassina-

ri pela orientação e incentivo à minha pesquisa.

cadernos de campo n. 13: 75-89, 2005

76 |

“As crianças, quando choram, estão falando com

Nhanderu, estão indo longe. Do outro lado do

oceano elas olham...” (Canção Kÿringué y kuery

–Wherá Tupã / tradução – Karaí Djerá)

A Tekoá Ÿÿ Morotĩ Wherá: “tradição” e religiosidade

A Aldeia M’Biguaçu (Mbyá Biguaçú) ou

Tekoá1 Ÿÿ Morotĩ Wherá (Refl exo das Águas

Cristalinas), está localizada no km 190 da BR-

101, próximo ao município de Biguaçu, Grande

Florianópolis. Sua população é de aproximada-

mente cento e cinqüenta indivíduos, que em

sua maioria identifi cam-se e são identifi cados

como Guarani Xiripá, havendo também a pre-

sença de pongué (“mestiços”, descendentes de

casamentos interétnicos).

Dentre todos os moradores, Wherá Tupã,

de noventa e três anos de idade, é considera-

do o mais sábio e respeitável. A ele se referem

como Tche ramõi (meu avô) e à sua esposa

como Tche djarÿ í (minha avó), independente

do laço de parentesco. Wherá Tupã é o Karaí, liderança religiosa2 da aldeia que conduz sessões

de reza diárias na Opÿ (casa de rezas Guarani),

e é quem atribui o tchererÿ (nome Guarani) às

crianças. Sobre isso me contou:

É uma tarefa muito trabalhosa. Eu tenho que

ver a criança, ir para casa e conversar com o

Nhanderu. O céu é dividido em vários lugares e

a cada lugar corresponde um nome. Cada crian-

ça recebe o nome do lugar de onde vem...3

1. O termo tekoá é o modo pelo qual os Guarani se re-

ferem a uma terra onde podem viver de acordo com

seus preceitos morais, ou seu modo de ser (Melià

1989). Nimuendajú ([1914] 1987) afi rma que para

os Guarani o termo tekó signifi ca religião e costume.

2. Karaí também consiste num nome masculino co-

mum. Ao longo do texto grafarei Karaí (em itálico)

ao referir-me à liderança religiosa e Karaí (sem itáli-

co) ao referir-me a nome masculino comum.

3. A liderança religiosa Guarani é quem realiza a no-

minação das crianças, que consiste na atribuição do

Nos últimos anos as lideranças de

M’Biguaçu têm investido num movimento

de “valorização” do que consideram ser a sua

“tradição”. Ao referir-me ao termo tradição não

estou fazendo alusão a aspectos “imutáveis” da

cultura Guarani, mas sim a um conceito êmi-

co apropriado por sujeitos que tomam alguns

conhecimentos e práticas a eles relacionadas

como elementos constituintes de um “passado

comum”, que lhes confere um sentimento de

unidade e que os caracteriza como um grupo

específi co no presente (Toren 1988).

Na direção desta “valorização da tradição” é

possível apontar três movimentos de suma im-

portância: 1) A criação de uma escola na aldeia

em 1996, no contexto mais amplo da conquis-

ta do direito à educação escolar diferenciada

por parte dos povos indígenas no Brasil.4 Essa

escola foi instituída a partir de uma decisão

política das lideranças no intuito de propiciar

aos alunos Guarani um estudo que permitis-

se o seu acesso aos conhecimentos não-índios

mas, principalmente, o aprendizado da escrita

e leitura da língua Guarani. 2) A formação do

Coral Ÿvÿtchĩ Ovÿ (Nuvens Azuis) em 1998. O

coral performatiza músicas e danças Guarani,

relacionadas a questões míticas e religiosas. 3)

A construção, na mesma época, de uma Opÿ, feita de taquara, barro e coberta por palha, em

frente à casa do Karaí. A existência de uma casa

de rezas é considerado um fator fundamental

na confi guração da vida religiosa do grupo.

Essas iniciativas revelam uma preocupação

das lideranças, especialmente do Karaí, com a

nome por meio de cerimônia em que se identifi ca o

lugar de origem da alma da criança. A este local cor-

responde uma divindade a qual o nome faz referên-

cia (Nimuendajú ([1914] 1987). Borges (2002: 55)

mostra que alma da criança ainda não nascida pode

aparecer em sonho para o pai e lhe contar seu nome,

mas apenas uma confi rmação fi nal do rezador poderá

referendar este nome.

4. Constituição de 1988; Lei Darcy Ribeiro n. 9.394/96,

de 20.dez.1996.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

NHANHEMBO’É: , ’ |

construção de um local adequado para se viver

segundo certos preceitos religiosos, o que apon-

ta para a busca da constituição de um tekoá, um

lugar onde os Guarani vivam de acordo com o

seu tekó ou rekó, seu modo de ser.

Neste artigo discorrerei sobre a participação

e o papel das crianças neste contexto político-

religioso, através da descrição de sua atuação

nas rezas, no coral e na escola, concebidos

como espaços/momentos privilegiados de ensi-

no-aprendizagem da “tradição”. Para isso par-

to dos pressupostos das pesquisas recentes da

Antropologia da Educação (Pelissier 1991) e da

Infância (Silva, Nunes & Macedo 2002; James

& Prout 1997) assumindo uma perspectiva

que está atenta à atuação da criança como um

sujeito ativo na construção da vida social e no

desenrolar dos processos educativos, às especi-

fi cidades das noções de infância de diferentes

grupos sociais, ao caráter histórico e processual

da educação e à interatividade das relações de

ensino e aprendizagem.

As crianças Guarani

Antes de abordar a atuação das crianças na

vida social da aldeia é necessário defi nir quem

são as crianças do ponto de vista Guarani. Um

caminho para o entendimento da categoria nativa

de infância está na atenção ao modo pelo qual os

Guarani estabelecem os limites entre as diferentes

categorias de idade. Aqui, apresentarei uma breve

sistematização das categorias de idade, tal como

são referidas pelos Guarani de M’Biguaçu.

Tabela. Categorias de idade com distinção de gênero. Grifo na categoria Kyringué – criança.

Idade aproximada Sexo masculino Sexo feminino 0-3 anos Myntaĩ (nenês)

3-13 anos5Kÿringué

Ava í (menino) Kunhã í (menina) 13-18 anos Kunumy (moço) Kunhãtã í (moça) 20-50 anos Tudjá (homem adulto) Vaivi (mulher adulta) A partir dos 60 anos Tudjá í (velhinho) Vaivi í (velhinha)

Os Myntaĩ (nenês) dependem inteiramente

do cuidado dos mais velhos. Geralmente es-

tão nos colos de suas mães e de seus irmãos,

que improvisam panos ao estilo de uma tipóia,

para carregá-los junto a suas cinturas. Quando

estão soltos, engatinhando ou arriscando seus

primeiros passos, sempre há alguém por perto

acompanhando seus afazeres, fazendo-lhes ca-

rinhos, brincadeiras ou cuidando para que não

se machuquem.5

As Kÿringué (crianças) apresentam uma

maior autonomia em suas ações cotidianas e

desempenham um papel mais ativo nas ativi-

dades da aldeia. Apesar de não haver uma dis-

tinção terminológica entre Kÿringué maiores

e menores, no dia-a-dia, elas não constituem

um bloco homogêneo. As crianças menores

são livres de ocupações: pela manhã acordam,

recebem o alimento preparado por suas mães

ou irmãos e saem de casa para brincar. Geral-

mente brincam em frente à escola, e vez em

quando entram na sala de aula, sentam-se nas

carteiras e fazem desenhos. Na hora do recreio,

comem a merenda e brincam junto às crianças

maiores, mas logo são chamadas por suas mães

para voltarem para casa, pois apesar de terem

liberdade para circularem sozinhas pela aldeia

sempre há alguém verifi cando o que estão fa-

zendo. Seus dias se passam assim, em meio a

brincadeiras. Ao entardecer, durante os ensaios

do coral, põem-se a cantar e dançar, e mesmo

sem ocuparem uma posição defi nida guardam

na memória todas as canções. Ao anoitecer, sua

participação na Opÿ é descontraída, entram e

saem, brincam lá dentro e algumas vezes can-

tam e tocam instrumentos, mas ao sentirem

5. A partir do momento em que se tornam “adolescen-

tes” os indivíduos de sexo masculino são chamados

Ava e os de sexo feminino são chamados Kunhã, ter-

mos que, segundo meus interlocutores, não corres-

pondem a categorias de idade mas apenas marcam

a diferença de “sexo” e estão relacionadas a questões

biológicas, de maturação.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

78 |

cansaço aconchegam-se ao lado de suas mães e

dormem.

A partir dos seis ou sete anos, as crianças

passam a ter um cotidiano composto por ocu-

pações pré-defi nidas. Pela manhã, preparam seu

próprio café-da-manhã e partem para a escola.

Ao longo do dia não deixam de brincar, mas

assumem algumas atribuições na vida da al-

deia. Cuidam de seus irmãos menores, iniciam

atividades de artesanato, ajudam no preparo de

alimentos em casa e auxiliam os adolescentes

em algumas tarefas como na coleta de lenha na

mata, onde cumprem tarefas mais leves como

carregar gravetos. Algumas crianças maiores fa-

zem parte do coral. Participam ativamente das

rezas na Opÿ, cantando, dançando, tocando

instrumentos, e até mesmo auxiliando o Karaí nas atividades de cura. Suas vidas continuam

restritas à aldeia e não têm liberdade para sair

de lá sozinhos. As incursões ao mundo djuruá

(não-índio) restringem-se às apresentações do

coral e viagens familiares.

Algumas evitações6 e prescrições marcam a

6. Quando o menino começa a apresentar a voz mais

grave, não pode comer à noite e não pode mais brin-

car. Não deve falar muito, nem falar no mato, e nem

tomar banho de rio, pois pode pegar odjepota (encan-

tamento sexual). Após um período de mais ou menos

um ano estas proibições são abolidas. Logo quando

tem a primeira menstruação, a menina corta os ca-

belos, até então nunca cortados. Um pano é posto

entorno da cabeça, para evitar dores de cabeça e “fria-

gem”. É improvisado para ela um canto separado da

casa que pode ser um quarto ou um lugarzinho feito

com lençóis e cobertores. Deve permanecer durante

um mês restrita a esta área da casa, sendo iniciada para

a vida adulta, aprendendo afazeres como o artesanato.

Não pode sair, o que inclui a interrupção à freqüên-

cia das aulas na escola. Nem sorrir, nem ver televisão.

Deve alimentar-se com comidas leves como arroz

puro e mbojapé. Não deve comer doce nem gorduras.

A menina também deve, ao sair de casa para realizar

alguma tarefa andar depressa e realizá-la rapidamen-

te. Nesta fase de passagem são o tche ramõi(avô) e a

tche jary í(avó) que aconselham meninos e meninas

respectivamente em relação ao comportamento que

passagem da infância para a adolescência para

meninos e meninas. A mudança de categoria

implica novas atribuições sociais. Os Kunumy (moços) ajudam o pai a buscar lenha no mato,

vão à venda sozinhos, carregam comida e apri-

moram suas habilidades na confecção do arte-

sanato, especialmente bichinhos de madeira.

As Kunhãtã í não podem mais brincar, ajudam

a mãe em seus afazeres domésticos, principal-

mente a preparar a comida e a lavar roupa, e

começam também a se aperfeiçoar na confec-

ção de artesanato: colares, cestarias e zarabata-

nas. Esta época é marcada pela ida a “bailões”

nas cidades próximas e pelo estabelecimento de

laços afetivos, “namoros”, entre moços e mo-

ças, preferencialmente Guarani, quer sejam de

M’Biguaçu ou de outras aldeias. Além disso,

alguns jovens passam a freqüentar a escola dos

djuruá (não índios).

Tendo delimitado o período corresponden-

te à infância Guarani, apresento a seguir uma

descrição da sua atuação nos contextos da esco-

la, do coral e das rezas.

As crianças e a religiosidade

Em reconhecida obra sobre os Apapocuva-

Guarani, Curt Nimuendajú ([1914] 1987), ao

descrever as atividades de reza entre os Guara-

ni, em nenhum momento se refere à atuação

das crianças, a não ser quando, através de um

desenho, mostra os movimentos de danças dos

homens e mulheres e indica em determinado

local do que chama “casa de dança” a presença

de “crianças adormecidas”. Em M’Biguaçu as

Kÿringué participam de modo ativo das rezas

noturnas realizadas diariamente na Opÿ.As atividades de reza Guarani, chamadas

em M’Biguaçu de mboraí, incluem o canto,

devem manter durante o período de passagem e a

partir dele. Durante o período de passagem, rituais

específi cos são realizados na Opÿ, os quais não tive a

oportunidade de presenciar.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

NHANHEMBO’É: , ’ |

a dança, o toque de instrumentos musicais e

sessões de cura. Ao anoitecer, os Guarani reú-

nem-se na Opÿ. Alguns se sentam em roda so-

bre bancos dispostos ao redor do fogo, outros

se dispõem sobre seus cobertores, tomam kaÿ (chimarrão) e impreterivelmente fumam seu

petynguá7 (cachimbo). As Kÿringué (crianças) fazem o mesmo, sustentando pequenos petyn-guá. Este momento inicial é marcado por certa

descontração: as pessoas estão chegando, tro-

cam cumprimentos e conversam. As Kÿringué passam as mãos nos cabelos umas das outras,

riem e conversam entre si. A fumaça da foguei-

ra e do tabaco e o odor que produzem atribuem

ao ambiente uma “atmosfera” peculiar. Desde o

momento em que entram na Opÿ para rezar,

os indivíduos de sexo masculino são chamados

Yvyraidjá (dono da madeira: yvyrá – árvore, idja – dono) e os de sexo feminino, Kunhã Karaí8 (mulher Karaí), termos sagrados que indicam a

cooperação com o trabalho do curandeiro.

Muitas vezes são as Kÿringué (crianças) que

iniciam a reza. Formam uma fi leira e, uma a

uma, realizam uma espécie de “benção” nos

presentes, colocando uma mão em suas cabe-

ças e borrifando a fumaça do petynguá sobre as

mesmas. Em seguida, as Kunhã í (meninas), a

7. Na mitologia Guarani, ao criar os seres humanos:

“Nhamandu fez existir as imagens desse tempo,

a chama como calor e luz, a bruma como signo da

chama. Haverá nesse mundo uma dupla cópia des-

sa bruma: de uma parte a neblina que os primeiros

longos sóis fazem surgir acima das fl orestas no fi m

do inverno; de outra parte, a fumaça do tabaco que

fumam em seus cachimbos os sacerdotes e os pensa-

dores indígenas.” (Clastres 1990: 27) De acordo com

um interlocutor Guarani de M’Biguaçu: “O petyn-guá é um instrumento de comunicação direta com o

Nhanderu (nosso pai/deus).”

8. Este termo também é utilizado em referência a mu-

lher que é uma líder religiosa de fato. Este caso de

polissemia, dentre outros, confi rma a afi rmação de

Montardo (2002: 32): “Uma característica dos ter-

mos que se relacionam ao ritual e ao xamanismo

[Guarani] é a polissemia.”

partir de sua iniciativa própria, às vezes segui-

das por algumas Kunhãta í (moças), colocam-

se umas ao lado das outras próximas ao altar, e

com a cabeça voltada para o leste9 começam a

cantar, dançar e bater no chão o takuapu, ins-

trumento feminino que consiste num bastão

feito de taquara e utilizado na marcação do

compasso das músicas. O canto/dança é acom-

panhado pelo ravé (rabeca) e mbaraka (violão),

tocado por homens.

Enquanto isso, o Karaí, sentado em um

banco ao redor do fogo, prepara-se para a ses-

são de cura10, fumando petynguá junto a seus

“auxiliares especiais”, que são seu fi lho mais

velho, Karaí O Kendá, um neto “adolescente” chamado Karaí Wherá e seu neto de oito anos

de idade, Karaí Mirim. Os “auxiliares” mais

jovens são denominados Yvyraidja í Kuery (pe-

quenos yvyraidja: í – pequeno, kuery – plural).

Karaí O’Kendá, “auxiliar mais velho”, é cha-

mado Yvyraidja Tenondé (tenondé: aquele que

está adiante).11

9. Karaí O’ Kenda me disse que: “O Guarani quando

reza deve fi car voltado para o leste, a direção do sol,

o Nhamandu, e se concentrar. Desta forma ele conse-

gue ver através da parede, o sol e o mar.” De acordo

com Nimuendaju ([1914] 1987: 100) os Guarani

“realizam todos os seus atos religiosos com o rosto

voltado para o sol nascente...”. Numa outra passagem

o autor afi rma: “Mais de uma vez ouvi os Apapocuva

afi rmarem que o sol é o verdadeiro pai de tudo o que

existe na terra...” (1987: 65).

10. Como já foi apontado por Littaif (1996), entre os

Guarani é impossível dissociar rezas e cura.

11. Nimuendajú ([1914] 1987: 42) afi rma que yvyrai já

é o ajudante especial do pajé. O autor também refe-

re-se ao termo yvyraijá (neste caso grifa-se tudo jun-

to) para designar um tipo de melodia acelerada e com

forte marcação rítmica ([1914] 1987: 36). Segundo

Montardo (2002: 32-33): “O termo yvyra’ija, etimo-

logicamente, quer dizer “dono da madeira pequena”

e é usado em várias situações. Uma delas é a designa-

ção dos ajudantes do xamã na execução do ritual, bem

como dos ajudantes divinos, os mensageiros do herói

criador.[...]. As pessoas têm seus yvyra’ija também, se-

res que as acompanham e as protegem de situações

cadernos de campo • n. 13 • 2005

80 |

Em seguida, um banco é posto no centro

da Opÿ e para lá se encaminha a pessoa que será

curada. Os “benzedores”, entre eles o pequeno

Karaí Mirim, aproximam-se em fi leira, com o

tronco rígido, levemente inclinado para frente

e os braços um pouco afastados do corpo, ca-

minhando lentamente, passo a passo, sempre

fumando seu petynguá. O Karaí entoa o nhe-enmongaraí,12 reza/canto específi co para cura,

circunda o doente e borrifa a fumaça do petyn-guá sobre ele. Toca o corpo do doente e age

como se dele estivesse extraindo algo com as

mãos, e concomitantemente realiza com a boca

uma espécie de sopro. Nesses atos é sempre

seguido pelos outros “benzedores”, que fazem

o mesmo, inclusive o pequeno Karaí Mirim.

O momento de êxtase ocorre quando o Karaí “extrai do corpo do doente” uma semente, que

segundo os Guarani personifi ca o “mal”, a “do-

ença” que está no corpo da pessoa.

Karaí Wherá, o Kunumy (moço) que partici-

pava da cura, me disse que as Kÿringué que par-

ticipam das sessões são responsáveis por curar

apenas doenças mais leves. Já Karaí O’Kendá, o

Yvyraidja Tenondé, falou que as Kÿringué tam-

bém têm o poder de curar e a presença destas

é importante, pois delas se retira força visto

que são “puras e sagradas”. Karaí Mirim, por

sua vez, me disse sem eu nada perguntar: “Eu

sou ‘benzedor’ e seguro o petynguá para o meu

avô”. De fato, especialmente enquanto o Karaí “retira a doença” do corpo do doente Karaí Mi-

rim é quem segura o seu petynguá.

O Karaí me disse uma vez que, assim como

ele decidiu aprender a curar com seu falecido

difíceis. [...] Yvyra’ija é utilizado também para falar das

canções do repertório do jeroky que tem andamento

rápido e são acompanhadas por coreografi as de lutas.”

Este gênero musical “... entre os Mbyá, teria corres-

pondência com o Xondaro ou Sondaro” (2002: 225).

12. Nimuendaju ([1914] 1987: 31) afi rma que o

“ñeẽngaraí (...) constitui o ponto culminante de toda

dança de pajelança.”

pai, “o interesse em ser curandeiro parte das

próprias Kÿringué, porque cada um escolhe

seu próprio caminho. O problema é daquele

que escolhe o caminha errado...” Porém, ainda

segundo o Karaí, elas estão livres para desistir

a qualquer momento, e apenas as que “agüen-

tam” (ndepyaguachu)13 permanecem. Logo que

iniciei minha pesquisa um outro ava í (meni-

no) participava junto a Karaí Mirim das sessões

de cura, mas geralmente ele se cansava antes

deste e no meio da sessão juntava-se a “roda

de chimarrão”. Com o tempo, simplesmente

deixou de participar. Sobre isto Karaí Mirim

comentou: “Ele não ‘agüenta’!”.14

Após as sessões de cura, as rezas são re-

tomadas com a participação de “adultos”,

“adolescentes” e também das “crianças”. A

participação dos Myntaĩ (nenês) é mais des-

contraída, mas os mais velhos acreditam que os

Guarani devem participar da reza desde cedo,

pois “aos poucos vão entendendo o sentido”.

Geralmente os bebês fi cam dormindo nos co-

bertores estendidos no chão ou brincando. Vi

algumas vezes Mbodjeré, de um ano de idade,

tentando tocar um takuapu que tinha o dobro

do seu tamanho e acompanhar balbuciando al-

guns cantos. Sua mãe e outros presentes riram e

se mostraram muito orgulhosos com o feito.

As rezas diárias costumam ser fi nalizadas

perto das 21 horas. Segundo Karaí O’ Kendá:

“Os Guarani de outras aldeias viram a noite re-

zando. Aqui nós não podemos pois as crianças

têm aula no dia seguinte...”.

Muitas vezes, cedo pela manhã, as Kÿringué entoam músicas repentinamente. Em uma

13. A tradução literal deste termo é: o que tem coração

grande. Nde – 2a pessoa do singular, pya – coração,

guachu – grande. Um interlocutor afi rmou que, além

de “agüentar” esta palavra signifi ca “rezar com o cora-

ção e ter coragem.”

14. Alguns meses depois em uma visita a aldeia fi quei

sabendo que ele havia voltado a participar como “au-

xiliar” das sessões de cura.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

NHANHEMBO’É: , ’ |

conversa Karaí O’Kendá me falou que, por se-

rem “mais puras”, elas têm facilidade em rece-

ber músicas das divindades e que quando ouve

alguma criança entoando uma música que nin-

guém conhecia antes, sabe que foi “recebida”

em reza. Pelo que pude perceber, a música re-

cebida pelas crianças não possui letra.15

Através do que foi descrito acima se pode

observar que em M’Biguaçu as Kÿringué parti-

cipam de modo ativo das atividades religiosas

da aldeia e realizam elaborações signifi cativas

a respeito das mesmas. Sustentam uma postu-

ra autônoma em toda sua atuação nas rezas. A

fi gura de Karaí Mirim, o pequeno “benzedor”,

ilustra exemplarmente esta autonomia, pois sua

inserção, bem como sua permanência no cargo,

dão-se a partir de uma escolha pessoal baseada

no seu “interesse” em participar. Ninguém tem

o poder de coagir uma Kÿringué a assumir este

papel, nem a permanecer nele.

O modo autônomo pelo qual as Kÿringué inserem-se na vida religiosa da aldeia pode ser

compreendido se atentarmos a uma caracte-

rística fundamental da religião Guarani, que

consiste na valorização da experiência religiosa

pessoal e na crença de que o aprendizado das

rezas se dá através de uma relação direta entre

o indivíduo e Nhanderu. De acordo com Scha-

den (1974), os Guarani-Nandeva afi rmaram-

lhe que não ensinam as rezas às crianças pois

estas são individuais e mandadas diretamente

pelas divindades. Assim, as crianças partici-

pam das cerimônias familiares e comunitárias,

aprendendo o que faz parte do “patrimônio

grupal” e esperando que suas rezas lhes sejam

enviadas durante o sonho. Clastres (1978), por

sua vez, destaca que para os Guarani as rela-

15. Durante a descrição de um ritual mbya e chiripá,

Montardo (2002: 128) chama a atenção para o fato

de que um pajé lhe falou que por ser muito jovem a

reza de determinado rapaz de quinze anos ainda não

tinha palavra. Tudo indica, poranto, que as rezas só

passam a ter palavra na idade adulta.

ções com o sagrado são sempre pessoais e que

depende do indivíduo pessoalmente, segundo

seu desejo e esforço, alcançar a aguyje (estado

de completude/perfeição, imprescindível para

se atingir a “Terra sem mal”). Aponta também

que o arandu porã (belo saber, inspirado pelas

palavras dos deuses que revelam, entre outras

coisas, as normas do aguyje) não varia com o

indivíduo que o detém, mas sua aquisição não

é coletiva e só pode ser desvendado numa co-

munidade singular com as divindades.

Uma outra noção que apareceu e mostrou ser

de grande importância no contexto religioso dos

Guarani de M’Biguaçu, presente até mesmo nos

discursos das próprias Kÿringué, é a de “agüen-

tar”/ “suportar” / “ ter coragem de enfrentar”

(ndepyaguatchu) as difi culdades. Isso pode ser

constatado no modo como é encarada a perma-

nência ou não da Kÿringué no papel de benzedor,

interpretado como uma questão de “agüentar” a

situação da cura. Este “agüentar” neste caso sig-

nifi ca uma disposição para o exercício da cura,

que de acordo com Karaí O’Kendá não consiste

numa tarefa simples, pois implica que “a alma

do benzedor entre na alma do doente”, o que

exige uma certa preparação pois “os problemas

dos outros podem ser fortes e podem causar uma

reação naquele que o está curando”. “Agüentar”

e “ter coragem”, ambas defi nidas pelo termo

ndepyaguatchu, vão de acordo com aquilo que

Clastres (1978) apontou como qualidades que

os Guarani acreditam ser essenciais para alcançar

o aguyje, a saber: a perseverança obstinada (mbu-ru), a coragem (py’ aguachu) e a força espiritual

(mbaraete). Segundo a autora, o mburu pode ser

atribuído a quem consagra tempo aos cânticos e

palavras, à dança e ao jejum. Apenas o manter-

se no esforço permite adquirir mbaraete, a força

por excelência, e o py’aguachu, o coração grande.

Força e coragem para enfrentar sozinho a grande

água, e desta forma chegar a yvy marã ey. Se partirmos da fala do Karaí de que cada

um “escolhe seu próprio caminho”, podemos

cadernos de campo • n. 13 • 2005

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afi rmar que em M’Biguaçu as Kÿringué têm es-

colhido seguir o “bom caminho” indicado por

este líder espiritual. Esta escolha é acatada e in-

centivada pelos outros Guarani, que, partindo

da noção de que as Kÿringué são “seres puros e

sagrados” e “fonte privilegiada de força para o

bom rendimento dos processos curativos”, con-

sideram-nas seres aptos a lidarem com assuntos

de extrema importância e delicadeza e de gran-

de infl uência no bem estar de todo o grupo.

A participação das crianças no Coral Ÿvÿtchĩ Ovÿ (Nuvens Azuis)

O Coral Ÿvÿtchĩ Ovÿ16 mantém ensaios re-

gulares e uma agenda lotada de apresentações.

Essas apresentações são realizadas durante todo

o ano, na própria aldeia, em cidades próximas

e até mesmo em outros estados. Além disso, o

coral alcançou em 2003 sua mais esperada con-

quista, a gravação de um CD.17

Segundo Coelho (1999: 26) uma parte das

canções que compõem o repertório do coral

são aquelas canções que o Karaí aprendeu na

sua infância e que ele relembrou devido a um

interesse demonstrado por seus fi lhos “em sa-

ber como eram essas canções que já estavam

esquecidas há muito tempo.” O Karaí passou a

cantá-las e um de seus fi lhos, Karaí Djerá (na

época apenas um Kunumy – moço), fez os ar-

ranjos, “... para então ensiná-las às crianças.”

Em uma conversa que tive com o Karaí, este

me falou: “os cantos do coral foram recebidos

por mim em reza e depois meu fi lho anotou

as letras e melhorou com o violão. Mais tarde

ele mesmo passou a ‘recebê-los’ em sonho e até

mesmo durante o dia. Nhanderu lhe falou o

que ele devia cantar...”.

16. De acordo com Clastres (1990: 35), entre os Guarani:

“ São chamadas de azuis todas as coisas e todos os seres

não-mortais que povoam o território celeste do divino.”

17. CD Nhẽe garai marã eÿn. FAPEU, BADESC, Gover-

no do Estado de Santa Catarina, 2003.

Apesar do coral não ser constituído apenas

pelas Kÿingué, os Guarani costumam referir-se a

ele como “coral das crianças”.18 Os componen-

tes do coral vestem-se com trajes elaborados por

Karaí Djerá a partir de visões. Os trajes apresen-

tam diferentes cores, às quais correspondem ca-

tegorias mitológicas. A cor vermelha, utilizada

pelos Tudja (adulto), corresponde à categoria

do Sondaro (Guerreiro). A cor verde, utilizada

pelos Kunumy (moço), corresponde à categoria

dos Sondaro mirim (pequeno soldado). A cor

branca, utilizada pelos Ava í (menino) e Kunhã í (menina) menores, corresponde à categoria

dos Yvyraidja (dono da madeira pequena).19 E

a cor azul, utilizada pelas Vaivĩ (mulher), Ku-nhãta í (moça) e Kunhã í (menina) que estão

prestes a tornarem-se Kunhãta í, corresponde à

categoria das Sondarya í (ya – indica fl exão de

gênero). Ocorre portanto, uma reclassifi cação

das categorias de idade em termos de categorias

mítico-religiosas.

Segundo a explicação de um interlocutor:

Os Sondaro são aqueles que comandam o

coral e os Sondaro mirim, são seus “aprendizes”.

As Sondarya í, são as pequenas soldadas... Es-

ses termos têm a ver com guerras entre grupos

indígenas que não existem mais. Hoje a gente

ataca e se defende do mundo aí fora...

Essas categorias são utilizadas, portanto, em

um sentido bélico que remete a um passado

povoado por guerras intertribais. Na atualida-

de esta atitude guerreira seria acionada frente

18. Durante a redação da dissertação assisti a uma apresen-

tação feita apenas por “crianças” e “adolescentes”, sem

a presença de homens e mulheres. Surpreendeu-me a

confi ança dos Guarani no trabalho dos mais jovens.

19. Este termo tanto é utilizado para designar a todos

os Ava (homens) durante as rezas, que são concebi-

dos sem exceção como auxiliares do Karaí, como é

utilizado em referência a seus “auxiliares especiais”,

que exercem com ele especifi camente as atividades

de cura.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

NHANHEMBO’É: , ’ |

aos perigos cotidianos, entre estes o relaciona-

mento com os djuruá (não-índios).

De acordo com outro interlocutor, a cate-

goria dos Yvyraidja, a qual pertencem as duas

pequenas Kunhã í e os dois Ava í, tem grande

importância pois considera-se que eles cuidam

dos mais velhos. Isto está de acordo com uma

das defi nições apontada por Montardo (2002:

32-33) para o termo Yvyra’ija, como seres que

protegem as pessoas em situações difíceis. Meu

interlocutor me falou ainda que eles são conside-

rados os “donos da palavra”, atentando-me para

o fato de que são eles que ao término de cada

canção pronunciam em alto tom “Aguydjeuete!”,

ao que os outros respondem “Aguydjeuete!”.A classifi cação dos componentes nessas ca-

tegorias guardam certo grau de equivalência

com a atuação dos mesmos nas rezas e com as

categorias que eles então assumem. Isto pode

ser vislumbrado na fala deste interlocutor:

Os Sondaro do Coral são aqueles mesmos que

conduzem os cantos na Opÿ, tocam o mbaraká e o ravé. Os Sondaro mirim são os que tocam os

outros instrumentos nas rezas. As Sondarya í são

as Karaí Kunhã, meninas, moças e mulheres que

cantam e tocam o takuapu. Os Yvyraidja são os

pequenos que ajudam o Karaí.

Portanto os Guarani entendem que a cada

categoria do coral corresponde uma categoria

de reza. A categoria Sondaro, que, segundo um

interlocutor, não é acionada durante as rezas,

aparece no coral. Ela é desempenhada pelos Ava,

que são aqueles que durante as rezas cumprem

o papel de Yvyraidja, entendido aqui no sentido

de auxiliar do xamã de modo geral. Os termos

Yvyraidja e Sondaro20 são deste modo aproxima-

dos, tornados equivalentes, no nível reza-coral.

20. Na literatura (Mello 2001; Montardo 2002, entre

outros) o termo Yvyraidja é utilizado no sentido de

“mestre do Sondaro”, o que aponta para uma equiva-

lência entre ambos.

Os meninos que são classifi cados como Yvyraid-ja no coral são justamente os que recebem a

denominação Yvyraidja í nas rezas por serem

“auxiliares” especiais do Karaí durante as curas.

A continuidade em relação à Opÿ faz-se notar

durante os próprios ensaios que lá são rea lizados ao

entardecer. Coelho (1999) afi rma que, segundo o

que os Guarani lhe disseram, a Opÿ foi construída

para se ter um lugar para “cantar e ensaiar”.

Os Sondaro se responsabilizam em organizar

o espaço, preparar os instrumentos musicais, e

exigir que todos os componentes compareçam

aos ensaios. E ainda são eles que chamam a

atenção daqueles que se mostram distraídos ou

estão conversando. Durante um dos ensaios que

presenciei, ao perceber o pouco envolvimento

de algumas Kunhã í e Kunhãta í, o Sondaro Ka-

raí Djerá pediu a todos que parassem de cantar

e dançar e proferiu um discurso em tom solene,

durante o qual falou: “Todos nós temos que

nos ‘concentrar’, cantar pensando no Nhande-ru e não ter vergonha dos outros...”.21 Após essa

fala os componentes fumaram um petynguá,

passando-o de mão em mão, e recomeçaram a

cantar e dançar com muito entusiasmo.

Nos dias de apresentação todos costumam

reunir-se na entrada da aldeia e esperar o ônibus

locado pela instituição que os contratou, o qual

vem buscá-los para levá-los até o local onde a

apresentação será feita. As Kÿringué são sem-

pre as primeiras a descer a aldeia para esperar

a chegada do ônibus. Enquanto o ônibus não

chega, os instrumentos vão sendo afi nados, e as

Kunhã í e Kunhãta í retocam suas vestimentas,

21. Montardo (2002: 242) já apontou a importância da

concentração para os Guarani no cotidiano e nos

rituais xamanísticos. Em relação aos rituais, afi rma

que “ocorre uma alteração ou ampliação de estado de

consciência provocada pela conjugação de vários fa-

tores, sendo um deles a concentração”. Ainda segundo

a autora: “Entre os Guarani a concentração é uma

atitude valorizada também no cotidiano. A pessoa

deve estar inteira no que está fazendo. (...) No caso

do ritual, esta concentração é levada ao extremo”.

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cabelos, fazem maquiagens e põem colares. As

Kunhãta í ajeitam as Kunhã í, ajudando-as a se

vestir, fazendo tranças em seus cabelos, ou en-

feitado-as com colares e pintando suas faces.

Esta incursão ao mundo djuruá toma a

característica de um passeio. É marcada pela

descontração e alegria, mas, ao mesmo tem-

po, exige o seguimento de algumas regras de

comportamento, entre as quais: o cuidado em

não se afastar do grupo e o respeito ao “modo

de ser do branco”. As crianças costumam ser

bastante silenciosas ao longo da viagem de ôni-

bus, algo que contrasta com o comportamento

das crianças não-índias em ônibus escolares ou

turísticos. Vez ou outra as Kÿringué entoam al-

gum canto durante o trajeto.

Em todas as apresentações chamou-me aten-

ção a presença de familiares. Entre eles destaco a

presença do tcheramõi (avô) e da tchejarÿ í (avó).

O tcheramõi que, como já foi dito, é o Karaí, costuma ser chamado para discursar ao público a

respeito da situação atual dos Guarani e da vida

em M’Biguaçu. Puxa o canto Nhẽ e mbaraete (traduzido como “O poder do grande espírito”22)

que costuma ser evocado por ele durante as rezas

na Opÿ. Karaí O’Kendá apresenta o coral, res-

ponde às perguntas feitas pelo público, e faz al-

guns comentários sobre a letra das canções.

As apresentações feitas pela manhã contam

como atividade de aula e são assistidas pelas

crianças pongué (“mestiças”). Estas crianças cos-

tumam prestar atenção no coral durante certo

tempo, mas logo cansam-se e começam a brin-

car. Muitas vezes fazem barulho enquanto o coral

está se apresentando, o que causa certo descon-

forto por parte dos Guarani, que tecem comen-

tários a respeito de seu “mau comportamento”.

Durante as apresentações, os componentes

cantam sempre com muito afi nco e os Guara-

ni que estão na platéia acompanham atencio-

samente. O modo apaixonado com o qual as

22. Tradução retirada do encarte do CD anteriormente

citado.

Kÿringué realizam as apresentações não passa

despercebido pelos djuruá, que ao observá-los

cantando e dançando de olhos fechados, excla-

mam frases como: “Que concentração!”.

Em épocas festivas para os djuruá, especial-

mente na “Semana do dia do índio”, o coral

costuma se apresentar várias vezes. Nos interva-

los das apresentações, os “adolescentes” e “adul-

tos” costumam sentar-se nos pátios externos

das escolas e estádios, onde se apresentam, para

conversar e fumar. As Kÿringué aproveitam es-

sas pausas para brincar muito nas quadras de

esporte, nos parquinhos, ou em qualquer local

onde possam se movimentar à vontade. Às ve-

zes aproveitam para coletar pequenas sementes

que caem das árvores, guardando-as em seus

bolsos para utilizá-las na confecção de colares.

Nos períodos de intervalo ocorre uma

maior interação entre os Guarani e os djuruá.

As crianças djuruá olham com curiosidade

para as Kÿringué Guarani e procuram se apro-

ximar destas por meio de perguntas variadas

sobre a vida na aldeia, tais como: “O que vocês

comem lá?” e até mesmo: “Como é o Natal na

aldeia?”. As Kÿringué Guarani costumam res-

ponder com poucas palavras ou simplesmente

não respondem. Pude observar que algumas

vezes isso ocorre porque elas nem mesmo

compreendem as perguntas que lhes foram

feitas. Em geral, as Kÿringué mantêm um certo

distanciamento das crianças “não-índias” que

me parece estar pautado num sentimento de

timidez ou vergonha. Mas isso pode variar de

acordo com o modo de abordagem adotado

pelas crianças não-índias.

Apresentações em cidades distantes causam

grande empolgação nas crianças, são comenta-

das vários dias antes de acontecerem e reque-

rem ensaios mais árduos. Costumam envolver

um número maior de familiares, principalmen-

te as mães que vão para cuidar dos seus fi lhos.

O coral também realiza apresentações na

própria aldeia, quando há visitas de turmas

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NHANHEMBO’É: , ’ |

de estudantes djuruá de escolas próximas. As

Kÿringué pouco interagem com os estudantes.

Algumas se escondem quando avistam um ôni-

bus escolar subindo o morro que dá acesso à

aldeia. No entanto, mostram-se sempre entu-

siasmadas a apresentar o coral. Ao perguntar-

lhe sobre o que achava das visitas dos estudantes

djuruá, uma Kunhã í não hesitou em respon-

der: “Eu gosto porque a gente canta!”.

É certo que o Coral Yvÿchÿ Ovÿ consiste

numa fonte de renda alternativa para a aldeia. E,

ainda, que consiste num novo modo de interação

entre os Guarani e os djuruá, no qual o canto e

a dança são eleitos como símbolo diacrítico. Po-

rém, mais do que isso, a existência de um coral

envolve signifi cados religiosos de grande impor-

tância interna para o grupo. O coral revela sobre-

tudo um investimento consciente e sistemático

no ensino-aprendizagem de cantos, danças e

toques de instrumentos e de certas disposições,

como a concentração (edjapitchaka). Daí a im-

prescindibilidade da participação do Karaí, que

é considerado detentor privilegiado dos saberes

“tradicionais” Guarani, e o envolvimento de

adultos, jovens e crianças. O teor educativo do

coral pode ser vislumbrado numa afi rmação de

Karaí O’Kendá que, ao ser perguntado sobre o

signifi cado das canções que compõem o repertó-

rio do coral, respondeu: “As canções falam sobre

as crianças, a educação e a religião.”

O aprendizado das crianças se dá ao mes-

mo tempo em que são imbuídas de desempe-

nhar um papel de destaque na vida do grupo,

tomando a posição de protetores, guardiões

e guerreiros do grupo. Em reza, as categorias

Yvyraidja, Sondaro e Sondarya í são acionadas

no enfrentamento dos perigos do mundo so-

brenatural. No caso do coral, parece haver um

duplo sentido: são acionadas na mediação com

um Outro, os djuruá.

O coral representa também uma oportuni-

dade de sair da aldeia, algo que pouco ocorre

no seu cotidiano. Durante o passeio ao “mun-

do do djuruá”, pode-se afi rmar que as Kÿringué elegem como modo privilegiado de interação o

canto, ocupando assim posição de destaque do

qual detêm um saber (musical e cosmológico)

respeitado e apreciado pelo outro.

A Escola na vida das Kyringué Guarani

Durante os dias de semana, as Kyringué Guarani que possuem aproximadamente entre

sete e dez anos de idade freqüentam a escola

presente na aldeia. Acordam entre seis e sete da

manhã e vestem suas roupas. Fazem uma refei-

ção, muitas vezes preparada por elas mesmas,

que consiste geralmente em café preto, acom-

panhado de mbojapé ou tchipa í (pão e bolinho

feitos à base de trigo e água), pegam seu mate-

rial escolar e partem para a escola para partici-

parem das aulas, que iniciam mais ou menos às

oito horas da manhã.

O ambiente da escola é composto por

apenas uma sala de aula, que comporta uma

turma de alunos multi-seriada, uma turma de

“alfabetização” (que corresponde ao 1o ciclo) e

uma de “complemento” (correspondente ao 2o

ciclo). Metade dos alunos do primeiro ciclo e

dois alunos do segundo ciclo fazem parte de fa-

mílias consideradas pongué (mestiças). Os alu-

nos Guarani e mestiços, do 1º ciclo, sentam-se

diariamente em lados opostos da sala, apesar

de cursarem ambos o mesmo ciclo. O professor

guarani Karaí O’Kendá leciona para a turma

do primeiro ciclo e a professora não-índia Isa-

bel Eiko leciona para o segundo.

Apesar do espaço físico da escola apresen-

tar um aspecto convencional – quadro negro,

carteiras distribuídas em fi leiras e mesa para os

professores a frente –, a forma como as Kÿringué guarani dão vida a este cenário é peculiar. As

crianças sentam-se sobre suas pernas, debru-

çam-se sobre as mesas, mexem-se bastante.

Durante as aulas, há um burburinho contínuo,

uma constante circulação das crianças pela sala

cadernos de campo • n. 13 • 2005

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de aula, um entra e sai de crianças pequeninas

que ainda não ingressaram na escola e também

de suas mães.

O ensino-aprendizado dos saberes “não-

índios” é realizado apenas na medida em que

consiste num instrumento para a luta por di-

reitos do grupo e para a intensa convivência

com os djuruá. O foco central da escola está

voltado para o que os Guarani consideram ser

o “conhecimento tradicional da sua cultura”. Esse conhecimento é tematizado por meio do

desenvolvimento de projetos junto à liderança

religiosa do grupo, o Karaí, tcheramõi (avô) de

grande parte das crianças.

Pude acompanhar o desenrolar de alguns

projetos. Um deles consistiu na plantação de

mudas por parte das Kÿringué em um terreno

acima da escola. Cada criança acompanhou o

desenvolvimento de sua muda, realizando vi-

sitas semanais à plantação nas quais mediam

seu tamanho, verifi cavam o quanto ela cres-

ceu e a regavam quando necessário. Tudo isso

foi registrado através de anotações e desenhos

realizados em um diário específi co para este

fi m. Nessa atividade estavam sendo trabalha-

dos conceitos da biologia e matemática. As

Kÿringué envolveram-se bastante nesse projeto,

entusiasmando-se nos períodos em que visita-

vam suas “plantinhas”. Uma Kunhã í (menina),

chegou a apresentar uma sugestão que foi aca-

tada por todos: fazer fotografi as de cada aluno

junto a sua planta. Essas fotografi as foram afi -

xadas em porta-retratos produzidos pelas pró-

prias Kÿringué em sala de aula e entregues aos

seus pais como presente do “Dia dos Pais”.

Tive a oportunidade de observar também um

projeto de construção de uma maquete de argila

da Opÿ. Karaí O’Kendá, que possui grandes ha-

bilidades artísticas, esteve à frente dessa atividade.

As Kÿringué por sua vez não deixaram de ajudar,

trazendo ripas de madeira, modelando a argila e

dando palpites: “O tcheramõi (avô) não vai caber aí

dentro!”, “Vamos ter que diminuir o tcheramõi!”.

Pesquisas relacionadas a rituais de cura e

cerimônias Guarani são realizadas com fre-

qüência e costumam suscitar grande envolvi-

mento por parte das Kÿringué. Durante uma

pesquisa os alunos do 2º ciclo ouviram o Karaí falar sobre o poder curativo do uso do petyn-guá (cachimbo) e de ervas medicinais dentro

da Opÿ. Como atividade complementar reali-

zaram desenhos de objetos rituais, atribuindo

seus respectivos nomes, e sob a orientação do

professor Karaí O’Kendá elaboraram pequenos

petynguá de argila.

Outro tipo de atividade realizada na escola

são as caminhadas pelo território da aldeia sob a

orientação do Karaí, que indica para as crianças

os nomes das espécies de plantas que compõem

o terreno e suas propriedades medicinais.

Todos esses projetos, além de outros aqui

não citados, tiveram a participação ou até

mesmo a idealização (como é o caso dos dois

primeiros) do Karaí. Além dos projetos reali-

zados em parceria com o mais velho da aldeia,

as crianças têm semanalmente momentos de

aprendizagem da confecção de artesanato (ces-

taria e colares) na escola, com Karaí O’Kendá.

Não posso deixar de salientar que essa situa-

ção é favorecida pela existência de um consenso

entre os professores em relação ao que deve ser

tematizado na escola. Karaí O’ Kendá, além de

professor, tem ocupado um papel importante

na vida religiosa da aldeia, pois vem se aprimo-

rando a cada dia como “benzedor”. A professora

Isabel assume uma postura de “pesquisadora da

cultura Guarani”, consultando sempre os mais

velhos, especialmente o Karaí, para o desenvol-

vimento de uma abordagem dialógica dos sabe-

res Guarani e não-índios em suas aulas.

Pode-se afi rmar que em M’Biguaçu a es-

cola está numa relação de continuidade com

a vida da aldeia e constitui-se num espaço de

(re)construção de relações sociais de grande

importância para o grupo. Apesar da existên-

cia de professores, na escola, o líder espiritual,

cadernos de campo • n. 13 • 2005

NHANHEMBO’É: , ’ |

fi gura central no contexto atual da aldeia, é re-

conhecido como aquele que deve ser ouvido.

As Kÿringué valorizam esta inserção da esco-

la na vida aldeã, participando com entusiasmo

das atividades referentes à “tradição”. No depoi-

mento de uma kunhã í:

Já estudei em outra escola, mas gosto mais daqui

porque a gente estuda Guarani e Português. Se-

não a gente fala só Português, e isso é ruim, por-

que a gente perde nossa cultura. Na outra semana

vamos fazer história de ervas que a gente conhece.

Lá em casa tem uma árvore bem grandão que tem

uma folha assim... Meu pai tira, coloca na panela,

faz e a gente toma quando dá dor de cabeça. Às

vezes eu sozinha vou no mato, buscar remédio,

quando minha mãe tá doente. Na semana que

vem os professores vai tirar foto e a gente vai es-

crever. Vamos no mato e o tcheramõi vai pra tirar

o remédio. O remédio do índio é mais forte.

Considerações Finais: As crianças, a educação e a religião

Acompanhamos a descrição da atuação das

Kÿringué Guarani da aldeia M’Biguaçu em três

contextos fundamentais no processo de “valori-

zação da tradição”: as rezas, o coral e a escola. O

“resgate e a valorização da tradição Guarani” tem

como elemento central a religiosidade, que tanto

é acionada na criação de um ethos interno, como é

eleita símbolo diacrítico na relação com os djuruá.

A “valorização da tradição” signifi ca fundamental-

mente uma preocupação em “não esquecer-se de

Nhanderu” e em manter uma comunicação inten-

sa com este por meio das rezas. Centralizado que

está nos saberes do Karaí, o “resgate da tradição”

exige uma atitude pedagógica, de ensino-apren-

dizagem desses saberes. Essa pedagogia envolve a

todos, e dá-se mediante um duplo movimento:

uma “preocupação” em ensinar, por parte das ge-

rações mais velhas, e um “interesse” em aprender,

por parte das gerações mais jovens, entre estas as

Kÿringu, de modo que tanto quem ensina como

quem aprende são considerados sujeitos no pro-

cesso de ensino-aprendizagem.

O caráter coletivo da noção de educação

Guarani e a inter-relação entre o ensino e a

aprendizagem podem ser notados na própria

composição dos termos utilizados em referên-

cia aos atos de ensinar e aprender. Os Guarani

de M’Biguaçu se referem à palavra aprender por

Nhanhembo’é, que traduzem literalmente como

“Vamos aprender” (nhanhe – vamos, mbo’é –

aprender), o que remete a uma concepção que

preza a coletividade. A partícula mbo’é, que foi

traduzida por meus interlocutores como apren-

der, também é utilizada por estes em referência

ao ensinar. Há, portanto, uma sinonímia entre

os dois termos, o que indica uma aproximação

entre as duas ações. Em uma pesquisa etimo-

lógica no dicionário de Dooley (1999), pude

verifi car que Nhanhembo’é é composta pela

partícula /nha/, que indica 3a pessoa do plural, /nhe/, que indica pronome refl exivo, e /mbo’e/, ensinar. Ou seja, uma tradução literal formal

deste termo seria: Nós nos ensinamos, o que

aponta para uma noção de aprendizagem como

espécie de auto-ensinamento coletivo.

O ensino-aprendizagem da tradição não se

dá de modo “natural”, mas implica na constitui-

ção de contextos de prática e agência favoráveis

ao desenvolvimento de processos educativos.

A construção da Opÿ, idealizada pelo Karaí, e sua ativação como um locus de realização de

rezas envolveu grande parte dos Guarani de

M’Biguaçu. Fundamental foi o interesse de

alguns, dentre estes as Kÿringué, em aprender

cantos, danças e toque de instrumentos, mas

também em receber os ensinamentos referentes

ao exercício de cura. Isso implica fundamen-

talmente em um ensino-aprendizado de técni-

cas e posturas corporais e o desenvolvimento

de uma certa resistência física e psicológica

para se “agüentar” (pyaguatchu) a permanência

nas rezas, que além de envolverem sentimentos

cadernos de campo • n. 13 • 2005

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intensos, muitas vezes têm um longo período

de duração. A importância da “concentração”

(edjapychaka), de “escutar seu coração e o de

Nhanderu” também é ressaltada.

Desde sua idealização, a formação de um

“Coral de Crianças” esteve marcada pela inten-

ção de constituição de um contexto de ensino-

aprendizagem voltado mais especifi camente à

educação das Kÿringué. O termo pelo qual os

Guarani de M’Biguaçu se referem à palavra en-

saiar é o mesma pelo qual se referem à palavra

aprender, Nhanhembo’é. Em relação de con-

tinuidade com a Opÿ, a participação no coral

propicia uma formação no mesmo sentido.

A implantação de uma escola, do mesmo

modo, envolveu uma preocupação com a edu-

cação das Kÿringué. No processo de “resgate”

cabe às Kÿringué, além do aprendizado da lín-

gua e da história, a problematização de assuntos

referentes à vida religiosa da aldeia, na qual elas

mesmas estão ativamente inseridas. Espaço de

ensino-aprendizagem da “tradição”, a escola é

chamada pelos Guarani de nhanhemboeaty, que

eles traduzem literalmente como “lugar onde a

gente aprende”.

Apesar de haver claramente uma intenção

das gerações mais velhas na formação das ge-

rações mais novas, esta não é concebida como

uma mera assimilação de saberes e exige um

envolvimento consciente e prático das crianças.

Nas rezas e no coral, enquanto aprendem, as

Kÿringué simultaneamente assumem posições

que possuem importante signifi cação mítico-

religiosa. São consideradas “protetoras”, “auxi-

lares” (Yvyraidjá) e “guerreiras” (Sondaro mirim /Sondarya) e atuam como mediadoras dos

adultos na relação com dois Outros: o “mundo

sobrenatural” e o “mundo djuruá”. Na escola, o bom andamento dos projetos depende prin-

cipalmente de seu envolvimento nos mesmos.

A partir do ponto de vista Guarani, pode-se

afi rmar que aquilo que a criança aprende com

o grupo, especialmente com o Karaí, consiste

apenas em meios para se atingir um tipo mais

pleno de aprendizado, aquele que se dá dire-

tamente entre o indivíduo e o Nhanderu, as

divindades e os antepassados. O líder religioso

é quem indica o “bom caminho”, aponta para

a “direção” que leva a Nhanderu. Cabe ao pró-

prio indivíduo, a partir de seu “interesse”, “es-

colher” segui-lo ou não. Como escolhedoras de

seus próprios “caminhos”, as Kÿringué seguem

de modo autônomo a direção indicada pelo

Karaí, o tcheramõi (avô). O fato de “escutarem” Nhanderu não im-

pede que tenham um certo deslumbramento

em relação aos djuruá, e que estejam sempre

dispostas a realizar incursões a este “outro

mundo”. Mas mesmo nesses momentos é à

“tradição” que recorrem para se relacionar com

o Outro. Ao eleger o canto como modo privi-

legiado de comunicação interétnica, escolhem

assumir-se como crianças Guarani.

Enfi m, as Kÿringué Guarani de M’Biguaçu

assumem em seu dia-a-dia papéis de extrema

importância para a vida social do seu grupo: são

crianças-religiosas, crianças-cantoras e crianças-

estudantes. Apesar da seriedade inerente a estes

papéis, estas Kÿringué não deixam de encontrar

modos de, em meio a estas experiências, ocu-

par grande parte de seu tempo em brincadeiras,

ensinando aos adultos que não precisam deixar

de lado a vivência lúdica do mundo para par-

ticiparem ativamente do processo de fazer-se

Guarani na atualidade.

Referências bibliográfi cas

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crianças Guarani”. Cadernos Cedes. Campinas: XXII

(56), pp. 53-62.

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

resumo Este artigo se propõe a realizar um

exercício etnográfi co envolvendo a descrição de um

ritual intercomunitário conhecido como oloniti, que

coletamos entre os Paresi, grupo Arawak do Brasil

Central. O exame do ritual, em especial por sua re-

lação de simetria e inversão com o mito denomina-

do O castigo da festa errada, também oriundo dos

Paresi, permite desvelar certos códigos que gover-

nam as relações sociais, códigos estes que contêm,

a um só tempo, valores como a reciprocidade e a

predação. Apesar de seu caráter mais marcadamente

etnográfi co, acreditamos que esse caso, ora analisa-

do, possa vir a contribuir para uma refl exão teórica

feita hoje na Etnologia Sul-Americana sobre o lugar

da parceria e da guerra para os povos da região.

palavras-chave relações entre mito e ritual,

índios Paresi, reciprocidade, predação.

Oloniti e o castigo da festa errada: relações entre mito e ritual entre os paresi*

* Quero agradecer a Stela Abreu, Marcio Silva e João

Dal Poz pela leitura minuciosa e pelas valiosas suges-

tões ao texto.

RENATA BORTOLETTO SILVA

Mestre em Antropologia Social pelo IFCH/

UNICAMP e doutoranda em Antropologia So-

cial pela FFLCH/USP.

Artigo aceito para publicação em 12/07/05

abstract Th is article is an ethnographic exer-

cise intending to describe an intercommunity ritual

known as oloniti, that we collected among the Paresi,

an Arawak group of Central Brazil. Th e study of

this ritual, especially regarding its symmetrical and

reverse relationship with the so-called myth Th e punishment of the wrong party, that also originated

from the Paresi, allow to watch certain codes that

govern social relationships, and such codes consist

of values like reciprocity and predation. In spite of

its ethnographic aspect, we believe that the case

presently analyzed can contribute to a theoretical

refl ection done at present at South-American Eth-

nology about the question of war and partnership

among the people of this region.

keywords myth and ritual relationships,

Paresi indians, reciprocity, predation.

Introdução

Os Paresi falam uma língua da família Ara-wak e somam uma população de cerca de mil

indivíduos (OPAN 1996). Eles serão aqui cha-

mados Paresi, termo que, embora não corres-

ponda a uma autodenominação, é veiculado

na literatura etnográfi ca pelo menos desde o

século XVIII, quando ocorreram os primeiros

contatos. Eles costumam referir-se a si mesmos

como haliti, categoria que possui vários signi-

fi cados, dentre eles “dono” e “gente” (Schmidt

1943: 11; Costa 1985: 50).

Habitantes imemoriais da região sudoeste do

estado de Mato Grosso, os Paresi entraram em

contato com diferentes e, no mais das vezes, no-

civas frentes de expansão, tanto de ordem econô-

mica (mineração, extrativismo), como de ordem

religiosa (missões católicas e protestantes), o que

levou o grupo a uma severa depopulação nos

primeiros anos de contato. Hoje, sua população

cadernos de campo n. 13: 91-100, 2005

92 |

encontra-se em expansão e está distribuída em

trinta aldeias ou grupos locais, freqüentemente

localizados ao longo de rios.1

Muito embora a bibliografi a etnográfi ca

recente sobre os Paresi seja razoavelmente ex-

pressiva, estamos ainda longe de ver esgotados

temas bastante elementares. Aí, certos aspectos

do domínio ritual aparecem muito timidamen-

te diluídos em outros temas como a história de

contato e a política indigenista, interesses mais

imediatos dessas pesquisas (Costa 1985; Ro-

berto 1994; Costa Filho 1996).

A morfologia social parece caracterizar-se por

constantes cisões dos grupos locais que, por de-

corrência, apresentam, em sua maioria, pequenas

dimensões e encontram-se dispersos geografi ca-

mente por um território relativamente vasto.

Apesar disso, as aldeias mantêm um certo grau

de integração, sobretudo aquelas de uma mesma

origem, ou seja, que são resultado da fragmen-

tação de um único grupo local, e costumam li-

gar-se por trocas matrimoniais e rituais. Uma das

formas de ocorrência de tais associações é o ritual

do oloniti, momento em que grupos com laços

socialmente distantes se encontram e expressam

suas relações. Seu caráter conjuntivo também se

expressa simbolicamente, como procuraremos

demonstrar neste exercício analítico, de tal modo

que valores como a generosidade e a reciprocida-

de são continuamente evocados durante o ritu-

al. Além disso, o caso paresi pode se tornar um

exemplo etnográfi co interessante, vindo a contri-

buir para uma refl exão bastante atual na Etnolo-

gia Sul-Americana sobre o lugar da reciprocidade

e da guerra nos esquemas sociais da região (Vi-

veiros de Castro 1986; McCallum 1990; Rivière

1. Estive entre os Paresi nos meses de outubro de 1996

a janeiro de 1997, quando realizei meu trabalho de

campo para a pesquisa de mestrado junto ao Progra-

ma de Pós-graduação em Antropologia Social pela

UNICAMP. Os dados aqui arrolados estão contidos

na dissertação de mestrado que resultou dessa pesqui-

sa (Bortoletto 1999).

2001; Fausto 2001), uma vez que o ritual evoca,

seja como possibilidade, seja como efetivação, a

predação em seu quadro geral. Passemos a ele.

Etnografi a do oloniti

Oloniti é o nome dado à principal festa dos

Paresi. Esse é também o termo usado para a be-

bida fermentada, feita com o polvilho torrado

da mandioca brava (Manihot esculenta), servida

durante o ritual. A festa é motivada pelos se-

guintes acontecimentos: nominação da criança,

iniciação feminina e cura de doenças. Apesar de

ocasiões aparentemente díspares, há algo que

une esses momentos, pois em todos eles trata-se

de receber um nome, novo no caso do batizado,

reforçado no caso da iniciação e da cura.

Assim, o rito tem um papel na produção da

pessoa, pois para os Paresi o nome “é o espírito

da pessoa” e “serve para dar vida” (Costa 1985:

188). Liga-se ainda à fertilidade da natureza,

uma vez que apresenta íntima relação com as

fases do ciclo produtivo. Ele é realizado durante

a seca, entre os meses de abril e setembro, pe-

ríodo de colheita da mandioca e no qual a caça

é mais abundante (Rondon & Faria 1948: 58;

Costa 1985: 167; Rowan & Rowan 1972: 67).

A oferta de comida e bebida em grande

quantidade é a condição material da realiza-

ção do ritual. Já as condições sociológicas e

cosmológicas são garantidas pela presença dos

convidados que são, via de regra, indivíduos de

grupos locais relativamente afastados no coti-

diano e, como veremos, simbolizam os espíri-

tos que acedem ao ritual. Tais requisitos podem

ser depreendidos na maneira como é feito o

convite para as grandes festas de chicha, oloniti kalorecê (kalorecê = grande), ou seja, para aque-

las em que concorrem várias aldeias. Depois

que os caçadores retornam da caçada, o dono

da festa, harekaharé, ou um outro homem da

aldeia, sai levando uma corda feita de tucum na

qual são feitos nós indicando os dias que faltam

cadernos de campo • n. 13 • 2005

OLONITI : |

para o início da festa. Chegando à aldeia a ser

convidada, o dono da festa profere, no pátio

central, o manati, uma “dissertação histórica

ou religiosa que se faz nos festivais” (Rondon

& Faria 1948: 52). Como introdução do con-

vite, é relatado o mito da origem da mandioca,

conforme o qual uma menina, aborrecida com

o desprezo com que era tratada pelo pai, pede

à sua mãe que a enterre no mato. Do corpo da

menina surge a mandioca. Depois de contado

o mito, assim se expressa o dono da festa:

“Morreu muita ema, muito veado, muito peixe e mais caça ainda”, obtendo como resposta do

mais velho da aldeia:

“Morreu muita ema, muito veado, muito peixe e mais caça ainda: nós vamos para a festa de vocês”

(Pereira 1986: 128).

Aceito o convite, as pessoas arrumam seus

pertences e prontamente seguem o dono da fes-

ta até a aldeia anfi triã. Chegando lá, a entrada

não ocorre imediatamente. Eles permanecem na

região que circunda a aldeia e se vestem com rou-

pas especialmente reservadas para essas ocasiões.

Mais tarde, os primeiros convidados, apenas os

homens, adentram o pátio da aldeia. Dois dentre

eles são designados zekáhatihareze, aproximada-

mente “festeiro malvado” (Costa 1985: 177), e

empunham varas compridas com penachos em

suas pontas denominadas iohoho, com as quais

batem nas casas onde estão as mulheres da aldeia

anfi triã: a simulação do ataque cessa com a che-

gada dos anfi triões trazendo chicha. Num dos

lados da aldeia, juntam-se todos os homens para

quebrar o tanohã, duas varas de tamanhos dife-

rentes que são colocadas sobre duas estacas fi xas

ao chão e rompidas pelos homens com a utiliza-

ção de seus ombros. As varas quebradas, pintadas

com círculos feitos de urucum, são entregues aos

donos da festa e levadas em seguida para a casa

das fl autas, Yámaka, permanecendo ali durante

um tempo e depois dispensadas.

Yámaka ou jararaca é, segundo Pereira (1986:

31), o nome dado às fl autas secretas, as quais as

mulheres não devem avistar. Tais objetos fi cam

cotidianamente guardados numa casa especial-

mente construída para elas e denominada yámaka hanã (em que hanã = folha, casa). Ao contrário

das malocas paresi, com duas portas voltadas para

o nascente e poente, as casas das fl autas possuem

apenas uma porta, sobre o eixo norte-sul.2

Um dos temas que subjaz ao oloniti diz res-

peito precisamente aos oferecimentos que se faz

aos espíritos. Como mencionado, alguns desses

espíritos são personifi cados em instrumentos

musicais, tais como yámaka. Essa associação

entre instrumentos musicais, em especial os

aerofônicos, e espíritos poderosos e perigosos é

bastante difundida em grupos das Terras Baixas

da América do Sul, sejam eles Arawak ou não.

Do mesmo modo a interdição ligada às mu-

lheres também é comum e aparece referenciada

pela mitologia com base na posse ancestral que

elas tinham do instrumento e lhes foi roubada

pelos homens (Piedade 2004: 111-ss).

No ritual do oloniti, além de yámaka, há

também xíhali, um outro tipo de fl auta que en-

tra também em cena. Ao contrário da yámaka,

xíhali fi ca guardado cotidianamente dentro de

casa, não sendo interdito às mulheres. A referi-

da fl auta, cujo nome é o mesmo que se dá aos

2. É interessante notar que, embora não sendo Paresi,

a interdição foi estendida a mim, o que se verifi cou

também com uma pesquisadora que esteve entre os

Waujá, grupo Arawak do Alto Xingu (Piedade 2004).

No entanto, Gregor (1982), em seu trabalho entre

os Mehináku, os quais também têm restrições a que

as mulheres do grupo avistem as fl autas, nos faz o

seguinte relato: quando mulheres Txicão, um outro

grupo xinguano, em visita aos Mehináku, adentra-

ram a casa das fl autas, não sofreram a punição espera-

da, o estupro, segundo os Mehináku, por não serem

mulheres do grupo. Desse modo, o fato de ter sido

proibida de presenciar a dança com as yámaka indica

que, para os Paresi, eu era mulher antes de ser branca,

ou seja, ao contrário dos Mehináku, aí prevalece o

gênero em detrimento da origem do indivíduo.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

94 |

besouros (Coleóptero, indistintamente), uma

vez que o formato circular e achatado da fl auta

lembra o inseto, fi ca guardada em um bornal

pendurado na haste principal da casa.3 Ambos,

yámaka e xíhali, são instrumentos de posse

individual e sua transmissão se dá de pai para

fi lho. Porém, para quem os possui, e também

em relação aos parentes próximos do dono, são

exigidos oferecimentos cotidianos de carne,

beiju e chicha, caso contrário tais espíritos po-

dem trazer malefícios aos seus donos.

Há ainda outros seres para os quais é possível

estabelecer relações com oloniti. São os donos

de alguns animais consumidos pelos Paresi, tais

como o dono das emas e dos veados campeiros,

Enoharé (Pereira 1986: 21), e o dono do quei-

xada grande, Ahózay (Pereira 1987: 463). Para

esses são feitos oferecimentos cotidianos à porta

da casa das fl autas, bem como nos rituais.

Se não houver os cuidados regulares para

com os espíritos, sejam eles personifi cados ou

não nas fl autas, esses podem se indispor com

os humanos causando-lhes doenças bem como

outros infortúnios. Além dos oferecimentos, há

também uma série de tabus a serem obedecidos

quando da preparação dessas festas, tais como

as interdições sexuais, dentre outras que, se não

forem seguidas, podem ocasionar malefícios ao

descumpridor e aos seus parentes próximos.

Voltando ao esquema do rito, temos que a

quebra de Tanohã é seguida pela entrega das

fl autas sagradas pelos anfi triões aos convidados

que, por sua vez, deixam a aldeia em direção ao

mato. A passagem das Yámaka vem a indicar

uma associação, já apontada por outra autora

(Costa 1985: 180; 184), entre homens e espí-

ritos que ocorre no ritual. Segundo os Paresi,

quem, de fato, participa da festa são os espí-

ritos: eles bebem a chicha, cantam e dançam.

Vejamos isso mais de perto.

3. Segundo os Paresi, nem todas as casas têm a fl auta xíhali, assim como nem todos os homens têm fl auta secreta.

Convidados e anfi triões

A entrada das mulheres no ritual nos ajuda

a esclarecer melhor a posição de convidados e

anfi triões na festa. Elas entram na aldeia depois

dos homens e são recebidas apenas pelas anfi triãs

que as encaminham para os locais onde fi carão

as redes. Os homens retornam ao pátio da aldeia

onde, empunhando outras varas, novamente ata-

cam a casa onde estão agora todas as mulheres.4

Dessa perspectiva, os ataques às casas onde es-

tão as mulheres nos levam a pensar que a clave an-

fi trião/convidado pode corresponder a uma outra,

de caráter sexual, que opõe mulheres e homens.

Como se viu, são todas as mulheres que vão para

casa (ocupando a posição de anfi triões, de dentro),

enquanto os homens estão no pátio (na posição

de convidados, de fora). Além disso, os anfi triões

levam a chicha para os convidados, desempenhan-

do uma tarefa que é feminina no cotidiano.

Além das questões de gênero, oloniti im-

prime também nas relações entre convidados e

anfi triões sentimentos de hostilidade próprios

aos afi ns. O canto chamado Zeratyalo – em

que zerati signifi ca cantar (Rondon & Faria

1948: 70), e cujo nome designa um dos tipos

de fl auta5 – apresenta motivos que evidenciam

4. As convidadas, durante o ataque realizado pelos ho-

mens à casa, permanecem ajeitando suas redes e os seus

pertences, enquanto as anfi triãs continuam seus afaze-

res, enchendo os baldes de chicha que os anfi triões vêm

apanhar, dentre outras tarefas. Dito de outro modo,

no interior da casa, o clima predominante não é o de

temor pelos ataques sofridos da parte dos homens.

5. A informação que me foi dada em campo fazia alusão

a quatro tipos de fl autas, a saber, amore, tzéyrû, zerá-tyalo, xíhali. Já Pereira (1986: 31) refere-se a, além des-

tas, outras nove: hiétã, hwerare, txeyxikaharé, imókolo, zoláhî, kaxie, tiryama, ayririkwaré e walalosé. Imókolo, foi dito por um informante ser uma das varas com

as quais os homens atacam as casas. Já walalosé cor-

responde, segundo outro informante, a um momento

ritual que ocorre dentro da casa e tem como instru-

mento musical xíhali, como veremos adiante. Kaxie é

também o nome dado à fl auta de Pã, Zerô.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

OLONITI : |

certos confl itos entre sogro e genro. Vejamos

então,

Abandone Uati

Meu genro Macaquarece

Não tem nada

Meu genro preguiçoso

Não se vê serviço dele

(...)

Nem jacaré tem pra comer

Eu mesmo cuido de ti

Minha fi lha Cahala.(Rondon e Faria 1948: 78)

Essas e outras canções com as yámaka esten-

dem-se até por volta das duas horas da madru-

gada, quando essas últimas são guardadas na

casa das fl autas, e os homens ainda de braços

dados adentram a casa onde está a chicha. Com

a entrada dos homens na casa, as mulheres, que

até esse momento descansavam em suas redes,

preparam-se para dançar o zolane, termo para o

qual não obtive tradução, mas que Rondon &

Faria (1948: 72) e Costa (1985: 183) afi rmam

tratar-se de um instrumento musical.

A dança cessa nos momentos em que os anfi -

triões oferecem bebida e comida aos cantadores

e dançadores, precisamente as pessoas que mais

bebem durante uma festa. A obrigação de acei-

tar chicha está embutida na própria designa-

ção de convidado, oloniti hoaheré, “aquele que

bebe chicha” (Rowan e Rowan 1972: 67; Costa

1985: 170). A chicha (de mandioca e abacaxi)

trazida pelos festeiros é bebida em quantidade

pelos convidados até provocar o vômito.

Esses oferecimentos, por sua vez, podem

apresentar um caráter ambíguo. De um lado, tal

obrigação parece ter conotação semelhante àque-

la dos Wari descritos por Vilaça (1992), para os

quais as ofertas constantes de chicha aos convi-

dados até que esses “morram” são tidas como

uma vingança pela destruição que provocaram às

casas dos anfi triões. No caso aqui em questão, o

mesmo parece se dar, pelo menos num determi-

nado momento, já que, segundo Costa (1985:

181), os festeiros malvados, aqueles que primeiro

adentraram a aldeia empunhando as varas com as

quais batiam nas casas, bebem mais porque de-

vem ser punidos por terem danifi cado as casas.

De outro lado, é interessante contrapor aqui

um trecho retirado de uma canção enunciada

quando se fazia a preparação para a festa do Ko-titiko. Diziam os cantadores: “estamos cantando

bonito, nos dê chicha”. Nesse período da prepa-

ração apenas participam os co-anfi triões, além

de partes do ritual serem suprimidas, sobretudo

aquelas que simulam ataques guerreiros. Pare-

ce-nos, assim, que a diferença nos atributos as-

sociados à bebida, ora como punição, ora como

gratifi cação, corresponde a diferenças atribuídas

aos participantes: para os primeiros, tidos nesse

momento como inimigos, a chicha viria a do-

mesticá-los; já para os segundos, parentes pró-

ximos, a chicha viria a gratifi cá-los.

O momento ritual descrito até aqui parece

expressar-se, portanto, por uma certa agressivi-

dade e, conseqüentemente, caracteriza-se pela

potencialidade dos confl itos. Tal caráter torna-

se mais evidente pelos acontecimentos que des-

creverei a seguir.

Estes fatos têm lugar apenas durante a pri-

meira noite de execução da dança no interior

da casa, num determinado momento em que

os cantos que têm como temas certos mitos são

substituídos por improvisações que versam sobre

fatos do cotidiano, em especial relações extra-

conjugais ou outros fatos geradores de intrigas e

desentendimentos que envolveram a platéia pre-

sente, colocando em perigo o convívio social, e

que são relatados e discutidos abertamente.6 As

6. Assim, à diferença das improvisações que marcam os

cantos dos caçadores guayaki, belamente descritos por

Clastres (1990), através dos quais esses homens pro-

curam proclamar a sua individualidade, e, portanto,

uma afi rmação do indivíduo, são a vida em sociedade

e os problemas que colocam em risco uma convivência

cadernos de campo • n. 13 • 2005

96 |

atitudes dos convidados para com os anfi triões

a essa altura da festa não se caracterizam pela

polidez. Há, por exemplo, inúmeros relatos de

brigas ocorridas durante as festas, o que muitas

vezes resulta na saída antecipada de um grupo de

convidados, antes do fi m do ritual.

É ainda durante essa etapa do ritual que os

homens deixam a maloca e se dirigem à casa das

fl autas com alimentos recebidos. Lá, as porções

são distribuídas entre os ocupantes, que então

retornam à maloca, levando nesse instante a

fl auta denominada xíhali. A referida fl auta, cujo

nome é o mesmo que se dá aos besouros, uma

vez que seu formato lembra o inseto, fi ca guarda-

da em um bornal pendurado no esteio principal

da casa. Nos dias de festa, enquanto é tocada,

predomina um clima de euforia geral em que os

convidados tentam destruir objetos da casa, vo-

mitar sobre a comida, ou ainda apagar o fogo.

Aí, como se referiu um informante, “já é uma

questão de bagunça”. Os donos da casa, na ten-

tativa de proteger alimentos e outros pertences,

tentam escondê-los do ataque dos convidados.

A intenção não é a de consumir tais bens, como

ocorre em situações similares descritas para ou-

tras sociedades, como em um ritual dos Cinta

Larga, grupo Tupi Mondé que habita a porção

noroeste do estado de Mato Grosso, relatado por

Dal Poz (1991). Entre os Paresi, o intuito é o da

destruição de tais bens. De qualquer modo, am-

bos parecem evocar um potlatch, instituição de

troca total descrita por Mauss (1974), em que o

ofertante, ao se despojar de todos os seus bens,

submete o convidado, que se torna um devedor

e deverá retribuir com outro, porém mais consi-

derável do que aquele que recebeu.

No dia seguinte, os homens costumam ini-

ciar um dos dois jogos comumente praticados

nas festas paresi: zicunati e tirimore.7 Tais disputas

harmoniosa, os temas para os cantos e as improvisações

paresi que ocorrem durante a primeira noite do ritual.

7. O primeiro, no qual dois times compostos de três a

dez jogadores se enfrentam, tem como objetivo evitar

apresentam um caráter fortemente ritualizado e,

por essa razão, devem ser distinguidas de outras

modalidades, como os campeonatos de futebol,

de que também participam os Paresi,8 uma vez

que nos confrontos rituais as equipes devem se

enfrentar até que ambas tenham obtido a vitória

(Costa 1985: 408; Machado 1994: 102). Pode-

mos, inclusive, fazer um contraponto dos jogos

rituais com as partidas de futebol que acontecem

entre as aldeias.

Assim, a diferença entre as partidas de fu-

tebol e os jogos tradicionais pode ser melhor

esclarecida ao recorrermos às sugestões feitas

que a bola feita de mangaba caia no chão, utilizando

para isso a cabeça. Ganha aquele que conseguir lançar

três bolas no campo adversário, um retângulo traçado

no pátio da aldeia. Já tirimore, do qual participam duas

equipes ou apenas dois indivíduos, consiste em arremes-

sar manualmente uma bola de marmelo com o objetivo

de atingir duas estacas de arame fi ncadas no solo e sobre

as quais espetam-se dois grãos de milho. Os jogadores

posicionam-se a cerca de dez metros das estacas que de-

vem acertar. Muito embora os jogos aconteçam nas fes-

tas, eles não estão circunscritos apenas a essas ocasiões.

Para que um jogo de bola de cabeça ocorra, basta que

uma aldeia convide outra que, por sua vez, não pode

recusar o convite, que os Paresi chamam de “desafi o”

(Costa 1985: 406). Este é o termo usado para descre-

ver a forma como se dão os convites para as lutas entre

os Mehináku do Alto Xingu. Um outro ponto comum

com os vizinhos xinguanos é que entre esses as lutas não

fi cam restritas aos rituais, podendo acontecer no coti-

diano, quando se enfrentam pessoas de uma mesma

aldeia. Já nos rituais, os times que entram na disputa

são compostos por pessoas das aldeias anfi triãs contra

as dos convidados. Atualmente, as apostas restringem-se

aos bens ditos de imoti (branco) – sabão, fósforos, linha,

agulha –, mas antigamente apostavam-se arcos, fl echas

e machados (Faria 1924: 272), ou ainda alguns homens

podiam apostar suas irmãs (Costa 1985: 406-ss).

8. Os Paresi realizam em alguns fi nais de semana, com-

petições semelhantes aos nossos campeonatos, das

quais participam equipes de futebol de grande nú-

mero de grupos locais. Também como nos nossos

torneios, lá os times se enfrentam até que o melhor

classifi cado seja considerado vencedor, com direito

inclusive a um troféu.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

OLONITI : |

por Lévi-Strauss (1970b: 54) sobre a distin-

ção entre rito e jogo. O jogo, por seu caráter

disjuntivo, resulta em uma divisão diferencial

entre jogadores individuais ou equipes, que não

eram designados, a princípio, como desiguais.

No entanto, no fi m da partida, distinguir-se-ão

em vencedores e perdedores. De maneira simé-

trica e inversa, o ritual é conjuntivo, uma vez

que, de uma diferenciação inicial, institui uma

união ao fi nal. Nessa perspectiva, nas partidas

de futebol paresi, terminada a competição, os

homens voltam às suas respectivas aldeias, al-

guns como vencedores, outros como perdedo-

res. De modo inverso, percebemos nos “jogos”

que acontecem durante um ritual, que terão

continuidade em outras ocasiões para que, en-

fi m, terminem “empatado”, ou seja, até que os

oponentes terminem iguais, como no ritual.

Essa “igualdade” está também relacionada

a um outro aspecto desse momento ritual, a

saber, à preparação pelas mulheres, a partir da

mandioca d’água, do kazalo, em substituição

ao oloniti (chicha), não mais ingerido. Kazalo,

feito na tarde do segundo dia do ritual, é uma

bebida doce servida quente. Ao contrário do

oloniti, cuja ingestão exagerada provoca o vômi-

to, kazalo não é ingerido para ser vomitado. Do

mesmo modo como afi rmou Dal Poz (1991)

para uma das bebidas rituais dos Cinta Larga

que, por ser bebida exageradamente e provocar

o vômito não serve como alimento, o oloniti também possui o caráter de anti-alimento.

Assim, a mudança do tipo de bebida consu-

mida marca, ao meu ver, a distinção entre dois

momentos do ritual. O primeiro descrito até

aqui, consistiu na chegada dos festeiros, bem

como na primeira execução da dança no pátio

com as yámaka e da dança na maloca, cujo fi nal

culminou com a destruição dos bens dos anfi tri-

ões por convidados “bagunceiros”. Uma segunda

fase, que já começamos a descrever, tem início

com os jogos entre as equipes formadas por an-

fi triões e convidados, seguido pelo banho no rio

e a nominação, bem como pelas novas execuções

da dança na casa e com a yámaka. O ponto fi nal

dessa segunda fase corresponde aos pedidos de

presentes pelos convidados. Vamos a ele.

Já quando os convidados preparam-se para

deixar a aldeia, acontece a “dança da formigui-

nha”, “zokó-zokó”. Esse termo designa a formiga-

de-fogo ou lava-pés (Solenopsis sp). Esse momento,

assim como os ocorridos no interior da casa, é

marcado por grande descontração. Um ou mais

homens convidados colocam-se à porta da casa

onde a festa se realizou e, com passos curtos de

dança vão e vêm na direção da casa, solicitando

roupas, alimentos, fi os de linha, animais, assim se

expressando textualmente: “A formiga de fogo já

vai embora. Ela mora longe e quer alguma coisi-

nha para a viagem” (Roquette Pinto 1950: 346).

Os moradores que permanecem dentro da casa

depositam, do lado de fora, os presentes no chão e

respondem, a cada entrega, de acordo com o que

foi pedido. Assim, para oloniti: “Toma o resto da

chicha que oferecemos a yámaka”.

A referência à formiga nessa parte do ritual

parece-me associar-se a uma característica do ani-

mal de apanhar e levar nas costas para a casa ali-

mentos que encontre pelo chão. Os Paresi fazem

o mesmo nesse momento ritual e vão para casa

carregando os presentes. Além disso, no zokó-zokó

que presenciei, o último pedido, proferido num

tom de brincadeira ainda maior, tinha como ob-

jeto uma criança da casa. Anunciaram o nome da

menina e completaram dizendo que ela já estaria

grande quando voltassem.9 Todos riram, o grupo

se desfez e começou a partida.

Mito e ritual

O percurso seguido na descrição dos pas-

sos do ritual procurou evidenciar dois de seus

9. Nesse caso, o rito promove uma inversão da prática

social, uma vez que a regra de uxorilocalidade tempo-

rária, seguida pelos Paresi, faz com que o homem se

mude para a aldeia do sogro e não o contrário.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

98 |

momentos que nos parecem distintos e corres-

pondentes a atributos e comportamentos dife-

renciados que se associam aos convidados da

festa. Há um mito, denominado “O castigo da

festa errada” (Pereira 1986: 424-26) que, por

conter a imagem invertida dos procedimen-

tos considerados corretos no ritual, ajuda-nos

a elucidar esses aspectos do ritual. O mito, em

resumo, conta que:

As pessoas de uma aldeia preparavam-se para

dar uma festa. O dono da festa resolveu então

sair para caçar, enquanto as mulheres fi cavam na

aldeia preparando a chicha. Seu fi lho, que vivia

sempre junto das mulheres, não quis acompa-

nhá-lo. Quem seguiu o caminho do pai foi sua

fi lha, que estava perto da primeira menstruação.

Nesse caminho passou por um morro, uma

baixada até chegar ao mato, onde fi nalmente

encontrou o pai. Surpreso com a chegada da

menina, o pai a repreendeu pois estava perto

da menarca e por esse motivo não deveria estar

lá, mas em casa. A menina respondeu que sabia

disso, mas quis vir assim mesmo e foram pescar.

Foi no rio que a garota menstruou, mas nada

disse ao seu pai. Dormiram à beira do rio. En-

quanto dormiam, seres espirituais denominados

homens do mato e homens da água foram se

aproximando, até que mataram e comeram pai

e fi lha. Depois disso os espíritos, transformados

nos humanos que haviam matado, tomaram o

caminho da aldeia.

Lá, sabendo da menstruação da menina, sua

mãe, que não percebeu que a fi lha havia se

transformado em homem do mato, mandou-a

para o quartinho de reclusão. A menina dormia

muito e se recusava a tomar banho.

Nos dias seguintes começaram a chegar os con-

vidados. O dono da festa-homem do mato, em

vez de fazê-lo ele mesmo, mandou que os outros

levassem chicha aos convidados no acampamen-

to da festa. De novo recusou-se a levar chicha

para os convidados que tocavam a fl auta secreta,

assim como não ofereceu carne de caça a eles.

Ao invés disso, fumava os cigarros preparados

para a ocasião. A moça, por sua vez, recusava-se

a dançar com os moços.

A um sinal dos espíritos que se apresentavam

sob a forma de pai e fi lha, outros espíritos aden-

traram a aldeia matando e comendo todos os

participantes.

O não retorno dos convidados às aldeias de ori-

gem começou a despertar preocupação em seus

parentes, que foram tentar descobrir o que acon-

tecera. Então, um espírito lhes falou que todos

haviam morrido porque Enoharé mandara os

homens do mato e da água matá-los e comê-los,

como punição a alguns fatos ligados à festa como

a menina ter sua primeira menstruação no mato

e homens e mulheres terem relações sexuais du-

rante a preparação da bebida fermentada.

O mito acima descrito contém várias passa-

gens do ritual paresi de iniciação feminina, só

que os apresenta de maneira invertida ao modo

como deveriam ocorrer. Senão vejamos.

Em relação aos procedimentos correspon-

dentes à fase de preparação do ritual, a menina

deve permanecer em reclusão, tendo contato

apenas com a mãe e a irmã do pai até que chegue

a sua primeira menstruação. Sua saída do quarto,

onde esteve reclusa, só ocorre durante o segun-

do dia do ritual quando, acompanhada por dois

rapazes, corre em direção ao rio para banhar-se.

Posteriormente, a inicianda participa da festa,

devendo dançar com os rapazes, numa atitude

de plena disposição para com os convidados.

Esses últimos, durante a festa, devem fartar-se

de bebida, servida insistentemente pelo dono da

festa. Por fi m, os convidados pedem presentes

aos anfi triões, para só depois irem embora.

Por sua vez, o mito, como para anunciar

um conjunto de inversões que vão se suceder,

tem início com um absurdo, não apenas do

ponto de vista do ritual como da própria vida

social, ao relatar que uma moça menstrua no

cadernos de campo • n. 13 • 2005

OLONITI : |

mato quando deveria estar em reclusão, e que o

irmão não acompanha o pai na caçada, fi cando

com as mulheres na aldeia. Além disso, quando

pai e fi lha voltam, “homens do mato”, na ver-

dade, escapam às suas obrigações de doadores

em relação aos convidados, receptores.

O interesse da Etnologia pelas relações entre

mito e ritual remonta a Durkheim e Malino-

wski, dentre outros importantes autores, mas é

apenas a partir de Lévi-Strauss que tais relações

deixam de ser tomadas unicamente como re-

dundância. Conforme nos mostra Lévi-Strauss

(1970a: 255) ao comparar um mito Pawnee

com ritos dos Mandan e Hidatsa, povos das

planícies norte-americanas, essa relação não se

funda em uma espécie de causalidade mecâni-

ca, mas no “plano de uma dialética acessível

somente sob a condição de ter, previamente,

reduzido ambos a seus elementos estruturais”.

É assim também que, no caso paresi, redu-

zindo o mito “O castigo da festa errada” e o

rito de iniciação feminina a alguns de seus ele-

mentos estruturais, podemos visualizar então

os contrastes encontrados.

Rito: enquanto as mulheres permanecem na aldeia, os homens saem como caçadores.

Mito: enquanto o fi lho permanece com as mulheres na aldeia, pai e fi lha tornam-se caça.

Rito: quando entram na aldeia, os convidados transformam-se em espíritos ancestrais.

Mito: quando estão no mato, os homens do mato transformam-se em anfi triões.

Rito: anfi triões dão em excesso aos convidados-espíritos an-cestrais, que nunca recusam.

Mito: homens do mato-anfi triões sequer fazem oferecimentos aos convidados, que sempre pedem.

Rito: convidados-espíritos ancestrais pedem presentes para leva-rem, quando saírem da aldeia.

Mito: anfi triões desmascarados trazem outros homens do mato para dentro da aldeia, a fi m de devorarem os convidados.

Tais contrastes, fl agrados na comparação en-

tre mito e ritual merecem alguns comentários:

em primeiro lugar, o mito, pela imagem invertida

que fornece, chama a atenção para a importância

dos oferecimentos para o bom desfecho da festa.

Como vimos, no oloniti, as atitudes dos convi-

dados, a princípio pouco amistosas, vão sendo

modifi cadas. O motor de tal transformação nos

parece ser a bebida, posto que ela é servida so-

bretudo nos momentos em que os convidados

se mostram mais perigosos: quando tentam des-

truir a casa com as varas e no momento em que,

já no seu interior, tentam destruir tudo o que

nela se encontra. Além disso, quando os convida-

dos vão adquirindo boas maneiras, já no segun-

do dia do ritual, e começam os jogos que, como

observamos, apresentam um caráter conjuntivo,

de aproximação entre os participantes, a bebida é

substituída: oloniti não será mais ingerido e kaza-lo, bebida adocicada consumida como alimento

no cotidiano, ou seja, nos momentos em que se

está entre iguais, passa a ocupar o seu lugar.

A substituição da bebida aparece ainda as-

sociada a outras oposições que diferenciam o

momento ritual que se inicia. Primeiramente, a

ordem das danças é invertida, pois se no primei-

ro dia a dança com yámaka precede aquela no

interior da casa, no segundo, é com a dança no

interior da casa que a noite se inicia. Em segundo

lugar, durante a dança na maloca já não aconte-

cem mais as improvisações dos cantos relatando

brigas e desentendimentos entre os participantes,

bem como não se praticam mais ataques às casas

ou aos bens nelas contidos, indicando mudanças

nos atributos associados aos convidados.

Nesse sentido, as relações com os convidados,

vistas no início sob o signo da inimizade e do

confl ito, rumam para um fi nal em que o acento

é colocado sobre a parceria e a troca entre os gru-

pos envolvidos. Digo isso me amparando no fato

de que a continuidade nos rituais é enunciada

em vários de seus momentos: nos jogos que terão

seqüência até que terminem empatados, no mo-

mento da partida, quando se pede uma menina

dizendo que virão buscá-la numa ocasião futura,

cadernos de campo • n. 13 • 2005

100 |

ou ainda porque, ao aceitar o convite, o convida-

do se vê obrigado a retribuir.

Por outro lado, ao aproximarmos oloniti a ou-

tros rituais de grupos lingüisticamente aparenta-

dos ou geografi camente próximos, percebemos

que nesses últimos o próprio ritual encerra uma

troca, já que o convidado retribui durante a exe-

cução da festa os presentes recebidos, seja levan-

do o peixe, como entre os Enawene Nawe (Silva

1998), seja entregando o artesanato, no caso dos

Cinta Larga (Dal Poz 1991). Já no ri tual paresi

o anfi trião é o único doador: de bebida, comida,

roupas, artesanato, dentre outros bens. Porém,

assim como aqueles, oloniti também instaura

reciprocidade, mas aqui, esta se desenrola em

um ciclo longo, com desdobramentos num mo-

mento futuro quando houver a retribuição dos

presentes, completando um ciclo de troca.

Enfi m, o rito parece se constituir em um

circuito de trocas diferidas, ou seja, em que as

posições de doadores e receptores não são inter-

cambiáveis e que agrega também em si o tema

da predação, seja esta como possibilidade, como

nos mostra a narrativa mítica, em que a recusa

em oferecer leva a um desfecho de guerra e ca-

nibalismo, seja efetivamente pelas atitudes dos

convidados que pedem o tempo todo, chegan-

do a destruir bens e alimentos dos anfi triões.

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

resumo Conforme Walter Benjamin apontou

em seu ensaio “A obra de arte na era da sua repro-

dutibilidade técnica”, diante das modernas técnicas

de reprodução a arte vê-se destituída de sua aura,

fundamento de sua autenticidade. Para o autor, só

seria possível mostrar as condições sociais de tal de-

cadência entendendo-a não como perda de impor-

tância da arte no mundo moderno, mas sim como

alterações no medium de percepção contemporâneo.

Tratando do cinema e da fotografi a, diz Benjamin

que a reprodução técnica tanto autonomiza a arte

de sua existência no ritual, inserido-a agora numa

práxis política, como as obras que reproduz permi-

tem acessar o inconsciente óptico da sociedade mo-

derna. Partindo das sugestivas idéias deste autor, e

tomando como objeto de refl exão o disco, procura-

mos nesse trabalho explorar algumas possibilidades

de tratamento etnográfi co do material fonográfi co

no âmbito de uma etnografi a da música, procuran-

do neste material algo além de sua capacidade de

testar hipóteses.

palavras-chave teoria crítica e etnografi a

da música, reprodução técnica da música (disco),

medium de percepção contemporâneo, inconsciente

auditivo.

Relendo Walter Benjamin: etnografi a da música, disco e inconsciente auditivo*

* Versão revista e ampliada do trabalho apresentado

na 24ª Reunião Brasileira de Antropologia, FP 25:

Perspectivas antropológicas das sensibilidades musi-

cais contemporâneas, coordenado pelas professoras

ANDRÉ-KEES DE MORAES SCHOUTEN

Mestrando em Antropologia Social pela FFLCH/

USP, membro do Núcleo de Antropologia da

Performance e do Drama (NAPEDRA/USP) e

bolsista FAPESP.

Artigo aceito para publicação em 05/09/05

GIOVANNI CIRINO

Mestrando em Antropologia Social pela FFLCH/

USP, membro do Núcleo de Antropologia da

Performance e do Drama (NAPEDRA/USP) e

membro do Grupo de Som e Música em Antro-

pologia (SOMA/USP).

abstract According to Walter Benjamin’s es-

say “Th e work of art in the age of mechanical re-

production” the art’s aura, its autenticity basis, is

destroyed facing modern techniques of reproduc-

tion. For this author, we can show the social condi-

tions of this decadence understanding it not as a

reduction of the importance of the art in the mod-

ern world, but as alterations on the contemporary

perception medium. Analysing the cinema and the

photography, Benjamin writes that the thecnical re-

production emancipates the art from its parasitary

existence inside the ritual, and puts it in the politi-

cal praxis, as well as the works that it reproduces give

access to the optical unconscious of the modern so-

ciety. From the suggestive ideas of this author, and

assuming the record as refl ection object, we would

like to explore some possibilities of ethnographic

treatment for phonographic material, in the range

of ethnography of music, searching in this material

something beyond its capability to test hypothesis.

keywords critic theory and ethnography of

music, technical reproduction of music (record),

contemporary perception medium, aural uncon-

scious.

Elizabeth Travassos (Instituto Villa-Lobos – PPGM/

UNIRIO) e Santuza Cambraia Naves (PUC/RJ

– NUM/CESAP/UCAM). Olinda, junho de 2004.

cadernos de campo n. 13: 101-114, 2005

102 | -

Introdução

Apesar de realizarmos pesquisas um tanto

distintas (as práticas da música popular instru-

mental na cidade de São Paulo e a experiência

do sertão na obra fonográfi ca de Elomar Fi-

gueira Mello), temos nos discos um importante

material, o que nos colocou às voltas com um

problema comum:1 seria possível um tratamen-

to etnográfi co deste material fonográfi co ou, em

outras palavras, que lugar ele ocuparia no con-

texto de um empreendimento etnográfi co? O

que por ora apresentamos são algumas ponde-

rações acerca das possibilidades de tal tratamen-

to no âmbito de uma etnografi a da música.

De início, apresentamos a maneira como

Anthony Seeger (1992) e John Blacking (1995)

entendem a noção de etnografi a da música, sa-

lientando a posição que reservam aos discos e

outros meios técnicos de captação e reprodução

sonora. Para esses autores, dada a capacidade

que trazem de iludir quanto à essência humana

da música (o fazer musical), tais meios não for-

neceriam chaves signifi cativas para a compreen-

são da natureza do discurso musical, servindo

apenas como ferramentas no teste de hipóteses

junto aos músicos e à sua audiência. Indaga-

mos então se não seria possível tratar esta ilusão

auditiva produzida pelos meios técnicos como

constituinte do fazer musical contemporâneo,

tentando trazer os discos para o foco central

do empreendimento etnográfi co. Nesta tenta-

tiva é que encontramos amparo na (re)leitura

de Walter Benjamin, cujas idéias são alvo de

atenção no segundo momento do texto.2

1. Agradecemos ao nosso orientador, professor John

Cowart Dawsey, por nos ter apontado esta ‘comu-

nhão problemática’, sugerindo que trabalhássemos

juntos sobre ela. O presente trabalho surge, então,

como tentativa de responder ao desafi o apontado.

2. Neste sentido, o presente trabalho dialoga com o en-

saio do antropólogo José Jorge de Carvalho, “Trans-

formações da sensibilidade musical contemporânea”

No ensaio “A obra de arte na era da sua

reprodutibilidade técnica” ([1936] 1985d;

[1955] 1992), o crítico alemão propõe que a

câmara seria capaz de nos conduzir ao incons-

ciente óptico da sociedade contemporânea,

uma vez que sua linguagem é essencialmente

diferente daquela do olho humano. É neste

sentido que procuramos reler Walter Benja-

min, interrogando pela pertinência de se pensar

a reprodução técnica como capaz de produzir

efeito análogo na apercepção musical, ou seja,

se a diferença de linguagem entre gravador e

ouvido humano não nos permitiria acesso ao

inconsciente auditivo. Para tanto, resgatamos

também o diálogo com seu parceiro intelectual

Th eodor Wiesengrund Adorno em “Idéias para

a sociologia da música” ([1959] 1983a) e “O

Fetichismo na música e a regressão da audição”

([1963] 1983b), procurando passar da imagem

ao som tecnicamente reprodutível.

Feita esta arriscada incursão em certos

campos de caça da teoria crítica, procurando

salientar, no diálogo estabelecido entre Ador-

no e Benjamin, como a reprodução técnica

(visual/musical), na sua diferença de lingua-

gem, se relaciona com o acesso ao inconsciente

(óptico/sonoro), passamos ao terceiro e último

momento, buscando retornar a paragens mais

antropológicas.

Na leitura dos autores acima, foi possível

perceber que eles lançam mão de certas noções

da psicanálise para enfrentar os problemas de

comunicação colocados pelas inovações técni-

cas, pela reprodução técnica. Na antropologia

moderna, um dos primeiros a indicar uma

aproximação entre etnologia e psicanálise foi

Marcel Mauss, como nos lembra Claude Lévi-

Strauss em sua célebre “Introdução à obra de

(1999), onde procura refl etir sobre tais mudanças a

partir das profundas transformações na tecnologia

da produção musical contemporânea. Como aqui,

o autor também recorre aos pensamentos de, entre

outros, Benjamin e Adorno.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

: , |

Marcel Mauss” ([1950] 2003), afi rmando ser

esta uma das características mais signifi cativas

do modernismo do outro.3 Mas se é possível re-

lacionar os pensamentos de Mauss e Benjamin

a partir da psicanálise, uma outra opção, talvez

mais frutífera para este trabalho, seja enfocar

as maneiras como ambos encaram as relações

entre técnica e corpo, na tentativa de entender

os problemas que a linguagem técnica coloca à

comunicação humana.

Ao fi nal retornamos ao problema inicial,

qual seja, a compatibilização entre discos e et-

nografi a da música, procurando costurar algu-

mas considerações acerca das possibilidades de

tratamento etnográfi co do material fonográfi co,

numa perspectiva que incorpore a ilusão audi-

tiva trazida pela técnica de reprodução sonora

como parte do fazer musical contemporâneo.

Com Seeger e Blacking: discos e etno-grafi a da música

Entendemos etnografi a da música nos

termos defi nidos por Anthony Seeger e John

Blacking, ou seja, como “(...) escrita sobre as

maneiras que as pessoas fazem música” (Seeger

1992: 89, tradução nossa), prática que exige

do pesquisador uma abordagem atenta ao fa-

zer musical, obrigando-o a incluir na sua vi-

sada não só os sons produzidos, mas também

os seres humanos envolvidos na sua realização

(dos músicos à audiência), perseguindo as ma-

neiras como concebem, produzem e apreciam

estes sons, assim como infl uenciam outros in-

divíduos, grupos, processos sociais e musicais,

3. “Assim, Mauss não apenas estabelece o plano de traba-

lho que será, de forma predominante, o da etnografi a

moderna ao longo dos dez últimos anos, mas percebe

ao mesmo tempo a conseqüência mais signifi cativa des-

sa nova orientação, isto é, a aproximação entre etnolo-

gia e psicanálise” (Lévi-Strauss [1950] 2003: 13). Um

pouco mais à frente, Lévi-Strauss adverte ainda que “O

problema etnológico é portanto, em última análise, um

problema de comunicação (...)” (idem: 29).

sendo a música entendida como um sistema de

comunicação utilizado pelos membros de uma

comunidade para se comunicarem com outros

membros (Seeger 1992; Blacking 1995).

Essa combinação – discos e etnografi a da

música – a princípio pode soar estranha, pois se

são as pessoas que fazem música para outras ou-

virem, a atenção demasiada aos discos perderia

de vista o fazer musical. Isto porque, segundo

esses autores, todo o aparato técnico-eletrôni-

co de captação e reprodução sonora utilizado

em nossa sociedade, captando e reproduzindo

apenas o aspecto acústico da música, criariam

uma ilusão auditiva (Seeger 1992) ou de obje-

tividade (Blacking 1995), como se os sons pu-

dessem ser produzidos independentemente da

ação humana, confundindo quanto à

(...) essência do fazer musical e da compreensão

musical [que] são os atos humanos de produzir sen-

tido com os símbolos musicais através da composi-

ção, da performance e da audição (Blacking 1995:

229; tradução nossa).

De acordo com os autores, então, dada sua

característica ilusória, os meios técnicos de re-

gistro e reprodução sonora não são capazes de

fornecer chaves signifi cativas para a compreen-

são da natureza do discurso musical – quando

muito são boas ferramentas de pesquisa, pela

sua capacidade de testar hipóteses (Blacking

1995); bem como são em parte responsáveis

pela confusão entre música e som na sociedade

contemporânea (Seeger 1992).

Mas é graças a esses meios técnicos que nós,

pelo menos desde meados do século XX, ouvi-

mos grande parte da música que conhecemos:

músicas do mundo inteiro nos são acessíveis

por meio de discos, fi tas e rádios. E mesmo

que aquela ilusão auditiva não seja caracterís-

tica da própria música, mas um aspecto dos

meios técnicos utilizados, é preciso levá-la em

consideração – e não descartá-la – para tentar

cadernos de campo • n. 13 • 2005

104 | -

entender o que seria fazer música com o auxílio

de tais meios. Em outras palavras, mais do que

iludir quanto à essência humana da música, a

ilusão auditiva que acompanha a técnica de re-

produção participa criativamente do fazer mu-

sical contemporâneo, provocando alterações

na concepção, na produção e na apreciação das

músicas que reproduz.

Como certa vez afi rmou Walter Benja-

min ([1929] 1985a), de nada adianta “apontar

no enigmático seu lado enigmático”, já que o

mistério só é desvelado na medida que o en-

contramos no cotidiano, graças a uma ótica

dialética que permita ver “o cotidiano como

impenetrável e o impenetrável como cotidia-

no”.4 Em busca do aspecto produtivo que a

ilusão auditiva assume quando a música passa

a ser tecnicamente reprodutível é que nos pro-

pusemos a reler Walter Benjamin. Partindo de

uma afi rmação feita em seu ensaio “A obra de

arte na era da sua reprodutibilidade técnica”

([1936] 1985d; [1955] 1992), indagamos: da

mesma maneira que a “(...) câmara leva-nos ao

inconsciente óptico, tal como a psicanálise ao

inconsciente das pulsões (...)” ([1936-1955]

1992: 105), o gravador seria capaz de nos con-

duzir ao inconsciente auditivo?

Com Benjamin e Adorno: reprodução técnica, inconsciente ótico e apercepção

No ensaio acima referido, dirigindo a pa-

lavra aos críticos de arte de sua época, Walter

Benjamin defende que os valores artísticos

encerrados na fotografi a, mas sobretudo no

cinema, já não são apreensíveis pelos concei-

tos tradicionais – criatividade e gênio, validade

eterna e estilo etc. –, exigindo a formulação de

4. A este procedimento Walter Benjamin deu o nome

de “iluminação profana”, que não será tratado no

presente trabalho. Para uma exposição de tal proce-

dimento, ver o ensaio “O surrealismo – o último ins-

tantâneo da inteligência européia” ([1929] 1985a).

novos conceitos em teoria da arte. Para ele, isto

só é possível entendendo quais as novas exigên-

cias que o cinema, fruto da técnica de reprodu-

ção artística, impõe ao modo de percepção do

homem contemporâneo (condicionado natural

e historicamente). Segundo o autor, a apercep-

ção5 de um fi lme exige de seu espectador um

estado de descontração, atitude bem diferen-

te da atenção e do recolhimento diante de um

quadro, por exemplo. A atitude crítica que o

cinema requer de seu público se dá na descon-

tração, sendo o público caracterizado por ele

numa fórmula um tanto paradoxal: um exa-

minador distraído (Benjamin [1936] 1985d;

[1955] 1992).

Para o autor, o que caracteriza o fi lme não é

só a forma como o homem se apresenta dian-

te do equipamento de registro, mas também

como, com a ajuda deste, reproduz o seu meio

ambiente. Embora reconhecendo que a psico-

logia do desempenho ilustra a capacidade de

teste do equipamento, ele prefere abordar tal

fato a partir de um diálogo com a psicanálise:

(...) o cinema enriqueceu o nosso horizonte de

percepção com métodos que podem ser ilus-

trados pela teoria freudiana (Benjamin [1955]

1992: 102).

Vale lembrar que Walter Benjamin não está

propondo nenhuma espécie de psicanálise do

social a ser feita através do cinema, mas que

as alterações produzidas pela linguagem cine-

matográfi ca na percepção que o homem con-

temporâneo tem de si e do seu meio (natural

e histórico) são comparáveis às alterações que

a psicanálise trouxe para a compreensão que o

indivíduo tem de sua psique. Ou seja, da mes-

ma maneira que a psicanálise tornou possível

5. apercepção s. f. 1. Ação ou faculdade de perceber. 2. Consciência imediata de si e do mundo. 3. Intuição;

percepção. (Grande Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa 1999).

cadernos de campo • n. 13 • 2005

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ao indivíduo apreender seu eu mais secreto, to-

mar consciência das formas de atividade de seu

inconsciente individual, o cinema possibilitou

ao homem contemporâneo acesso ao incons-

ciente da sociedade onde está inserido.

Para o autor, assim como o trabalho de

Freud6 permitiu isolar e analisar o que antes

passava despercebido no fl uxo do perceptível,

como um lapso numa conversa que transcorre

superfi cialmente, levando agora à abertura de

perspectivas profundas, o cinema teria como

conseqüência um aprofundamento semelhante

da apercepção, já que os desempenhos em um

fi lme podem ser analisados com maior exati-

dão e sob mais pontos de vista do que aqueles

apresentados num quadro ou no palco. Afi rma

então que através dos grandes planos, do real-

ce de pormenores escondidos nos aspectos do

cotidiano, e na exploração dos ambientes mais

banais pela direção genial da objetiva, o cine-

ma foi capaz de aumentar a compreensão das

imposições que regem nossa existência, assim

como nos assegurou um novo campo de ação

imenso e insuspeitado. E não apenas porque a

câmara e seus meios auxiliares revelam motivos

conhecidos em movimento, mas antes por des-

cobrir nesses movimentos conhecidos outros,

desconhecidos. E isso torna compreensível que

a natureza da linguagem da câmara seja dife-

rente da linguagem do olho humano. Diferen-

te, sobretudo, porque ao invés de um espaço

preenchido conscientemente pelo homem,

surge um outro preenchido inconscientemente

(Benjamin [1936] 1985d; [1955] 1992).7

Feita esta rápida apresentação do problema

em Benjamin, é possível indagar: a técnica de

6. Benjamin se refere ao “Psicopatologia da Vida Quo-

tidiana”, de Sigmund Freud. Para as relações do pen-

samento benjaminiano com a teoria freudiana ver o

trabalho de Sérgio Paulo Rouanet (1981).

7. Esta discussão já havia sido feita por Benjamin num

ensaio anterior: “Pequena história da fotografi a”

([1931] 1985b).

reprodução sonora teria, na apercepção con-

temporânea, um efeito análogo à técnica cine-

matográfi ca? O ouvinte de discos, fi tas e rádios

seria capaz de se colocar no mesmo estado de

descontração que o cinema exige de seu espec-

tador? E sendo a linguagem do gravador dife-

rente da linguagem do ouvido humano, seria

possível falar num espaço sonoro preenchido

inconscientemente? Neste ponto a leitura dos

textos de Th eodor Wiesengrund Adorno nos

ajuda nessa difícil passagem da imagem ao som

tecnicamente reprodutível.8

Para Walter Benjamin, o seu ensaio “A obra

de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”

([1936] 1985d; [1955] 1992) e o de Adorno

“O Fetichismo na música e a regressão da audi-

ção” ([1963] 1983b), são duas abordagens dife-

rentes do mesmo fenômeno, onde ele procura

articular os momentos positivos daquilo que o

outro ressalta como negativos, apontando para

uma possível mediação dialética entre seus pon-

tos de vista na análise do fi lme sonoro.9 Esta

8. Para uma brilhante e instigante exposição das con-

vergências e divergências entre os pensamentos de

Benjamin e Adorno, neste e noutros ‘confrontos’ que

marcaram ambas as produções, ver o trabalho de Flá-

vio René Kothe (1978).

9. “In my essay [‘Th e Work of Art in the Age of Me-

chanical Reproduction’] I tried to articulate positive

moments as clearly as you managed to articulate

negatives ones. Consequently, I see strengths in your

study at points where mine was weak. (...) An analy-

sis of the sound fi lm would constitute a critique of

contemporary art which would provide a dialectical

mediation between your views and mine” (Benjamin

[1938] 1994: 140). Como lembrou Flávio René Ko-

the (1978), tanto Benjamin quanto Adorno, nestes

e em alguns outros ensaios da mesma época, tinham

como preocupação comum à decadência como pro-

blema da arte moderna, apresentando todavia pro-

postas diferentes no enfrentamento da questão. Nas

palavras de Flávio Kothe: “Enquanto Adorno enfatiza

o desenvolvimento autônomo das técnicas da obra de

arte, Benjamin enfatiza a ligação e o condicionamen-

to delas em relação às técnicas de produção social” (1975: 32).

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ida às idéias de Adorno acerca da música con-

temporânea nos autoriza, na chave da relação

entre reprodução técnica e inconsciente, pensar

num paralelo auditivo do inconsciente óptico

de Benjamin, mas que olhe positivamente para

a técnica de reprodução musical, ou seja, vendo

a inovação técnica na música não do ponto de

vista do desenvolvimento autônomo das técni-

cas da obra de arte, mas do seu condicionamen-

to em relação às técnicas de produção social.

No referido ensaio, Th eodor W. Adorno

afi rma que a atual música de massas encontra

na descontração o seu modo de comporta-

mento perceptivo, lembrando que a observa-

ção de Walter Benjamin quanto à apercepção

de um fi lme em estado de distração é válida

também para a música ligeira. No entanto,

afi rma também que, se o fi lme enquanto to-

talidade é adequado à apreensão em estado de

descontração, a audição desconcentrada torna

impossível apreender uma totalidade (Adorno

[1963] 1983b). Assim, ao mesmo tempo em

que Adorno reconhece a possibilidade da aper-

cepção musical na descontração, ele aponta

que, ao contrário do que Walter Benjamin vê

no cinema, a técnica de reprodução na músi-

ca não se apresenta como um progresso, mas

como um retrocesso.10 O autor parece dizer: há

um ouvinte descontraído, mas que é incapaz de

10. A título de ilustração da maneira como os autores

entendem a relação entre técnica e arte, citamos aqui

estes dois trechos: “(...) o conceito de técnica pode

ajudar-nos a defi nir corretamente a relação entre ten-

dência e qualidade (...). Se em nossa primeira formu-

lação dissemos que a tendência política correta de uma

obra inclui sua qualidade (...), porque inclui sua ten-

dência (...), é possível agora dizer, mais precisamente,

que essa tendência (...) pode consistir num progresso

ou num retrocesso da técnica (...)” (Benjamin [1934]

1985c: 122-123); “O que decide se uma determinada

técnica pode ser considerada ‘racional’ e constitui um

progresso, é o sentido original, a sua posição no con-

junto social e no conjunto da obra de arte concreta e

individual” (Adorno [1963] 1983b: 189).

atitude crítica semelhante ao espectador distra-

ído do fi lme.

Neste ponto caberia uma indagação a

Adorno: se disco e fi lme têm seu fundamento

na técnica de reprodução, e se tanto especta-

dor quanto ouvinte são capazes da apreensão

desconcentrada, por que essa apreensão não

permite ao último vislumbrar a totalidade?

No outro ensaio – “Idéias para a sociologia da

música” ([1959] 1983a) – Adorno nos oferece

algumas pistas para responder a esta questão.

Em suas palavras:

A música, tomada em conjunto, é particular-

mente apropriada para ideologia, pois a au-

sência de conceitos permite que os ouvintes se

sintam como seres de sentimento, que associem

livremente, que pensem o que quiserem. Ela

funciona como realização dos desejos, como

satisfação substitutiva, mas sem que o mecanis-

mo seja evidente, como o é no fi lme (Adorno

[1959] 1983a: 262).

Em outras palavras, o ouvinte descontraí-

do não é capaz de perceber a totalidade por-

que o mecanismo de realização dos desejos não

é evidente. E isso acontece, segundo o autor,

dada a natureza não-conceitual da música que,

a despeito de sua fi gura e sentidos próprios,

contribui para o que chama de ideologia do

inconsciente; e como esfera cultivada da irra-

cionalidade em meio ao mundo racionalizado,

ela acaba por justifi car a perpetração da irracio-

nalidade global (Adorno [1959] 1983a).

É possível perceber que aqui Adorno está

pensando com Max Weber e, seguindo com

ele, ressalta que a categoria da racionalização

é decisiva para a sociologia da música, cor-

roborando a tese weberiana de que a história

da música ocidental é a de uma progressiva

racionalização.11 No entanto, lembra o autor

11. Weber, Max. Os Fundamentos Racionais e Socio-lógicos da Música ([1911] 1995).

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que a racionalização é apenas um de seus as-

pectos sociais, como a racionalidade ela própria

– Aufklärung – é um momento na história da

sociedade, e que no interior do movimento

progressivo de desencantamento do mundo do

qual participou, a música foi também a voz do

que fi cara para trás no caminho dessa racionali-

dade, ou do que dela fora vítima. Diz ainda ser

esta a contradição social que está no centro da

música, e também a tensão da qual a produti-

vidade musical tem-se alimentado na sociedade

moderna. Feita esta crítica a Max Weber, o au-

tor então afi rma que:

Por seu puro material a música é a arte em que os

impulsos pré-racionais e miméticos se afi rmam

irredutivelmente, entrando ao mesmo tempo

em constelação com as tendências ao progressi-

vo domínio da natureza e dos materiais. Daí a

sua transcendência em face da engrenagem co-

tidiana da auto-conservação (...). Se é que efeti-

vamente ela vai além da mera repetição do que

já existe, será por essa razão. Mas é pela mesma

razão, por outro lado, que ela é tão apropriada

à constante reprodução da estupidez. O que faz

dela mais que mera ideologia é também o que

mais facilita a caricatura ideológica. Como cam-

po delimitado e cultivado da irracionalidade em

meio ao mundo racionalizado, ela se transforma

no estritamente negativo, tal como é racional-

mente planejado, produzido e administrado pela

indústria da cultura de massas em nossos dias. Só

por força da racionalidade a música pode ultra-

passá-la (ibidem).

Para Adorno, então, essa irracionalidade da

música socialmente manipulada seria um dos

fenômenos que exprimiriam um nexo social

de maior alcance: o predomínio da produ-

ção. Conceito que para ele não deve ser posto

como absoluto, assim como não deve ser iden-

tifi cado à produção social de bens. Tendo isso

em mente, afi rma ser possível distinguir entre

dois momentos da produção musical: o da au-

tonomia da exigência expressiva e da lógica do

objeto, que diz ser respeitada pelo compositor;

e o das leis de produção de bens para o merca-

do, mesmo que estas possam penetrar nos mo-

mentos estéticos mais sublimes. Diz ainda que

a tensão entre os dois momentos é essencial na

esfera da produção, uma vez que o nexo ima-

nente da motivação musical não corre inteira-

mente fechado, ou seja, ao mesmo tempo em

que a música se desdobra segundo sua própria

lei – que é secretamente social –, também é

movimentada e desviada no interior do campo

das forças sociais.

Daí o autor afi rmar a necessidade da dupla

abordagem que propõe em sua sociologia da

música, fugindo das aproximações externas en-

tre obras do espírito e relações sociais: partindo

de uma análise técnica e fi sionômica que dá

sentido e nome ao momento formal como mo-

mento de signifi cação musical e daí passando

à sociedade, levando assim com que os cons-

tituintes formais da música, sua lógica, falem

em termos sociais. E isso não signifi ca procurar

elos intermediários entre a música ou o autor

de determinada época e a sociedade na qual foi

produzida mas, como apontou Gabriel Cohn

ao introduzir as idéias de Adorno, signifi ca

(...) procurar a marca dessa sociedade na tessitura

das obras mesmas, nos problemas que o compo-

sitor enfrentou para dar conta do material musi-

cal – ou seja, do conjunto de elementos técnicos

e construtivos historicamente constituídos de que

dispunha – e nas soluções encontradas na efetua-

ção da lógica interna – da ‘lei formal’(...) (Cohn

1986: 20).

Mas voltemos ao diálogo com Walter Ben-

jamin. Como transparece nestas palavras de

Cohn em referência a Adorno, os dois autores

partem da comum idéia que o conteúdo espi-

ritual só se realiza nas obras de arte mediante

cadernos de campo • n. 13 • 2005

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categorias técnicas,12 ou seja, pelo agencia-

mento de técnicas de que o artista dispõe para

levar suas aspirações subjetivas a se superar

na objetividade do material e da forma. Mas

se para Benjamin a técnica de reprodução no

cinema constitui um avanço da técnica cine-

matográfi ca, para Adorno ela constitui um re-

trocesso da técnica musical, daí ele chamar a

apercepção descontraída da música ligeira de

“audição regredida”. Como apontam, tanto

o fi lme quanto a música ligeira13 são adequa-

dos à apercepção em estado de descontração.

No entanto, como quer Adorno, só o primei-

ro possibilita a apreensão de uma totalidade

nesse estado, pois só nele o mecanismo in-

consciente de realização dos desejos se torna

evidente. Em outras palavras, a técnica de re-

produção só é tecnicamente conseqüente no

12. É curioso como esta afi rmação, a princípio tão “fi lo-

sófi ca”, “dialética” e “materialista”, é próxima daquela

feita por Marcel Mauss ao apresentar a importância

da noção de habitus que introduz na discussão so-

ciológica: “É preciso ver técnicas e a obra da razão

prática coletiva e individual, lá onde geralmente se vê

apenas a alma e suas faculdades de repetição” ([1950]

2003a: 404).

13. É preciso considerar que, ao longo dos dois textos,

Adorno utiliza diversos adjetivos ao se referir à mú-

sica – séria, ligeira, de massas, de entretenimento e

artística –, que devem ser entendidos não como de-

fi nições taxativas que separe esta daquela música, e

sim como um conjunto de noções que devem ser

entendidas em suas relações e oposições ao longo do

texto. Daí a difi culdade em especifi car como ele en-

tende cada uma delas. Mesmo assim é possível dizer,

num resumo empobrecedor, que nos dois trabalhos

música séria e música ligeira surgem em oposição,

sendo a música séria (grande música) entendida por

ele como a música tradicional da Europa Ocidental, a

música ligeira parece identifi cada à música popular e

em especial ao jazz; a música de entretenimento está

associada ao jazz comercial, sendo ao mesmo tempo

música ligeira e de massas; e por fi m a música artística

seria aquela que, realizando uma música de massas

tecnicamente conseqüente, afasta-se das massas, em

busca de seu próprio destino.

cinema porque o espectador é capaz de, pelos

valores do sentido, acessar os valores do espí-

rito. Como afi rmou Benjamin:

O fi lme serve para exercitar o homem nas novas

percepções e reações exigidas por um aparelho

técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua

vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho

técnico do nosso tempo o objeto das inervações

humanas – é essa a tarefa histórica cuja realiza-

ção dá ao cinema seu verdadeiro sentido (Benja-

min [1936] 1985d: 174).

É exatamente este exercício nas novas percep-

ções e reações exigidas por um aparelho técnico

que Adorno vê faltar na atual música de massas,

fazendo esta tecnicamente inconseqüente:

Como quer que seja no cinema, a atual música

de massas pouco apresenta deste progresso no

desencantamento. Neste tipo de música nada

é mais forte e mais constante que a aparência

externa, e nada é mais ilusório do que a objetivi-

dade (Adorno [1963] 1983b: 188).

Mesmo assim o autor acredita ser possível

uma música de massas tecnicamente conse-

qüente, que chama de música artística, capaz

de fugir à rotina do sempre igual, mesmo que

para isso ela perca as características que a torna

aceita pelas massas; isto é, o momento de sua

produção, orientada com vistas a respeitar a au-

tonomia da exigência expressiva e da lógica do

objeto, procura se esquivar das leis de produção

de bens para o mercado.

Se estendermos o raciocínio de Adorno se-

ria possível dizer que, entre todas as músicas

adequadas a apercepção em estado de descon-

tração, somente na música artística a técnica de

reprodução produz efeitos comparáveis aos que

Benjamin vê no cinema, ou seja, a experiên-

cia do inconsciente auditivo. Mas para que tal

experiência seja possível, para que a inovação

cadernos de campo • n. 13 • 2005

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técnica permita este acesso, é necessária uma

nova atitude, um adestramento da percepção

do homem contemporâneo, sendo capaz de se

colocar em descontração. Assim percebemos

que não é possível uma refl exão sobre a técnica,

por mais autônoma que seja, que não considere

também uma educação do corpo, ou melhor,

que não considere as atitudes exigidas pelo apa-

relho técnico.

Vista desse ângulo, e por mais paradoxal

que possa parecer, essa discussão encontra res-

sonância também nas preocupações de Marcel

Mauss apresentadas em seu “Técnicas do cor-

po” ([1950] 2003), uma vez que toda a refl exão

apresentada ali parte da observação empírica

sobre as variações de atitude que os homens

apresentam, de sociedade em sociedade, no

emprego de suas técnicas. Em busca de tal res-

sonância que iniciamos o terceiro e último mo-

mento deste trabalho.

Com Benjamin e Mauss: corpo, técnica e sociedade

Uma boa maneira de iniciar o diálogo entre

as idéias de Marcel Mauss e Walter Benjamin

talvez seja indagar como o primeiro classifi ca-

ria, de acordo com suas propostas para o es-

tudo d’“As técnicas do corpo” ([1950] 2003a),

aquela atitude apresentada pelo examinador

distraído, vendo aí o produto da aplicação de

uma possível técnica da descontração.

Nessa comunicação feita à Sociedade de Psi-cologia em 1934 e publicada no ano seguinte

pelo Journal de Psychologie, Marcel Mauss ex-

põe aquilo que vê como um novo campo de

estudos a ser explorado: o das técnicas do cor-

po. Após apresentar como entende a noção (ato

tradicional efi caz; série de atos montados no

indivíduo, por sua educação e pela sociedade,

com a fi nalidade de adaptar o corpo ao seu uso,

e que podem ser ordenados num sistema de

montagens simbólicas), Mauss faz uma longa

consideração sobre as maneiras de se classifi car

tais técnicas (por sexo e idade, rendimento e

transmissão; ou ainda pela enumeração biográ-

fi ca, pela distribuição ao longo do curso de vida

do indivíduo), concluindo com considerações

gerais acerca do exposto anteriormente. Vale

lembrar que, neste clássico da antropologia,

mais do que elaborar a teoria geral das técnicas

do corpo que diz ser possível, Mauss apresenta

uma espécie de plano de trabalho aos etnógra-

fos, indicando aquilo que se está por fazer para

que tal teoria possa então ser levada a cabo.

De certa maneira, ao nos debruçarmos sobre

a atividade descontraída, a atitude desconcen-

trada do espectador/ouvinte descrita por Wal-

ter Benjamin,14 procuramos retomar esta velha

pauta de trabalho.

Para que o indivíduo se torne um exami-

nador distraído, se coloque em descontração,

é preciso o adestramento da percepção, a edu-

cação de seus sentidos, em suma, de seu corpo.

Dessa forma, e seguindo os princípios de clas-

sifi cação inicialmente propostos por Mauss, a

técnica da descontração poderia ser abordada

do ponto de vista da natureza de sua educação

e adestramento, da transmissão da forma das

técnicas:

4) transmissão da forma das técnicas. – Último

ponto de vista: o ensino das técnicas sendo

essencial, podemos classifi cá-las em relação à

natureza dessa educação e desse adestramento.

E eis aqui um novo campo de estudos: incon-

táveis detalhes inobservados, e cuja observação

deve ser feita, compõem a educação física de

14. Lembramos que Benjamin, na primeira versão do en-

saio sobre a arte tecnicamente reprodutível ([1936]

1985d), tece considerações sobre a reprodução téc-

nica da música pelos discos, numa analogia à técnica

cinematográfi ca, comentários que estão ausentes na

segunda versão. De qualquer forma, e pelo exposto

anteriormente, já devemos estar autorizados a afi rmar

que espectador e ouvinte apresentam a mesma atitu-

de desconcentrada, seja diante do fi lme ou do disco.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

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todas as idades e dos dois sexos (Mauss [1950]

2003a: 411).

Como havia apontado Walter Benjamin, o

cinema cumpre a função de educar os sentidos

para a descontração, já que

O fi lme serve para exercitar o homem nas novas

percepções e reações exigidas por um aparelho

técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua

vida cotidiana (Benjamin [1936] 1985d: 174).

É possível perceber, na enumeração bio-

gráfi ca das técnicas do corpo apresentada por

Mauss, que o ensino técnico dos indivíduos

inicia-se na mais tenra idade e se prolonga até

a idade adulta, tendo seu momento decisivo

na adolescência, sobretudo nos ritos de ini-

ciação. Quanto às técnicas da idade adulta es-

pecifi camente – que nos interessam aqui –, o

autor diz ser possível distinguir entre técnicas

do sono e da vigília e, nesta, entre atividade

e repouso, podendo este último ser ativo ou

passivo, frisando que as técnicas de repouso

ativo dizem respeito não só à estética, mas

também aos jogos do corpo (Mauss [1950]

2003a).

Dito isto, e aceitando que a descontração

característica do examinador distraído de Ben-

jamin é alcançada por meio de um adestra-

mento técnico, de uma educação dos sentidos,

a técnica da descontração poderia ser aborda-

da não só pela forma de sua transmissão, mas

também como uma das técnicas da vigília do

repouso ativo. Dessa maneira, a formulação

paradoxal de um examinador distraído encon-

tra seu princípio de classifi cação na formulação

não menos paradoxal de uma atividade reali-

zada em repouso, repouso ativo. Mas por que

paradoxal?

Como apontou Marcel Mauss ao apresentar

as técnicas da vigília, inicialmente atividade e

repouso encontram-se em oposição:

3) Técnicas da atividade, do movimento. – Por de-

fi nição, o repouso é a ausência de movimentos,

o movimento, a ausência de repouso ([1934]

2003a: 416).

Mesmo iniciando sua argumentação sobre

as técnicas da vigília contrapondo atividade e

repouso, é possível perceber que ele substitui

o primeiro termo por movimento. Tal substi-

tuição, que poderia passar despercebida, reve-

la algo importante na sua argumentação: se o

repouso não é mais ausência de atividade, mas

de movimento, então a ausência de movimen-

to, que é o repouso, não exclui a atividade. Ou

seja, sem tal operação seria impossível conside-

rar toda uma série de atividades que perpassam

os momentos de repouso, da alimentação à

conversação, mas sobretudo as atividades esté-

ticas e os jogos do corpo, sendo os dois últimos

associados mais diretamente ao que Mauss cha-

mou de repouso ativo. Também a apercepção

desconcentrada de um fi lme é uma atividade

realizada em repouso, já que sua fruição esté-

tica só é possível na medida que o espectador

esteja distraído, como defendeu Walter Benja-

min contra os críticos de arte de sua época, in-

capazes de ver na descontração a possibilidade

de uma atitude crítica.

Para exemplifi car uma atividade estética rea-

lizada no repouso ativo, Mauss apresenta a no-

ção de dança do repouso, partindo da divisão

proposta por von Hornbostel e Curt Sachs entre

danças de repouso e danças de ação. Ao mesmo

tempo em que admite esta divisão, aponta que

os autores são vítimas do mesmo erro funda-

mental em que vivia parte da sociologia naquele

tempo, qual seja, acreditarem que as sociedades

se repartiriam em sociedades de descendência

masculina ou descendência uterina, associando

assim danças de ação às primeiras e danças de re-

pouso às outras. Afi rma ainda que Sachs (1933)

classifi cou um pouco melhor tais danças em ex-

trovertidas e introvertidas, dizendo então que

cadernos de campo • n. 13 • 2005

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Estamos em plena psicanálise, provavelmente

bastante fundamentada aqui. Em verdade, o

sociólogo deve ver as coisas de modo mais com-

plexo ([1950] 2003a: 417).

Deixando de lado a polêmica em torno de

sociedades e descendências, é possível indagar:

por que Mauss diz que estamos em plena psi-

canálise? E o que quer dizer quando afi rma que

o sociólogo deve ver as coisas de modo mais

complexo?

Recorremos mais uma vez a Claude Lévi-

Strauss. Como dito anteriormente, na sua

“Introdução à obra de Marcel Mauss” ([1950]

2003), este aponta como uma das caracterís-

ticas fundamentais do modernismo do seu

antecessor, o fato de Mauss ter indicado a

aproximação entre etnologia e psicanálise,

expressa sobretudo no recurso às noções de

categoria inconsciente e de categoria do pen-

samento coletivo, chamando a atenção para

a especifi cidade do uso que faz na análise et-

nológica:

O problema etnológico é portanto, em última

análise, um problema de comunicação; e essa

constatação deve bastar para separar radicalmen-

te esta via seguida por Mauss, identifi cando in-

consciente e coletivo, da de Jung (...). Pois não é

a mesma coisa defi nir o inconsciente como uma

categoria do pensamento coletivo ou distinguí-

lo em setores, conforme o caráter individual ou

coletivo do conteúdo que se lhe atribui (Lévi-

Strauss [1950] 2003: 29).

Assim, ao mesmo tempo em que Mauss se

aproxima da psicanálise recorrendo à noção

de inconsciente, ele se afasta ao associá-la a

pensamento coletivo, e muito provavelmen-

te o faz por acreditar que os atos praticados

pelos indivíduos, mais do que mera expressão

da educação individual, trazem as marcas da

sociedade em que estão inseridos, devendo

assim ser abordados da perspectiva do ho-

mem total.15

Em Benjamin trata-se da mesma operação,

lidando também com um problema de co-

municação: tanto o inconsciente de que fala

é coletivo – inconsciente óptico da sociedade

contemporânea – quanto a atitude desconcen-

trada do examinador distraído não é expressão

apenas do comportamento individual, mas re-

veladora também das condições sociais de uma

época determinada. Desta maneira é possível

perceber a aproximação estabelecida por Wal-

ter Benjamin entre crítica de arte e psicanálise

como similar à que Mauss propôs entre esta e

a etnologia: assim como Benjamin percebe no

cinema, enquanto obra tecnicamente repro-

dutível, uma linguagem capaz de dar acesso

ao inconsciente óptico da sociedade moderna,

Mauss vê nas técnicas do corpo uma lingua-

gem que permite acompanhar a atividade do

inconsciente.

Antes de passarmos às considerações fi nais,

há ainda uma distância entre as idéias de Mauss

e Benjamin que precisa ser superada aqui: pois

se o primeiro trata de uma tecnologia sem ins-

trumentos, o outro está falando de uma tecno-

logia com instrumentos. Esta distância deve ser

percorrida, indicando os caminhos que ligam

os dois pontos.

É o próprio Mauss quem nos oferece o

termo mediador entre estas aparentemente di-

ferentes tecnologias. Pois se ele adverte que é

preciso não incorrer no erro de achar que só

há técnica onde há instrumento, cuidado que

o fez empreender toda a enumeração e descri-

ção daquela infi nidade de técnicas corporais,

isso não signifi ca que dê pouca importância às

técnicas onde há instrumentos. Pelo contrário,

15. Esta noção foi discutida por Mauss dez anos antes,

em outra comunicação feita à mesma Sociedade de Psicologia e publicada no Journal de Psycologie et Pa-thologique: “Relações reais e práticas entre a psicologia

e a sociologia” ([1950] 2003b).

cadernos de campo • n. 13 • 2005

112 | -

e deixando de lado o recurso ao cinema para

explicar como o modo de caminhar de suas en-

fermeiras americanas migrou para o corpo das

moças nas ruas de Paris, Mauss chega a cunhar

um termo para designar tal arranjo: a formação

de pares mecânicos com o corpo, alvo de um

estudo dos movimentos mecânicos que, segun-

do ele, já vinha sendo empreendido por Reu-

laux e Farabeuf, demonstrando a relevância do

tema. Mesmo assim, é inconteste a precedên-

cia que dá para as primeiras, já que, nas suas

palavras, “antes das técnicas de instrumentos,

há o conjunto das técnicas do corpo” (Mauss

[1950] 2003a: 407).

Mesmo que Walter Benjamin esteja nos fa-

lando da mais emancipada de todas as técnicas,

a reprodução técnica, e mesmo tendo dito que

a fotografi a só revelou suas verdadeiras poten-

cialidades no momento que o rosto humano

deixou de fi gurar em seu centro, ele não ne-

garia a precedência do corpo, de suas técnicas.

Pelo contrário, pois todas as energias revolucio-

nárias contidas no cinema dissipariam no ar se

antes o espectador não fosse capaz de se colocar

em descontração.

Enquanto um habitus16 – pois é disto que se

trata! – a atitude desconcentrada não é só fru-

to da educação individual do espectador que se

distrai, mas também das condições sociais de

uma época, de uma sociedade cuja técnica é a

mais emancipada jamais vista e que, por isso

mesmo, se confronta com a sociedade na forma

de uma segunda natureza, tão elementar quan-

to a primeira, obrigando ao homem contem-

porâneo o aprendizado das novas percepções e

reações exigidas pelo aparelho técnico de nosso

tempo, tornando-se assim objeto das inervações

humanas. Assim, por mais autônoma que a téc-

nica se apresente, capaz de iludir quanto a sua

16. Vale lembrar que a noção de habitus é aqui entendida

na acepção de Marcel Mauss ([1950] 2003a), não le-

vando em conta os usos ulteriores que teve, como em

Pierre Bourdieu, por exemplo.

essência humana, como se operasse sem a agên-

cia dos homens, no fi m das contas é ao corpo

que ela novamente se dirige, exigindo uma nova

atitude, uma educação dos seus sentidos.

Em suma, e da mesma maneira que Ben-

jamin havia apontado para uma superação

dialética entre a sua posição e a de Adorno na

análise do fi lme sonoro, é possível dizer que o

enfoque na formação de pares mecânicos pode-

ria oferecer a mesma mediação entre a perspec-

tiva sem instrumentos de Mauss e a perspectiva

com instrumentos de Benjamin. E isto porque,

tanto não é possível tratar das técnicas do cor-

po sem fazer referência aos instrumentos, como

é impossível falar da reprodução técnica sem

lembrar do corpo. De qualquer maneira, nos

dois casos trata-se de

(...) ver técnicas e a obra da razão prática coleti-

va e individual, lá onde geralmente se vê apenas

a alma e suas faculdades de repetição (Mauss

[1950] 2003a: 404).

Etnografi a da música, disco e incons-ciente auditivo

Resta-nos agora a difícil tarefa de tentar

responder ao problema posto no início: seria

possível ver a ilusão auditiva produzida pelos

meios técnicos emancipados como parte inte-

grante do fazer musical contemporâneo, e as-

sim trazer os discos para o foco central de uma

etnografi a da música, vendo neles algo mais

que ferramentas para o teste de hipóteses? Tal-

vez mais que propriamente dar uma resposta,

gostaríamos de indicar como esta constelação

inusitada de autores pode ajudar na construção

de uma estratégia refl exiva alternativa para o

enfrentamento da questão.

Como vimos com Anthony Seeger (1992) e

John Blacking (1995), tal compatibilização se-

ria extremamente problemática, já que o efeito

ilusório dos meios técnicos impediria o acesso

cadernos de campo • n. 13 • 2005

: , |

ao fazer musical. Com o perdão da palavra, che-

ga a parecer ingênuo pensar que uma pessoa,

ao se distrair ouvindo um bom disco, acredite

mesmo que aqueles sons reproduzidos pelo seu

equipamento estejam sendo realizados sem a

agência humana. De qualquer maneira, há de

fato uma ilusão operando ali, já que o ouvinte

é confrontado com o produto da atividade hu-

mana, da sua própria atividade, mas de forma

emancipada, isto é, como produto alienado do

trabalho humano, como já diria Karl Marx.

Buscando então superar a difi culdade apon-

tada por Seeger e Blacking, Walter Benjamin

([1936] 1985d; [1955] 1992) nos oferece

como alternativa encarar os meios técnicos

atentando para a diferença entre linguagem do

equipamento de registro e linguagem do corpo

humano. Desta perspectiva o disco, enquanto

obra de arte tecnicamente reprodutível, não só

exige uma nova atitude – a descontração – de

seu ouvinte, como permite acompanhar um es-

paço sonoro que passa a ser preenchido incons-

cientemente – o inconsciente auditivo. Com

isto a ilusão auditiva, a auto-alienação humana

diante de um aparelho técnico emancipado,

torna-se produtiva, já que

Com a representação do homem pelo apare-

lho, a auto-alienação humana encontrou uma

aplicação altamente criadora (Benjamin [1936]

1985d: 180),

pois não só exige do homem contemporâ-

neo uma nova atitude crítica diante das obras

que reproduz, como também, nesta mudança,

revela as condições sociais de sua época. Ou

ainda, para usar os termos dos dois primeiros, a

ilusão auditiva produzida pelos meios técnicos

provoca alterações na concepção, na execução e

na apreciação das músicas que reproduz: mais

que iludir, demonstra uma outra maneira de

fazer e ouvir música utilizada pelos membros

de uma sociedade determinada.

Mas se saímos pelas portas dos fundos da

etnografi a da música para nos arriscar em certas

veredas tortuosas da teoria crítica, faltava ain-

da uma base empírica, se podemos dizer assim,

um lugar de onde se pudesse acompanhar o

adestramento da percepção exigido pela ilusão

auditiva característica da reprodução técnica da

música, e que nos trouxesse de volta aos cami-

nhos da antropologia. E é Marcel Mauss que

oferece pistas indicativas de um tal lugar.

Como procuramos salientar anteriormente,

a aparente contradição entre tecnologia sem

instrumentos em Mauss e tecnologia com ins-

trumentos em Benjamin encontraria sua possí-

vel superação dialética enfocando a formação

de pares mecânicos entre corpo e instrumento,

onde a atitude desconcentrada exigida pelos

meios técnicos emancipados é tomada como

produto de uma técnica da descontração, uma

atividade realizada em repouso, uma técnica do

repouso ativo, fruto de um empreendimento

que é ao mesmo tempo individual e social.

É verdade que o inesperado recurso a

Marcel Mauss não basta para garantir a base

empírica necessária para se levar a cabo uma

etnografi a da música que incorpore o disco,

não apenas como instrumento de trabalho,

mas também como objeto da observação. Tal

garantia só será dada à medida que avançarem

as etnografi as dos usos sociais e da produção

social dos discos, preenchendo aquela lacuna

etnomusicológica que procuramos evidenciar

anteriormente. Acompanhar como a ilusão

auditiva opera criativamente no fazer musical

contemporâneo, alterando a concepção, a exe-

cução e a apreciação da música tecnicamente

reprodutível, talvez seja uma boa maneira de,

quiçá, rastrear algumas daquelas “luas mortas,

ou pálidas, ou obscuras, no fi rmamento da ra-

zão” (Mauss [1950] 2003b: 343).

cadernos de campo • n. 13 • 2005

114 | -

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

resumo Este artigo trata da gênese do cinema

de Jean Rouch (1917-2004), dando foco ao fi lme

Les maîtres fous, de 1954. Com este, Rouch realiza a

transição do fi lme etnográfi co em seus moldes “clás-

sicos” para um questionamento mais sofi sticado so-

bre a linguagem. Ao fi lmar um ritual de possessão

na Costa do Ouro (hoje em dia, Gana), Rouch aca-

ba por promover uma refl exão sobre a relação entre

realidade e imaginário, que diz muito sobre outra

relação, aquela que se dá entre a práxis cinemato-

gráfi ca e a análise antropológica.

palavras-chave Jean Rouch, fi lme etnográ-

fi co, ritual, possessão.

Imagens perigosas: a possessão e a gênese do cinema de Jean Rouch*

* Uma primeira versão deste texto foi apresentado no

28ª encontro anual da ANPOCS (outubro de 2004)

na mesa “Jean Rouch, cinema, antropologia”, realiza-

da como uma homenagem a esse importante antro-

pólogo e cineasta, falecido em fevereiro de 2004, aos

84 anos, num acidente de carro ocorrido no Níger.

RENATO SZTUTMAN

Doutorando em Antropologia Social pela

FFLCH/USP e co-editor da revista Sexta-Feira: antropologia, artes e humanidades.

Artigo aceito para publicação em 03/10/05

abstract Th is article lies on the genesis of Jean

Rouch’s cinema (1917-2004). Its focus is on the fi lm Les maîtres fous, which fi rst appeared in 1954. With

this fi lm, Rouch abandons ethnographic fi lm in

its “classical” fashion towards a more sophisticated

investigation on language. While fi lming a posses-

sion ritual in the Golden Cost (nowadays, Ghana),

Rouch fi nds a refl ection on reality-imaginary rela-

tionship, which seems to be able to tell too much

about the relationship between cinematographic

praxis and anthropological analysis.

keywords Jean Rouch, ethnographic fi lm,

ritual, possession.

Agradeço a Paulo Menezes, coordenador, pelo con-

vite gentil e pela oportunidade que me propiciou de

refl etir, junto a pesquisadores da área de antropologia

visual, sobre a obra de Rouch. Agradeço também a

Sophie Abiven e Stelio Marras, que discutiram comi-

go algumas das questões aqui expostas.

Ao imaginário se chega quando se derrapa.Jean Rouch

Accra, Paris, 1954

Paris. 1954. Sala de projeção do Museu do

Homem. Jean Rouch exibe pela primeira vez o

curta-metragem Les Maîtres Fous, hoje reconhe-

cido como marco na história do fi lme documen-

tário e etnográfi co, o que se deve à utilização de

uma nova linguagem cinematográfi ca para re-

tratar um ritual africano de possessão, realizado

num contexto colonial e urbano. Estão presen-

tes na platéia africanistas como Marcel Griaule,

Luc de Heusch e Germaine Dieterlen, além de

alguns alunos, muitos deles de origem africana.

As luzes se apagam. A cortina vermelha se abre.

A projeção começa.

Na tela, a imagem estática de uma oferenda

de comida. De fundo, a música africana mis-

tura-se a ruídos urbanos. Um texto nos explica

que o fi lme versará sobre um episódio da vida

cadernos de campo n. 13: 115-124, 2005

116 |

dos Hauka, membros de uma certa “seita” reli-

giosa que incorporam “novos deuses”. O texto

adverte ainda que as imagens fortes que segui-

rão foram fi lmadas a pedido dos sacerdotes e

que nenhuma delas é proibida ou secreta, sen-

do assim abertas a todos que estiverem dispos-

tos a assistir ao “jogo violento que nada mais é

senão o refl exo de nossa civilização”.

Um corte abrupto nos leva a uma estação de

trem e, logo depois, ao cenário urbano. Rouch

conta-nos, em voz off (como o fará ao longo de

todo o fi lme), que estamos numa certa cidade

da África Ocidental – Accra, capital da então

Costa do Ouro, colônia britânica, hoje Gana.

Vemos homens trabalhar – são todos migran-

tes que vêm de diferentes partes. Doqueiros,

estivadores, comerciantes, artesãos, faxineiros,

mineiros, entre tantos outros compõem essa

“Babilônia Negra”. A sobreposição de diferen-

tes planos indica a convivência de sons, cores e

religiões. Em um bar, denominado Califórnia,

ouvimos o som do calipso. De um cortejo ioru-

bá passamos a uma manifestação de prostitutas,

destas às irmãzinhas de Jesus que “cantam nas

ruas a sua fé” e, por fi m, a uma fanfarra militar.

Chegamos ao mercado de sal, na periferia

de Accra, onde se encontram os Hauka. Rouch

explica que domingo é o dia em que eles se re-

únem para celebrar os “novos deuses” e, nesse

momento, oferece fl ashes de rostos em transe,

antecipando a matéria do fi lme. São rostos des-

fi gurados que se confundem na escuridão. Na

seqüência seguinte, já é domingo. Logo cedo,

os Hauka deixam a cidade em direção ao sítio,

onde será realizado o ritual. Quem guia todos

é Mountyeba, o “sacerdote” que, como os de-

mais, é um migrante vindo do Níger.

No sítio, o velho casebre é apresentado como

“palácio do governador” e lá encontramos um

altar com o ícone do governador britânico. O

ritual começa então com a apresentação de um

noviço, Gherba, que tem crises intensas em fren-

te à câmera – todos sabem que ele está possuído

por um espírito Hauka. Em seguida, têm início

as confi ssões públicas. Um homem diz que teve

relações sexuais com a esposa do amigo e há dois

meses está impotente. Outro diz que colocou

em dúvida a existência dos espíritos Hauka. Um

apito dá o sinal de ordem e os punidos separam-

se dos demais, fi cando de fora do pátio, vigiado

por sentinelas. Uma galinha é sacrifi cada e seu

sangue é esparramado no altar.

Sobre a estátua do governador, vemos uma

mensagem telegráfi ca e um cartaz do fi lme “A

marca do Zorro”. Já passa das dez da manhã e

um violinista começa a tocar as árias Hauka. O

sacerdote dorme. Alguém traz um cão, que deve-

rá ser sacrifi cado e comido. Rouch explica que o

sentido deste ato está em romper um tabu, o que

os permite mostrar – para os africanos e para os

europeus – que eles são mais fortes que os ou-

tros homens. Todos se põem a marchar em tor-

no do local onde será realizado o sacrifício – eles

portam faixas vermelhas e fuzis de madeira. Seu

comportamento imita a disciplina militar euro-

péia. A dança principia, puxada pelo sacerdote.

A câmera procura acompanhar o movimento

efusivo dos participantes. De repente, a posses-

são começa. Acompanhamos de perto as reações

corporais de um homem. A tremedeira se inicia

pelo pé esquerdo, passa ao direito, invadindo as

mãos, os braços, os ombros e, por fi m, a cabeça.

Esse homem, reconhecido como cabo de guarda,

levanta-se, cumprimenta a todos e pede fogo para

se queimar – ele precisa mostrar que “já não é um

homem, mas um Hauka”, comenta Rouch.

Aos poucos, todo o panteão de ofi ciais mili-

tares desce ao pátio. Vêm o capitão, o condutor

da locomotiva, Madame Locotereau, o tenen-

te, o governador e Madame Salme. A câmera,

fortemente subjetiva, busca acompanhar os

movimentos aparentemente desgovernados dos

personagens em transe, alternando entre planos

de conjunto, que focalizam a dança e a algazarra,

e closes em diferentes expressões faciais, tempe-

radas pela baba branca que escorre das bocas.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

: |

De súbito, o tenente aproxima-se da está-

tua do governador e, como num ato sacrifi cial,

quebra sobre ela um ovo de galinha. No plano

seguinte, vamos parar no desfi le do exército

britânico com suas cores gritantes. Rouch ex-

plica que a função simbólica do ovo pode ser

buscada naquelas imagens e, no plano seguin-

te, focaliza as penas amarelas e brancas do ca-

pacete do governador em carne e osso. O que

víamos como imitação agora é realidade: os

militares, de uniforme vermelho, realizam uma

parada em frente à Assembléia de Accra. Há

um público imenso que assiste ao espetáculo e,

lembra-nos Rouch, haverá ali certamente um

Hauka que veio buscar seu modelo.

Um novo corte nos devolve ao ritual. A pos-

sessão continua. O governador convoca uma as-

sembléia para decidir se o cão será comido cru

ou cozido. Decide-se cozinhá-lo. (Enquanto

isso, o noviço chega possuído pelo “secretário

geral”). Morto, o cão é feito em pedaços, e os

homens, inquietos, fartam-se com o seu san-

gue. Pronto o cozido, os melhores pedaços são

disputados. As imagens são de causar náuseas.

Com o cair da noite, o ritual termina a não ser

para o motorista da locomotiva que se põe a

discursar. Momentos depois, todos deixam o

sítio. Por um instante, sob a escuridão, vemos

os vestígios do rito.

Na manhã seguinte, Rouch nos traz de volta

ao mercado de sal, onde reencontramos os per-

sonagens da véspera – todos sorridentes, sem

qualquer aparência de ressaca. Vemos ali uma

nova assembléia, não para decidir a morte de

um cão, mas para jogar cartas. Rouch ajuda-nos

a reconhecer os participantes, valendo-se de fl a-

shes dos rostos desfi gurados da véspera. Madame

Locotereau é, na verdade, um menino efemina-

do que trabalha como vendedor e usa muita

vaselina no cabelo. O cabo de guarda é cami-

nhoneiro. O general é só um soldado. Madame

Salme é Magasia, uma prostituta. O governador,

o condutor de locomotiva e o secretário geral são

operários da Water Rocks, empresa de abasteci-

mento de água. Por ironia, eles trabalham numa

obra localizada em frente ao hospital psiquiá-

trico municipal. Jean Rouch fi xa-se, então, no

sorriso ingênuo de Gherba, o noviço que foi o

secretário geral e agora tem a cabeça raspada.

E, sobre essa imagem, o fi lme fi nda com uma

indagação do próprio diretor: “Provavelmente,

esses africanos conhecem certos remédios que os

permitem não serem anormais, mas justamente

se integrarem ao meio em que vivem. E estes re-

médios ainda nos são desconhecidos”.

As luzes se acendem na sala de projeção do

Museu do Homem. A platéia está atônita depois

de assistir aos apenas vinte e sete minutos do

fi lme. Alguns africanos presentes declaram que

as imagens vistas são uma afronta à sua digni-

dade, que elas apresentam os nativos como sel-

vagens. Marcel Griaule pede, então, que Rouch

destrua o fi lme: aquelas imagens não poderiam

ser veiculadas, visto que eram demasiadamen-

te perigosas. Elas jamais poderiam ser vistas por

não-iniciados, que não partilhassem aquele uni-

verso. Tampouco poderiam ser exibidas a inicia-

dos, que, ao vê-las, entrariam em transe.

Uma história, contada por Rouch, é bas-

tante curiosa para falar do perigo dos espíritos

Hauka e de suas imagens:

Entre a minha equipe estava um jovem chama-

do Tallou que depois viria a atuar em Cocori-co Monsieur Poulet (1975). Ele fi cou chocado:

“Tudo isso é falso. Falso!”. E Gherba disse a

ele: “Tallou, tome cuidado. Você não deveria

dizer isso, pois os Hauka podem se vingar”.

Dito e feito. Três semanas depois, Tallou foi

possuído. Foi um transe selvagem, que causou

muito problema, pois ele foi possuído no meio

de Accra e começou a agredir os seus amigos.

Encontramos-no passando a noite num cemi-

tério fora da cidade, e eu o levei a Mountyeba,

o sacerdote, que disse: “Sim, ele está possuído,

mas é preciso esperar quem sabe um ano para

cadernos de campo • n. 13 • 2005

118 |

que ele seja fi nalmente iniciado”. E disse tam-

bém (mas só para mim): “Você é reponsável,

pois foi você quem o trouxe aqui. O melhor

a fazer é levá-lo de volta à sua aldeia natal”.

O sacerdote me deu um pouco de perfume e

outras coisas mais e me explicou como aquietar

Tallou se ele voltasse a ter uma crise. Então eu

levei Tallou ao meu motorista, Lam, que, aliás,

também atuou em meus fi lmes. Eles voltaram

ao Níger de trem e caminhão, e durante a via-

gem ele foi possuído duas ou três vezes. Lam

teve de o acalmar passando perfume em sua ca-

beça. Isso foi dois anos antes de sua iniciação.

Um dos últimos Hauka foi um general francês

que comandou o exército durante a guerra da

Indochina. Ele se chamava General Marseilles,

pois certas tropas africanas que partiam à Indo-

china paravam em Marselha, França. Tallou foi

possuído por este general, o último dos Hauka

(Rouch, Marshall & Adams, 1978: 1010; mi-

nha tradução).

Durante o debate, Luc De Heusch é o úni-

co a defender o fi lme de Rouch, apontando ali

um documento de grande importância para a

antropologia.

Antecedentes e ecos

Para além do Museu do Homem, Les Maîtres Fous não teve melhor sorte. Foi rechaçado pelas

autoridades coloniais britânicas, que acusaram o

autor de desrespeito ao Exército e à rainha. Ten-

do em vista todas as objeções, Rouch optou por

restringir a circulação do fi lme, exibindo-o ape-

nas em um circuito alternativo de cineclubes.

Com todos esses pesares – e mesmo por

causa deles – Les Maîtres Fous tornou-se um

clássico. Inspirou rapidamente campos artísti-

cos, como o cinema de fi cção e o teatro. Clau-

de Chabrol foi logo procurar Rouch para saber,

afi nal, como ele tinha adquirido tamanha téc-

nica na direção de “atores”. (O cineasta não

havia acreditado que aquilo pudesse ser um ri-

tual). Jean Genet, de sua parte, inspirou-se na

possessão Hauka para escrever Os Negros, peça

em que um grupo de escravos se rebela contra

seus mestres. E Peter Brook usou as imagens

para treinar os atores de Marat/Sade.

De modo curioso, Les Maîtres Fous atraía, so-

bretudo, pelo seu lado dramático. Como fi lme

etnográfi co, no entanto, foi considerado, por

pares como o próprio Griaule, como incomple-to, por ser breve demais e não contextualizar na

medida necessária o ritual apresentado, e perigo-so, por não medir o efeito que aquelas imagens

poderiam ter para a audiência, africana e euro-

péia (Stoller 1994). Que seriam, afi nal, aqueles

homens negros ditos Hauka, que imitavam per-

sonagens coloniais e eram possuídos pelos seus

espíritos? Que pensar de uma cena escatológica

como a do sacrifício do cão, em que se cogitou

a possibilidade de comer a carne crua? Acusa-

va-se o fi lme de Jean Rouch de endossar justa-

mente o que ele pretendia combater, ou seja, o

racismo, a idéia de que a subordinação poderia

ser explicada pelo caráter “selvagem” (portanto,

“inferior”) dos negros, que agiam na tela como

doentes mentais, incapazes de separar a realida-

de vivida da imaginação.

Apesar da recepção receosa por parte dos

antropólogos, Les Maîtres Fous não pode ser

dissociado do processo de pesquisa iniciado por

Rouch em meados dos anos 1940 no que viria a

ser a República do Níger, e nesse ponto recobra

um lugar importante na história da antropologia

e do cinema. Rouch formou-se em engenharia ci-

vil e se tornou supervisor da construção de estra-

das na colônia francesa ali estabelecida. Foi nesse

cenário que conheceu Damouré Zika, que se

tornaria um grande amigo e parceiro. Damouré

trabalhou como técnico de som em fi lmes como

o próprio Les Maîtres Fous, e protagonizou outros

fi lmes como Jaguar (1967) e Petit à Petit (1969).

Também ali Rouch presenciou os primeiros ri-

tuais de possessão, que o conduziram a refl etir

cadernos de campo • n. 13 • 2005

: |

mais sistematicamente sobre aspectos daquelas

religiões e, assim, reavivar os estudos de etnologia

realizados quando era ainda um aluno de gradu-

ação. Com apoio de Griaule, Rouch passou a se

interessar pela coleta de dados e pela religião dos

Songhay – povo agricultor da savana – antes da

presença islâmica, o que incluía o interesse por

práticas como feitiçaria, sacrifício e possessão.

Rouch acompanhou, durante 1946 e 1947, uma

expedição ao longo do rio Níger e fi lmou, en-

tre outras coisas, uma caçada de hipopótamos.

Como conta Paul Stoller (2005), foi devido a

um tripé quebrado que Rouch teve de passar a

usar a câmera na mão. Por acidente, ele cunhava

um método muito particular de fi lmar. Essa seria

a sua marca desde o primeiro fi lme, Au pays des mages noirs (1947), exibido como complemento

de Stromboli (1949), longa-metragem do diretor

italiano Roberto Rosselini, que contava com a

presença da atriz Ingrid Bergman no elenco.

Em 1947, já incluído no Centre National

de la Recherche Scientifi que (CNRS), Rouch

partia como doutorando ao Níger e ao Mali

para colher histórias sobre os Songhay do pe-

ríodo pré-islâmico. Ele encontrava nos rituais

realizados por esse povo a via de acesso mais

efi caz para a revelação dessa memória coletiva.

Em Les magiciens de Wanzerbé (1948), ele apre-

sentava um retrato da vida social em uma aldeia

songhay famosa pelos seus feiticeiros. Por meio

de um longo plano-seqüência, documentava

um ato por assim dizer exótico para o espec-

tador ocidental: o feiticeiro-dançarino cuspia

um objeto de metal que estaria alojado em seu

estômago. Les Fils de l’eau, longa-metragem

de 1953, reunia imagens, rodadas no Níger e

no Mali, de diferentes momentos rituais, tais

a circuncisão dos meninos songhay, a caça ao

hipopótamo no rio Níger e um rito funerário

dogon. Em 1952, Rouch defendia na Sorbonne

a sua tese de doutorado, A religião e a magia en-tre os Songhay, sob orientação de Marcel Griau-

le. A partir do mesmo ano, iniciava uma nova

pesquisa, já inseparável do cinema e desta vez

não mais entre grupos “tribalizados”, mas sobre

os migrantes que vinham do Níger – sobretudo

Songhay – à Costa do Ouro. Boa parte desses

migrantes integrava as práticas Hauka, que não

eram assim tão inovadoras como se pode pensar.

Incorporava-se aos rituais de possessão tradicio-

nais “novos deuses”, justamente os espíritos de

administradores coloniais. A “seita”, como foi

logo taxada pelo governo colonial francês, teria

emergido por volta de 1927, e seus membros

teriam sido expulsos do Níger por atemorizar as

autoridades públicas, o que evidencia o enorme

impacto – sobretudo político – que tiveram.

Os Hauka revisitados

As imagens dos corpos possuídos por di-

vindades coloniais pareciam sintetizar de

modo notável a experiência de povos como os

Songhay em cidades algo cosmopolitas como

Accra. E, com efeito, elas atuaram na fundação

do cinema de Jean Rouch. Mas, como aten-

tava Griaule, estas eram imagens perigosas e

descontextualizadas (Stoller 1994).

Três anos após o lançamento de Les Maîtres Fous, em 1957, a Costa do Ouro tornava-se in-

dependente. A partir de então, os Hauka que lá

viviam retornavam ao interior do Níger, recu-

perando o estilo de vida aldeão. Seu panteão,

que confi gurava uma espécie de prática “fora da

lei”, era aos poucos assimilado pelos sacerdotes

tradicionais. Intrigado pelas imagens de Rouch,

Paul Stoller, antropólogo norte-americano, vol-

tou aos Songhay do Níger na década de 1980,

portanto no período pós-colonial. Ao contrário

do que previu Rouch, Stoller (1989 e 1995) sus-

tenta que a religião dos Hauka não cessou com o

fi m da colonização, mas transformou-se no tem-

po e acarretou diferentes arranjos políticos. Bas-

ta aqui salientar que, com a independência do

Níger, muitos Hauka tornaram-se membros do

Supremo Conselho Militar, um deles chegando

cadernos de campo • n. 13 • 2005

120 |

a ser eleito como presidente da República. Nota-

se também que, nesse novo período, os Hauka

foram responsáveis pela legitimação de vários

atos de violência política. Segundo Stoller, que

perseguiu as metamorfoses dos Hauka na segun-

da metade do século XX, esses rituais de pos-

sessão não eram simplesmente um modo para

resistir à colonização, mas sobretudo para cons-

tituir uma memória do grupo e, assim, habitar

o tempo atual. E isso só era possível mediante

um trabalho de “inscrição no corpo”. O autor

lembra também que, entre os Songhay, esse tipo

de memória “incorporada” (embodied) contrasta

com dois outros: uma tradição escrita, herdada

do Islã, e uma tradição oral-épica, concentrada

na fi gura dos griots, contadores de histórias e

guardiões da tradição oral.

Em linhas gerais, o argumento de Stoller

reside na idéia de que os rituais de possessão

Hauka imitam o homem branco e sua organi-

zação militar para domesticá-los, controlá-los.

Na esteira de Michael Taussig (1993), Stoller

(1995) pensa o “poder mimético” embutido

nesses atos de incorporação. Povos como os Son-

ghay teriam, assim, nos rituais de possessão uma

espécie de máquina de processamento dos epi-

sódios de contato com a alteridade, que remete

tanto a tempos imemoriais – o tempo do mito

– como a tempos datados – a conquista muçul-

mana, a incorporação de outros grupos étnicos

etc. Podemos concluir, com Stoller e Taussig,

que a possessão entre esses povos é um ato a um

só tempo cognitivo, histórico e político, e isso

signifi ca que esta maneira de habitar no mundo

– de existir – passa necessariamente pelo simbó-

lico ou, para usar um termo bastante frisado por

Rouch, pelo imaginário, pela imaginação.

O fato de que os Hauka incorporavam ele-

mentos coloniais às suas práticas correntes para

poder, enfi m, domesticá-los ou controlá-los se-

gundo seus próprios termos deve explicar, por

exemplo, a permissão dos sacerdotes para fi lmar

o ritual. Rouch lembra, aliás, que Les Maîtres

Fous foi realizado a pedido dos próprios Hauka.

“Minha hipótese é que eles usariam a câmera no

culto da mesma forma que usaram uma arma

de madeira” (Rouch, Marshall & Adams 1978:

1007). O ritual se apropria, assim, de mais um

elemento ocidental, que não é, diga-se de passa-

gem, um elemento qualquer, mas sim dotado de

grande valor a um só tempo simbólico e tecno-

lógico, dado pela capacidade de reproduzir ima-

gens em movimento e veiculá-las a um grande

público. O cinema era, na época em que Rouch

fi lmava em Accra, um dos signos mais fortes da

modernidade: apropriar-se dele era claramente

um modo de exibir controle sobre a situação e,

principalmente, de tornar visível uma situação

que permanecia invisível. Máquina de sonhos,

o cinema poderia materializar, como na posses-

são, aspectos invisíveis do cosmos, criando um

novo contexto de interação. Como sugere

Michael Taussig, que volta a Les Maîtres Fous:

O fi lme toma de empréstimo a prática mágica da

mímese no próprio momento da fi lmagem. O

primitivismo no modernismo permite-se fl orescer.

Nesse mundo colonial onde a câmera encontra-se

com esses possessos por divindades, podemos real-

mente apontar o renascimento ocidental da facul-

dade mimética por meio da maquinaria mimética

da modernidade (1993: 242; minha tradução).

Se as imagens de Les Maîtres Fous eram,

como acusou Griaule, perigosas, isso ocorria

sobretudo porque elas eram capazes de am-

plifi car de maneira descontrolada (e aberta a

diferentes manipulações) os cultos de posses-

são e, por isso mesmo, deveriam ser veiculadas

com cautela. Elas eram poderosas (no sentido

de Taussig) e poderiam ser usadas não apenas

para fi ns racistas, por parte dos colonizadores,

mas também pelos próprios sacerdotes Hauka,

que desejavam cooptar novos adeptos, o que

poderia promover um crescimento desmedido

do movimento e causar grande represália por

cadernos de campo • n. 13 • 2005

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parte da administração colonial. De fato, como

já salientado, Les Maîtres Fous teve circulação

restrita durante a década de 1950, atendo-se a

um público seleto de intelectuais. Quando da

descolonização, no entanto, Rouch pôde voltar

a algumas das aldeias songhay, no Níger, e ali

exibir o fi lme. Nesse novo momento, os espí-

ritos Hauka já estavam em grande parte incor-

porados às práticas tradicionais e ao panteão

de divindades, o que retirava de seus cultos o

caráter propriamente contestatório.

O dinamismo das tradições songhay, nota-

do por Stoller, pode ser confi rmado em um co-

mentário de Rouch a Marshall & Adams (1978)

sobre a incorporação, na fase pós-colonial, de

uma nova classe de divindades. No início dos

anos 1970, quando os espíritos Hauka pare-

ciam ter sido aceitos pela maioria dos sacerdotes

songhay, apareciam os assim chamados espíritos

Sasale, “subversivos”, porém de modo distinto

ao dos Hauka. Espíritos de cantores, prostitu-

tas, playboys etc., os Sasale apoderavam-se dos

corpos de meninas e meninos fazendo-os repro-

duzir gestos eróticos ou obscenos. Essa “nova

religião” – se assim for possível chamar toda

forma incorporação de novas divindades num

panteão cuja marca é justamente essa abertura

ao evento – foi, conta Rouch, revestida de um

signifi cado contestatório e novamente reprimi-

da pelo governo da República do Níger.

Esta nova religião está começando do mesmo

jeito: ele é absolutamente underground, pois o

governo é contra o sexo. Eu comecei um fi lme

sobre isso, mas eles me pediram para não mos-

trá-lo, pois (...) todas as danças falavam sobre

sexo: “Olhem só o meu clitóris”, “Ah, como

são maravilhosos os seus testículos”, e daí por

diante. Era uma coisa de louco. Como vocês

vêem, isso acontece a todo o momento. (…) As

pessoas não conseguem explicar o que elas estão

fazendo, elas só podem mostrar o que elas estão

pensando, e isso signifi ca que durante todos es-

ses anos, dos anos 1920 à independência, elas

estavam pensando no poder militar, adminis-

trativo e burocrático e, agora, elas começaram

a pensar mais no sexo e na morte. Os Hauka

introduziram a idéia de pessoas fora-da-lei, o

sentido exato da palavra (é importante ter mitos

de pessoas fora-da-lei). Mas agora que os Hauka

estão dentro da lei, tomaram o poder, pois eles

são os fi lhos de Dongo, é preciso que tivessem

aparecido os novos fora-da-lei, os Sasale. Mes-

mo na situação política atual, continua funcio-

nando (1978: 1013; minha tradução).

Hoje, as imagens de Rouch, que, como os

espíritos europeus (os Hauka), são parte cons-

titutiva da memória coletiva local, podem ser

exibidas em lugares públicos como o Centro

Cultural do Níger, sem causar maiores descon-

certos. Seu perigo foi, como se vê, domesticado

e, assim, deslocado para outros domínios. Com

efeito, passados cinqüenta anos, podemos vol-

tar a essas imagens e medir seu impacto para a

história do cinema e da antropologia.

Imagens possessas

Se as imagens de Les Maîtres Fous são mesmo

perigosas, isso ocorre sobretudo porque elas pare-

cem estabelecer com a possessão uma associação

por contigüidade. As imagens ambíguas criadas

no ritual Hauka – de colonizados que incorpo-

ram (espíritos de) colonizadores – não apenas

mimetizam elementos ocidentais, como querem

Taussig e Stoller, mas condensam e dão visibilida-

de às contradições vividas na experiência cotidia-

na da época.1 Ora, o fi lme etnográfi co inspira-se,

1. Carlo Severi (2000) vai além da idéia de mímese, presente

em Stoller e Taussig, para pensar fenômenos “híbridos”,

tais os cultos Hauka, como resultado de um processo de

interação ritual e de condensação de imagens. O ponto

não seria apenas imitar os colonizadores, mas sobretudo

inserir o seu universo, sobretudo imagético, dentro de

um contexto ritual já dado; no caso Hauka, a possessão.

cadernos de campo • n. 13 • 2005

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curiosamente, nessa mesma relação perigosa com

o real. Filmar o ritual é, nesse sentido, menos re-

tratá-lo que potencializá-lo, amplifi cá-lo. Eis que

entra em cena o “cine-transe”, expressão cunhada

por Jean Rouch para se referir à fi lmagem de Les Maîtres Fous: é preciso fi lmar como se estivesse

em transe para que o efeito do fi lme aproxime-

se do efeito do ritual (Rouch 1978). De certo

modo, se no ritual os africanos são cavalos de

espíritos ocidentais, na sala de cinema a relação

parece se inverter: tudo se passa como se nós nos

tornássemos os cavalos deles.

A câmera do cineasta que participa ativa-

mente da cena fi lmada possibilita para o pú-

blico ocidental uma experiência análoga à do

ritual africano. Les Maîtres Fous não é apenas

perigoso para eles, mas também para nós, es-

pectadores. Ainda que se trate de contextos

radicalmente diversos, um mesmo tipo de

impacto não pode ser negligenciado. É nessa

mesma direção que Paul Stoller (1994) associa

Les Maîtres Fous, e o cinema em geral criado

por Rouch, às experiências dos surrealistas e,

mais precisamente, ao “teatro da crueldade”

de Antonin Artaud. O espectador é posto em

confronto com dimensões reprimidas – dando

vazão ao inexprimível e ao invisível – e, assim,

o fi lme pode transformar a audiência psicolo-

gicamente e politicamente, promovendo uma

“descolonização do imaginário”.

Como vemos, a missão do cinema confun-

de-se, em Jean Rouch, com a missão do ritual,

no caso, de possessão. É assim que as fi lmagens

da possessão Hauka encontram-se na base de

seu “cinema verdade” – uma verdade que, no

entanto, não diz respeito a um realismo ingê-

nuo e que só pode ser revelada no discurso do

cinema. Como Rouch assume inúmeras vezes,

referindo-se sempre a Dziga Vertov, trata-se não

de uma verdade nua, mas uma verdade fílmica,

uma verdade do cinema. Não de uma verdade

visível, mas uma verdade que deve ser descorti-

nada, inacessível ao olho senão pela mediação

da câmera. A essa verdade se acede, vale ressal-

tar, pelo imaginário, pela imaginação.

Como o ritual, o cinema é uma espécie de

explicitação de uma porção que permanece

oculta e que só pode ser acionada na suspensão

do cotidiano.2 A sala escura, como a posses-

são, permite que nos transportemos para outro

mundo, o que signifi ca voltar e ver este mundo

já com outros olhos. Olhos de um recém-ini-

ciado, tais aqueles que compõem a última se-

qüência de Les Maîtres Fous.

Depois de Les Maîtres Fous

O ritual de possessão Hauka e suas imagens

perigosas podem ser tomados como fundadores do

cinema rouchiano. É deles que emerge a potência

provocadora e desafi adora dos fi lmes seguintes do

realizador. Na segunda metade da década de 1950,

as imagens aterrorizantes de Les Maîtres Fous davam

lugar a outras formas de acessar o mundo por meio

do imaginário e da imaginação, que passavam pela

utilização da fi cção e do psico-drama. O fi lme et-

nográfi co sofria, então, uma reforma decisiva, visto

que as fronteiras entre o fi ccional e o documentário

eram submetidas ao apuro.

Com Moi, un Noir (1958) e Jaguar (1967),

duas “etno-fi ccções”, Rouch fazia os fi lmados en-

cenarem as suas próprias vidas tendo como pal-

co cidades assaltadas pela ocidentalização, como

Abdijan (Costa do Marfi m) e Accra (Gana). Esses

fi lmes tratavam justamente dos sonhos de jovens

africanos migrantes, que “espremidos entre a tra-

dição e a automação, entre o islamismo e o álcool,

não renunciaram às suas crenças nem aos ídolos

modernos do boxe e do cinema” – tal o texto em

off de Jean Rouch para a abertura de Moi, un Noir. Em La Pyramide Humaine (1959) e Chro-nique d’un Été (1960), Rouch lançava mão de

2. Sobre a idéia – que me é bastante simpática – de que

objetivo da comunicação ritual é, sobretudo, tornar

visível, “dar a ver” relações invisíveis, ver Houseman

& Severi (1994).

cadernos de campo • n. 13 • 2005

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“psico-dramas sociais”: reunia pessoas de diversas

origens para discutir entre si e em frente à câmera,

temas como racismo, xenofobia e guerra. A pre-

sença do realizador aí não era jamais transparente

e os fi lmados falavam diretamente para a câme-

ra. Em Pyramide Humaine, por exemplo, Rouch

reunia estudantes brancos e negros que viviam em

Abdijan para discutir com eles o tema das relações

raciais. Ao suscitar novos contextos de interação

entre os jovens, o fi lme acabava por produzir situ-

ações, como o namoro entre um africano e uma

francesa – situação que não era exatamente “pen-

sável” naquela época tingida pelo colonialismo.

Nesses fi lmes, vemos com mais nitidez também o

projeto de uma “antropologia compartilhada” e o

delineamento de um compromisso ético com os

fi lmados. Ou seja, o fi lme etnográfi co tornava-se

um diálogo entre os nativos e o realizador, que

deveria retornar a eles as imagens produzidas.3

Com esses fi lmes, Rouch rompe com a impo-

sição de uma representação realista e com o ideal

de transparência da câmera. Moi, un Noir busca na

fi cção o gênero ideal para se referir à experiência

contraditória da modernidade e do cosmopolitis-

mo vividos pelos migrantes africanos. Lembremos,

contudo, que Les Maîtres Fous já antecipava esses

aspectos, agarrando um tema clássico da antropo-

logia: o ritual. Revelava como um certo grupo de

homens e mulheres conseguia viver a colonização

dentro de seus próprios termos; e estes, vale res-

saltar, passavam pela possessão, pela inscrição no

corpo de uma memória coletiva.

Se Les Maîtres Fous versa sobre a maneira

pela qual o ritual pode trabalhar um impacto

ou trauma causado pela colonização, ele resulta

em imagens não menos impactantes e traumá-

ticas para o espectador ocidental, impressio-

nado com aqueles atos que evocam, no seu

3. Para uma discussão um pouco mais aprofundada so-

bre a porosidade das fronteiras entre o documentário

e a fi cção no cinema de Jean Rouch e a produção, por

conseguinte, de uma “antropologia compartilhada”,

ver Sztutman (2004).

imaginário, a loucura e a selvageria. Les Maîtres Fous foi, na época de seu lançamento, vítima de

um mal-entendido, pois que a desordem que

apresentava era, com efeito, um modo de esta-

belecer uma certa ordem, de conferir sentido a

uma experiência marcada pela sobreposição de

mundos distintos e distantes. Como já havia su-

gerido diversas vezes Claude Lévi-Strauss, que

muitas vezes teorizou o que Rouch mostrou

(mesmo que jamais tenha havido interlocução

entre ambos), comparar as desordens psíqui-

cas, como a concebemos no Ocidente, àquelas

que parecem se apresentar, de maneira análoga,

nas narrativas míticas e nos rituais de diversos

povos ditos primitivos seria apenas possível e

prudente se compreendêssemos que aqueles

elementos de simbolização comumente toma-

dos por nós como patologia – como expressões

do sofrimento individual – podem emergir, em

outros lugares, como terapia – como modos de

conferir sentido ou mesmo inibir o sofrimento

a um só tempo individual e coletivo.4

A incorporação dos Hauka, uma espécie de

materialização das ambigüidades do cosmos e da

sociedade, era a maneira específi ca pela qual os

migrantes do Níger lidavam com o seu cotidiano,

4. Faço referência a textos como “A efi cácia simbólica”

(1976) e “Cosmopolitismo e esquizofrenia” (1986),

nos quais Lévi-Strauss compara, respectivamente, os

rituais xamânicos e a mitologia de dois grupos ame-

ríndios – os Cuna da América Central e os Chinook

da América do Norte – a domínios terapêuticos. Se

a tendência foi comparar o xamã ao esquizofrênico

e identifi car nos motivos míticos elementos relacio-

nados à esquizofrenia – tal o tema da clivagem inte-

rior e das confusões exteriores –, Lévi-Strauss propõe

uma inversão decisiva, comparando o trabalho do

xamanismo e da mitologia ao trabalho do psiquiatra.

O movimento por eles realizado seria, assim, inver-

so ao do delírio esquizofrênico, pois o que neste é

interiorizado subjetivamente pelo doente, torna-se

objetivamente espalhado entre diversos protagonistas

e repartido por diversos aspectos do cosmos. “Os ma-

teriais simbólicos são talvez os mesmos, mas o mito e

o delírio fazem deles usos opostos” (1986: 260).

cadernos de campo • n. 13 • 2005

124 |

invadido pela experiência da ocidentalização. Era

preciso dar aos colonizadores um lugar no panteão

de divindades para que, como as demais divinda-

des, eles pudessem ser domesticados, submetidos

ao jugo dos homens. Era preciso ser possuído por

essas novas divindades, confundir-se com elas,

condensar elementos nativos e estrangeiros, para

que fosse possível voltar ao cotidiano não mais

como sujeito cindido – aterrorizado pela tensão

entre mundos descontínuos – mas como traba-

lhador que, integrado ao movimento caótico da

cidade grande, jamais se esquece do compromisso

sagrado no domingo. Em linhas gerais, a mensa-

gem de Les Maîtres Fous consiste em dizer que para

ser “normal”, ou melhor, para suportar as contra-

dições do vivido e estabelecer um certo grau de

autonomia pessoal, era preciso experimentar uma

certa “loucura” e uma certa “selvageria”, obtidas

nessa entrega à imaginação, nessa interação com

imagens e espíritos, que condensavam elementos

da religião nativa e da situação colonial, criando

novas formas e, através delas, novos sentidos para

habitar o mundo.

Como o totemismo abordado por Lévi-

Strauss (1961), toda essa “selvageria”, que con-

tinua a chocar o olhar do espectador ocidental

(que teme se descobrir selvagem), talvez não este-

ja longe de nós, mas sim em nós. O ponto é que

ela é mobilizada de maneiras bastante opostas na

experiência de cá e na de lá. Com suas imagens

perigosas, que geram opiniões e efeitos adversos

e que os nativos temem extrapolar o domínio

da tela, Rouch pretendia, em Les Maîtres Fous, fazer o “mundo africano” – com seus símbolos,

ritos e mitos – afetar a nossa própria realidade.

O cinema rouchiano constrói-se, tal o argumen-

to deste pequeno ensaio, sob o signo do ritual

de possessão, que lhe oferece, sem abolir o pe-

rigo, um certo modo de mostrar e agir sobre o

mundo, passando pela proposição de um outro

mundo, prenhe de imagens ambíguas, entre a

humanidade e a divindade, entre o tradicional e

o moderno.

Com Rouch, o cinema deixa de ser mera ilu-

são para se converter numa práxis capaz de des-

cortinar uma “verdade muito particular”, jamais

dada na superfície visível das coisas, mas que deve

ser extraída, ou mesmo decretada, sob esforço da

imaginação. Tendo em vista esse notável projeto,

Les Maîtres Fous, inquietante tanto pelo seu tema

quanto pela sua linguagem, permanece eterniza-

do no panteão do cinema e da antropologia.

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

artes da vida

Vandalismo, Sujeira e Poluição Visual, defi -

nições logo levantadas ao se discutir o que seria

esta forma de expressão urbana que é vista por

quase toda a paisagem da cidade de São Paulo:

a pixação, escrita assim mesmo com “x”, con-

forme o uso feito pelos próprios pixadores. Fato

que poderia sinalizar apenas uma suposta igno-

rância das regras gramaticais, visto que a grafi a

correta da palavra seria pichação com “ch”, é

colocado pelos próprios pixadores como uma

maneira de diferenciar a sua prática da defi ni-

ção comum de pichação. Pois o que fazem não

é simplesmente pichar um nome, uma palavra

ou uma frase qualquer em um muro, mas sim

pixar a sua marca desenhada com letras estiliza-

das, contorcidas e com um formato anguloso.

As marcas que “lançam” nos muros, pré-

dios, viadutos e monumentos da cidade são

geralmente nomes de grupos de pixadores. Es-

tes nomes, no entanto, têm pouca importância

quando estão inseridos no contexto mais ge-

ral da pixação. Os pixadores não se importam

muito com o que signifi ca a denominação em-

pregada por determinado grupo, embora esta

siga muitas vezes um certo padrão no repertó-

rio que é utilizado para nomeá-los, tendo nas

idéias de sujeira, marginalidade, transgressão e

loucura, temas a que se referem constantemen-

te. Estes jovens, no entanto, dão grande valor

ao formato impresso às letras, às fi guras que são

desenhadas entre as letras e à estilização adota-

da para se escrever, ou inscrever, aquela pixação

na paisagem urbana. Não se pixa de qualquer

modo ou com qualquer letra, mas com um for-

mato pré-elaborado, com tipos de letras criadas

pelos próprios, demonstrando um padrão esté-

tico peculiar. Além disso, há um diálogo com

o espaço urbano, com o local onde esta marca

será “lançada”: é preciso que ela esteja em local

de grande destaque na cidade. Obter grande

visibilidade é um outro fator que torna uma

pixação ainda mais atraente para os pixadores.

Porém, a idéia de que há uma beleza nesta

escrita urbana, conforme outra denominação

dada às pixações pelos seus próprios autores,

não é compartilhada por grande parte dos ci-

dadãos paulistanos, senão por todos. A pixa-

ção é vista pela população e pelo poder público

como vandalismo, sujeira e poluição visual,

devido, em grande parte, ao desconhecimento

da mensagem que ali é transmitida e ao ato em

si que é considerado um ataque à propriedade

alheia. Por isso, a pixação e os pixadores são

vistos como um dos grandes vilões da cidade.

As marcas que eles deixam pelos muros afora

são constantemente apagadas e alguns chegam

a ser presos ou espancados pela polícia se pegos

em ação. Dessa maneira, eles, além de enfren-

tar o perigo de escalar edifícios e desafi ar a polí-

cia, têm de lidar com a efemeridade do suporte

em que inserem suas pixações, pois a qualquer

momento elas podem ser apagadas. Uma das

formas encontradas para solucionar essa ques-

tão é a troca das “folhinhas”, folhas de papel

em que eles inscrevem as marcas que deixam

na cidade. Os pixadores trocam estas folhinhas

entre si e as colecionam em pastas. Alguns têm

verdadeiros acervos de folhinhas em que fi xam

em um outro suporte suas inscrições tão mal-

vistas e efêmeras na cidade.

Escrita urbana: a pixação paulistana

ALEXANDRE BARBOSA PEREIRA

Mestre e doutorando em Antropologia Social

pela FFLCH/USP e Pesquisador do Núcleo de

Antropologia Urbana {NAU/USP).

cadernos de campo n. 13: 127-130, 2005

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entrevista

Antropólogo formado em Cambridge, Pe-

ter Fry fez sua primeira pesquisa de campo nos

anos 1960 entre os Zezuru da Rodésia do Sul

(atual Zimbábue), ligado à Universidade de

Londres e a sua associada na África, a University College of Rhodesia and Nyasaland. Defendido

seu doutorado, Fry veio para o Brasil em 1970,

onde ajudou a fundar a UNICAMP e se inte-

grou à vida acadêmica local, pesquisando no

país temas relacionados a relações raciais, ho-

mossexualidade e religião. Entre 1989 e 1993,

retornou à África como representante adjunto

da Fundação Ford e, de volta ao Brasil, pas-

sou a integrar o corpo docente da UFRJ, onde

permanece até hoje. Sua produção mais recen-

te concentra-se no campo das discussões sobre

sexualidade e na análise das conseqüências da

utilização de categorias como raça, diversida-

de e outras, correntes no métier antropológico,

nas políticas públicas para a população negra

implementadas nos últimos anos. Textos sobre

este assunto foram reunidos em A persistência da raça,1 livro que nos serviu de mote para a

realização desta entrevista realizada em 24 de

agosto de 2005, em Campinas, que discorre

sobre muitos pontos polêmicos e revela uma

profunda fi delidade do antropólogo a certos

pressupostos de nossa disciplina.

1. FRY, Peter. 2005. A persistência da raça: ensaios an-tropológicos sobre o Brasil e a África Austral. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira.

Entrevista com Peter Fry

DANIELA DO AMARAL ALFONSI

ÍRIS MORAIS ARAÚJO

LÍLIAN SALES

RACHEL RUA BAPTISTA

RAFAELA DE ANDRADE DEIAB

PROF. DR. JÚLIO ASSIS SIMÕES

CC: No início de A persistência da raça, o

senhor recupera sua formação profi ssional e ex-

põe uma tensão entre duas correntes teóricas

presente em seu primeiro trabalho de campo.

Ela seria entre a Escola de Cambridge, onde

estudou, e a de Manchester, presente na Uni-versity College of Rhodesia and Nyasaland, onde

foi pesquisar. O senhor poderia aprofundar as

questões levantadas por essa tensão e explicitar

em que pontos cada uma dessas escolas foram

importantes para sua formação?

PF: A antropologia que eu estudei durante a

graduação era absolutamente clássica. Meu orien-

tador era o Jack Goody e em Cambridge eram

todos africanistas, com exceção do Edmund

Leach. Ele representava nesse departamento o

início do estruturalismo; o restante dos profes-

sores era estrutural-funcionalista. Como ainda

não havia mestrado lá, fui, depois de me for-

mar, trabalhar em Londres. Jack Goody sugeriu

que eu fi zesse uma pesquisa de campo mesmo

sem nenhum treinamento, já que a graduação

era totalmente teórica. Sempre tive muita difi -

culdade de imaginar como seriam na realidade

aqueles conceitos que aprendíamos: linhagem

mínima, linhagem máxima etc.; nunca con-

segui visualizar nada disso. Concorri, então,

a uma bolsa e fui estudar na África, na anti-

ga Rodésia do Sul. Uma das razões pelas quais

concorri a uma vaga naquele departamento é

que Jack Goody disse que ele era muito bom.

cadernos de campo n. 13: 133-146, 2005

134 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

Naquela época, a Universidade de Londres es-

tabeleceu fi liais em vários lugares e um deles

era a Rodésia do Sul: era a derradeira tentativa

de assegurar o poderio branco naquela zona. A

Universidade era muito nova e bem planeja-

da e era o único lugar onde negros, mulatos e

brancos conviviam. O chefe de departamento

era o Clyde Mitchell, antigo colaborador de

Max Gluckman que, na época, era professor

em Manchester. Outra pessoa de muito des-

taque era o Jaap van Velsen, uma fi gura muito

interessante, holandês, membro da Resistência

na Segunda Guerra Mundial, aluno do Glu-

ckman que fez pesquisa em Niassalândia (atu-

al Malavi) entre os tonga. Mitchell e outros

alunos de Gluckman, ao invés de fazerem es-

tudos tradicionais, rurais, começaram a fazer

antropologia urbana, predominantemente nas

cidades de Zâmbia (antiga Rodésia do Norte).

A questão que guiava esse grupo não era tentar

destrinchar a lógica de sociedades tradicionais,

mas ver e analisar a situação urbana nascida e

caracterizada pela imigração da mão-de-obra

rural para as cidades. Na época, havia uma te-

oria muito parecida com as teorias de acultu-

ração daqui do Brasil, cuja idéia principal era

a de que as pessoas sairiam de suas sociedades

tradicionais e se aculturariam no processo de

imigração. O pessoal do Gluckman não ado-

tou essa teoria e isso em grande parte por causa

dos primeiros trabalhos dele na África do Sul.

No ensaio seminal “Análise de uma situação

social na Zululândia moderna”,2 do início da

década de 1940, ele desenvolve o conceito de

situação social. O argumento seria que a inter-

pretação das sociedades passa pela análise de

situações sociais concretas. No que diz respei-

to à mudança sociocultural, criticava-se a no-

2. GLUCKMAN, Max. [1940-1958]. “Análise de

uma situação social na Zululândia moderna”. In

FELDMAN-BIANCO, Bela (org.). Antropologia das sociedades contemporâneas: métodos. São Paulo:

Global, 1987.

ção de “encontro de culturas” (culture contact) para pensar no encontro de agentes em situ-

ações concretas. Evidentemente, eles agiriam

de acordo com suas tradições, mas também

de acordo com as suas avaliações sobre aquela

situação. Então, toda essa antropologia elimi-

nou do vocabulário as idéias de destribaliza-

ção, aculturação etc., e olhava para o indivíduo

como quase um manipulador, estrategista. Às

vezes, eu penso criticamente que esse indiví-

duo era visto como uma espécie de homo uni-

versal, um indivíduo universal e racional. Mas

eu penso isso agora, em retrospecto. Para a

época, era muito importante frisar justamente

esse aspecto racional e moderno para contra-

riar aquela posição que dizia que os africanos

não deveriam votar, não poderiam participar

por serem destituídos da rational choice. Ou

seja, essa perspectiva era adotada também por

razões políticas: a nossa preocupação era resga-

tar os negros africanos da pecha de tradição, de

obscurantismo etc. Assim, quando cheguei à

Rodésia do Sul, entrei em contato com o Jaap

van Velsen que, evidentemente, achou que eu

era um produto típico da classe média prote-

gida britânica que precisava de um banho de

realidade, e acusou o pessoal de Cambrigde de

não abrir os olhos para o que estava acontecen-

do no mundo. Ele me deu para ler o artigo de

Gluckman sobre a Zululândia e um outro tra-

balho do Mitchell chamado “A dança kalela”,3 que trata da relação das várias etnias entre si e a

relação delas com o poder branco nas fábricas e

nas minas de Zâmbia. De fato, o argumento do

Gluckman era que a antropologia tradicional era

demasiadamente formal: ela elegia modelos que

eram desenvolvidos pelos antropólogos, que em

3. MITCHELL, James Clyde. 1956. “Th e kalela dance:

Aspects of social relationships among urban Africans

in Northern Rhodesia”. Manchester: Manchester

University Press (Th e Rhodes-Livingstone Institute

Papers, 27). Disponível em: www.era.anthropology.

ac.uk/Kalela.

|

cadernos de campo • n. 13 • 2005

seguida traziam o seu material de campo apenas

para ilustrá-los. Para Gluckman, o material de

campo deveria ter primazia: sempre voltavam

a Malinowski, porque todos concordavam que

este antropólogo apresentava tantos dados que

era possível inclusive discordar de sua análise.

Então, a justifi cativa disso era que, se o antro-

pólogo apresentasse uma massa de dados e de-

pois a sua interpretação, evidentemente o leitor

teria liberdade de discordar e reinterpretar. Um

outro argumento, mais marxista, era de que

qualquer situação conteria dentro de si todas as

contradições da sociedade como um todo. Para

estudar a sociedade, então, estudam-se as situ-

ações. Mas também acho que tem mais uma

questão da qual eles não falavam, e quem me

alertou para isso foi o Carlos Vogt. Trata-se do

que ele chamou de truque de escrita: começa-se

com uma situação, o que é muito convenien-

te porque normalmente ela tem início, meio e

fi m; é linear. E a grande difi culdade da antro-

pologia, creio eu, é que como tudo se relaciona

a tudo, é muito difícil estabelecer prioridades,

sobretudo saber por onde começar a escrever.

A situação é um truque de escrita, porque ela

dá a oportunidade de apresentar ao leitor algo

que, de fato, é uma narrativa. Eu continuo a

defender esse partido teórico porque ainda

acredito nele. Nessa perspectiva, que tam-

bém é meio goff maneana, o ator é visto com

múltiplos papéis e não há tanta preocupação

com identidade, já que o ator assumiria suas

identidades de acordo com as situações – isso

é muito pós-moderno, avant la lettre, mesmo

que os pós-modernos não reconheçam. Era, as-

sim, uma atitude anti-culturalista, no sentido

de não atribuir nada à cultura reifi cada, mas so-

mente às relações sociais. Isso vinha, evidente-

mente, de uma herança da Antropologia Social Britânica, da idéia de que se olha para o siste-

ma de relações sociais na sua totalidade, e não

apenas para um conjunto de relações qualquer.

Tinha como herança a primazia do concreto,

que talvez seja criticável hoje em dia, mas que

é um bom ponto de partida, pelo menos. Além

disso, a observação participante foi exacerbada

ao extremo pela Escola de Manchester. Não se

tinha que fi car lá vestido de roupas coloniais

e com tenda de etnógrafo tipo Malinowski,

não... Tinha que realmente entrar em campo.

Eles acreditavam nessa possibilidade e insisti-

ram nela: cada vez que eu saía do meu campo

e voltava para a Universidade, recebia olhares

muito desconfi ados. Eu comprei essa idéia to-

talmente; durante dois anos e meio vivi bem

com os meus vizinhos, e isso era incomum, eu

acho. Ou seja, essa tensão entre perspectivas te-

óricas não era muito séria de fato, porque não

se negava a velha antropologia, mas se cobrava

uma maior atenção para o presente, para a mu-

dança e para a não-reifi cação da cultura.

CC: O senhor desenvolveu sua pesquisa no

período de descolonização da África. Em que

medida a observação participante se relaciona-

va a algum tipo de envolvimento político na

luta anti-colonialista?

PF: Eram coisas diferentes. A gente tinha, e

até hoje tem, uma atitude totalmente anti-ra-

cista e anti-raça. Evidentemente, as nossas sim-

patias estavam com o movimento de libertação.

Mas vejam bem: a atitude não era exatamente

de interferência. O Jaap van Velsen me pegou

pelo colarinho, me colocou contra a parede e

disse assim: “Você vai se simpatizar muito com

esses movimentos, mas você não vai fazer parte.

Você não é de lá, você não é negro, você não é

africano, você é um quase proto-intelectual an-

tropólogo. Se você quer infl uenciar a situação

você vai conversar com os seus pares, você vai

escrever para eles e esperar que aquilo que você

escreveu infl uencie desta forma nos resultados

políticos”. Foi um conselho que levei muito a

sério. Mais tarde percebi a ironia da situação:

meses depois eu vi o professor holandês em sua

136 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

sala recebendo uma liderança do movimento

estudantil e ensinando-lhe instruções de como

fazer política universitária. Mais tarde ainda,

fui descobrir que ele fazia parte de um movi-

mento de guerrilha urbana que, depois da in-

dependência unilateral liderada por Ian Smith

na Rodésia do Sul,4 importava granadas, pois

achavam que pequenas intervenções a bomba

seriam o estopim da revolução. Mas ele foi ex-

pulso do país antes da polícia descobrir o seu

papel. Com relação à política, existia o agravan-

te de haver dois partidos nacionalistas negros

que se degladiavam. O perigo para os negros

era tanto entre os negros quanto que entre os

brancos, o que convinha muito ao poder bran-

co, evidentemente, porque os negros se destru-

íam. A minha pesquisa de campo teve que ser

cuidadosamente negociada com as autoridades

governamentais, os velhos chefes, e as novas

lideranças políticas. Era uma situação muito

difícil de negociar porque era bastante inédi-

to um jovem antropólogo branco viver com os

africanos nas suas aldeias. Era necessária a au-

torização do poder público e o Comissário do

Distrito me olhava com bastante desconfi ança,

todo mundo me olhava com desconfi ança. Po-

rém, eu não podia me queixar, ninguém tinha

me convidado, estava lá por minha vontade

apenas. Mas que foi uma situação muito difícil

foi, e muito difícil de fazer pesquisa também.

CC: Como a sua pesquisa se desenvolveu

então?

PF: A proposta original era fazer um es-

tudo sobre migração de mão-de-obra: minha

idéia era passar um ano nesta aldeia e depois

4. Mesmo sem o reconhecimento da Grã-Bretanha, em

1965 Ian Smith tornou-se primeiro ministro da Ro-

désia do Sul, garantindo o poderio branco na região

através de um regime de apartheid, que perdurou até

1980. Somente nessa data que este país foi reconheci-

do como independente.

um ano na cidade, bem na linha da Escola de

Manchester. Mas não consegui as informações

necessárias com os trabalhadores, sobre renda,

por exemplo, porque eles eram muito descon-

fi ados. Ao mesmo tempo, apesar de o Jaap

van Velsen me instruir a não entrar no tema

da religião, este assunto foi fi cando para mim

cada vez mais fascinante. Van Velsen tinha ra-

zão porque, de fato, quase todo mundo queria

estudar religião entre os shona, já que era um

sistema bastante complexo. Além disso, havia

uma fascinação por possessão pelos espíritos,

pois na Inglaterra não existia esse tipo de cren-

ça. Mas, para fazer a pesquisa, contratei um

professor primário como intérprete e guia. Eu

trabalhava em sua aldeia e morava na casa de

sua irmã. Lá pelas tantas, ele começou a de-

senvolver uma série de alergias em relação a

comidas e bebidas. Começou com a cerveja

local, produzida pelas pessoas de lá. Esses en-

contros com cerveja são os mais ideais para a

pesquisa, porque está todo mundo presente

e a conversa fl ui. Então, o que eu mais fazia

era fi car tomando cerveja e ouvindo conver-

sas. Meu intérprete começou a não suportar

sequer seu cheiro. Eu fi cava com algumas pes-

soas tomando uma cerveja e ele fi cava longe de

mim. Depois, ele começou a não poder comer

mais a comida básica de lá, que é uma espécie

de polenta de milho. Ele só podia comer um

outro grão nativo chamado rapoko (painço,

em português), que produz muito pouco e é

muito trabalhoso para moer. Então, começa-

mos uma via-crucis para tentar descobrir as

razões disso tudo, e o que foi revelado é que

ele estaria sendo escolhido pelos espíritos para

ser um médium. Nesse processo, eu fui vendo

que várias pessoas da geração dele, de vinte e

poucos anos, estavam seguindo exatamente o

mesmo caminho. Já tinham saído os primeiros

resultados da pesquisa do grande historiador

Terence Ranger (o livro maravilhoso dele que

se chama Revolt in Southern Rhodesia 1896-7:

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

A Study in African Resistance,5 saiu logo em se-

guida) que é sobre a rebelião dos negros con-

tra os brancos em 1896. Os brancos do Cecil

Rhodes6 chegaram em 1890, e em 1896, apenas

seis anos depois, houve uma revolta coordenada

em vários lugares do país. Ninguém conseguiu

entender tal articulação porque não havia go-

vernos centralizados no norte. Descobriram, no

fi nal, que foram os médiuns que organizaram a

rebelião, porque eles mantinham uma rede de

comunicação que perpassava as fronteiras po-

líticas territoriais. Eu pensei: “É isso que está

acontecendo aqui. Estou vendo o repeteco des-

sa mesma situação”. Ficava cada vez mais claro

que aqueles jovens estavam em um processo de

rejeição da religião cristã; para eles, Jesus Cristo

era apenas um profeta ou um antepassado dos

brancos, não dos negros, e que eles tinham de

voltar para os seus antepassados, e não para os

antepassados dos brancos. Essa idéia estava in-

timamente ligada à mensagem política, uma es-

pécie de nacionalismo cultural. Quando voltei

para a Universidade, disse a Van Velsen: “Isso

está acontecendo na minha frente e não posso

evitar de escrever sobre isso”. Assim, escrevi so-

bre religião em um contexto contemporâneo de

luta política. Depois saiu um segundo livro de

outro antropólogo, David Lan,7 confi rmando

tudo que eu suspeitava: de fato, essa rede de co-

municação entre os médiuns era utilizada para

coordenar a guerrilha que eclodiu no norte do

país depois da minha volta para a Inglaterra.

CC: O senhor fala de sua experiência na

África e como ela infl uenciou, em um primeiro

5. RANGER, Terence O. 1967. Revolt in Southern Rho-desia 1896-7: A Study in African Resistance. London:

Heinemann.

6. Político e empresário, Rhodes é considerado o funda-

dor da Rodésia.

7. LAN, David. 1985. Guns & Rain: Guerrillas & Spi-

rit Mediums in Zimbabwe. Harare: Zimbabwe Pu-

blishing House.

momento, sua percepção das relações raciais no

Brasil. Num segundo momento, mostra como

sua experiência no Brasil o fez repensar sua in-

terpretação sobre as relações raciais na África.

O que a sua formação e atuação nos centros

acadêmicos africanos e brasileiros contribuí-

ram para a sua refl exão sobre questões raciais

no Brasil e na África? Quais seriam, nessa pers-

pectiva, os rendimentos de uma antropologia

comparativa?

PF: Não são apenas experiências em depar-

tamentos, são experiências de vida. Ao chegar

ao Brasil, o que mais me chamou a atenção,

depois da África e da Inglaterra, era a ideolo-

gia de não-racismo; eu nunca tinha encontra-

do um país com esse tipo de ideologia e achei

muito positivo. Também fi quei impressionado

com a homogeneidade cultural, com o fato de

todo mundo, independentemente da aparência

física, falar a mesma língua, comer a mesma

feijoada, beber a mesma caipirinha, crer nos

mesmos espíritos etc. Mesmo as religiões cha-

madas afro-brasileiras não eram de africanos,

nem de negros, eram de todos. Isso está nas

obras de Bastide, mas eu não imaginava. Tanto

é que, quando comecei a estudar a umbanda,

achava que ela ia ser parecida com o que tinha

estudado na África, que ia ser uma espécie de

resistência, e eu vi o contrário, era uma religião

absolutamente integrada ao tecido social brasi-

leiro porque não dizia sobre relações de classe e

muito menos sobre relações de raça. No Brasil,

as crenças básicas são muito parecidas e pes-

quisas de opinião pública revelam isso, inclu-

sive. Elas variam um pouco por classe social,

mas muito pouco por região e muito menos

por cor auto-atribuída. Porém, como digo no

livro, era óbvio que alguma coisa não estava le-

gal: ao mesmo tempo que não havia nenhum

sinal de racismo aberto, quase todos os negros

eram pobres. Eu tinha lido o Gilberto Freyre

do luso-tropicalismo, seus livros que traziam

138 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

essa ideologia para sustentar a manutenção do

poder branco na África, mas não Casa-grande & Senzala. Quando o li, o fi z desconfi ado. Era

a época de discutir a democracia racial como

ideologia e então parecia que, de fato, essa idéia

era um engodo, uma máscara. Era essa a minha

posição. Quando fui para a África pela segunda

vez, em 1989, nove anos depois da indepen-

dência de Zimbábue, a primeira sensação foi de

euforia por estar de volta. Estava muito curioso

e queria rever os meus amigos. Mas, no fundo,

foi uma sensação de profunda tristeza. Uma de

minhas idéias era tentar reescrever a história

daquele lugar nos dez anos após a independên-

cia, mas desisti; era uma história absolutamente

não-contável. Isso me fez repensar muita coisa.

Descobri, por exemplo, que um grande amigo

meu, chamado Nestor, foi morto nas últimas

semanas da guerra civil. Acusado de ter sido

traidor, foi ao tribunal sem defesa e acabou

queimado vivo em um saco de fertilizantes. Per-

cebi que a primeira eleição de Zimbábue não

era uma eleição como se imagina, com eleitores

mais ou menos livres para escolher, porque não

era uma questão de escolha eleitoral, mas sim

de medo: o exército que mais amedrontava ga-

nhou. Mas o mais grave é que o país não tinha

superado as premissas do racismo. Os brancos

que lá fi caram, os meus amigos, às vezes velhos

amigos, viviam achando que estava tudo uma

maravilha: na casa deles havia sempre um, dois,

três, quatro ou cinco africanos, mas era uma es-

pécie de cota, uma coisa forçada, que não tinha

nenhuma espontaneidade. Os únicos lugares

onde as pessoas comiam juntas eram naque-

les almoços tipo business lunch, em que havia

homens de negócios comendo juntos. Mas à

noite ainda havia os restaurantes de branco e

de negro, tudo continuava igual. Quando o

Robert Mugabe8 começou a invocar a “nossa

cultura”, vi todas as premissas e pressupostos

8. Presidente do Zimbábue desde 1980.

explícitos do racismo colonial reelaborados

em um outro contexto, mas com exatamente

a mesma função, de associar a raça à cultura e

usá-la como arma política. Por isso, eu acha-

va que o Zimbábue estava nos grilhões de um

pensamento racializado, o que prejudicaria

tudo. Quando eu desci pela primeira vez em

Maputo, em Moçambique, vi o contrário. Era

o fi nalzinho do período socialista, não havia

nada nas lojas e apenas um restaurante; tudo

estava caindo aos pedaços, era impressionante.

Mas fui muito bem recebido pelos intelectuais

de lá, na posição de funcionário da Fundação

Ford. Convidaram-me para visitar as suas casas

(isso nunca acontecia em Zimbábue), onde, fa-

lando português, comendo bife e batata frita e

tomando vinho, conheci uma elite cosmopolita

que gostava das mesmas coisas de que eu gosto.

E lá, como cá, todo mundo é cientista políti-

co e técnico de futebol, quer dizer, a conversa

é muito gostosa e com as mesmas ironias da-

qui. O Samora Machel9 era absoluta e visceral-

mente anti-tribalista e anti-racista. Os últimos

anos do Império português tinham sido menos

agressivamente racistas do que os anos anterio-

res, então Moçambique viveu um período de

relativo não-racismo. Evidentemente, eu me

lembrei do Brasil, porque tudo combinava: nos

três lugares (Brasil, Zimbábue e Moçambique)

os brancos eram dominantes, a distribuição de

riqueza e da educação era muito parecida, com

exceção que os dois países africanos tinham

uma pequena elite de negros com um grau de

escolaridade muito alto. Mas o que mais me

chamou a atenção em Moçambique é que as

relações entre africanos e europeus e o que eles

chamam de mistos (porque são várias misturas

em Moçambique devido ao fl uxo de pessoas

da Europa e do subcontinente indiano) não

eram caracterizadas pela desconfi ança. Muitos

racistas mais veementes devem ter saído de lá

9. Primeiro presidente de Moçambique, Machel gover-

nou este país entre 1975 e 1986.

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

em 1975, possibilitando uma situação relati-

vamente relaxada, e eu pessoalmente me sen-

ti muito mais à vontade naquele ambiente do

que em Zimbábue. Com isso, comecei a fazer

uma crítica dos pressupostos do colonialismo

britânico que nunca havia feito antes. E pensei:

“Meu Deus, talvez o Gilberto Freyre ao menos

tivesse razão quando reconhecia dois estilos de

colonização” e que certamente a maneira pela

qual se compreende as diferenças não é a mes-

ma em Zimbábue e nesses países (Moçambique

e Brasil). A mudança de perspectiva na análise

foi uma combinação não tanto pelo que eu li,

mas pela experiência pessoal mesmo. Foi uma

experiência comparativa; penso que a melhor

maneira de estranhar qualquer instituição é

ter o conhecimento de outra, de uma socieda-

de em relação a outra, pessoal ou através dos

livros. Certamente foram aquelas experiências

de Zimbábue e Moçambique que me chama-

ram a atenção para essas questões. Foram ex-

periências existenciais, de distanciamento de

viver. Eu ansiava voltar para Moçambique o

tempo todo. E o interessante é que este país

agora cresce 12% ao ano, enquanto Zimbábue

decresce 20% ao dia! Moçambique vai de vento

em popa; com o fi nal do socialismo se liberou

uma energia reprimida muito positiva. E não é

um país de ranço. Tem difi culdades inter-étni-

cas, inter-raciais, claro que tem, todo lugar do

mundo tem, mas não são empecilhos, e penso

que lá as pessoas sabem conviver.

CC: Ainda sobre este assunto, como a sua

experiência como representante adjunto da

Fundação Ford o ajudou a pensar sobre as re-

lações inter-raciais nos países de colonização

inglesa e portuguesa?

PF: A Fundação Ford é americana e bastante

racializada, então a minha experiência naquele

escritório foi fundamental. Eu tinha um com-

panheiro de trabalho, Michael Chege, negro

africano do Quênia, que se tornou um grande

amigo. De vez em quando vinham pessoas da

América do Norte, e eu nunca vou esquecer o

dia que chegou um negro americano que só fa-

lava com o Michael, chamando-o de brother. Eu estava me sentindo cada vez mais incomo-

dado e, evidentemente, o Michael percebeu.

Depois de um tempo ele se virou para o outro

e disse: “Escuta, você está me chamando de

brother. Eu não sou o seu irmão. Se você está

usando este termo metaforicamente, o Peter é

muito mais o meu irmão do que você”. O Mi-

chael também tinha esse ódio da racialização

das relações sociais. Tivemos muitas experiên-

cias, desmascarando e ridicularizando os novos

racismos. Uma vez, em Dar-es-Salaam, na Tan-

zânia, encontramos um médico que morava

em Washington, que começou a me xingar pela

minha responsabilidade como um inglês por

ter destruído as casas arredondadas da sua tribo

e tê-los obrigado a fazer casas quadradas. Eu

disse assim: “Desculpe, não estive lá na época,

e realmente não me sinto responsável por isso”.

Mas Michael foi muito mais além: “Senhor

médico, você mora aonde?”. “Washington”.

“E... qual é o formato da sua casa?”. Enfi m, o

que me chamava a atenção era a nocividade, a

mentira, a hipocrisia dessas posições completa-

mente alucinadas que se produzem quando se

racializa as situações, mesmo as mais próximas.

A própria Fundação Ford foi obsessivamente

dividindo o mundo entre mulheres e homens,

negros e brancos etc., então se começa a não

ver mais nada, só essas categorias. Este não é o

mundo que eu quero para mim. Por isso come-

cei a pensar que a idéia de uma sociedade sem

raça é uma idéia legal, que não é uma idéia ma-

luca, e fi nalmente percebi que o inimigo era o

racismo, e não a democracia racial. Eu gostava

de ser inimigo do racismo, mas não inimigo da

idéia do não-racismo. Passei a argumentar que

a idéia da insignifi cância social da raça produz,

e não mascara apenas, um tipo de relação social

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

e certas situações que deveriam ser compreen-

didas. Ou seja, não é uma ideologia, é um mito

no sentido antropológico do termo; é um guia

para a ação social, bem malinowskiano mesmo.

Assim, entrei na contra-corrente dos meus ve-

lhos amigos. Por isso, não consigo assinar em-

baixo de uma reengenharia social que fortalece

aquilo no qual discordo e tenho a mesma ojeri-

za que tenho para com a acusação de bruxaria,

por exemplo. Porque aliás, bruxaria e racismo

são casos muito parecidos.

CC: O senhor trabalha em seu livro com

a idéia de democracia racial a partir de três

formas. A primeira é como falsidade, aquilo

que encoberta uma realidade social. A outra,

mais ligada à antropologia britânica, é como

um modo de justifi car contradições postas por

um grupo social. E a terceira é como utopia,

um ideal a ser alcançado. Gostaríamos que o

senhor relacionasse um pouco mais essas três

idéias.

PF: A segunda forma tem a ver com a ter-

ceira, e é baseada em toda aquela mudança

da antropologia nas décadas de 1960 e 1970,

quando se quebra com o estrutural-funciona-

lismo e com a relação direta que ele faz entre as

relações sociais e as representações (a infra-es-

trutura e super-estrutura dos marxistas, mais ou

menos). Tudo começa a fi car no mesmo plano

analítico quando se percebe as interações entre

representações, ação e prática. Quem ajudou

muito foi Michel Foucault. Eu nunca consigo

vê-lo como arauto do pós-modernismo, sem-

pre o vi como um antropólogo olhando para a

história. A idéia da positividade do discurso era

muito importante; por isso, eu acho que se não

tivesse existido esse discurso da democracia ra-

cial, certas situações seriam impossíveis, como

o futebol, o carnaval etc. Quando meus amigos

sul-africanos vêm aqui, eles não acreditam: eles

acham que foi forjado, porque lá eles têm de

forjar. No entanto, esse mito concorre com ou-

tro – o da inferioridade africana – que produz

a situação de desigualdade e um certo apartheid que se vê sobretudo nos mercados imobiliário

e de trabalho. Acho que esses dois mitos pro-

duzem a situação contraditória em que a gente

vive. Mas é necessário entender os dois; só um

é complicado. A terceira forma de entender a

idéia de democracia racial é a que diz qual é o

caminho pela frente, ou seja, é evidentemente

atacar o segundo mito e enaltecer o primeiro.

Este mito, então, se torna utopia; o outro, por

sua vez, tem de ser demonizado.

CC: No livro, o senhor trabalha com três

conceitos-chaves. O primeiro é o de diversida-

de como conceito nativo, mas importado das

nações anglo-saxãs especialmente via agências

de fomento à pesquisa. O segundo é o de mes-

tiçagem, mistura ou cadinho como categoria

cultural existente no Brasil. O terceiro é o de

sincretismo e híbrido, que seria um conceito

analítico do pesquisador. Cada uma dessas

categorias revela refl exões diferentes, mas que

têm como questão de fundo uma tensão entre

cultura nacional homogênea e cultura nacional

segregada. É possível, então, falar de cultura

nacional em termos analíticos, sem correr o ris-

co de essencializar essa categoria?

PF: Se a gente for ver a constituição das

burguesias nacionais na Europa, elas se cons-

truíram como cosmopolitas, incentivando,

incitando e produzindo diversidade cultural

local. As nações metropolitanas aplicavam

esse conceito de diversidade em suas colônias,

os ingleses mais que os portugueses. Se é con-

frontado o modelo de assimilação contra o de

segregação, de fato, os portugueses eram muito

mais assimilacionistas que os ingleses. Isso não

quer dizer que os portugueses também não fos-

sem segregacionistas, ou não incitassem certa

diversidade. Mas o resultado desses processos

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

é o apartheid por um lado e talvez, por outro,

Moçambique. Essa idéia de diversidade, en-

tão, é produzida emicamente, como também

a idéia de cultura nacional. Existem esses dois

modelos; eles coexistem e produzem situações,

mas penso que, nessa oscilação – e estou sendo

leacheano comigo mesmo –, a predominância

de um sobre o outro tende a produzir o que

chamamos de realidades nacionais. Não se tra-

ta de essencializar, mas o fato é que quando se

sai do Brasil, sabe-se que se sai do Brasil.

CC: Por que se sai de uma cultura homo-

gênea?

PF: Não totalmente homogênea, mas que

tem qualquer coisa que eu sei, e que chamo de

Brasil. Mas como vamos falar disso sem essen-

cializar? Não sei, não sei mesmo. É verdade que

as explicações culturalistas no Brasil são muito

complicadas, afi rma-se que “o Brasil é assim,

assim e assado”. A palavra “é”, em português,

não é o inglês “is”, porque no português ela se

contrapõe ao “está”, o que torna tudo muito

mais estático. Sobre essa questão de híbrido e

sincrético serem analíticos, não sei... São e não

são. Sincretismo é mais usado no campo reli-

gioso, aparece o tempo todo e pressupõe, logi-

camente, a existência de algo puro em algum

momento, o que não se pode acreditar. Então,

a própria noção de sincrético eu acho que é

mais êmica, mais nativa que analítica. Porque

as pessoas falam assim. É uma maneira de ten-

tar descrever, de colocar em palavras aquilo que

as pessoas dizem, mas eu acho que são pala-

vras pobres. Híbrido é também muito pobre,

eu acho, por causa da sua própria etimologia:

aquilo que é híbrido é infértil, não tem futu-

ro. Logo, eu acho que não são conceitos mui-

to úteis, apesar de saber que estão muito em

voga, porque entram na linguagem acadêmica

e dos projetos políticos. O Brasil, na propa-

ganda que se faz lá fora, especialmente nesse

“Ano do Brasil na França”, fala de híbrido, de

um país maluco e pós-moderno; são esses os

termos usados. Eu acho que são idéias nativas

mesmo, que vale a pena entender como elas en-

tram em circulação. Mas no Brasil há os dois:

o elogio da mistura – e isso é muito arraigado

– e também a idéia de autenticidade presente,

por exemplo, no candomblé, onde se produz

cada vez mais África. Por isso se tem, quase le-

achanamente, os gumsa e gumlao oscilando e

interagindo. Para mostrar como essa idéia da

mistura está internalizada nos indivíduos, vou

falar da pesquisa que estamos fazendo em es-

colas do Rio de Janeiro. Ao invés de perguntar

às pessoas a raça/cor tal como o IBGE faz, a

gente formulou assim: “Você sabe que o Brasil

foi povoado pelos ameríndios, pelos europeus

e pelos africanos. Em que proporção você acha

que tem essas três ascendências?” Nenhum alu-

no respondeu evocando apenas uma única as-

cendência. Eu escrevi que sou 100% europeu,

mas ninguém colocou 100% europeu, africano

ou ameríndio. Os que se diziam pardos afi rma-

vam que eram mais ou menos 1/3, 1/3, 1/3.

Ou seja, eles reproduziram a idéia de mistu-

ra, o que, aliás, confi rma a minha prática em

sala de aula. Eu sempre pergunto isso para as

pessoas, e aquelas que têm mais variedade são

as mais orgulhosas, sobretudo as que dizem ter

índio e africano. Elas sorriem de complacên-

cia, enquanto os puramente poloneses sofrem

horrores...

CC: Hoje percebemos uma tendência à rei-

fi cação da idéia de tradição por parte de grupos

políticos e agências fi nanciadoras, tornando-a

um valor. Pede-se aos antropólogos defi nições

de cultura tradicional para a implementação de

políticas públicas. Como o senhor se posiciona

diante dessa situação?

PF: Há um movimento mesmo, nesse sen-

tido. Fica mais claro em alguns lugares do que

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

em outros, como na produção da indianidade

e nos quilombos. Eu fi co estarrecido diante de

tudo isso, porque se fala agora de quilombos

como se fossem lugares completamente dife-

rentes do resto do Brasil. Isso me chama muito

a atenção, porque quando o Carlos Vogt e eu

fi zemos a nossa pesquisa sobre o Cafundó,10 es-

crevemos sobre isso, e é como se não tivéssemos

escrito. Eu lamento que a gente escreva, escre-

va, escreva e o discurso não mude. Fomos para

o Cafundó porque lá tinha um vocabulário de

origem africana; isso é verdade. Fora disso, cul-

turalmente, era absolutamente igual a qualquer

bairro rural pobre paulista, que já foi bastan-

te estudado e sobre o qual muito se escreveu.

Quando fomos atrás dessa língua que nunca

mais achamos, fomos a dezenas de comunida-

des rurais negras onde as pessoas diziam que

tinham essa língua, mas não tinham. Então, o

pressuposto hoje é que quilombo é um lugar

completamente distinto, o que não vi quando

o pesquisei.

CC: Com o argumento forte, também, que

são formados por descendentes de escravos.

Procura-se buscar em documentos essa com-

provação...

PF: Não é mais necessário comprovar nada

em princípio porque o decreto presidencial

4.887, de 20 de novembro de 2003, que rege

a matéria, diz claramente que são os próprios

quilombolas que se defi nem como tal. Não

é necessário demonstrar nada em princípio,

embora antropólogos são chamados para par-

ticipar no processo de titulação das terras. Ao

mesmo tempo começam a existir políticas pú-

blicas para garantir a manutenção e a tradição

dos quilombos. O projeto de Rafael Sanzio

Araújo dos Anjos, chefe do Departamento de

10. Cf. VOGT, Carlos & FRY, Peter. 1996. Cafundó, a África no Brasil: linguagem e sociedade. Campinas/

São Paulo: Ed. Unicamp/Companhia das Letras.

Geografi a da Universidade de Brasília, diz as-

sim: “Nós temos que ter políticas públicas nos

quilombos, evitando que os jovens saiam, por-

que se os jovens saem vão perder a tradição”.

Isso foi exatamente a política do apartheid, que

confi nou as pessoas nas suas tradições. Quer

dizer, para nós, elite, é bom falar inglês, fran-

cês, português; para os outros não. Claro que

isso tem a ver com os nossos tempos: acho que

estamos assistindo a uma situação foucaulteana

mesmo, onde há um discurso sobre diversida-

de sendo produzido e repetido. E há institui-

ções dedicadas à produção desse discurso que

classicamente lembram a idéia da Microfísica do poder,11 sobretudo a Secretaria Especial de

Políticas de Promoção da Igualdade Racial

(SEPPIR). É um pequeno grupo, mas que está

em todos os lugares, nos Municípios, nos Esta-

dos, em todos os Ministérios. Qualquer proje-

tinho tem a mão dessa Secretaria, que produz e

retroalimenta todo esse discurso, que se repete

até nos lugares mais capilares da sociedade. De

repente, a D. Zuleika acorda como uma qui-

lombola. Antes ela não era, de repente ela é,

assim como de repente a fi lha da D. Zuleika

vai ter uma educação específi ca. Não sei como

será, como tampouco não sei o tipo de saúde

específi ca que eles terão...

CC: Mas, ao mesmo tempo, o que faremos,

já que é necessário o laudo antropológico para

garantir o direito dessas populações à terra?

PF: Esse é o grande paradoxo, exatamen-

te. Uma amiga minha, Suzana Viegas, quando

estava escrevendo sua tese de doutorado sobre

os tupinambá, foi responsável pelo laudo de

demarcação das terras desse grupo. Quer di-

zer que ela sabe o processo através do qual esse

grupo indígena se nomeia o mais famoso da

história do Brasil. Ela fez o laudo, pois se ques-

11. FOUCAULT, Michel. 1984. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal.

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

tionava: “Como é que vou deixar esse pessoal

à margem do mundo?” Se eu tivesse que fazer,

faria, mas sei perfeitamente que o meu laudo

contrariaria tudo que estudei. Eu acho que isso

é um problema muito sério, pois os antropólo-

gos são chamados para fazer coisas que vêm a

contrapelo da nossa disciplina. Afi nal, na mi-

nha acepção, a antropologia moderna nasceu

crítica em relação a esse tipo de pensamento,

que demarca e essencializa fronteiras. Por isso,

sempre incentivei, em Campinas e no Rio, que

os alunos aproveitassem o espaço universitário

para dizer o que não é dizível alhures, e as pes-

soas fazem isso bem. Isso é parte da tradição

da disciplina e é muito legal... Nesse sentido,

eu acho que Malinowski é um exemplo. Ele

vivia da crítica das convenções do seu tempo,

questionando a universalidade da família mo-

nogâmica burguesa, por exemplo; isso era uma

bomba para a época. As universidades são na

verdade os únicos lugares de onde é possível fa-

lar... Mas os antropólogos estão numa situação

complicada. Como é que podemos nos recusar

a ajudar um grupo de pessoas, completamen-

te sem terra e sem condições de sobrevivência,

dessa oportunidade assegurar a sua segurança

territorial? Só que esse direito passa por este

caminho... Aí eu me pergunto, por que não

lançar mão do usucapião? Não tem como? O

usucapião se funda num direito que não dis-

crimina raça, nem gênero, e além do mais

produz o título individual, ao contrário dos

quilombos, onde o título é coletivo. Acontece

que os processos de usucapião simplesmente

não andam! A reivindicação de especifi cidade

étnica tem conseqüências muito mais imedia-

tas. Além disso, do ponto de vista da antropo-

logia, é importante reconhecer que as palavras

da própria disciplina entraram defi nitivamente

para o cenário político. A questão da relativi-

dade cultural virou assunto, assim como a idéia

de alteridade, mas não uma alteridade como

constatação analítica, e sim como um valor. Há

uma série de discursos a produzir esses valores

e a incitar práticas em relação a eles. Aliás, eu

estou fascinado por isso, porque o Brasil se vê

como misturado há anos, ensina às criancinhas

que é misturado, e de repente ele não é mais

misturado, é diverso! Essa pedagogia racial está

sendo distribuída nas escolas para as crianças, e

quem está dando as aulas? O Movimento Ne-

gro! Não é mais a sociedade brasileira e toda

a sua complexidade que são apresentadas aos

menininhos, é uma versão. Todo mundo acha

que aquela Lei 10.639, que tornou obrigatória

a inclusão na rede ofi cial de ensino a temática

“História e cultura afro-brasileira” é fantástica,

mas ninguém leu o parecer. Ele é de deixar o

cabelo em pé. O governo continua, cada vez

mais, com programas específi cos para a popu-

lação negra. Há uns meses, escrevi um artigo

sobre a racialização da AIDS e ninguém res-

pondeu. Imagino que isso produzirá situações

muito interessantes de contradição, de confu-

são. Os mais otimistas acham que o Brasil é

tão completamente misturado nesse sentido

ideológico que, no fi m das contas, tudo isso

vai ser apenas uma nuvem passageira. Às vezes

eu penso assim, outras vezes eu penso que não,

porque essa pedagogia racial nas escolas é algo

sério. E quem passou pela África do Sul e viu

tudo aquilo não pode fi car calado! Eles lutaram

não sei quantos anos contra essa divisão de po-

líticas públicas específi cas, e sobretudo em edu-

cação. Que tipo de educação que se pode dar

para um quilombola que é diferente da nossa?

Isso signifi ca algo, e foi o fato de as pessoas não

discutirem estas questões que me levou a juntar

esses ensaios em um livro.

CC: Mas não se trata de políticas públicas

que visam compensar situações passadas de ex-

clusão e segregação?

PF: Se fosse para o governo colocar a esco-

la de Notre Dame no quilombo eu estaria de

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

acordo. Mas não acredito que seja isso, duvido

muito. Porque se houvesse uma política com-

pensatória – que ninguém nunca fez – tinha-

se colocado, no Rio de Janeiro, as Escolas de

Aplicação nas favelas. Quando o Brizola tentou

fazer, durou pouco, os CIEP’s foram extermi-

nados. Dizem que também exterminaram essa

experiência feita pelo governo Marta Suplicy, os

CEU’s. Eu acho essa uma idéia genial. Enfren-

ta-se a desigualdade fazendo, por exemplo, a

melhor escola possível nos lugares mais pobres.

CC: Essas políticas não revelam um Esta-

do liberal que nunca funcionou direito? Afi nal,

educação e saúde seriam direitos de todos...

PF: Seriam para todos e com a mesma qua-

lidade. Porém, quando as pessoas dizem que as

políticas universais nunca funcionaram, a so-

lução que se pensa para esse problema é partir

para as específi cas. Mas ninguém nunca aplicou

uma política universal, todo mundo sabe disso.

Dessa maneira, eu acho interessante como uma

sociedade imaginada como sociedade de classes

se torna, de repente, uma sociedade de diversi-

dade étnica e de gênero... É interessante que se

trata do mesmo debate em relação às questões

de gênero. Eu tive conversas maravilhosas com

o Roger Raupp Rios, que é Juiz Federal no Rio

Grande do Sul e trabalha com legislação para

direitos sexuais. É a mesma discussão porque,

por um lado, há aqueles que querem dividir o

mundo em identidades com legislação especí-

fi ca, e ele está tentando produzir uma legisla-

ção genérica, universal, em que caibam todas

as possibilidades, não reprima nenhuma e não

incite a repressão.

CC: Sobre esse ponto, como o senhor vê as

possibilidades de comparação entre a questão

racial e da sexualidade para compreendê-las no

Brasil?

PF: Olhando para a sexualidade masculina,

percebeu-se que havia uma complexidade não-

visível e comportamentos que, à primeira vista,

são ambíguos. A descoberta disso foi a salvação

do Brasil, pois se não tivesse percebido isso não

se saberia como combater a AIDS. Quando se

olha para a questão racial, a palavra que apa-

rece muito também é “ambiguidade”. Então,

nos dois casos, a percepção de fronteiras não é

muito clara; há essa questão em comum. Mas,

diferentemente, a identidade homossexual que

as organizações construíram é positiva. Por

exemplo, a Parada Gay é positiva e acolhedo-

ra – os resultados das pesquisas mostram que

20% das pessoas que estavam lá se diziam he-

terossexuais –, isto é, o movimento homosse-

xual produziu assim uma identidade positiva e

não-exclusiva. Seu símbolo, o arco-íris, é uma

boa metáfora disso, porque se tem uma ban-

deira geral e debaixo dela há uma multiplici-

dade de possibilidades. Assim, politicamente,

o movimento homossexual consegue colocar

dois milhões de pessoas na rua em São Paulo,

e isso é muito signifi cativo, pois todo mundo

em um mesmo espaço implica em algum tipo

de comunhão. Apesar de ainda ser uma catego-

ria muito estigmatizada, mesmo assim se tem

uma identidade positiva e um movimento que

acolhe qualquer simpatizante. Agora, compa-

rando com o outro lado, qual é a identidade

que está sendo produzida sobre os negros no

Brasil? É sobretudo uma identidade de vítima e

um movimento que procura marcar diferença.

Por isso, é um movimento que não se expande,

não aumenta; não é e nunca foi de massa, ape-

sar de ser politicamente fortíssimo. O Minis-

tério da Reforma Agrária, por exemplo, vai ter

que titular não sei quantos quilombos em um

ano... E cota é uma palavra que surge em 2001,

literalmente. Como explicar que ela, desde en-

tão, se prolifera sozinha, sem precisar nem de

legislação federal?

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

CC: O senhor trabalha com as idéias de

aparência e estética como importantes para

a construção de uma imagem negra positiva,

promovendo uma identidade não racializante.

Em que medida é possível fazer essa discussão

e implementar ações anti-racistas e anti-racia-

lizantes na sociedade civil, fora do âmbito do

Estado, a partir dessas categorias?

PF: Qualquer sociedade é feita a partir de

uma leitura estética; os indivíduos são classifi -

cados assim. Para mim, parecia mais ou menos

óbvio que qualquer ataque contra o racismo

tinha que ser um ataque estético, e eu fi quei

fascinado quando o mercado de bens higiêni-

cos começou a se expandir e se diversifi car para

várias peles, cabelos etc. À medida que fui fa-

lando com os cabeleireiros, descobri que eles

também fi cavam fascinados, e que as pessoas

que se sujeitavam a esse tipo de tratamento

fi cavam felizes. Antes, não havia propaganda

com mulher negra porque não havia produto

para ela. Então, eu comecei a olhar para as pro-

pagandas desses novos produtos de uma forma

distinta, porque achava que era uma maneira

de se notar que algo estava mudando, e que

uma estética antes esquecida tornava-se absolu-

tamente visível. E isso corria a contragosto do

próprio mercado, porque ele pouco se lixa para

essas questões de racismo; se interessa, eviden-

temente, pelo mercado de consumidores. Mas

é o mercado que está efetivamente produzindo

uma nova estética, e digo isso apenas a partir de

uma refl exão muito superfi cial sobre a televisão

mais popular, que é cada vez mais povoada por

pessoas de estéticas diversas. Então, romantica-

mente, eu acho que é por aí que a coisa vai...

O único lugar onde passou a existir cotas e que

não me deixou arrepiado foi quando o governo

do Município do Rio de Janeiro instituiu cotas

para a propaganda pública. Eu achava a idéia

interessante, porque não colocava em evidência

sempre as mesmas pessoas, e isso não ofende

em nada porque obriga o reconhecimento da

diversidade estética. Eu achei muito importan-

te e penso que a publicidade brasileira poderia

ser mais consciente disso. Por isso, quando eu

escrevi esse artigo, não o fi z em tom de denún-

cia de propósito, não porque eu não fi co cho-

cado com o racismo, mas por ser uma maneira

de falar com os produtores de propaganda. A

idéia não foi colocá-los contra a parede, por-

que quando se coloca alguém contra a parede

a tendência é que se fi que ainda mais contra a

parede, o adversário normalmente fi nca o pé.

Isso acontece quando se produz um movimen-

to muito agressivo, e é o que de certa maneira

aconteceu com o Movimento Negro. Na mi-

nha opinião, ele agride ao acusar todo mundo

de racista, pois as pessoas não se vêem como

racistas; mesmo sendo, elas não se vêem assim.

CC: O seu livro termina com uma proposta

de deslocar o debate em relação às políticas de

ação afi rmativa na Universidade de um foco de

raça para o de classe social. Em que medida há

limitações nessas soluções que o senhor propõe

– como a desterritorialização, a criação de um

fundo de custeio para os estudos dos pobres,

a reserva de vagas para estudantes de escolas

públicas – já que são planos que não são dis-

cutidos pelo corpo acadêmico como um todo,

além de trazerem, em graus diversos, difi culda-

des para a implementação?

PF: Eu acho que essa é a parte mais fraca do

livro porque, no fundo, não vejo solução nenhu-

ma a curto prazo. Eu penso que não há outra

maneira de enfrentar essas questões, senão um

choque de educação e, nesse aspecto, o Brasil está

anos-luz atrás de todo o mundo. Seria necessário

mudar o sistema, pois fi nalmente se descobriu

que o sistema educacional ibérico é feito para

excluir. No Brasil, não se sai do Ensino Médio

com um certifi cado sem ser aprovado em todas

as matérias; na Inglaterra, sai-se graduado com as

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

matérias em que se aprovou. Eu não tenho uma

visão muito clara sobre isso, mas sei que faria

como Marta Suplicy fez, eu colocaria as melho-

res escolas e os melhores professores nos lugares

mais pobres no Brasil. Se o programa dos CIEP’s

no Rio de Janeiro tivesse sido mantido de acor-

do com os princípios iniciais, teríamos hoje um

contingente enorme de ex-pobres formados nas

melhores universidades.

CC: Como o senhor avalia o espaço que o

senhor conseguiu, como professor universitá-

rio, para infl uir no debate público em relação a

todos esses temas?

PF: Eu sou absolutamente cético, infeliz-

mente. Já escrevi e falo bastante sobre racializa-

ção e poucos me levam a sério (pelo menos em

público). Então, não sei porque escrevo. Esse

programa para a população negra de combate

a AIDS é muito sério mesmo, e o que me es-

panta é que não há intelectuais negros também

preocupados. Afi nal, eles deveriam fi car receo-

sos da racialização indevida. E por quê? Porque

toda política que leva à divisão entre brancos e

negros no Brasil é apoiada automaticamente. É

uma espécie de leninismo racial. Então, torna-

se necessário fazer um programa de AIDS para

a população negra sabendo perfeitamente que

é uma questão de classe, que não tem nada a

ver com raça. E isso é loucura porque estamos

construindo cegamente aquilo que os outros

países de tradição racializadora gostariam de

desconstruir. Eu não acredito que o Tarso Gen-

ro pensou nisso quando mudou de um dia para

o outro e disse: “Era contra cotas e agora sou a

favor”. Não acredito que ele tenha ponderado

que há uma reafi rmação da categoria raça que

é implícita à política de cotas. Isso é muito es-

pantoso porque ele pertence à esquerda do PT,

que sempre pensou em termos de classe social

e que, de repente, passou a apoiar uma política

compensatória para as “etnias” que, aliás, virou

uma espécie de metáfora para classe. Desse jei-

to, cria-se uma espécie de sofi sma, fala-se que

“os negros são pobres, a maioria dos pobres são

negros; então, nós esquecemos os pobres e fa-

lamos que a AIDS está aumentando entre os

negros, quando teríamos que falar entre os ne-

gros e os brancos pobres”. Exclui-se os brancos

e racializa-se a discussão. O rumo planejado por

essa política parece ser apenas fortalecer as orga-

nizações negras da sociedade civil. Mas antes de

tomar esse rumo, acho que o Brasil tinha que se

discutir como nação e não como um movimen-

to. Fico numa posição absolutamente incômoda

lutando contra os pressupostos da maioria dos

ativistas negros; não gosto de parecer contrário

a essa luta, é muito desagradável. Mas é uma

convicção, e essa é a convicção que funda a an-

tropologia moderna que vem desde Franz Boas,

que dissociou raça de cultura, e pronto.

traduções

Se o escritor é um feiticeiro é porque escrever é

um devir, escrever é atravessado por estranhos

devires que não são devires-escritor, mas devi-

res-rato, devires-inseto, devires-lobo etc.

Gilles Deleuze e Félix Guattari

Jeanne Favret-Saada faz parte desse grupo

de autores conhecidos por terem escrito um

livro. Neste caso, ainda que isso fosse intei-

ramente verdadeiro, não se poderia dizer que

trata-se de pouca coisa. Les Mots, la Mort, les Sorts é uma maravilha etnográfi ca e, ao mesmo

tempo, uma das raras obras-primas da história

do pensamento antropológico. Elaborado e es-

crito em uma época (não tão distante assim)

em que a imagem do pensamento dominante

na academia ainda não era construída com os

parâmetros empresariais capitalistas da rentabi-

lidade e da produtividade, o livro levou quase

dez anos para fi car pronto. Período que envol-

veu uma longa e intensa pesquisa de campo,

conduzida entre 1968 e 1971, sua redação e

sua publicação, que só ocorreu em 1977.

Esse tempo – que hoje, certamente, seria

considerado apenas uma demora – faz, entre-

Jeanne Favret-Saada, os afetos, a etnografi a

MARCIO GOLDMAN

Professor Adjunto do PPGAS/MN/UFRJ; pes-

quisador do CNPq e bolsista da FAPERJ; autor

de Razão e Diferença. Afetividade, Racionalidade e Relativismo no Pensamento de Lévy-Bruhl (1994),

Alguma Antropologia (1999) e Como Funciona a Democracia. Uma Teoria Etnográfi ca da Política

(no prelo), além de co-organizador de Antropolo-gia, Voto e Representação Política (1996). Realiza

trabalho de campo sobre política, etnicidade e

religiões afro-brasileiras em Ilhéus, sul da Bahia.

tanto, parte intrínseca e constitutiva do tra-

balho. De fato, Favret-Saada não se cansou de

relatar, em diversas ocasiões, como os primeiros

meses no campo (quase um ano, na verdade)

foram, aparentemente, estéreis. Apenas a auto-

ra parecia se interessar por seu tema, a feitiça-

ria; seus interlocutores reagiam, antes, evitando

o assunto, negando ou denegando sua própria

existência, imputando-o a pessoas tidas como

ignorantes ou remetendo-o a um passado já su-

perado há muito tempo.

Se a pesquisa tivesse, então, durado “apenas”

um ano (quantos de nós dispomos mesmo des-

se prazo atualmente?), Favret-Saada não teria

muito a dizer além do que pode ser obtido pelo

limitado procedimento de investigação que

Malinowski já condenava sob o nome de méto-

do de pergunta e resposta. Ou do que se pode

extrair da consulta de documentos e arquivos –

onde, como lembra Favret-Saada (1981b: 336),

“o ‘povo’ é falado mais do que fala, aparecendo

como o objeto do discurso administrativo, não

como o sujeito de um discurso autônomo” –

produzidos por aqueles mesmos que desprezam

e desejam condenar ao silêncio práticas como a

feitiçaria. De psiquiatras, jornalistas e dos que

cadernos de campo n. 13: 149-153, 2005

150 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

se consideram parte das elites, não se pode es-

perar muita coisa quando o tema em questão

parece desafi ar suas certezas e até mesmo sua

dominação.

O passar do tempo, entretanto, não é ape-

nas o passar do tempo. Esse falso truísmo con-

duziria apenas às banalidades que repetem que,

“com o tempo”, os nativos se acostumam com

a presença dos etnógrafos e passam a se com-

portar mais normalmente e até mesmo a relatar

a eles seus segredos mais íntimos.

Em lugar de supor que o tempo apenas

fornece um meio externo para as relações hu-

manas, é preciso compreender que ele é, ao

contrário e em si mesmo, uma relação. Pois é

apenas com o tempo, e com um tempo não

mensurável pelos parâmetros quantitativos

mais usuais, que os etnógrafos podem ser afeta-dos pelas complexas situações com que se depa-

ram – o que envolve também, é claro, a própria

percepção desses afetos ou desse processo de ser

afetado por aqueles com quem os etnógrafos se

relacionam. Foi apenas quando alguém diag-

nosticou que a etnógrafa fora “pega” (prise) pela

feitiçaria que passou a fazer algum sentido falar

com ela sobre o assunto.

Não se trata, contudo, de imaginar nenhum

crédulo local que, para a felicidade de uma pes-

quisadora que permaneceria distante e incó-

lume em sua objetividade de cientista, tivesse

decidido “acreditar” que ela também fora en-

feitiçada. Na verdade, Favret-Saada tinha seus

sintomas, de repetidos acidentes de automóvel

a um certo tremor das mãos e um brilho di-

ferente no olhar. Sintomas que permitiam le-

vantar a hipótese do enfeitiçamento. Por outro

lado, indagar se ela também “acreditava” na fei-

tiçaria é igualmente um exercício cheio de inu-

tilidade, uma vez que não se trata, justamente,

de crença, mas – como o leitor aprenderá no

texto da autora aqui traduzido em ótima hora

– de afeto. Não de afeto no sentido da emoção

que escapa da razão, mas de afeto no sentido

do resultado de um processo de afetar, aquém

ou além da representação.

Não há nenhuma necessidade de supor,

tampouco, que os afetos de Favret-Saada no

mundo em que passara a viver (e que, por

um tempo, fi ltrava também o mundo com o

qual ela estava mais habituada e que costuma-

mos chamar de “nosso”) fossem idênticos aos

sentidos por aqueles que viviam mais longa e

cotidianamente, não a crença, mas a experi-

ência da feitiçaria. Basta que os etnógrafos se

deixem afetar pelas mesmas forças que afetam

os demais para que um certo tipo de relação

possa se estabelecer, relação que envolve uma

comunicação muito mais complexa que a sim-

ples troca verbal a que alguns imaginam poder

reduzir a prática etnográfi ca. Trata-se em suma,

como escreve a autora (Favret-Saada 1990a:

7-9), de conceder “estatuto epistemológico a

essas situações de comunicação involuntária e

não intencional”, evitando a “desqualifi cação

da palavra indígena” em benefício da “promo-

ção da do etnógrafo”, assim como a armadilha

suprema de imaginar que fazer etnografi a sig-

nifi ca “explorar as trevas com uma fi losofi a das

Luzes” (Favret-Saada 1981b: 344).

Em função de tudo isso, Les Mots, la Mort, les Sorts não pode ser enquadrado em nenhum

dos dois estilos etnográfi cos contemporâneos

mais usuais. Não se trata de apresentar as pes-

soas e suas ações (inclusive o que elas dizem e,

às vezes, até mesmo o que elas supostamente

pensam) como um antigo naturalista descrevia,

sobre um mesmo plano, fauna, fl ora e geografi a.

Mas não se trata, tampouco – após condenar

essa primeira modalidade de descrição como

empirista, ingênua ou autoritária, na medida

em que se arroga o direito de representar o ou-

tro –, de voltar-se para dentro, opondo uma

suposta transparência do sujeito para si mesmo

à opacidade do mundo dos outros. Ao transi-

tar do cientifi cismo para algo como um certo

tipo de autobiografi a, o gênero etnográfi co não

-, , |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

parece ter avançado muito: “que um etnógrafo

aceite ser afetado não implica que se identifi -

que com o ponto de vista indígena, nem que

aproveite a experiência de campo para excitar

seu narcisismo” (Favret-Saada 1990a: 7).

Na verdade, conta a autora (Favret-Saada

2004a), os afetos suscitados no campo, “a des-

possessão e a perda de controle de si, a acei-

tação do desejo desconhecido do outro, o

reconhecimento de uma opacidade constitu-

tiva da comunicação humana”, tudo isso que

era “insuportável para os etnólogos”, era “banal

para os psicanalistas”. Por outro lado, bastou

que a autora sustentasse que a feitiçaria – ou

antes, o desenfeitiçamento – constitui uma for-

ma de terapia que nada deve à psicanálise, para

que o cientifi cismo que os analistas sem dúvida

compartilham com os etnólogos impedisse que

a acolhida do trabalho de Favret-Saada fosse

muito longe. De fato, ela sugere que não se tra-

ta, no desenfeitiçamento, nem de uma forma

primitiva de lidar com aquilo que só a ciên-

cia realmente conhece, nem de uma simples

modulação cultural de uma prática universal.

Trata-se, antes, de um dispositivo completo,

destinado a “ajudar algumas pessoas”, dispositi-

vo que funciona tão bem (ou tão mal, segundo

os casos) quanto outro qualquer e que deveria

ser investigado em conjunto com outras “insti-

tuições curativas” – a psicanálise, por exemplo

– no contexto de uma “antropologia das tera-

pias” (Favret-Saada 1989b: 55; 1990a: 3).

É uma certa forma de cientifi cismo, por-

tanto, que explica que tanto etnólogos quanto

analistas – por razões distintas, talvez – te-

nham, ao mesmo tempo, admirado e recusado

Les Mots, la Mort, les Sorts. Como observou

a autora (Favret-Saada 2004a), o livro parece

ter sido objeto do que Benjamin denominava

“incompreensão entusiasta”, uma espécie de

“quadro famoso, pendurado nas paredes dos

departamentos de antropologia, que os estu-

dantes são incitados a admirar sem imitar”.

E, de fato, é quase tão difícil encontrar uma

crítica explícita ao livro quanto um trabalho

que leve efetivamente a sério as potencialida-

des por ele abertas.

Para fazê-lo seria preciso abandonar de vez o

paradigma cientifi cista no qual ainda nos mo-

vemos em benefício de um método “clínico”,

no sentido médico e psicanalítico do termo.

Na primeira opção, as escolhas são limitadas:

ou procedemos indutivamente, generalizando a

partir do maior número possível de casos empí-

ricos, ou dedutivamente, por meio da aplicação

a qualquer caso concreto de alguns princípios

gerais previamente estabelecidos. Favret-Saada,

por outro lado, procede por meio da observação,

exame e constituição de casos cuja singularidade

não elimina o fato de que cada um pode com-

partilhar com outros certos elementos e caracte-

rísticas. Isso faz com que, aos olhos do clínico,

cada caso seja, ao mesmo tempo, uma síndrome

única e parte de síndromes mais gerais, e que

cada um se benefi cie indiretamente das anamne-

ses anteriores e contribua para as futuras.

Não é de admirar, portanto, que o trabalho

de Favret-Saada tenha suscitado algumas rea-

ções estranhas, tanto na mídia (Favret-Saada

1989b: 112) – onde ela chegou a ser batizada

de “a feiticeira do CNRS” (o Centro Nacional de Pesquisa Científi ca) – quanto na academia,

onde um colega chegou a sugerir que o CNRS

deveria cancelar sua bolsa uma vez que, repu-

diando a ciência, ela a teria empregado simples-

mente para aprender a se tornar uma feiticeira

(Favret-Saada 1977a: 287).

Em outras palavras, não são apenas os fan-

tasmas suscitados pela equívoca noção de ob-

servação participante que, como sugere a autora

(Favret-Saada 1990a: 5-6), tendem a funcionar

como obstáculos para o trabalho do etnógrafo.

Ela enumera outros: a similaridade cultural ex-

cessiva do etnógrafo com o grupo estudado; a

concentração da investigação nas elites e/ou nos

arquivos; a hipótese de que tudo se esclarece

152 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

uma vez remetido ao “social”; a adoção de no-

ções como a de crença ou de ideais como “ob-

jetividade” e “cientifi cidade”. Isso não signifi ca,

é claro, que o antropólogo não possa estudar a

sociedade a que pertence, apenas que isso deve

ser feito com os cuidados e os distanciamentos

necessários; ou que arquivos e elites tenham

de fi car, necessariamente, fora da investigação,

apenas que devem ser colocados em seu devido

lugar; ou que as situações de enunciação, que

não se confundem com simples “contextos”,

não sejam fundamentais para a análise; ou que

as representações nativas, assim como o ideal de

conhecimento do antropólogo, não tenham que

ser respeitados, uma vez que trata-se sempre, na

etnografi a, de uma espécie de alinhamento en-

tre esses programas de verdade (cf. Favret-Saada

1977a: 287, passim).

Se fosse, então, inteiramente verdadeiro

que Jeanne Favret-Saada é autora de um livro, e

se esse livro for Les Mots, la Mort, les Sorts, isso

já seria bastante. Entretanto, e evidentemente,

não é bem assim que as coisas se passam. Na

verdade, os primeiros trabalhos de Favret -

Saada (reapresentados em Favret-Saada 2005)

como antropóloga remontam ao fi nal da dé-

cada de 1950, quando investigou sistemas seg-

mentares árabes e bérberes no norte da África,

em campos relativamente próximos a seu local

de nascimento no sul da Tunísia (em 1934, em

uma família de origem judaica). Após a inde-

pendência da Argélia, Favret-Saada mudou-se

para a França, onde os acontecimentos de maio

de 1968 fi zeram com que decidisse concentrar

sua pesquisa, tendo em vista não deixar o país

em um momento que, como militante política,

considerava fundamental. Dessa decisão, e de

modo algo tortuoso, nasceu a pesquisa sobre

feitiçaria na região do Bocage francês.

Entre as duas temáticas, despontam alguns

pontos de contato – o mais sugestivo sendo,

sem dúvida, uma certa relação de redundân-

cia entre segmentaridade e desenfeitiçamento.

Pois se a primeira é, sabidamente, um modo de

promover modalidades de confl ito (na conhe-

cida forma das oposições e fi ssões segmentares)

e de, ao mesmo tempo, regulá-los (na forma

das fusões segmentares ou dos complexos sis-

temas de vingança e compensação), algo pare-

cido poderia ser dito do enfeitiçamento e de

seu combate. Pois trata-se, aqui também, de

um confl ito ou de uma oposição (entre feiti-

ceiro e enfeitiçado), devidamente sistematizada

e, em geral, resolvida pela intervenção de uma

terceira instância, o desenfeitiçador, que, no

entanto, não aparece como externa e acima das

demais (como ocorreria com uma regulação es-

tatal ou médica de confl itos ou perturbações),

e sim como um aliado e um duplo da vítima

contra seu inimigo. Nesse sentido, a violência

e as formas de, ao mesmo tempo desencadeá-la

e regulá-la, aparecem como tema que de certo

modo atravessa não apenas essas duas fases do

trabalho da autora bem como aquela que a es-

tas se segue.

Do fi nal da década de 1980 ao início da de

1990, foi em torno da feitiçaria e de suas implica-

ções (como modalidade de violência, como par-

te de práticas terapêuticas, como locus de afetos,

como questão para a etnografi a e a antropolo-

gia…) que se concentrou o trabalho de Favret-

Saada. A partir daí, um novo tema – sem dúvida

relacionado aos anteriores – passou a ocupar sua

atenção, a blasfêmia e o projeto de elaboração

de uma antropologia da blasfêmia. Atenção sus-

citada, em parte, pelas reações ao chamado Caso Rushdie e à exibição do fi lme Amem, de Costa-

Gavras, mas também pelo impacto da constata-

ção de que “religiões que sempre se detestaram”

se uniam “contra a modernidade ‘blasfemadora’”

(Favret-Saada 2004a).

Essa antropologia da blasfêmia, por sua

vez, conduziu Favret-Saada à elaboração de

um trabalho (em colaboração, mais uma vez,

com Josée Contreras, psicanalista que com ela

trabalhou em outras ocasiões, especialmente na

-, , |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

edição de parte de suas notas de campo – Fa-

vret-Saada 1981a) acerca das relações entre o

cristianismo e os judeus na Europa nos últimos

dois séculos. Assim como ao que deve ser seu

próximo livro, que examinará como, a partir

de 1880, as apresentações teatrais da Paixão de

Cristo passaram a ser condenadas por diversas

igrejas protestantes, às quais, não obstante, não

apenas não estendiam essa condenação às exibi-

ções cinematográfi cas da mesma Paixão, como

até mesmo as incentivavam.

Não é difícil, pois, perceber que na obra

de Jeanne Favret-Saada agenciam-se, de forma

muito singular, afetos muito diferentes: alguns

ligados à sua história pessoal, outros às suas op-

ções éticas e políticas, outros, ainda, relaciona-

dos com a antropologia como campo de saber,

e assim por diante. Mas uma das originalidades

de seu trabalho talvez resida no fato de que o

principal operador desse agenciamento sejam

os afetos suscitados ou revelados em uma expe-

riência vivida da alteridade, seja no trabalho de

campo, seja por outros meios. O que produz

resultados que, evidentemente, reagem sobre

os próprios afetos agenciados: “há, em mim,

uma espécie de perpétua retroação entre um

modo não partidário de ser em política e um

modo não escolar de fazer a pesquisa” (Favret-

Saada 1984).

Referências bibliográfi cas

Além dos textos acima citados, esta biblio-

grafi a, ainda que incompleta, reúne a maior

parte dos trabalhos de Jeanne Favret-Saada. Seu

último posto acadêmico foi o de diretora de pes-

quisa na École Pratique des Hautes Études, titular

da cadeira de etnologia religiosa da Europa.

1966. “La Segmentarité au Maghreb”. L’Homme, VI:

105-111.

1967. “Le Traditionnalisme par Excès de Modernité”. Ar-chives Européennes de Sociologie, VIII: 71-93.

1968. “Relations de Dépendance et Manipulation de la

Violence en Kabylie”. L’Homme, VIII: 18-44.

1977a. Les Mots, la Mort, les Sorts. Paris: Gallimard.

1977b. “Excusez-Moi, je ne Faisais que Passer”. Les Temps Modernes, 371: 2089-2103.

1981a. Corps pour Corps. Paris: Gallimard (em colabora-

ção com Josée Contreras).

1981b. “Sorcières et Lumières”. In Jeanne Favret-Saada

& Josée Contreras. Corps pour Corps. Paris: Gallimard,

pp. 333-363.

1981c. “Corps pour Corps”. Les Temps Modernes, 416:

1589-1607 (em colaboração com Josée Contreras).

1984. “Jeanne Favret-Saada”. In Idées Contemporaines. Entretiens Le Monde. Paris: La Découverte.

1985. “L’Embrayeur de Violence: Quelques Mécanismes

Th érapeutiques du Désorcèlement” In J. Contreras et alii. Le Moi et l’Autre. Paris, Denoël, pp. 95-148.

1985. “La Th érapie sans le Savoir”. Nouvelle Revue de Psychanalyse, 31.

1989a. “La Genése du ‘Producteur Individuel’”. In Annie

M.D. Lebeuf et alii. Singularités. Textes pour Éric de Dampierre. Paris: Plon, pp. 485-496.

1989b. “Unbewitching as Terapy”. American Ethnologist, 16 (1): 40-56.

1990a. “Etre Aff ecté”. Gradhiva. Revue d’Histoire et d’Archives de l’Anthropologie, 8: 3-9.

1990b. “Ah! La Féline, la Sale Voisine…”. Terrain, 14:

20-31 (em colaboração com Josée Contreras). [http://

terrain.revues.org/document2968.html]

1991a. “Sale Histoire”. Gradhiva. Revue d’Histoire et d’Archives de l’Anthropologie, 10: 3-10.

1991b. “Le Désorcèlement Comme Th érapie”. Ethnologie Française, 2.

1991c. “Rushdie et Compagnie. Préalables à une Anthro-

pologie du Blasphème”. Ethnologie Française, 3.

1994. “Weber, les Émotions et la Religion”. Terrain, 22: 93-

108. [http://terrain.revues.org/document2968.html]

1995. “Liaisons Fatales”. Esprit, 12.

2000. “La-Pensée-Lévi-Strauss”. ProChoix, 13: 13-18.

[http://www.prochoix.org/pdf/levi-strauss.pdf ]

2002. “Amen: une ‘Juste’ Polémique?”. ProChoix, 21.

2004a. “Glissements de Terrains Entretien avec Jeanne

Favret-Saada”. Vacarme, 28. [http://www.vacarme.

eu.org/article449.html]

2004b. Le Christianisme et ses Juifs. 1800-2000. Paris:

Seuil (em colaboração com Josée Contreras).

2005. Algérie, 1962-1964, Essais d’Anthropologie Politi-que. Paris: Éd. Bouchene.

Meu trabalho sobre a feitiçaria no Bocage

francês levou-me a reconsiderar a noção de

afeto, e a pressentir o interesse que haveria em

trabalhá-la: primeiro, para apreender uma di-

mensão central do trabalho de campo (a mo-

dalidade de ser afetado); depois, para fazer uma

antropologia das terapias (tanto “selvagens”

exóticas, como “científi cas” ocidentais); e fi nal-

mente, para repensar a antropologia.

Com efeito, minha experiência de cam-

po com o desenfeitiçamento, e, em seguida,

minha experiência com a terapia analítica le-

varam-me a pôr em questão o tratamento pa-

radoxal do afeto na antropologia: em geral, os

autores ignoram ou negam seu lugar na expe-

riência humana. Quando o reconhecem, ou é

para demonstrar que os afetos são o mero pro-

duto de uma construção cultural, e que não

têm nenhuma consistência fora dessa constru-

ção, como manifesta uma abundante literatura

anglo-saxã; ou é para votar o afeto ao desapa-

recimento, atribuindo-lhe como único destino

possível o de passar para o registro da represen-

tação, como manifesta a etnologia francesa e

também a psicanálise. Trabalho, ao contrário,

com a hipótese de que a efi cácia terapêutica,

quando ela se dá, resulta de um certo trabalho

realizado sobre o afeto não representado.

“Ser afetado”, de Jeanne Favret-Saada*

* FAVRET-SAADA, Jeanne. 1990. “Être Aff ecté”.

In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Archives de l’Anthropologie, 8. pp. 3-9.

PAULA SIQUEIRA

Mestranda em Antropologia Social pelo PPGAS/

MN/UFRJ e pesquisadora de grupos culturais,

política e religião em Nilo Peçanha, no Baixo

Sul da Bahia.

TÂNIA STOLZE LIMA

Professora Doutora de Antropologia pelo

ICHF/UFF.

De um modo mais geral, meu trabalho põe

em causa o fato de que a antropologia acha-se

acantonada no estudo dos aspectos intelectu-

ais da experiência humana, nas produções cul-

turais do “entendimento”, para empregar um

termo da fi losofi a clássica. É – parece-me – ur-

gente, reabilitar a velha “sensibilidade”, visto

que estamos mais bem equipados para abordá-

la do que os fi lósofos do século XVII.

Inicialmente, valem algumas refl exões sobre

o modo como obtive minhas informações de

campo: não pude fazer outra coisa a não ser

aceitar deixar-me afetar pela feitiçaria, e ado-

tei um dispositivo metodológico tal que me

permitisse elaborar um certo saber posterior-

mente. Vou mostrar como esse dispositivo não

era nem observação participante, nem (menos

ainda) empatia.

Quando viajei para o Bocage, em 1968, ha-

via uma abundante literatura etnográfi ca sobre

feitiçaria, composta de dois conjuntos de textos

heterogêneos e que se ignoravam mutuamente:

aquele dos folcloristas europeus (que se tinham

recentemente condecorado com o título vanta-

joso de “etnólogos”, embora não tivessem mu-

dado em nada sua forma de trabalhar), e aquele

dos antropólogos anglo-saxões, sobretudo afri-

canistas e funcionalistas.

Os folcloristas europeus não tinham nenhum

conhecimento direto da feitiçaria rural: seguindo

as prescrições de Van Gennep, eles praticavam

investigações regionais, encontrando-se com as

cadernos de campo n. 13: 155-161, 2005

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

elites locais (o grupo menos bem situado para sa-

ber alguma coisa sobre o assunto) ou enviando-

lhes questionários, interrogando também alguns

camponeses para saber se “ainda se acreditava

nisso”. As respostas recebidas eram tão uniformes

quanto as questões: “aqui, não, mas na aldeia vi-

zinha, são uns atrasados…”. Seguiam-se, ainda,

algumas anedotas céticas ridicularizando os cren-

tes. Para ir direto ao ponto, digamos que os etnó-

logos franceses, desde que se tratasse de feitiçaria,

dispensavam-se tanto de observar como de par-

ticipar (situação que permanece, aliás, a mesma,

ainda em 1990). Os antropólogos anglo-saxões

pretendiam, ao menos, pôr em prática a “obser-

vação participante”. Levei um certo tempo para

deduzir dos seus textos sobre feitiçaria que con-

teúdo empírico podia-se atribuir a essa curiosa

expressão. Em retórica, isso se chama oxímoro:

observar participando, ou participar observando,

é quase tão evidente como tomar um sorvete fer-

vente. No campo, meus colegas pareciam combi-

nar dois gêneros de comportamento: um, ativo,

de trabalho regular com informantes pagos, os

quais eles interrogavam e observavam; o outro,

passivo, de observação de eventos ligados à fei-

tiçaria (disputas, consultas a adivinhos…). Ora,

o primeiro comportamento não pode de forma

alguma ser designado pelo termo “participação”

(o informante, ao contrário, é quem parece “par-

ticipar” do trabalho do etnógrafo); e, quanto ao

segundo, “participar” equivale à tentativa de estar

lá, sendo essa participação o mínimo necessário

para que uma observação seja possível.

Portanto, o que contava, para esses antropó-

logos, não era a participação, mas a observação.

Desta, eles tinham, aliás, uma concepção bas-

tante estreita: sua análise da feitiçaria reduzia-

se àquelas das acusações, porque, diziam eles,

são os únicos “fatos” que um etnógrafo pode

“observar”. Acusar é, para eles, um “compor-

tamento”, é até mesmo o comportamento por

excelência da feitiçaria, já que é o único empiri-

camente verifi cável, todo o resto sendo somen-

te erros e imaginações nativas. (Ressaltemos de

passagem que, para esses autores, falar não é

um comportamento, nem um ato suscetível

de ser observado). Esses antropólogos davam

respostas precisas a uma única questão – quem

acusa quem de o ter enfeitiçado em dada socie-

dade? – mas fi cavam mudos quanto a todas as

outras – como se entra numa crise de feitiçaria?

Como se sai dela? Quais são as idéias, as expe-

riências e as práticas dos enfeitiçados e dos seus

magos? Nem mesmo um autor tão minucioso

quanto Turner permite sabê-lo, e, para se fazer

uma idéia disso, é preciso voltar à leitura de

Evans-Pritchard (1937).

De maneira geral, havia nessa literatura um

perpétuo deslizamento de sentido entre vá-

rios termos que teria sido melhor distinguir: a

“verdade” vinha escorrer sobre o “real”, e este,

sobre o “observável” (aqui, havia uma confu-

são suplementar entre o observável como saber

empiricamente verifi cável, e o observável como

saber independente das declarações nativas),

depois sobre o “fato”, o “ato” ou o “compor-

tamento”. Essa nebulosa de signifi cações tinha

por único traço comum o fato de opor-se a seu

simétrico: o “erro” escorria sobre o “imaginá-

rio”, sobre o “inobservável”, sobre a “crença” e,

por fi m, sobre a “palavra” nativa.

Aliás, não há nada mais incerto que o esta-

tuto da palavra nativa nesses textos: às vezes, ele

é classifi cado entre os comportamentos (acu-

sar) e, às vezes, entre as proposições falsas (in-

vocar a feitiçaria para explicar uma doença). A

atividade de fala – enunciação – é escamoteada,

não restando mais do discurso nativo que seu

resultado, isto é, os enunciados são impropria-

mente tratados como proposições e a atividade

simbólica reduz-se a emitir proposições falsas.

Como se pode ver, todas essas confusões gi-

ram em torno de um ponto comum: a desqua-

lifi cação da palavra nativa, a promoção daquela

do etnógrafo, cuja atividade parece consistir

em fazer um desvio pela África para verifi car

, - |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

que apenas ele detém… não se sabe bem o quê,

um conjunto de noções politéticas, equivalen-

tes para ele à verdade.

Voltemos a minha pesquisa sobre a feitiçaria

no Bocage. Lendo essa literatura anglo-saxã para

ajudar em meu trabalho de campo, fi quei im-

pressionada com uma curiosa obsessão presen-

te em todos os prefácios: os autores (e o grande

Evans-Pritchard não era exceção) negavam regu-

larmente a possibilidade de uma feitiçaria rural

na Europa de hoje. Ora, não somente eu estava

dentro dela, como a feitiçaria era amplamente

verifi cada em várias outras regiões, ao menos

pelos folcloristas europeus. Por que um erro em-

pírico tão evidente, tão grande e tão comparti-

lhado? Sem dúvida, tratava-se de uma tentativa

absurda de realizar novamente a Grande Divisão

entre “eles” e “nós” (“nós” também já acredita-

mos em feiticeiros, mas foi há trezentos anos,

quando “nós” éramos “eles”), e assim proteger

o etnólogo (esse ser a-cultural, cujo cérebro so-

mente conteria proposições verdadeiras) contra

qualquer contaminação pelo seu objeto.

Talvez isso fosse possível na África, mas eu

estava na França. Os camponeses do Bocage

recusaram-se obstinadamente a jogar a Grande

Divisão comigo, sabendo bem onde isso de-

veria terminar: eu fi caria com o melhor lugar

(aquele do saber, da ciência, da verdade, do

real, quiçá algo ainda mais alto), e eles, com o

pior. A Imprensa, a Televisão, a Igreja, a Esco-

la, a Medicina, todas as instâncias nacionais de

controle ideológico os colocavam à margem da

nação sempre que um caso de feitiçaria termi-

nava mal: durante alguns dias, a feitiçaria era

apresentada como o cúmulo do campesinato, e

este como o cúmulo do atraso ou da imbecili-

dade. Assim, as pessoas do Bocage, para proibir

o acesso a uma instituição que lhes prestava ser-

viços tão eminentes, ergueram a sólida barreira

do mutismo, com justifi cações do gênero: “Fei-

tiço, quem não pegou não pode falar disso” ou

“a gente não pode falar disso com eles”.

Pois então, eles falaram disso comigo somen-

te quando pensaram que eu tinha sido “pega”

pela feitiçaria, quer dizer, quando reações que

escapavam ao meu controle lhes mostraram

que estava afetada pelos efeitos reais – freqüen-

temente devastadores – de tais falas e de tais

atos rituais. Assim, alguns pensaram que eu era

uma desenfeitiçadora e dirigiram-se até a mim

para solicitar o ofício; outros pensaram que eu

estava enfeitiçada e conversaram comigo para

me ajudar a sair desse estado. Com exceção

dos notáveis (que falavam voluntariamente de

feitiçaria, mas para desqualifi cá-la), ninguém

jamais teve a idéia de falar disso comigo sim-

plesmente por eu ser etnógrafa.

Eu mesma não sabia bem se ainda era et-

nógrafa. Certamente, nunca acreditei ser uma

proposição verdadeira que um feiticeiro pudesse

me prejudicar fazendo feitiços ou pronuncian-

do encantamentos, mas duvido que os próprios

camponeses tenham algum dia acreditado nis-

so dessa maneira. Na verdade, eles exigiam de

mim que eu experimentasse pessoalmente por

minha própria conta – não por aquela da ci-

ência – os efeitos reais dessa rede particular de

comunicação humana em que consiste a feiti-

çaria. Dito de outra forma: eles queriam que

aceitasse entrar nisso como parceira e que aí

investisse os problemas de minha existência de

então. No começo, não parei de oscilar entre

esses dois obstáculos: se eu “participasse”, o

trabalho de campo se tornaria uma aventura

pessoal, isto é, o contrário de um trabalho; mas

se tentasse “observar”, quer dizer, manter-me à

distância, não acharia nada para “observar”. No

primeiro caso, meu projeto de conhecimento

estava ameaçado, no segundo, arruinado.

Embora, durante a pesquisa de campo, não

soubesse o que estava fazendo, e tampouco o

porquê, surpreendo-me hoje com a clareza das

minhas escolhas metodológicas de então: tudo

se passou como se tivesse tentado fazer da “par-

ticipação” um instrumento de conhecimento.

158 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

Nos encontros com os enfeitiçados e desenfeiti-

çadores, deixei-me afetar, sem procurar pesqui-

sar, nem mesmo compreender e reter. Chegando

em casa, redigia um tipo de crônica desses even-

tos enigmáticos (às vezes aconteciam situações

carregadas de uma tal intensidade que me era

impossível fazer essas notas a posteriori). Esse

diário de campo, que foi durante longo tempo

meu único material, tinha dois objetivos:

– O primeiro era a curto prazo: tentar com-

preender o que queriam de mim, achar uma

resposta a questões urgentes do gênero: “Por

quem X me toma?” (uma enfeitiçada, uma

desenfeitiçadora), “O que Y quer de mim?”

(que eu o desenfeitice…). Eu tinha interesse

em achar uma boa resposta, já que no encon-

tro seguinte, me pediriam para agir. Mas, em

geral, não tinha os meios necessários para isso:

a literatura etnográfi ca sobre feitiçaria, tanto

anglo-saxã quanto francesa, não permitia que

se representasse esse sistema de lugares em que

consiste a feitiçaria. Eu estava justamente expe-

rimentando esse sistema, expondo-me a mim

mesma nele.

– O outro objetivo era a longo prazo: por

mais que vivesse uma aventura pessoal fasci-

nante, em nenhum momento resignei-me a

não compreender. Na época, aliás, não sabia

muito para que ou por que queria poder com-

preender, se para mim, para a antropologia

ou para a consciência européia. Mas eu orga-

nizava meu diário de campo para que servisse

mais tarde a uma operação de conhecimento:

minhas notas eram de uma precisão maníaca

para que eu pudesse, mais tarde, realucinar os

eventos, e então – como eu não estaria mais

“enfeitiçada”, apenas “reenfeitiçada” – compre-

endê-los, eventualmente.

Os leitores de Corps pour Corps terão nota-

do que não há nada neste diário que o asseme-

lhe àqueles de Malinowski ou de Métraux. O

diário de campo era para eles um espaço íntimo

onde podiam enfi m se deixar livres, reencon-

trar-se fora das horas de trabalho, durante as

quais eram obrigados a representar diante dos

nativos. Em suma, um espaço de recreação pes-

soal, no sentido literal do termo. As considera-

ções privadas ou subjetivas estão, ao contrário,

ausentes do meu próprio diário, exceto se tal

evento de minha vida pessoal tivesse sido evo-

cado com meus interlocutores, quer dizer, se

tivesse sido incluído na rede de comunicação

da feitiçaria.

Uma das situações que vivia no campo era

praticamente inenarrável: era tão complexa que

desafi ava a rememoração, e de todos os modos,

afetava-me demais. Trata-se das sessões de de-

senfeitiçamento a que assistia, seja como enfei-

tiçada (minha vida pessoal estava passando pelo

crivo e eu era instada a modifi cá-la), seja como

testemunha dos clientes, mas também da tera-

peuta (eu era constantemente instada a intervir

bruscamente). No começo, tomei muitas notas

depois de chegar em casa, mas era muito mais

para acalmar a angústia de ter-me pessoalmente

engajado. Uma vez que aceitei ocupar o lugar

que me tinha sido designado nas sessões, prati-

camente não tomei mais notas: tudo se passava

muito depressa, deixava-as correr sem pôr-me

questões, e, da primeira sessão até a última, não

tinha compreendido praticamente nada do que

tinha acontecido. Mas registrei discretamente

umas trinta sessões das aproximadamente du-

zentas a que assisti para constituir um material

sobre o qual pudesse trabalhar mais tarde.

A fi m de evitar os mal entendidos, gostaria

de ressaltar o seguinte: aceitar “participar” e ser

afetado não tem nada a ver com uma operação

de conhecimento por empatia, qualquer que

seja o sentido em que se entende esse termo.

Vou considerar as duas acepções principais e

mostrar que nenhuma delas designa o que pra-

tiquei no campo.

Segundo a primeira acepção (indicada na

Encyclopedia of Psychology), sentir empatia con-

sistiria, para uma pessoa, em “vicariously expe-

, - |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

riencing the feelings, perceptions and thoughts of another”1. Por defi nição, esse gênero de empa-

tia supõe, portanto, a distância: é justamente

porque não se está no lugar do outro que se

tenta representar ou imaginar o que seria estar

lá, e quais “sensações, percepções e pensamen-

tos” ter-se-ia então. Ora, eu estava justamente

no lugar do nativo, agitada pelas “sensações,

percepções e pelos pensamentos” de quem ocu-

pa um lugar no sistema da feitiçaria. Se afi rmo

que é preciso aceitar ocupá-lo, em vez de ima-

ginar-se lá, é pela simples razão de que o que ali

se passa é literalmente inimaginável, sobretudo

para um etnógrafo, habituado a trabalhar com

representações: quando se está em um tal lugar,

é-se bombardeado por intensidades específi cas

(chamemo-las de afetos), que geralmente não

são signifi cáveis. Esse lugar e as intensidades

que lhe são ligadas têm então que ser experi-

mentados: é a única maneira de aproximá-los.

Uma segunda acepção de empatia – ein-fühlung, que poderia ser traduzida por co-

munhão afetiva – insiste, ao contrário, na

instantaneidade da comunicação, na fusão com

o outro que se atingiria pela identifi cação com

ele. Essa concepção nada diz sobre o mecanis-

mo da identifi cação, mas insiste em seu resul-

tado, no fato de que ela permite conhecer os

afetos de outrem.

Afi rmo, ao contrário, que ocupar tal lugar

no sistema da feitiçaria não me informa nada

sobre os afetos do outro; ocupar tal lugar afe-

ta-me, quer dizer, mobiliza ou modifi ca meu

próprio estoque de imagens, sem contudo ins-

truir-me sobre aquele dos meus parceiros.

Mas – e insisto sobre esse ponto, pois é aqui

que se torna eventualmente possível o gênero

de conhecimento a que viso –, o próprio fato

de que aceito ocupar esse lugar e ser afetada

por ele abre uma comunicação específi ca com

os nativos: uma comunicação sempre involun-

1. Nota da tradutora: “experimentar, de uma forma indi-reta, as sensações, percepções e pensamentos do outro”.

tária e desprovida de intencionalidade, e que

pode ser verbal ou não.

Quando é verbal, acontece mais ou menos

isto: alguma coisa me impele a falar (digamos,

o afeto não representado), mas não sei o quê, e

tampouco sei por que isso me impele a dizer jus-

tamente aquilo. Por exemplo, digo a um cam-

ponês, em eco a alguma coisa que ele me disse:

“Pois é, eu sonhei que…”, e eu não teria como

explicar esse “pois é”. Ou então meu interlocu-

tor observa, sem fazer qualquer ligação: “Outro

dia, fulano lhe disse que… Hoje, você está com

essas erupções no rosto”. O que se diz aí, impli-

citamente, é a constatação de que fui afetada: no

primeiro caso, eu própria faço essa constatação,

no segundo, é um outro quem a faz.

Quando essa comunicação não é verbal, o

que é então que é comunicado e como? Tra-

ta-se justamente da comunicação imediata que

o termo einfühlung evoca. Apesar disso, o que

me é comunicado é somente a intensidade de

que o outro está afetado (em termos técnicos,

falar-se-ia de um quantum de afeto ou de uma

carga energética). As imagens que, para ele e

somente para ele, são associadas a essa intensi-

dade escapam a esse tipo de comunicação. Da

minha parte, encaixo essa carga energética de

um modo meu, pessoal: tenho, digamos, um

distúrbio provisório de percepção, uma quase

alucinação, ou uma modifi cação das dimensões;

ou ainda, estou submersa num sentimento de

pânico, ou de angústia maciça. Não é neces-

sário (e, aliás, não é freqüente) que esse seja o

caso do meu parceiro: ele pode, por exemplo,

estar completamente inafetado na aparência.

Suponhamos que não lute contra esse esta-

do, que o receba como uma comunicação de

alguma coisa que não saiba o que é. Isso me

impele a falar, mas da forma evocada anterior-

mente (“então, eu sonhei que…”), ou a calar-

me. Nesses momentos, se for capaz de esquecer

que estou em campo, que estou trabalhando, se

for capaz de esquecer que tenho meu estoque

160 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

de questões a fazer… se for capaz de dizer-me

que a comunicação (etnográfi ca ou não, pois

não é mais esse o problema) está precisamen-

te se dando, assim, desse modo insuportável e

incompreensível, então estou direcionada para

uma variedade particular de experiência huma-

na – ser enfeitiçado, por exemplo – porque por

ela estou afetada.

Ora, entre pessoas igualmente afetadas

por estarem ocupando tais lugares, acontecem

coisas às quais jamais é dado a um etnógrafo

assistir, fala-se de coisas que os etnógrafos não

falam, ou então as pessoas se calam, mas trata-

se também de comunicação. Experimentando

as intensidades ligadas a tal lugar, descobre-se,

aliás, que cada um apresenta uma espécie par-

ticular de objetividade: ali só pode acontecer

uma certa ordem de eventos, não se pode ser

afetado senão de um certo modo.

Como se vê, quando um etnógrafo aceita

ser afetado, isso não implica identifi car-se com

o ponto de vista nativo, nem aproveitar-se da

experiência de campo para exercitar seu narci-

sismo. Aceitar ser afetado supõe, todavia, que

se assuma o risco de ver seu projeto de conhe-

cimento se desfazer. Pois se o projeto de conhe-

cimento for onipresente, não acontece nada.

Mas se acontece alguma coisa e se o projeto

de conhecimento não se perde em meio a uma

aventura, então uma etnografi a é possível. Ela

apresenta, creio eu, quatro traços distintivos:

1. Seu ponto de partida é o reconhecimen-

to de que a comunicação etnográfi ca ordinária

– uma comunicação verbal, voluntária e inten-

cional, visando à aprendizagem de um sistema

de representações nativas – constitui uma das

mais pobres variedades da comunicação huma-

na. Ela é especialmente imprópria para forne-

cer informações sobre os aspectos não verbais e

involuntários da experiência humana.

Noto, aliás, que, quando um etnógrafo

lembra-se do que houve de único em sua esta-

da no campo, ele fala sempre de situações em

que não estava em condições de praticar essa

comunicação pobre, pois estava invadido por

uma situação e/ou por seus próprios afetos.

Ora, nas etnografi as, essas situações, apesar de

banais e recorrentes, de comunicação involun-

tária e desprovida de intencionalidade não são

jamais consideradas como aquilo que são: as

“informações” que elas trouxeram ao etnógrafo

aparecem no texto, mas sem nenhuma referên-

cia à intensidade afetiva que as acompanhava

na realidade; e essas “informações” são coloca-

das exatamente no mesmo plano que as outras,

aquelas que são produzidas pela comunicação

voluntária e intencional. Poder-se-ia dizer, in-

clusive, que virar um etnógrafo profi ssional é

tornar-se capaz de maquiar automaticamente

todo episódio de sua experiência de campo em

uma comunicação voluntária e intencional vi-

sando ao aprendizado de um sistema de repre-

sentações nativas.

Eu, ao contrário, escolhi conceder estatuto

epistemológico a essas situações de comunica-

ção involuntária e não intencional: é voltando

sucessivamente a elas que constituo minha et-

nografi a.

2. Segundo traço distintivo dessa etnogra-

fi a: ela supõe que o pesquisador tolere viver em

um tipo de schize. Conforme o momento, ele

faz justiça àquilo que nele é afetado, maleável,

modifi cado pela experiência de campo, ou en-

tão àquilo que nele quer registrar essa experiên-

cia, quer compreendê-la e fazer dela um objeto

de ciência.

3. As operações de conhecimento acham-se

estendidas no tempo e separadas umas das ou-

tras: no momento em que somos mais afetados,

não podemos narrar a experiência; no momento

em que a narramos não podemos compreendê-

la. O tempo da análise virá mais tarde.

4. Os materiais recolhidos são de uma den-

sidade particular, e sua análise conduz inevita-

velmente a fazer com que as certezas científi cas

mais bem estabelecidas sejam quebradas.

, - |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

Consideremos, por exemplo, os rituais de

desenfeitiçamento. Se não tivesse sido assim

afetada, se não tivesse assistido a tantos epi-

sódios informais de feitiçaria, teria dado aos

rituais uma importância central: primeiro,

porque sendo etnógrafa, sou levada a privile-

giar a análise do simbolismo; segundo, porque

os relatos típicos de feitiçaria lhes dão um lugar

essencial. Mas, por ter fi cado tanto tempo en-

tre os enfeitiçados e entre os desenfeitiçadores,

em sessões e fora de sessões, por ter escutado,

além dos discursos de conveniência, uma gran-

de variedade de discursos espontâneos, por ter

experimentado tantos afetos associados a tais

momentos particulares do desenfeitiçamento,

por ter visto fazerem tantas coisas que não eram

do ritual, todas essas experiências fi zeram-me

compreender isso: o ritual é um elemento (o

mais espetacular, mas não o único) graças ao

qual o desenfeitiçador demonstra a existência

de “forças anormais”, as implicações mortais da

crise que seus clientes sofrem e a possibilidade

de vitória. Mas essa vitória (não podemos sobre

esse assunto falar de “efi cácia simbólica”) supõe

que se coloque em prática um dispositivo tera-

pêutico muito complexo antes e muito tempo

depois da efetuação do ritual. Esse dispositivo

pode, é claro, ser descrito e compreendido, mas

somente por quem se permitir dele se aproxi-

mar, quer dizer, por quem tiver corrido o risco

de “participar” ou de ser afetado por ele: em

caso algum ele pode ser “observado”.

Para fi nalizar, uma palavra sobre a ontologia

implícita de nossa disciplina. Em Meurtre dans l’Université Anglaise (L’Âne, nº 21, abril-junho,

1985), Paul Jorion mostra que a antropologia

anglo-saxã pressupõe, entre outras coisas, uma

transparência essencial do sujeito humano a

si mesmo. Ora, minha experiência de campo

– porque ela deu lugar à comunicação não

verbal, não intencional e involuntária, ao sur-

gimento e ao livre jogo de afetos desprovidos

de representação – levou-me a explorar mil as-

pectos de uma opacidade essencial do sujeito

frente a si mesmo. Essa noção é, aliás, velha

como a tragédia, e a ela sustenta também, des-

de há um século, toda a literatura terapêutica.

Pouco importa o nome dado a essa opacidade

(“inconsciente” etc.): o principal, em particular

para uma antropologia das terapias, é poder da-

qui para frente postulá-la e colocá-la no centro

de nossas análises.

Em 1980, no encontro anual da American

Anthropological Association, Victor Witter

Turner, Edward Bruner e Barbara Myerhoff

organizaram um simpósio sobre antropologia

da experiência. Deste simpósio resultaria Th e Anthropology of Experience (1986), com o arti-

go, “Dewey, Dilthey, and Drama: An Essay in

the Anthropology of Experience”, de Turner

(1986).1 Trata-se de um dos seus últimos textos.

Publicado três anos após a morte do seu autor

– e no mesmo ano da publicação de alguns dos

escritos mais conhecidos da antropologia “pós-

moderna”2 –, o subtítulo poderia evocar, para

um leitor desavisado, a imagem de um testamen-

to com os conselhos de um velho antropólogo,

do alto da sua “experiência”, alertando os mais

novos para riscos iminentes. Certamente não é

essa a idéia que Turner tem de experiência.

Se no ensaio de Turner algum conselho

houver, certamente ele não seria da ordem de

“não corram riscos”, ou “evitem perigos”. A eti-

mologia de experiência, ressalta o autor, deriva

do indo-europeu per, com o signifi cado literal,

1. Também em 1980, ao discutir os usos da metáfora

do drama nas ciências sociais, Cliff ord Geertz ([1980]

1983:29) destaca o conceito de experiência como sen-

do uma categoria central para o entendimento da con-

tribuição de Victor Turner ao campo da antropologia.

2. Aqui me refi ro a Writing Culture: Th e Poetics and Poli-tics of Ethnography (Cliff ord e Marcus 1986) e Anthro-pology as Cultural Critique: An Experimental Moment in the Human Sciences (Marcus e Fischer 1986).

Victor Turner e antropologia da experiência

JOHN C. DAWSEY

Professor Livre-Docente do Departamento de

Antropologia da USP e coordenador do Núcleo

de Antropologia da Performance e do Drama

(Napedra/USP).

justamente, de “tentar, aventurar-se, correr ris-

cos”. Experiência e perigo vêm da mesma raiz.

A derivação grega, perao, “passar por”, também

chama a atenção de Turner pelo modo como

evoca a idéia de ritos de passagem.

A idéia de passagem não deixa de ser su-

gestiva. De novo, retomando o início do pará-

grafo anterior, se nesse ensaio algum conselho

houver, é provável que ele seja da espécie que

Benjamin descobriu na atividade do narrador:

uma sugestão de como continuar uma história

(Benjamin 1985b: 200). Porém, não se trata de

testamento. Mais se parece com um manifesto.

Um detalhe: nascido em 1920, Turner não era

tão velho assim quando escreveu este texto.

Num momento de infl exão no campo da

antropologia, três imagens do passado articu-

lam-se ao presente, inscrevendo-se no título de

um ensaio: Dewey, Dilthey e drama. A terceira

imagem não deixa de evocar o jovem Turner

e suas refl exões originárias, saídos do redemoi-

nho dos anos de 1950, quando ele iniciava-se

nas pesquisas de campo.

A fi gura de Dilthey também aparece com

destaque na introdução de From Ritual to Th e-atre: Th e Human Seriousness of Play, na qual

uma premissa se anuncia: a antropologia da

performance é uma parte essencial da antro-

pologia da experiência (Turner 1982b: 13).

Através do processo de performance, o contido

ou suprimido revela-se – Dilthey usa o termo

Ausdruck, de ausdrucken, “espremer”. Citando

cadernos de campo n. 13: 163-176, 2005

164 | .

cadernos de campo • n. 13 • 2005

Dilthey, Turner descreve cinco “momentos”

que constituem a estrutura processual de cada

erlebnis, ou experiência vivida: 1) algo acontece

ao nível da percepção (sendo que a dor ou o

prazer podem ser sentidos de forma mais inten-

sa do que comportamentos repetitivos ou de

rotina); 2) imagens de experiências do passado

são evocadas e delineadas – de forma aguda; 3)

emoções associadas aos eventos do passado são

revividas; 4) o passado articula-se ao presente

numa “relação musical” (conforme a analogia

de Dilthey), tornando possível a descoberta e

construção de signifi cado; e 5) a experiência se

completa através de uma forma de “expressão”.

Performance – termo que deriva do francês an-

tigo parfournir, “completar” ou “realizar intei-

ramente” – refere-se, justamente, ao momento

da expressão. A performance completa uma

experiência (Turner 1982b: 13-14).

A imagem de Dilthey também fulgura em

“Th e anthropology of performance” (Turner

1987b). O próprio Turner apresenta-se nes-

te artigo como um dos precursores da “virada

pós-moderna” na antropologia. O “perigo”, diz

Turner, não vem dos chamados “pós-moder-

nos”, mas das tentativas “clássicas” e recentes

de fazer da antropologia uma das variantes das

ciências naturais, uma ciência do ser huma-

no sem vida, despojada de experiência vivida

– mais um sintoma de uma época em que “o

signifi cado é que não há signifi cado”.3 Daí a

importância de Dilthey. No mundo contem-

porâneo a busca do sentido torna-se cada vez

mais difícil. As afi nidades entre a antropologia

“pós-moderna” e antropologia da experiência

(e da performance) de Turner revelam-se num

“desvio”: a atenção do antropólogo volta-se aos

ruídos e elementos estruturalmente arredios.

Nesta apresentação, levando a sério “a se-

riedade humana da brincadeira” [Th e Human

3. Este comentário, sobre uma época em que “o signi-

fi cado é que não há signifi cado”, aparece em Turner

(1986: 43).

Seriousness of Play] (Turner 1982a), eu gostaria

de “brincar” com o modelo de “drama social”

do autor, explorando uma possível meta-nar-

rativa de Dewey, Dilthey and Drama: An Essay in the Anthropology of Experience. Embora eu

não esteja exatamente contribuindo para ate-

nuar algumas das críticas aos usos da noção

de drama social – que vira, de acordo com

Geertz, “uma fórmula para todas as estações”

(Geertz [1980] 1983: 28) –, intriga-me ver

como o próprio texto de Turner ilumina uma

forma dramática. Alguns ruídos que surgem,

quem sabe, do límen do seu ensaio podem sus-

citar questões em relação à noção de experi-

ência. Haveria em Turner a nostalgia por uma

experiência que se expressa melhor na noção

de erfahrung do que na de erlebnis? Afi nidades

entre a antropologia de Turner e o pensamento

benjaminiano merecem atenção. Assim como

algumas diferenças. Antes de tudo isso, porém,

convido o leitor a um exercício de rememo-

ração do percurso de Turner, que vai, como

veremos, do ritual ao teatro, e do liminar ao

liminoide.

I Ritos e dramas sociais

À primeira vista, o percurso de Turner suge-

re algo como um esquema evolucionista: do ri-

tual ao teatro. No princípio, o ritual. Por outro

lado, questões do pensamento teatral colocam-

se desde o início. Inclusive, a mãe de Turner,

Violet Witter, que era atriz, foi uma das funda-

doras do Teatro Nacional Escocês nos anos de

1920. Em Schism and Continuity in an African Society, Turner supõe que ritos de passagem,

assim como dramas sociais, evocam uma forma

estética que se encontra na tragédia grega (Tur-

ner [1957] 1996). As atenções de Turner para

elementos estruturalmente arredios eviden-

ciam-se desde suas primeiras pesquisas, à luz

das discussões de Max Gluckman sobre “ritos

de rebelião” (Gluckman 1954), de Van Gen-

|

cadernos de campo • n. 13 • 2005

nep sobre “ritos de passagem” ([1908] 1960),

e, certamente, de Violet Witter sobre teatro.

Roland Barthes defi ne teatro como uma ati-

vidade que “calcula o lugar olhado das coisas”

(Barthes 1990: 85). Essa idéia pode ser interes-

sante para se discutir a própria antropologia,

particularmente como ela se manifesta em Vic-

tor Turner. As afi nidades entre procedimentos

etnográfi cos e ritos de passagem são bastante

conhecidas. Ambos envolvem estratégias que

visam produzir efeitos de estranhamento em

relação ao familiar. A partir de deslocamen-

tos do lugar olhado das coisas, conhecimento

é produzido e adquire densidade. A sacada de

Turner foi ver como as próprias sociedades sa-

caneiam-se a si mesmas, brincando com o peri-

go, e suscitando efeitos de paralisia em relação

ao fl uxo da vida cotidiana. Isso através de ritos,

cultos, festas, carnavais, música, dança, teatro,

procissões, rebeliões e outras formas expressi-

vas. Universos sociais e simbólicos se recriam a

partir de elementos do caos.

Nos anos de 1950, vendo como as aldeias

Ndembu ganhavam vida em momentos de cri-

se, Victor Turner elaborou o modelo de drama

social que lhe serviria como instrumento de

análise, inclusive nas formulações posteriores

da antropologia da performance e antropologia

da experiência. Discussões sobre ritos de passa-

gem foram fundamentais para as formulações

de Turner. De acordo com o modelo de Van

Gennep, ritos de passagem envolvem três “mo-

mentos”, ou sub-ritos: 1) de separação, 2) de

transição (“liminares”), e 3) de reagregação. No

modelo de drama social elaborado por Turner,

os três momentos desdobram-se em quatro: 1)

ruptura, 2) crise e intensifi cação da crise, 3)

ação reparadora, e 4) desfecho (que pode levar

à harmonia ou cisão social).

Estruturas sociais – entendidas, sob o sig-

no da antropologia social britânica, como

conjuntos de relações sociais empiricamente

observáveis – estão carregadas de tensões. Em

determinados instantes, tensões afl oram. Ele-

mentos não resolvidos da vida social se mani-

festam. Irrompem substratos mais fundos do

universo social e simbólico. As relações sociais

iluminam-se a partir de fontes de luz subter-

râneas.

Victor Turner produz um desvio metodo-

lógico no campo da antropologia social britâ-

nica. Para se entender uma estrutura, é preciso

suscitar um desvio. Busca-se um lugar de onde

seja possível detectar os elementos não-óbvios

das relações sociais. Estruturas sociais reve-

lam-se com intensidade maior em momentos

extraordinários, que se confi guram como ma-

nifestações de “anti-estrutura”. O antropólogo

procura acompanhar os movimentos surpreen-

dentes da vida social.

Experiências que irrompem em tempos e

espaços liminares podem ser fundantes. Dra-

mas sociais propiciam experiências primárias.4

Fenômenos suprimidos vêm à superfície. Ele-

mentos residuais da história articulam-se ao

presente. Abrem-se possibilidades de comuni-

cação com estratos inferiores, mais fundos e

amplos da vida social. Estruturas decompõem-

se – às vezes, com efeitos lúdicos. O riso faz

estremecer as duras superfícies da vida social.

Fragmentos distantes uns dos outros entram

em relações inesperadas e reveladoras, como

montagens. Figuras grotescas manifestam-se

em meio a experiências carnavalizantes (Turner

1967b: 105-106). No espelho mágico de uma

experiência liminar, a sociedade pode ver-se a

si mesma a partir de múltiplos ângulos, expe-

rimentando, num estado de subjuntividade,

com as formas alteradas do ser.5

No espelho da anti-estrutura, fi guras vis-

tas como estruturalmente poderosas podem

4. Turner discute a noção de “processo primário”, termo

sugerido por Dario Zadra, em seu artigo sobre Hidal-

go e a revolução mexicana (Turner 1974a: 110).

5. A metáfora do “espelho mágico” aparece em vários

escritos de Victor Turner (Turner 1987a: 22).

166 | .

cadernos de campo • n. 13 • 2005

mostrar-se como sendo extremamente frágeis.

Inversamente, personagens estruturalmente

frágeis transformam-se em seres de extraor-

dinário poder (Turner 1969b: 94-130). De

fontes liminares, imagens e criaturas ctônicas

irrompem com poderes de cura para revitalizar

tecidos sociais.6 Entidades ambíguas ou anôma-

las, consideradas como sendo estruturalmente

perigosas, energizam circuitos de comunicação

atrofi ados.7 Abrem-se passagens em sistemas

classifi catórios estáticos. Surgem áreas de con-

tágio. Espaços híbridos. Escândalos lógicos.

Nos momentos de suspensão das relações

cotidianas é possível ter uma percepção mais

funda dos laços que unem as pessoas. Despoja-

das dos sinais diacríticos que as diferenciam e

as contrapõem no tecido social, e sob os efeitos

de choque que acompanham o curto-circuito

desses sinais numa situação de liminaridade,

pessoas podem ver-se frente a frente. Sem me-

diações. Voltam a sentir-se como havendo sido

feitas do mesmo barro do qual o universo so-

cial e simbólico, como se movido pela ação de

alguma oleira oculta, recria-se. A essa experiên-

cia Turner dá o nome de communitas.8

Da experiência no límen, propiciada por

dramas sociais, surgem poderosos símbolos

6. O terceiro momento dos dramas sociais, referente à

reparação de crises, é propício, de acordo com Turner,

para a manifestação de ritos de cura (Turner 1968;

1967a: 359-393).

7. A discussão de Mary Douglas sobre o pangolim em

rituais da cultura lele oferece um exemplo desse fenô-

meno (Douglas [1966] 1976: 202-204).

8. Turner encontra nas discussões de Durkheim sobre

“efervescência social” um exemplo de liminaridade e

communitas (Durkheim [1912] 1989: 456). Com-

munitas, termo inspirado pelas refl exões de Martin

Buber, não deve ser confundido com qualquer prin-

cípio de organização social em comunidade, ou com

formas de solidariedade descritas por Durkheim.

Trata-se de uma experiência que irrompe de modo

espontâneo a partir de momentos de interrupção das

formas de organização social (Turner 1969b: 126-

127).

multivocais.9 Assim se articulam diferenças. Os

fi os que tecem as redes de signifi cado unifi cam-

se em tramas carregadas de tensões.

II Do liminar ao liminoide

A publicação de From Ritual to Th eatre: Th e Human Seriousness of Play, em 1982, marca

uma infl exão no pensamento de Victor Turner.

Aqui se encontram as suas primeiras formula-

ções sobre uma antropologia da performance,

um campo de estudos que surge nas interfaces

da antropologia e do teatro nos anos de 1970,

a partir do encontro e colaboração entre Vic-

tor Turner e Richard Schechner. Uma de suas

afi rmações é particularmente reveladora. Até

aqui as ciências sociais praticamente só têm se

preocupado com questões de estrutura e de-

sempenho de papéis, diz Turner. A sua própria

abordagem, ele prossegue, procura focar os

momentos de interrupção de papéis (Turner

1982c: 46).

Esta questão é retomada em “Th e Anthro-

pology of Performance”, onde Turner aponta

as diferenças entre a abordagem de Erving Go-

ff man e a sua.10 Ao passo que Goff man apre-

senta-se como um observador do teatro da vida

cotidiana, Turner se interessa particularmente

pelos momentos de suspensão de papéis, ou

seja, pelo meta-teatro da vida social.11

Em “Liminal to liminoid, in Play, Flow,

Ritual: An Essay in Comparative Symbology”,

Turner procura comparar sistemas simbólicos

de culturas que se desenvolveram antes e depois

9. Dois artigos de Turner discutem a polifonia dos sím-

bolos e o modo como eles surgem ou são elaborados

em meio aos dramas sociais (Turner 1974a: 98-155;

1974c: 60-97).

10. De Goff man, ver, especialmente, Th e Presentation of Self in Everyday Life (1959).

11. Turner diz: “se a vida cotidiana pode ser consideradea

como uma espécie de teatro, o drama social pode ser

visto como meta-teatro...” (Turner 1987b: 76; minha

tradução).

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

da revolução industrial (Turner 1982c:30). A

palavra liminoid, inventada por Turner, apre-

senta a terminação oid, derivada do grego eidos que designa “forma” e sinaliza “semelhança”.

Liminoid, portanto, é semelhante sem ser idên-

tico ao liminar.

As idéias sobre gêneros liminoides de ação

simbólica haviam sido anunciadas, embora não

elaboradas, no prefácio de Dramas, Fields and Metaphors: Symbolic Action in Human Society, in-

dicando a direção de suas pesquisas posteriores:

Eu gostaria de sugerir a idéia de que aquilo que

temos tratado como sendo os gêneros “sérios”

de ação simbólica – ritual, mito, tragédia, e

comédia (no seu “nascimento”) – estão pro-

fundamente implicados em visões repetitivas

do processo social, ao passo que os gêneros que

fl oresceram desde a Revolução Industrial (as ar-

tes e ciências modernas), embora menos sérios

aos olhos da população em geral (ciência pura,

entretenimento, interesses da elite), têm apre-

sentado um potencial maior para transformar

os modos como as pessoas se relacionam entre

elas e o conteúdo de suas relações. Sua infl uên-

cia tem sido mais insidiosa. Tendo-se em vista o

fato de se manifestarem em espaços exteriores às

arenas centrais da produção industrial, e de se

constituírem analogamente como “liminoides”

em relação aos processos e fenômenos limina-

res de sociedades tribais e agrárias, a sua própria

exterioridade as libera da atividade funcional

em relação ao pensamento e comportamento

dos membros da sociedade. Constituem para os

seus agentes e audiências uma atividade optativa

– a ausência de obrigações ou constrangimentos

advindos de normas externas lhes confere uma

qualidade prazerosa que favorece a sua absorção

nas consciências individuais. Desta forma, o pra-

zer transforma-se em assunto sério no contexto

de mudanças inovadoras (Turner 1974b:16; mi-

nha tradução).

Nas culturas pré-industriais, esferas de ati-

vidade ritual não se separam do trabalho: ritu-

al é trabalho. E trabalho não se desvincula da

vida lúdica da coletividade. Nessas sociedades,

particularmente, a brincadeira constitui um

dos componentes centrais dos processos de re-

vitalização de estruturas existentes. O espelho

mágico dos rituais propicia uma poderosa ex-

periência coletiva.

Sociedades industrializadas produzem o que

poderíamos chamar de um descentramento e

fragmentação da atividade de recriação de uni-

versos simbólicos. Esferas do trabalho ganham

autonomia. Como instância complementar ao

trabalho, surge a esfera do lazer – que não dei-

xa de se constituir como um setor do mercado.

Processos liminares de produção simbólica per-

dem poder na medida em que, simultaneamen-

te, geram e cedem espaço a múltiplos gêneros de

entretenimento. As formas de expressão simbó-

lica se dispersam, num movimento de diáspo-

ra, acompanhando a fragmentação das relações

sociais. O espelho mágico dos rituais se parte.

Em lugar de um espelhão mágico, poderíamos

dizer, surge uma multiplicidade de fragmentos

e estilhaços de espelhos, com efeitos caleidos-

cópicos, produzindo uma imensa variedade de

cambiantes, irrequietas e luminosas imagens.12

As diferenças e semelhanças sinalizadas por

Turner em sua análise exploratória dos fenô-

menos liminares e liminoides são resumidas a

seguir:

1) Fenômenos liminares tendem a predo-

minar em sociedades tribais ou agrárias, ca-

racterizando-se por princípios que Durkheim

chamou de “solidariedade mecânica”. Fenôme-

nos liminoides ganham destaque em socieda-

des de “solidariedade orgânica”, em meio aos

desdobramentos da Revolução Industrial.

12. Cf. nota 5, para uma referência do uso da metáfora

do “espelho mágico” em Turner. A metáfora do esti-

lhaçamento de um “espelhão mágico” é inferida de

suas discussões.

168 | .

cadernos de campo • n. 13 • 2005

2) Fenômenos liminares tendem a emergir

de uma experiência coletiva, associando-se a

ritmos cíclicos, biológicos e sócio-estruturais,

ou com crises que ocorrem nesses processos.

Fenômenos liminoides geralmente apresen-

tam-se como produtos individuais, embora os

seus efeitos freqüentemente sejam coletivos ou

de “massa”.

3) Fenômenos liminares integram-se cen-

tralmente ao processo social total, constituindo

o pólo negativo, subjuntivo e anti-estrutural

de um todo que se constitui de modo dialé-

tico. Fenômenos liminoides desenvolvem-se às

margens dos processos centrais da economia

e política. Trata-se de manifestações plurais,

fragmentárias, e experimentais que ocorrem

nas interfaces e interstícios do conjunto de ins-

tituições centrais.

4) Fenômenos liminares tendem a apre-

sentar características semelhantes às que se

encontram nas discussões de Durkheim sobre

“representações coletivas”. Trata-se da produção

de símbolos que evocam signifi cados intelectu-

ais e emotivos comuns a todos os membros do

grupo. Embora se manifestem freqüentemen-

te como a antítese das representações coletivas

“profanas”, não deixam de compartilhar das

suas feições coletivas. Fenômenos liminoides

tendem a apresentar características mais idios-

sincráticas, associando-se a indivíduos e gru-

pos específi cos que freqüentemente competem

num mercado do lazer, ou de bens simbólicos.

Nesse caso, as dimensões “pessoais e psicológi-

cas” dos símbolos têm preponderância sobre as

dimensões “objetivas e sociais”.

5) Fenômenos liminares, mesmo quando

produzem efeitos de inversão, tendem a re-

vitalizar estruturas sociais e contribuir para o

bom funcionamento dos sistemas, reduzindo

ruídos e tensões. Fenômenos liminoides, por

outro lado, freqüentemente surgem como ma-

nifestações de crítica social que, em determina-

das condições, podem suscitar transformações

com desdobramentos revolucionários (Turner

1982c: 53-55).

III O drama de “Dewey, Dilthey, and Drama...”

Agora, passemos ao ensaio que serve como

pré-texto desta apresentação. Invocando o es-

pírito liminoide que, de acordo com Turner,

caracteriza boa parte da atividade intelectual

no mundo contemporâneo, como também a

“seriedade humana da brincadeira” (que talvez

a caracterize um pouco menos) – sou tentado,

como já falei no início desta apresentação, a

brincar com o modelo de drama social do au-

tor, aplicando-o ao próprio “Dewey, Dilthey,

and Drama: An Essay in the Anthropology

of Experience”. O artigo, de fato, apresenta

elementos de um drama, que podem ser pen-

sados em termos dos momentos de “ruptura”,

“crise e intensifi cação da crise”, “ação repara-

dora” e “desfecho”. No drama do artigo – e

aqui é preciso atenção – a própria metáfora

do drama social de Turner aparece como mo-

mento importante de “reparação” da crise,

junto às contribuições de Dilthey e Dewey. O

elemento de “ruptura” pode ser identifi cado

com a Revolução Industrial. E a “crise e in-

tensifi cação da crise” com as difi culdades en-

contradas para ressignifi car o mundo. Trata-se

de uma “crise de ação simbólica”. O indivíduo

carrega a responsabilidade de dar sentido ao

seu universo. Os gêneros expressivos foram

desmembrados e perderam poder no mundo

contemporâneo. Foram colocados às mar-

gens dos processos sociais centrais. As noções

de drama social e liminaridade (e suas fontes

de poder) são importantes para se buscar um

desfecho “feliz”. Este vem com uma discussão

sobre a experiência de communitas suscitada

pelo teatro!

Tomando os quatros momentos do “dra-

ma social” como elementos meta-narrativos

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

(codifi cados “a”, “b”, “c”, e “d”), as seqüências

do ensaio de Turner podem ser analisadas da

seguinte forma:

[C1] AÇÃO REPARADORA: DEWEY. Inicia-se com uma discussão de Dewey, autor

estratégico por sua ênfase na articulação das

tradições do passado ao presente (o tempo do

“agora”). Tradição não precisa (nem deve?) virar

sacrifício. Assim como a tradição, a expressão

artística não se desvincula do cotidiano. Trata-

se de uma “celebração da experiência cotidiana

(ordinary experience)”. Dewey aparece, no con-

texto do ensaio, como um dos atores centrais

que contribuem para uma “ação reparadora” da

“crise” de fundo, ainda a ser delineada. Porém,

Turner irá propor algumas reformulações em

relação à sua noção de experiência.

[C2] AÇÃO REPARADORA: DILTHEY. A primeira reformulação vem de Dilthey, que

propicia uma distinção fundamental entre

“mera experiência” e “uma experiência”. Aqui

se introduz a noção de erlebnis, experiência

vivida. A etimologia de experiência remete à

noção de “perigo”, etc. Os elementos do mode-

lo de experiência discutidos na introdução de

From Ritual to Th eatre aparecem, embora não

de modo esquemático. Dilthey surge como

uma poderosa fi gura ancestral, tal como as

que irrompem durante ritos de cura entre os

Ndembu.13

[B] CRISE E INTENSIFICAÇÃO DA CRISE: DIFICULDADE LIMINOIDE DE SIGNIFICAR O MUNDO. Surgem as pri-

13. Como já foi visto, Dilthey é uma fi gura recorrente

nos artigos de Turner. Na introdução de From Ritu-al to Th eatre: Th e Human Seriousness of Play, Turner

imagina a frase “O Professor Dilthey aprovaria” como

um selo fi nal de aprovação das tentativas de gerar-

se uma antropologia e um teatro da experiência (Cf.

Turner 1982b: 18).

meiras referências ao que se poderia ver, nos

termos do modelo de “drama social”, como “a

crise e intensifi cação da crise”. Turner discute

as difi culdades de se recriar universos sociais e

simbólicos no mundo contemporâneo, onde

indivíduos se vêem sozinhos e abandonados

diante da responsabilidade de darem sentido

às suas vidas. Trata-se de uma “crise de ação

simbólica”. Como essa discussão segue à apre-

sentação da noção de erlebnis, seria possível

perguntar se Turner não estaria se vendo diante

dos limites dessa idéia de experiência.

[C3] AÇÃO REPARADORA: A METÁ-FORA DO “DRAMA SOCIAL” DE TUR-NER. Turner parece sinalizar algo nessa direção:

a unidade de experiência de Dilthey privilegia

questões de cultura e psicologia. Talvez a men-

ção à psicologia seja crucial. Em “Liminal to

liminoid...” Turner observa que símbolos limi-

noides tendem a ser de natureza “pessoal e psi-

cológica” em vez de “objetiva e social”. Até que

ponto erlebnis se restringe à experiência vivida

do indivíduo? O artigo de Roger D. Abrahams,

que segue ao de Turner em Th e Anthropology of Experience, é bastante explícito nesse senti-

do (Abrahams 1986: 45-72). Abrahams suge-

re cautela nos usos da noção de “experiência”,

produzindo um distanciamento refl exivo em

relação ao entusiasmo demonstrado por ela ao

longo da história cultural dos Estados Unidos.

De qualquer forma, num movimento que re-

vela o caráter propositivo de seu ensaio, Turner

procura demonstrar a relevância de sua noção

de “drama social” para questões de “experiên-

cia”. Dramas sociais podem propiciar formas

de acesso a substratos do universo social e sim-

bólico. Ritos que surgem como expressões de

“ação reparadora” (terceiro momento do drama

social), assim como ritos que inauguram mo-

mentos de “ruptura” (primeiro), criam o “pal-

co” para que estruturas de experiência únicas

(erlebnis) possam ocorrer. Isso devido às fontes

170 | .

cadernos de campo • n. 13 • 2005

de poder (e perigo) que se associam ao límen.

Enfi m, a própria noção de “drama social”, em

conjunto com as idéias de Dilthey e Dewey,

apresenta-se, na organização do artigo, como

elemento crucial para a “reparação da crise”.

[A] RUPTURA: REVOLUÇÃO INDUS-TRIAL; e [B] CRISE E INTENSIFICAÇÃO DA CRISE: DIFICULDADE LIMINOIDE DE SIGNIFICAR O MUNDO. Turner ob-

serva: “os rápidos avanços na escala e comple-

xidade da sociedade, particularmente após a

industrialização, fi zeram passar essa confi gu-

ração liminar unifi cada pelo prisma da divisão

do trabalho (...) reduzindo cada um dos seus

domínios sensoriais a um conjunto de gêneros

de entretenimento que fl orescem no tempo de

lazer da sociedade, não mais no lugar central de

controle” (Turner 1986: 42). Sinaliza-se nesse

trecho, com a menção à industrialização, aquilo

que pode ser entendido como o primeiro mo-

mento do “drama social”: a “ruptura”. A seguir,

o autor evoca processos associados ao que pode-

mos interpretar como a “crise e intensifi cação da

crise”, referindo-se aos “gêneros especializados

amputados” que surgem do “desmembramen-

to” (sparagmos) das formas de ação simbólica.

Mas Turner também sugere perspectivas para

um desfecho “feliz”: em meio à fragmentação

dos gêneros, há sinais de uma busca para recu-

perar dimensões suprimidas da experiência do

“numinoso”, característica do “ritual arcaico”.

[C1] e [C3]. AÇÃO REPARADORA: DEWEY E DRAMA SOCIAL. A seguir, Tur-

ner retoma a discussão de Dewey – de que “a

forma estética do teatro é inerente à própria

vida sociocultural”. Mas, interpreta Dewey à

luz da noção de “drama social”. A natureza te-

rapêutica e refl exiva do teatro tem suas fontes

na liminaridade. Trata-se de uma unifi cação de

posições (as de Turner e Dewey, inicialmente

distintas) para a “ação reparadora”.

[D] DESFECHO: COMMUNITAS. En-

fi m, o desfecho. As idéias de Dewey, comple-

mentadas por investigações na neurobiologia,

contribuem para mostrar que o teatro e outros

gêneros de performance podem suscitar experi-

ências de communitas. “Um senso de harmonia

com o universo se evidencia e o planeta inteiro é

sentido como uma communitas” (Turner 1986:

43). Pouco antes de chegar a esse momento cli-

mático, Turner comenta que o ritual e as artes

performativas derivam do cerne (“coração”)

liminar do drama social – até mesmo, como

acontece freqüentemente em “culturas decli-

nantes”, em que “o signifi cado é de que não há

signifi cado”. Completou-se um percurso. Da

“celebração da experiência cotidiana (ordinary experience)” de Dewey chegou-se, em compa-

nhia do próprio Dewey, à experiência extraor-

dinária que interrompe o cotidiano, dando-lhe

sentido. E, sob a inspiração de Dilthey, o gran-

de espírito protetor ancestral, foi-se da “mera

experiência” a “uma experiência”.

Enfi m, esse exercício de interpretação da

meta-narrativa “dramática” do texto de Turner

sugere um forma:

Frase inicial Título Dewey, Dilthey, e drama C1 Ação reparadora DeweyC2 Ação reparadora DiltheyB Crise... Difi culdade liminoide...C3 Ação reparadora Drama (Turner)A Ruptura Revolução industrialB Crise... Difi culdade liminoideC1 e C3 Ação reparadora Dewey e drama (Turner)

D Desfecho Communitas(Dewey, Dilthey e drama)

Esta codifi cação poderá evocar “as partes de

uma peça musical – que são repetidas, variadas,

combinadas, e retomadas”.14 A analogia é pro-

pícia. Conforme o modelo de experiência de

14. Agradeço ao meu orientando, André-Kees de Moraes

Schouten, mestrando do Programa de Pós-Graduação

em Antropologia Social da USP, por esta observação.

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

Dilthey, citado no início desta apresentação, a

descoberta e construção do signifi cado tornam-

se possíveis na medida em que o passado arti-

cula-se ao presente numa “relação musical”. Na

frase inicial do título irrompem três imagens

do passado: Dewey, Dilthey, e... o jovem Tur-

ner (que elaborou o modelo do drama social).

Estas, poderíamos sugerir, articulam-se a um

presente que é vivido como uma “crise”: a di-

fi culdade liminoide de ressignifi car o mundo.15

No caso de Dewey e Dilthey, particularmente,

trata-se de vozes “ancestrais” oriundas de subs-

tratos mais próximos aos de onde ocorrem os

abalos originários da “ruptura”, a Revolução

Industrial. No desfecho, ressoam novamente

Dewey, Dilthey e drama – agora em voz unís-

sona. Até mesmo alguns ruídos evocativos da

“crise” retornam neste fi nal. Vamos a eles.

IV Ruídos

Um “fi nal feliz”: podemos ter experiências

de communitas no teatro. Porém, o desfecho

do artigo – como revela a frase de Turner sobre

“culturas declinantes” – não elimina os ruídos.

Seria surpreendente para o próprio Turner, par-

ticularmente, se os eliminasse: desfechos harmo-

nizantes (ou até unissonantes) tendem a oferecer

apenas soluções parciais e provisórias. Mesmo

sem recorrer a Bertolt Brecht, Antonin Artaud,

Nelson Rodrigues, José Celso Martinez Corrêa

ou outras expressões do teatro contemporâneo,

há no próprio texto de Turner – imagino no seu

límen, em meio a inúmeras “sugestões de como

continuar a história” – razões para estranhar-se o

desfecho. Se há nos escritos de Turner uma espé-

cie de nostalgia por experiências de communitas,

15. Observa-se que o ensaio foi publicado, como vimos

anteriormente, no mesmo ano em que ganha força,

no campo da antropologia, a percepção de uma “crise

das representações” – através da publicação de dois

dos textos mais conhecidos da antropologia “pós-mo-

derna”. Cf. nota no. 2.

também lá se encontram bons indícios de caute-

la em relação às suas manifestações. Ressalta-se

nesse autor, além da busca por communitas, a

sua atenção aos ruídos. Um lembrete: aquilo que

interessa a Turner é o que ele chama de “com-

munitas espontânea”, e não as manifestações su-

perfi ciais, discutidas no capítulo quatro de Th e Ritual Process, como “communitas ideológica” e

“communitas normativa” (Turner 1969a: 131-

165).

Hoje temos acesso a experiências liminoides,

cujas origens remetem às dimensões do liminar,

diz Turner. Até que ponto é possível num mun-

do pós-revolução industrial o acesso direto a ex-

periências liminares não está claro. No fi nal de

“Liminal to liminoid...” Turner parece buscar

na noção de fl ow (fl uxo) de Csikszentmihalyi

– noção que se refere ao envolvimento total da

pessoa naquilo que ela faz – algo parecido com a

communitas (Csikszentmihalyi 1990). O desfe-

cho daquele artigo – em contraste com “Dewey,

Dilthey and drama...” – é anti-climático: com-

munitas é algo que se manifesta entre indivídu-

os, enquanto fl ow acontece no indivíduo. Flow

pertence ao domínio da estrutura.

Duas questões se oferecem:

1. A nostalgia de Turner pela experiência

liminar que os rituais em sociedades de soli-

dariedade mecânica podem proporcionar teria

a ver com uma percepção aguda, embora não

explicitada, dos limites da noção de erlebnis, experiência vivida? Creio que a tentativa de ar-

ticular a noção de dramas sociais à discussão

sobre erlebnis sugere que sim.

2. Rondando esse ensaio – no seu límen,

quem sabe – não haveria outra categoria de

experiência discutida por Dilthey – erfahrung?

Não seria esta categoria mais apropriada do

que a de erlebnis para iluminar a nostalgia de

Turner por uma experiência coletiva, vivida em

comum, passada de geração em geração, e ca-

paz de recriar um universo social e simbólico

pleno de signifi cado?

172 | .

cadernos de campo • n. 13 • 2005

V Benjaminianas

As afi nidades entre as visões de Victor Tur-

ner a respeito de fenômenos e processos limina-

res, e a de Benjamin sobre erfahrung chamam

atenção. Ambas evocam a idéia de passagem.

“Lembremos aqui”, diz Gagnebin, “que a pa-

lavra Erfahrung vem do radical fahr – usado

ainda no antigo alemão no seu sentido literal

de percorrer, de atravessar uma região durante

uma viagem” (Gagnebin 1994: 66).

Experiência, no sentido de erfahrung, for-

ma-se através da associação de dois saberes: da

pessoa que vem de longe, vista como quem

tem muito que contar; e da pessoa que passou

a vida “sem sair do seu país e que conhece suas

histórias e tradições”. Benjamin escreve:

Se quisermos concretizar esses dois grupos

através dos seus representantes arcaicos, po-

demos dizer que um é exemplifi cado pelo

camponês sedentário, e outro pelo marinhei-

ro comerciante. (...) A extensão real do reino

narrativo, em todo o seu alcance histórico, só

pode ser compreendido se levarmos em conta

a interpenetração desses dois tipos arcaicos. O

sistema corporativo medieval contribuiu espe-

cialmente para essa interpenetração. O mestre

sedentário e os aprendizes migrantes traba-

lhavam juntos na mesma ofi cina; cada mestre

tinha sido um aprendiz ambulante antes de

se fi xar em sua pátria ou no estrangeiro. (...)

No sistema corporativo associava-se o saber

das terras distantes, trazidos para casa pelos

migrantes, com o saber do passado, recolhido

pelo trabalhador sedentário (Benjamin 1985b:

198-199).

A interpenetração desses dois saberes – tal

como acontece nos ritos de passagem – requer

a transformação do estranho em familiar, e, ao

mesmo tempo, um movimento inverso capaz

de provocar, em relação ao familiar, um efei-

to de estranhamento. No relato benjaminiano,

tanto a fi gura do sedentário como a do estran-

geiro produzem estranhamento: uma, no caso

do estrangeiro, suscitando distância espacial, e

outra, no caso do sedentário, distância tempo-

ral. Através do saber recolhido pelo sedentário,

o passado faz estremecer o presente.

Um detalhe chama atenção: a relação entre

o mestre sedentário e os aprendizes migrantes

se constitui numa ofi cina de trabalho. Num

ambiente como esse, ao mesmo tempo em que

elementos extraordinários iluminam o cotidia-

no, este não deixa de provocar os seus próprios

efeitos de interrupção – sobre as teias do ex-

traordinário. Esse detalhe, parece-me, pode ser

signifi cativo, iluminando algumas das margens

do pensamento de Turner.

Mas, antes de lidar com essas ou outras

margens, deve-se ressaltar uma segunda afi -

nidade entre as visões dos dois autores: a dis-

cussão de Turner sobre o enfraquecimento

da experiência de liminaridade no mundo

contemporâneo ressoa nas análises benjami-

nianas sobre o declínio da grande tradição

narrativa, e debilitação de uma experiência

coletiva, comunicável, e tecida na passagem

das gerações (erfahrung). Sabedoria, diz Ben-

jamin, se expressa num conselho a respeito de

como continuar uma história. Na medida em

que as pessoas já não passam pelas mesmas

experiências, ou, se passando, não conseguem

articular o presente ao que foi transmitido de

geração em geração – como no caso dos sol-

dados que voltavam mudos da guerra –, a ca-

pacidade de dar conselhos entra em declínio.

Resta-lhes a sua experiência vivida, erlebnis – e, diante da fragmentação da experiência

coletiva, a perplexidade em relação ao sentido

de suas vidas.

Há, ainda, uma terceira afi nidade. Ao depa-

rar-se com as novas formas narrativas do cine-

ma, da fotografi a, etc., Benjamin encontra, em

sua dimensão mais profunda, algo que evoca

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

a grande tradição narrativa: o seu “não-acaba-

mento essencial” (Gagnebin 1985:12). Trata-

se da abertura dessa tradição para as múltiplas

e espantosas possibilidades interpretativas.

Como exemplo de narrativa tradicional, Ben-

jamin apresenta a história de Psammenites,

contada por Heródoto. E diz:

Heródoto não explica nada. Seu relato é dos

mais secos. Por isso essa história do antigo

Egito ainda é capaz, depois de milênios, de

suscitar espanto e refl exão. Ela se assemelha

a essas sementes de trigo que durante milha-

res de anos fi caram fechadas hermeticamente

nas câmaras das pirâmides e que conservam

até hoje suas forças germinativas (Benjamin

1985b: 204).

De modo semelhante, nos substratos mais

fundos do entretenimento e dos novos gêneros

de ação simbólica, Turner descobre as fontes do

poder liminar. As formas expressivas que ger-

minaram após a Revolução Industrial também

propiciam manifestações do caos criativo, ca-

pazes de surpreender, com efeitos de estranha-

mento, as confi gurações do real, energizando

e dando movência aos elementos do universo

social e simbólico. Embora estejam às margens

de processos centrais de reprodução da vida

social, estas expressões liminoides apresentam

um potencial ainda maior do que as formas ar-

caicas para promover a transformação das rela-

ções humanas.

VI. Margens das margens

Antes de abandonar esta apresentação, ar-

risco algumas questões:

1. O que dizer do ruído – a frase sobre “cul-

turas declinantes” em que “o signifi cado é de

que não há signifi cado” – provocado por Tur-

ner no momento em que o seu ensaio chega a

um “fi nal feliz”? Ressalta-se que o ruído ime-

diatamente precede algumas de suas afi rma-

ções mais entusiasmadas sobre communitas.16

Como interpretá-lo? Haveria aqui uma hesita-

ção, e, quem sabe, um indício da cautela de

Turner diante de manifestações de communi-

tas, particularmente em meio à fragmentação

das relações sociais e ao estilhaçamento do es-

pelho mágico do ritual?17

2. Considerando-se que a experiência de

communitas tende a irromper às margens da

sociedade, o ruído produzido no texto de Tur-

ner seria proveniente de um duplo desloca-

mento – às margens das margens?18

16. “Um senso de harmonia com o universo se evidencia

e o planeta inteiro é sentido como uma communitas”

(Turner 1986: 43).

17. Tendo-se em vista o movimento de expansão do uni-

verso liminoide e seus efeitos de descentramento nas

esferas de ação simbólica – evocativos, quem sabe, de

uma espécie de revolução copernicana sob a égide do

mercado –, haveria nas expressões de nostalgia por

liminaridade e communitas uma reação centrípeta,

ou, ainda, uma tentação ptolomaica? Até que ponto

a nostalgia pelo liminar manifesta processos de for-

mação, num mercado do lazer, de centros de poder

simbólico para controle e uso do “caos criativo” que

se associa aos gêneros liminoides de expressão?

Em meio ao estilhaçamento, ressalta-se a perplexida-

de dos indivíduos. Mas, haveria como reviver as con-

dições do teatro antigo? O que implicaria “transferir

o peso da responsabilidade de atribuição de signifi -

cado do indivíduo para o grupo” (Turner 1986: 37)?

Como reconstituir a coesão do universo simbólico em

meio à proliferação das possibilidades interpretativas?

E, nessas circunstâncias, como reviver experiências de

communitas – sem que elas virem experiências coleti-

vas em que “o signifi cado é a falta de signifi cado”? En-

fi m, uma questão de fundo: a constituição de centros

gravitacionais num universo liminoide, e seus efeitos

de atração sobre as margens.

18. O que irrompe às margens das margens? Turner

compara uma experiência, no sentido que lhe é dado

por Dilthey, a “uma pedra num jardim de areia Zen”

(Turner 1986: 35). Quando pedras viram areia na ór-

bita de uma reação centrípeta – em meio ao possível

ofuscamento da visão – talvez seja preciso um duplo

deslocamento do lugar olhado das coisas. Isso, para

174 | .

cadernos de campo • n. 13 • 2005

3. Se a experiência liminar caracteriza-se

pelo efeito de estranhamento que se produz

em relação ao cotidiano, este ruído pode sina-

lizar um estranhamento às avessas, provocado

em relação ao extraordinário?19 Isso, a partir

de um cotidiano estranhado? Não haveria aqui

uma afi nidade com ruídos produzidos em de-

terminadas ofi cinas de trabalho, tais como as

dos mestres sedentários e aprendizes migrantes

discutidas por Benjamin, conforme vimos an-

teriormente?

4. Nas ofi cinas medievais, Benjamin se de-

para com a abertura da grande tradição narrati-

va para as múltiplas e espantosas possibilidades

interpretativas. Se o modelo de drama social de

Victor Turner, assim como o modelo de ritos

de passagem de Van Gennep, nos leva a pen-

sar em termos de uma oposição dialética entre

dois momentos, o cotidiano e o extraordinário,

o caso dessas ofi cinas não apresentaria um de-

safi o metodológico, levando-nos a falar de um

cotidiano extraordinário ou extraordinário co-

tidiano, que se confi gura num quase susto ou

espanto diário? E de um espanto que se aloja

numa tradição? Walter Benjamin escreve: “A

tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado

de exceção’ é a regra” (Benjamin 1985c: 226).

Ao tentar distinguir a sua abordagem da de

Erving Goff man, Turner evoca, como vimos,

uma distinção entre teatro e meta-teatro. Ao

passo que Goff man toma interesse pelo teatro

da vida cotidiana, Turner procura focar os mo-

mentos de interrupção, os instantes extraor-

dinários, ou seja, o teatro desse teatro. Turner

descobrir elementos que se distinguem ou escapam

inclusive da periferia carnavalizante do movimento

ordenador – e para que o extraordinário não vire

mera experiência.

19. Às margens das margens, abrem-se perspectivas num

universo liminoide para que se possa detectar os efei-

tos de estranhamento que se produzem em relação

não apenas ao cotidiano, mas ao extraordinário tam-

bém.

observa o meta-teatro da vida social.20 Mas, as

ofi cinas descritas por Benjamin podem suge-

rir a necessidade de se juntar Goff man e Tur-

ner para tratar de um meta-teatro cotidiano.

Afi nal, espelhos mágicos também têm as suas

ofi cinas. E viram estilhaços. Nas irrupções do

extraordinário também se encontra a experiên-

cia do ordinário.

Enfi m, de Dewey a Turner e de volta.

E uma pergunta de rodapé (virando texto):

seriam determinadas manifestações liminoi-

des – com destaque aos ruídos que ocorrem às

“margens das margens” dos processos centrais

– mais fi éis, “em sua dimensão mais profun-

da”, ao legado da experiência liminar do que

certas tentativas de reviver uma experiência de

communitas em meio ao esfacelamento das re-

lações?21 Num mundo como esse, onde a ex-

periência da fragmentação torna-se cotidiana,

os efeitos de estranhamento e a percepção do

inacabamento das coisas ganham densidade.

Passagens

Depois de haver brincado com “Dewey, Dilthey, and Drama...”, sou tentado também a

brincar com esta apresentação – que está pres-

tes a desmanchar. Nesse caso, porém, intriga-

me ver como ela ilumina uma espécie de “rito

20. Cf. nota 11.

21. Estou parafraseando a frase de Jeanne Marie Gagne-

bin, que, numa análise do ensaio benjaminiano sobre

“a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”,

escreve: “Essas tendências ‘progressistas’ da arte mo-

derna, que reconstroem um universo incerto a partir

de uma tradição esfacelada, são, em sua dimensão

mais profunda, mais fi éis ao legado da grande tradi-

ção narrativa que as tentativas previamente conde-

nadas de recriar o calor de uma experiência coletiva

(‘Erfahrung’) a partir das experiências vividas isoladas

(‘Erlebnisse’)”. Ela completa: “Essa dimensão, que

me parece fundamental na obra de Benjamin, é a

da abertura” (Gagnebin 1985: 12; Benjamin 1985a:

165-196).

|

cadernos de campo • n. 13 • 2005

de passagem” – aquém do drama. Tomando os

três momentos dos “ritos de passagem” como

elementos meta-narrativos (codifi cados “a”,

“b”, e “c”), as seqüências da apresentação po-

dem ser analisadas da seguinte forma:

[A] RITOS DE SEPARAÇÃO. PREPA-RANDO O LEITOR PARA O CONTATO COM UMA TRADUÇÃO. Após uma breve in-

trodução, cujo intuito é de preparar o leitor para

uma passagem, inicia-se num lugar relativamen-

te familiar: os escritos de Victor Turner a respeito

de ritos e dramas sociais. Aos poucos, como num

“rito de separação”, adentra-se em territórios me-

nos conhecidos, apresentando ao leitor alguns

dos estudos de Turner sobre a Antropologia da

Performance e Antropologia da Experiência – lu-

gar perigoso onde se localiza boa parte da obra

não traduzida de Turner. Assim se prepara o lei-

tor para o contato com uma tradução.

[B1] RITOS DE TRANSIÇÃO. BRIN-CANDO COM UMA META-NARRATIVA DO TEXTO TRADUZIDO. A seguir, como

quem se encontra num “rito de transição”, brin-

ca-se com o estranho, nele suscitando – um efei-

to de estranhamento. A brincadeira consiste em

explorar o límen do texto traduzido de Turner. O

próprio Turner (nosso “espírito ancestral”) apre-

senta-se como um guia confi ável, mostrando-nos

como voltar ao lugar familiar de onde havíamos

saído: os seus escritos sobre ritos e dramas sociais,

e experiências de liminaridade e communitas.

[B2] RITOS DE TRANSIÇÃO. BRIN-CANDO ÀS MARGENS DAS MARGENS. Porém, não voltamos ao lugar familiar. A ex-

periência de liminaridade ganha densidade.

Não apenas permanecemos em meio às discus-

sões do texto de Turner sobre a Antropologia

da Experiência, mas, na companhia de Wal-

ter Benjamin (pessoa relativamente estranha

à antropologia), exploramos os seus ruídos e

margens.22 Quer dizer, vamos às margens das

margens. Uma ressalva: esta lição aprendemos

com o próprio Turner. O límen pode ser um

lugar privilegiado para se observar um fenôme-

no, tal como um texto.

Enfi m, esta apresentação revela características

de um “rito de passagem”. Falta-lhe, porém, o

“rito de reagregação” [C]. Trata-se de uma pas-

sagem para um estado – de passagem. No fi nal,

multiplicam-se as manifestações de um gênero de

discurso característico de “ritos de transição”: as

perguntas sem respostas – boas para fazer pensar.

Traduções, como a que vem a seguir, são

passagens. Requerem a transformação do es-

tranho em familiar ao mesmo tempo em que

provocam no familiar um efeito de estranha-

mento. Desenvolvem-se no límen. Este termo,

como Turner gostava de lembrar, vem do latim

antigo, que evoca o lugar de “surrar” e “debu-

lhar”. A idéia de extrair grãos ou sementes é su-

gestiva. No límen se encontram sementes que

conservam as suas forças germinativas – tais

como as dos relatos de Heródoto.

A imagem de uma ofi cina, que vimos discu-

tindo nesta apresentação, também é interessan-

te. Na ofi cina do tradutor interpenetram-se dois

saberes, e duas línguas – uma que vem de longe,

e outra supostamente sedentária. Ambas brin-

cam com o perigo. Na entrada da ofi cina vem

escrito: “tentar, aventurar-se, correr riscos”.

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De todos os estudos e ciências humanas, a

antropologia é a que está mais profundamen-

te enraizada na experiência social e subjeti-

va do investigador. Nela, toda avaliação tem

como referência o sujeito, toda observação

é fi nalmente apreendida “na batida do pul-

so”. Evidentemente, muitas coisas podem ser

mensuradas, consideradas, contadas e subme-

tidas à análise estatística. Porém, todos os atos

humanos estão impregnados de signifi cado, e

signifi cado é difícil de ser mensurado, embora

possa ser compreendido, mesmo que apenas

de modo fugaz e ambíguo. O signifi cado sur-

ge quando tentamos associar o que a cultura e

a língua cristalizaram a partir do passado com

o que sentimos, desejamos e pensamos em re-

lação ao instante presente da vida. Em outras

palavras, retomamos as conclusões que nossos

ancestrais estabeleceram como modos culturais

Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em Antropologia da Experiência (primeira parte), de Victor Turner*

* TURNER, Victor. 1986. “Dewey, Dilthey, and Dra-

ma: An Essay in the Anthropology of Experience” In

Turner, Victor W. & Bruner, Edward M. (eds.) Th e Anthropology of Experience. Urbana and Chicago,

University of Illinois Press, pp. 33-44.

** Agradeço a Evelise Paulis, a André-Kees de Moraes

Schouten e a Danilo Paiva Ramos pela colaboração

na tradução.

HERBERT RODRIGUES

Mestrando em Antropologia Social pelo PPGAS/

FFLCH-USP e membro do Núcleo de Antropo-

logia da Performance e do Drama (NAPEDRA/

USP).**

JOHN C. DAWSEY

Professor Livre-Docente do Departamento de

Antropologia da FFLCH-USP e coordenador

do Núcleo de Antropologia da Performance e

do Drama (NAPEDRA/USP).

que classifi camos hoje, dentro da tradição oci-

dental, como “religiosos”, “morais”, “políticos”,

“estéticos”, “proverbiais”, “aforísticos”, de “sen-

so comum” etc., para ver como e em que medi-

da essas conclusões iluminam ou se relacionam

com as nossas questões, difi culdades, proble-

mas, ou alegrias individuais do presente. Cada

movimento de fricção entre as madeiras duras

e brandas da tradição e do presente é poten-

cialmente dramático. Em caso de venerarmos

ditos ancestrais, talvez seja preciso – conclui-

mos com pesar – desfazer-nos das alegrias do

presente ou abandonar a exploração sensível do

que percebemos como desenvolvimentos sem

precedentes do entendimento humano mútuo

e das formas relacionais.

Conseqüentemente, teremos o auto-sacrifí-

cio por um ideal, se tivermos fé na autoridade

de uma cultura herdada do passado. Mas se a

tragédia aprova essa postura, os novos cami-

nhos de orientação para a modernidade podem

rejeitar o resultado do auto-sacrifício e sugerir

alternativas que podem parecer problemáticas,

pelo menos para um público geral ainda não

saído do confortável berço da tradição. Uma

experiência desse tipo é da própria natureza do

drama – tanto do drama social, onde os confl i-

cadernos de campo n. 13: 177-185, 2005

178 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

tos são trabalhados na ação social, quanto do

drama de palco, onde eles se espelham numa

multiplicidade de enredos hipotéticos, símbo-

los, e enquadramentos estéticos experimentais.

Entretanto, é possível que não haja nenhum

confronto absoluto entre o passado e o presen-

te, o passado coletivo e o presente pessoal e exis-

tencial. Todo antropólogo sabe que qualquer

campo sociocultural coerente contém muitos

princípios contraditórios, todos consagrados

pela tradição. No teatro japonês, por exemplo,

as versões Bunraku e Kabuki de Chushingura,

a famosa fábula dos quarenta e nove Rōnin,

mostram a tensão entre duas lealdades igual-

mente axiomáticas, mas confl itantes – uma

para com o senhor feudal e outra para com a

ordem imperial. A obediência a ambos poderia

signifi car a morte aos detentores da vingança.

A subordinação da lealdade feudal à lei do es-

tado poderia ter sido uma perda humilhante

de identidade social formada sob os princípios

samurai de honra e de vergonha. Mas, algo

subversivo e oculto ocorre no drama de palco.

A burocracia Tokugawa, com sua extensa des-

personalização das relações, está sendo silen-

ciosamente respondida por gestos marcantes e

complexos do teatro que reafi rmam as paixões

contra as legalizações – aquelas grandes paixões

que Samuel Coleridge, referindo-se aos heróis

trágicos shakespearianos, declarou serem “ateus

que acreditavam em nenhum futuro”. No en-

tanto, as paixões estão sob controle e chegam a

uma honrosa consumação através de um ema-

ranhado de meios tortuosos – e de modos que

poderiam ter chocado Aldous Huxley, com seu

dito de que “maus meios não produzem bons

fi ns”. Isso, se ele não fosse um homem com ca-

pacidade para a ironia e consciente das ambi-

güidades éticas.

Passemos agora para a visão de John Dewey

sobre a experiência, da qual parcialmente com-

partilho, mas que – devo parcialmente con-

cluir – precisa ser superada em relação a um

importante aspecto. Dewey (1934) sustentou

que as obras de arte, incluindo obras teatrais,

são “celebrações, reconhecidas como tais, da

experiência cotidiana” (ordinary experience). Ele estava, evidentemente, rejeitando a tendên-

cia nas sociedades capitalistas de colocar a arte

num pedestal, separada da vida humana, mas

comercialmente valiosa dentro de normas es-

tabelecidas por especialistas esotéricos. Dewey

disse: “Até mesmo uma experiência simples, se

for uma experiência autêntica, é mais adequada

para dar uma pista à natureza intrínseca da ex-

periência estética do que um objeto já colocado

à parte de qualquer outro modo de experiên-

cia” (citado em McDermott 1981: 526). Tudo

isso e mais a esse respeito encontra-se no seu

grande livro Art as Experience, publicado quan-

do Dewey tinha setenta e cinco anos de idade.

Em meu livro From Ritual to Th eatre (1982:

17-18), ensaiei uma etimologia da palavra in-

glesa “experiência”, derivando-a da base indo-

européia *per-, “tentar, aventurar-se, arriscar”

– podemos ver como seu duplo, “drama”, do

grego dran, “fazer”, espelha culturalmente o

“perigo” etimologicamente implicado na pala-

vra “experiência”. O cognato germânico de per relaciona experiência com “passagem”, “medo”

e “transporte”, porque p torna-se f na Lei de

Grimm. O grego peraō relaciona experiência a

“passar através”, com implicações em ritos de

passagem. Em grego e latim, experiência asso-

cia-se a perigo, pirata e ex-per-imento.

Há aqui uma dicotomia que Wilhelm Dil-

they (1979 [1914]: 210) imediatamente cap-

tou na sua distinção entre mera “experiência” e

“uma experiência”. A mera experiência é, sim-

plesmente, a passiva resignação e aceitação dos

eventos. “Uma experiência”, como uma pedra

num jardim de areia Zen, destaca-se da uni-

formidade da passagem das horas e dos anos e

forma aquilo que Dilthey chamou de uma “es-

trutura da experiência”. Em outras palavras, ela

não tem um início ou um fi m arbitrários, recor-

, : |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

tados do fl uxo da temporalidade cronológica,

mas tem o que Dewey chamou de “uma ini-

ciação e uma consumação”. Ao longo da vida,

cada um de nós já teve certas “experiências”

que foram formativas e transformativas, isto é,

seqüências distinguíveis de eventos externos e

de reações internas a eles tais como iniciações

em novos modos de vida (o primeiro dia na es-

cola, o primeiro emprego, entrada no exército,

cerimônia de casamento), aventuras amorosas,

o envolvimento naquilo que Emile Durkheim

chamou de “efervescência social” (uma campa-

nha política, uma declaração de guerra, uma

causa célèbre tais como o caso Dreyfus, o Water-

gate, a crise dos reféns iranianos ou a Revolução

Russa). Algumas dessas experiências formativas

são altamente pessoais, outras são partilhadas

com grupos aos quais pertencemos por nasci-

mento ou escolha. Dilthey via tais experiências

como tendo uma estrutura temporal ou proces-

sual – elas são “processadas” através de estágios

distinguíveis. Além disso, elas envolveram em

suas estruturações, a cada momento e fase, não

simplesmente uma estruturação do pensamen-to, mas a totalidade do repertório vital humano

que inclui pensamento, vontade, desejo e sen-

timento, sutil e variavelmente interpenetrante

em muitos níveis. Uma navalha cognitiva de

Occam, reduzindo tudo a abstrações frias e

“sem sangue” (isso se pudermos visualizar uma

navalha nesses termos), simplesmente não faria

nenhum sentido humano nesse caso.

Essas experiências que interrompem o com-

portamento rotinizado e repetitivo – do qual

elas irrompem –, iniciam-se com choques de

dor ou prazer. Tais choques são evocativos:

eles invocam precedentes e semelhanças de um

passado consciente ou inconsciente – porque

o incomum tem suas tradições, assim como

o comum. Então, as emoções de experiências

passadas dão cor às imagens e esboços revividos

pelo choque no presente. Em seguida ocorre

uma necessidade ansiosa de encontrar signifi -

cado naquilo que se apresentou de modo des-

concertante, seja através da dor ou do prazer, e

que converteu a mera experiência em uma ex-

periência. Tudo isso acontece quando tentamos

juntar passado e presente.

É estruturalmente irrelevante se o passado

é “real” ou “mítico”, “moral” ou “amoral”. A

questão é se diretrizes signifi cativas emergem

do encontro existencial na subjetividade, da-

quilo que derivamos de estruturas ou unida-

des de experiência prévias numa relação vital

com a nova experiência. Isso é uma questão

de signifi cado, não meramente de valor, como

Dilthey entendia esses termos. Para ele, o va-

lor pertencia essencialmente a uma experiência

num presente consciente, em seu prazer afe-

tivo ou no fracasso deste. Mas os valores não

estão signifi cativamente conectados, eles nos

bombardeiam como amontoados aleatórios de

discórdias e harmonias. Cada valor nos ocupa

totalmente enquanto prevalece. No entanto,

para Dilthey, os valores não têm “uma relação

musical um com o outro”. É somente quando

relacionamos a preocupante experiência atual

com os resultados cumulativos de experiências

passadas – se não semelhantes, pelo menos re-

levantes e de potência correspondente – que

emerge o tipo de estrutura relacional chamada

“signifi cado”.

Aqui, o cognitivo se auto-afi rma heroica-

mente, pois na maioria das experiências, a emo-

ção e o desejo têm preeminência no início, em

pulsos que repudiam todo o passado. Quando

uma guerra é declarada; quando encontramos o

mais desejável amor; quando fugimos do perigo

físico; ou recusamos nos submeter a uma tare-

fa necessária, mas desagradável –, estamos sob

o poder do valor. É a heróica combinação de

vontade e de pensamento que se opõe ao valor

por meio do poder integrativo do signifi cado

relacional. Talvez o valor poderá se transformar

em signifi cado, mas terá de ser, primeiramente,

peneirado de maneira responsável. Na maioria

180 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

das sociedades pré-industriais, essa busca árdua

pelo signifi cado foi poderosamente reforçada

pelos valores culturais coletivos que ofereciam

às nossas faculdades cognitivas algum suporte

ancestral, o peso de um passado, senão ético,

pelo menos legitimado consensualmente. Nos

dias de hoje, infelizmente, a cultura insiste que

devemos assumir o fardo pós-renascentista de

elaborar cada signifi cado por nós mesmos, um

de cada vez, sem ajuda dos outros, a menos que

escolhamos um sistema tecido por outro indi-

víduo cuja legitimidade coletiva não é maior

que a nossa. Essa é, possivelmente, uma dife-

rença importante entre o teatro de hoje e os

primeiros tipos de teatro, na medida em que

o teatro se oferece como espelho cultural do

processo de busca de signifi cado num nível

público e generalizado. As primeiras formas de

teatro transferiram o peso da responsabilidade

de atribuição de signifi cado do indivíduo para

o grupo, embora o sofrimento trágico então te-

nha resultado do terror físico do indivíduo, ou

pelo menos da relutância extrema face ao dever

social cujo cumprimento poderia signifi car tor-

mento físico ou mental e até a morte.

Na visão de Dilthey, a experiência incita a

expressão, ou a comunicação, com os outros.

Somos seres sociais e queremos dizer o que

aprendemos com a experiência. As artes depen-

dem desse ímpeto para confessar e declamar.

Os signifi cados obtidos às duras penas devem

ser ditos, pintados, dançados, dramatizados,

enfi m, colocados em circulação. Aqui o ímpe-

to do pavão para exibir-se não se distingue da

necessidade ritualizada de se comunicar. O eu

e o não-eu, o ego e o não-ego, a auto-afi rmação

e o altruísmo, encontram-se e se fundem em

comunicações signifi cativas.

Subjacente a todas as artes, Dewey viu uma

conexão intrínseca entre a experiência, seja

ela natural ou social, e a forma estética. Ele

escreveu: “há na natureza, mesmo que abaixo

do nível da vida, algo além do mero fl uxo e

da mudança. A forma se apresenta sempre que

um equilíbrio estável, embora em movimento,

seja alcançado” (citado em McDermott 1981:

536). Ele argumenta que, mesmo no nível pré-

humano biológico, a vida de qualquer organis-

mo é enriquecida pelo estado de disparidade

e resistência por qual passou com sucesso. A

oposição e o confl ito são superados e, de fato,

transformados “em aspectos diferenciados de

uma vida potencializada e mais signifi cativa”.

Entre os humanos, o

ritmo da perda de integração com o meio am-

biente e a recuperação da união, não apenas

persiste, mas torna-se consciente com ele; suas

condições são materiais a partir das quais ele ela-

bora propósitos. A emoção é o sinal consciente

de uma ruptura, atual ou iminente. O desejo de

restauração da união converte a mera emoção

em interesse por objetos como condição de re-

alizar a harmonia. Com a realização, o material

de refl exão é incorporado aos objetos como o

seu signifi cado. Considerando-se que o artista

tem um cuidado peculiar com a fase de experi-

ência em que a união é alcançada, ele não evita

os momentos de resistência e de tensão. Ele an-

tes os cultiva, não por razões intrínsecas, mas

por causa de suas potencialidades, trazendo para

a consciência viva uma experiência que é total e

una. Em contraste com a pessoa cujo propósito

é estético, o cientista está interessado em proble-

mas, em situações em que a tensão entre a maté-

ria da observação e do pensamento é marcante.

Claro, ele se interessa por sua resolução. Mas

não se acomoda; passa para um outro proble-

ma fazendo uso de uma solução anteriormente

obtida como quem busca um ponto de partida

para novas investigações….

A diferença entre o esteta e o intelectual é,

portanto, um dos lugares onde a ênfase recai

no ritmo constante que marca a interação das

criaturas vivas com o seu ambiente. A questão

fundamental de ambas as ênfases na experiência

, : |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

é a mesma, como é também a sua forma geral.

A idéia esquisita de que um artista não pensa e

de que um cientista não faz outra coisa senão

pensar é o resultado da conversão de uma dife-

rença de andamento e de ênfase numa diferença

de tipo. O pensador tem seu momento estético

quando suas idéias deixam de ser meras idéias e

transformam-se em signifi cados corporifi cados,

em objetos. O artista tem seus problemas e pensa

enquanto trabalha. Mas seu pensamento é mais

imediatamente incorporado no objeto. Por con-

ta do distanciamento comparativo de seu fi m, o

cientista opera com símbolos, palavras e signos

matemáticos. O artista realiza seu pensamento

nos próprios meios qualitativos com quais ele

trabalha, e os termos situam-se tão próximos ao

objeto que ele está produzindo que se fundem

diretamente neste.…

Considerando-se que o mundo real, o mundo

onde vivemos, é uma combinação de movi-

mento e culminação, de rupturas e reuniões, a

experiência de uma criatura viva é capaz de ter uma qualidade estética. O ser vivo perde e re-es-

tabelece, de modo recorrente, o equilíbrio com

o ambiente. O momento de passagem do distúrbio para a harmonia é o mais intenso na vida. Num

mundo acabado, não seria possível distinguir

entre o sono e a vigília. Num mundo totalmen-

te perturbado, não seria possível sequer lutar

com as condições. Num mundo feito de acor-

do com os padrões daquele que conhecemos, os

momentos de realização pontuam a experiência

em intervalos rítmicos (citado em McDermott

1981: 536-537, grifos meus).

A estética, então, refere-se àquelas fases que,

numa dada estrutura ou unidade processual de

experiência, ou constituem uma realização que

atinge as profundezas do ser (como Dewey co-

loca) de quem tem uma experiência, ou consti-

tuem os obstáculos e falhas que necessariamente

fazem parte da alegre luta para alcançar a con-

sumação, além do prazer e do equilíbrio – onde

se encontra a verdadeira alegria e felicidade da

realização. Há também presente no trabalho de

Dewey o sentido de que o “tempo de consuma-

ção é também do recomeço” – qualquer tenta-

tiva de prolongar o prazer de consumação para

além de seu termo natural implica um tipo de

retirada do mundo e, portanto, uma diminui-

ção e perda de vitalidade.

A unidade de experiência de Dilthey enfati-

za a cultura e a psicologia, pois ele viu a busca

pelo signifi cado e sua expressão na performan-

ce como manifestações das fases de luta e con-

sumação. Em Dewey, o processo de experiência

tendia mais para o biológico. No entanto, am-

bos enfatizaram que a estética tem sua gênese

na experiência humana sensível e não procede

de um domínio ideal, ou de um reino platôni-

co de arquétipos superiores às atividades hu-

manas vulgares que, supostamente, ele deveria

avaliar e organizar. Para os dois fi lósofos, as ar-

tes, incluindo todos os gêneros de teatro, têm

suas origens nas cenas e objetos da experiência

humana, e não poderiam ser consideradas à

parte deles. O belo é a fl or consumada da bus-

ca desordenada de signifi cado pelos homens e

mulheres que vivem na complexidade plena

de sua mútua atração e repulsão na guerra, no

culto, no sexo, na produção econômica e no

mercado.

Como alguns sabem, tenho concentrado

meu trabalho num tipo específi co de unida-

de de experiência, a qual chamo de “drama

social”. Trata-se, em seus desdobramentos, de

uma forma proto-estética. Em muitas situa-

ções de pesquisa de campo em culturas nota-

velmente diferentes, na minha experiência de

vida em sociedades ocidentais, e em numerosos

documentos históricos, podemos claramente

discernir o movimento de uma comunidade

através do tempo como tomando uma forma

à qual difi cilmente podemos negar o epíteto

“dramático”. Uma pessoa ou sub-grupo quebra

uma regra, deliberadamente ou por compulsão

182 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

interior, num contexto público. Os confl itos

entre os indivíduos, setores e facções seguem

à ruptura original, revelando embates ocultos

de caráter, interesses e ambições. Estes resultam

numa crise de unidade e continuidade do gru-

po, a menos que sejam rapidamente bloqueados

por uma ação pública reparadora, consensual-

mente empreendida por líderes, guardiões, ou

membros mais velhos do grupo social. A ação

reparadora é freqüentemente ritualizada e pode

ser empreendida em nome da lei ou da religião.

Os processos judiciais acentuam a razão e a

evidência; os processos religiosos enfatizam as

questões éticas, as maldições ocultas que ope-

ram através de bruxarias, ou a ira dos ancestrais

contra as quebras de tabu ou a impiedade dos

vivos em relação aos mortos. Se um drama so-

cial percorrer seu curso completo, o resultado

(ou “consumação”, como Dewey diria) pode se

manifestar através ou da restauração da paz e

“normalidade” entre os participantes ou do re-

conhecimento social de uma ruptura ou cisão

irremediável.

Claro, esse modelo, como todos os mode-

los, está sujeito a muitas manipulações. Por

exemplo, a ação reparadora pode falhar, e nesse

caso haverá um retorno à fase da crise. Se a lei

e/ou os valores religiosos perderem sua efi cácia,

um faccionalismo contínuo e endêmico pode-

rá contaminar a vida pública por longos perí-

odos. Ou o fracasso de uma ação reparadora

numa comunidade local poderá levar a apelos

a instâncias superiores situadas em níveis mais

inclusivos de organização social – da aldeia ao

distrito à província à nação. Ou o ancien régi-me pode ser rejeitado in toto, dando início à

revolução. Nesse caso, o grupo poderá ser radi-

calmente reestruturado, incluindo sua maqui-

naria reparadora.

A cultura evidentemente afeta tais aspec-

tos, como o estilo e o andamento do drama

social. Algumas culturas procuram retardar as

defl agrações de crise aberta elaborando regras

sofi sticadas de etiqueta. Outras admitem o

uso de violência organizada na crise ou como

ação reparadora, como se pode verifi car em

exemplos tais como o holmgang dos islandeses

(combate individual na ilha), a luta com varas

dos Nuba do Sudão, e as recíprocas expedições

dos caçadores de cabeças dos povos da colina

Ilongot em Luzon. Georg Simmel, Lewis Co-

ser, Max Gluckman e outros indicaram como

o confl ito – desde que colocado sob controle,

evitando-se o massacre e a guerra – pode inclu-

sive realçar a “consciência de pertencimento” a

um grupo. O confl ito força os antagonistas a

diagnosticarem as suas causas e, assim fazen-

do, a se tornarem plenamente conscientes dos

princípios que os unem para além e acima das

questões que os cindiram temporariamente.

Como insistiu Durkheim, a lei precisa do cri-

me e a religião precisa do pecado para se torna-

rem sistemas plenamente dinâmicos, porque,

sem “o fazer”, sem a fricção social que acende a

consciência e a auto-consciência, a vida social

seria passiva e até inerte.

Essas considerações, acredito, levaram Bar-

bara Myerhoff (1979) a distinguir “cerimônias

defi nitórias” de “dramas sociais”, que ela con-

cebeu como um tipo de “auto-biografi a” co-

letiva, um meio pelo qual um grupo cria sua

identidade ao contar para si uma história sobre

si mesmo, um processo ao longo do qual ganha

vida a “sua Identidade Determinada e Defi ni-

da” (para citar William Blake). Aqui, no sen-

tido diltheyniano, o signifi cado é engendrado

pela articulação de problemas presentes a um

rico passado étnico, que então é infundido nos

“feitos e provações” (frase de Dewey) da comu-

nidade local. Alguns dramas sociais podem ser

mais “defi nitórios” do que outros, isso é certo,

mas muitos dramas sociais contêm, mesmo que

apenas implicitamente, meios de refl exividade

pública em seus processos reparadores. Ao ati-

vá-los, os grupos avaliam a sua situação atual: a

natureza e a força de seus laços sociais, o poder

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

de seus símbolos, a efi cácia de seus controles

morais e legais, a sacralidade de suas tradições

religiosas, e assim por diante.

O ponto que eu gostaria de ressaltar aqui é

que o mundo do teatro, como nós o conhece-

mos tanto na Ásia como no Ocidente, e a imen-

sa variedade de sub-gêneros teatrais, derivam

não da imitação, consciente ou inconsciente,

da forma processual do drama social completo

ou saciado – ruptura, crise, reparação, reinte-

gração, ou cisão (embora o modelo de tragédia

de Aristóteles se assemelhe a esse movimento

seqüencial), mas especifi camente da terceira

fase, reparação, e, especialmente, da reparação

como processo ritual. Os rituais reparadores

incluem adivinhações a respeito das causas es-

condidas de infortúnios, confl itos e doenças

(todos estes, em sociedades tribais, estando

intimamente interconectados e diagnosticados

como sendo gerados por ações de espíritos in-

visíveis, deidades, bruxos e feiticeiros), rituais

curativos (que podem freqüentemente envol-

ver episódios de possessão de espíritos, transe

xamânico, mediunidade, e estados de transe

entre os pacientes que são os participantes de

um ritual), e os ritos iniciatórios relacionados

aos “rituais de afl ição”. Além disso, muitos dos

ritos que chamamos de “cerimônias de crise da

vida”, particularmente os de puberdade, casa-

mento e morte, indicam, eles mesmos, uma es-

pécie de ruptura na ordem costumeira da vida

grupal, depois da qual muitos relacionamen-

tos entre os membros do grupo devem mudar

drasticamente, envolvendo muita competição

e confl itos potenciais, e até mesmo reais (por

direitos de herança e sucessão, por mulheres,

pelos dotes da noiva, lealdade ao clã ou à linha-

gem, entre outras coisas). Os rituais de crise da

vida (assim, aliás, como os rituais sazonais) po-

dem ser chamados de “profi láticos”, enquanto

rituais de afl ição são “terapêuticos”.

Todos esses processos rituais de “terceira-

fase” ou “primeira-fase” (no caso de crise da

vida) contêm uma fase liminar, que fornece um

estágio1 (uso esse termo advertidamente) para

estruturas únicas de experiências (o Erlebnis de

Dilthey) em meios isolados da vida mundana

e caracterizados pela presença de idéias ambí-

guas, imagens monstruosas, símbolos sagrados,

provações, humilhações, instruções paradoxais

e esotéricas, a emergência de tipos simbólicos

representados por palhaços e mascarados, in-

versões de gêneros, anonimatos e muitos ou-

tros fenômenos e processos que tenho descrito

em outros textos como “liminares”. O limen,

ou limiar2 – um termo emprestado da segun-

da das três fases dos ritos de passagem de van

Gennep – é uma terra-de-ninguém entre3 o

passado estrutural e o futuro estrutural, tal

como antecipado pelo controle normativo da

sociedade sobre o desenvolvimento biológico.

Isso é ritualizado de muitas formas, mas fre-

qüentemente os símbolos que expressam uma

identidade ambígua são encontrados numa va-

riedade expressiva de culturas: fi guras andrógi-

nas e teriomórfi cas,4 combinações monstruosas

de elementos retirados da cultura e da nature-

za, com alguns símbolos tais como cavernas,

representando nascimento e morte, útero e tú-

mulo. Às vezes, falo sobre a fase liminar como

algo que predomina no modo subjuntivo da

cultura, o modo do “talvez”, do “pode ser”, do

“como se”, hipótese, fantasia, conjectura, dese-

jo – dependendo de qual elemento da trindade

de cognição, afeto e vontade está situacional-

mente dominante. A vida cotidiana acontece

no modo indicativo, em meio à expectativa

da operação invariante de causa e efeito, do

senso comum e racionalidade. A liminaridade

pode talvez ser descrita como um caos frutí-

fero, um armazém de possibilidades, não uma

1. Turner usa o termo stage, que também quer dizer

“palco” (N. da R.).

2. Turner usa o termo threshold (N. da R.).

3. Turner usa a expressão betwixt and between (N. da R.).

4. Turner usa o termo theriomorphic (N. da R.).

184 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

montagem aleatória, mas uma busca por novas

formas e estruturas, um processo de gestação,

uma irrupção fetal de modos apropriados de

existência pós-liminar.

O teatro é uma dessas muitas herdeiras do

grande sistema multifacetado que chamamos

de “ritual tribal”, que abrange idéias e imagens

do cosmos e do caos, interdigitando palhaços

e suas folias com deuses e suas solenidades, e

fazendo uso de todos os códigos sensoriais para

produzir sinfonias para além da música: o en-

trelaçamento da dança, de diferentes tipos de

linguagens corporais, canções, cânticos, formas

arquitetônicas (templos e anfi teatros), incensos,

oferendas, banquetes ritualizados, pinturas, ta-

tuagens, circuncisões, escarifi cações, e marca-

ções corporais de muitos tipos, a aplicação de

loções e a ingestão de poções, a encenação de

tramas míticos e heróicos retirados de tradições

orais – e muito mais. Os rápidos avanços na

escala e complexidade da sociedade, particular-

mente após a industrialização, fi zeram passar

essa confi guração liminar unifi cada pelo pris-

ma da divisão do trabalho, com suas especia-

lizações e profi ssionalizações, reduzindo cada

um dos seus domínios sensoriais a um conjun-

to de gêneros de entretenimento que fl orescem

no tempo de lazer da sociedade, não mais no

lugar central de controle. Apesar do fato de que

o pronunciado caráter sobrenatural do ritual

arcaico tem sido grandemente reduzido, há si-

nais, no presente, entre gêneros especializados

amputados, de uma busca para recuperar algo

da experiência do numinoso, que se perdeu em

seu sparagmos, ou desmembramento.

Claramente, como Dewey argumentou, a

forma estética do teatro é inerente à própria

vida sociocultural, mas o caráter refl exivo e te-

rapêutico do teatro, cujas origens remontam à

fase reparadora do drama social, precisa recor-

rer às fontes do poder freqüentemente inibidas

na vida do modo indicativo da sociedade. A

criação de um espaço liminar separado, qua-

se-sagrado, permite uma busca de tais fontes.

Uma fonte desse excessivo meta-poder é certa-

mente o próprio corpo liberado e disciplinado,

com seus múltiplos recursos não explorados

de prazer, dor e expressão. Uma outra fonte

encontra-se em nossos processos inconscien-

tes, tais como os que ocorrem em estados de

transe. Trata-se de fenômenos semelhantes aos

que freqüentemente encontrei na África, onde

senhoras idosas, magras e mal-nutridas, entre

um cochilo ou outro, dançam, cantam e reali-

zam atividades rituais durante dois ou três dias

e noites sem parar. Penso que um aumento no

nível de estímulo social, a despeito de como é

produzido, pode liberar fontes de energia nos

participantes individuais. O recente trabalho

sobre a neurobiologia do cérebro (ver d’Aquili,

Laughlin & McManus 1979), mostra, entre

outras coisas, como as “técnicas de conduzir o

ritual (incluindo condução sônica, por exem-

plo, com instrumentos de percussão) facilitam

o domínio do hemisfério direito, resultando

em experiências atemporais, não-verbais, e ges-talt, diferenciadas e únicas quando comparadas

com as manifestações da funcionalidade do he-

misfério esquerdo ou a alternação dos hemisfé-

rios” (Lex 1979: 146).

Meu argumento tem sido que a antropolo-

gia da experiência encontra, em certas formas

recorrentes de experiência social – entre elas,

os dramas sociais –, fontes de forma estética,

incluindo o drama de palco. Mas o ritual e sua

progênie, com destaque às artes performati-

vas, derivam do coração subjuntivo, liminar,

refl exivo e exploratório do drama social, onde

as estruturas de experiência grupal (Erlebnis) são copiadas, desmembradas, rememoradas,

remodeladas, e, de viva voz ou não, tornadas

signifi cativas – mesmo quando, como acon-

tece freqüentemente em culturas declinantes,

“o signifi cado é de que não há signifi cado”. O

verdadeiro teatro é a experiência da “vitalidade

intensifi cada”, para citar Dewey novamente.

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cadernos de campo • n. 13 • 2005

“Em seu auge, signifi ca a completa interpene-

tração do eu e do mundo de eventos e objetos”

(citado em McDermott 1981: 540). Quando

isso acontece numa performance, o que pode

ser produzido é o que d’Aquili e Laughlin cha-

mam de um “fugaz estado de êxtase e sentido

de união (com duração freqüente de somente

alguns segundos) [que] pode ser descrito como

um arrepio – nada mais que isso – que desce

pelas costas até um certo ponto” (d’Aquili et al. 1979: 177). Um senso de harmonia com

o universo se evidencia e o planeta inteiro é

sentido como uma communitas. Esse arrepio,

contudo, deve ser conquistado, para tornar-se

uma “consumação”. Isso, após lidar com um

emaranhado de confl itos e desarmonias. É o

tea tro que melhor exemplifi ca o dito de Th o-

mas Hardy: “se há um caminho para o melhor,

ele exige um olhar de frente para o pior”. As

transformações rituais ou teatrais não ocorre-

riam de outra forma.

Referências bibliográfi cas

D’AQUILI, E. G., LAUGHLIN, JR., Charles D., and

McMANUS, John. (eds.). 1979. Th e Spectrum of Ri-tual. New York, Columbia University Press.

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ton, Balch & Co.

DILTHEY, Wilhelm. [1914]. Selected Writings. Ed. H.

P. Rickman. Cambridge, Cambridge University Press,

1976.

LEX, Barbara. 1979. “Th e Neurobiology of Ritual Tran-

ce”. In D’AQUILI, E. G., LAUGHLIN, JR., Charles

D., and McMANUS, John. (eds.). Th e Spectrum of Ritual. New York, Columbia University Press.

McDERMOTT, J. J. (ed.). 1981. Th e Philosophy of John Dewey. New York, Putnam’s.

MYERHOFF, Barbara. 1979. Number Our Days. New

York, Dutton.

TURNER, Victor. 1982. From Ritual to Th eatre. New

York, Performing Arts Journal Press.

resenhas

Por que fazer a resenha da segunda edição

em língua inglesa de um texto publicado pela

primeira vez em 1983? De alguma forma a res-

posta está contida na própria pergunta, pois já

se passaram mais de 20 anos e este livro seminal

de Johannes Fabian ainda não foi publicado em

português! Não que ele não circule nos meios

acadêmicos nacionais, mas se mantém restrito

a um público necessariamente bilíngüe, quem

sabe para que o poder de sua crítica não ameace

formações não consolidadas.

A barreira do idioma é também um meca-

nismo de controle de poder, como o próprio Fa-

bian nos apresentou em Language and Colonial Power, de 1986, estudando o Shaba Swahili e

administração colonial belga no Zaire. Enfi m,

tratam-se de livros sobre mecanismos de poder

e como são exercidos, mesmo que de forma im-

perceptível e, portanto, ameaçadores.

Johannes Fabian, nascido em 1937, foi pro-

fessor do Departamento de Antropologia Cul-

tural da Universidade de Amsterdã. Obteve seu

título de Doutor na Universidade de Chicago,

no fi nal da década de 1960, com etnografi a sobre

o movimento carismático Jamaa em Katanga.

Desde então publicou mais de doze livros, dos

quais dois são coletâneas de ensaios. Suas pesqui-

sas abrangem movimentos religiosos, linguagem,

trabalho e cultura popular, além de propor ques-

tões epistemológicas e acerca da construção da

antropologia.

FABIAN, Johannes. [1983]. The Time and the Other: how anthropology makes its object. 2. ed. New York: Columbia University Press, 2002; 205pp.

RONALDO LOBÃO

Mestre em antropologia pelo PPGACP/UFF e

doutorando no PPGAS/UnB.

Resenha aceita para publicação em 27/07/05

A perspectiva crítica é talvez a maior marca

deste brilhante antropólogo e pode ser perce-

bida na frase fi nal de seu livro Time and the Work of Anthropology: critical essays, de 1991:

“Quem somos nós para ‘ajudá-los’? Precisamos

da crítica (exposição das mentiras do imperia-

lismo, das maquinações do capitalismo, das

idéias equivocadas do cientifi cismo, e de todo

o resto) para ajudar a nós mesmos. O detalhe é,

decerto, que ‘nós mesmos’ tanto pode ser eles

como nós” (: 264).1

Em Th e Time and Th e Other, Fabian desen-

volve um poderoso argumento para mostrar

que a construção do Outro, o objeto da Antro-

pologia, foi realizada à custa da manipulação

da temporalidade, ou seja, tanto pelas formas

como o Tempo é percebido nas diversas socie-

dades humanas, quanto em suas implicações

recíprocas. Para Fabian, o principal mecanismo

para o estranhamento antropológico não foi o

afastamento espacial, e sim o temporal. Para

exemplifi car as propostas de Fabian, podemos

dizer que a transformação do familiar em exóti-

co, ou do exótico em familiar, dá-se em termos

de manipulação, por parte dos antropólogos

em relação ao seu objeto, das percepções acerca

do tempo.

Para Fabian, ao Outro foi negada uma pers-

pectiva temporal coetânea, ou seja, há o Tempo

1. As traduções são minhas.

cadernos de campo n. 13: 189-192, 2005

190 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

do sujeito que é distinto do Tempo de seu

objeto, só que o Tempo do Outro é um Não

Tempo! Como esta operação é feita? Acompa-

nhemos os argumentos de Fabian.

No prefácio Fabian apresenta o Tempo, as-

sim como o dinheiro e a linguagem, como um

condutor de signifi cados, uma forma pela qual

se defi nem as relações entre o Eu e o Outro. E,

sob as condições do modo de produção capita-

lista, o tempo pode construir relações de poder

e desigualdade. Assim, se é verdadeiro que o

Tempo pertence à economia política das rela-

ções entre indivíduos, o Antropólogo constrói

seu objeto através de uma “política do tempo”,

que deve ser vista como uma construção dialé-

tica do Outro.

Para Fabian, o conhecimento produzi-

do pelos antropólogos possui uma contradi-

ção fundamental: de um lado a Antropologia

está baseada em uma pesquisa de campo, que

consiste em uma prolongada interação com

o Outro. Mas a construção do conhecimento

utiliza-se de um discurso sobre o Outro fun-

dado em uma distância temporal e espacial. A

presença empírica do Outro se transforma em

uma ausência teórica, para a qual as equações,

“being here, being there” de Cliff ord Geertz, ou

“olhar, ouvir e escrever” de Roberto Cardoso

de Oliveira, não dão conta, pois em ambas é o

Tempo contido nos afastamentos que está me-

diando o surgimento do Outro.

Fabian mostra que na matriz da sociedade

ocidental, capitalista, o tempo vem sendo ma-

nipulado em consonância com a dinâmica das

relações de poder. Na tradição judaico-cristã o

Tempo foi concebido como um meio para a

História Sagrada. O Tempo Sagrado é linear,

em oposição ao tempo pagão, representado por

um eterno retorno. A secularização do Tempo

realizada na tradição judaico-cristã colocou

em questão a universalização da história, que

nascera como a história de um povo eleito.

Para Fabian, a noção de Universal teve duas

conotações: a primeira, de totalidade, ou seja,

o mundo todo, todo o tempo; a segunda, de

generalidade, quer dizer, o que é aplicável em

um grande número de casos.

Da história, passamos à Evolução, ou à

Naturalização do Tempo. Fabian afi rma que o

resultado da secularização do Tempo produziu

dois elementos importantes para os aconte-

cimentos do século XIX. O primeiro é que o

Tempo passou a ser considerado imanente, ou

seja, coextensivo ao mundo, e o segundo é que

as relações entre os componentes do mundo

– natural e sócio-cultural – tornaram passíveis

de serem compreendidos através de relações

temporais. A nova dimensão quantitativa que

o Tempo geológico produziu, permitiu que o

Evolucionismo fosse pensado. A mudança no

tempo estava completa, tanto em termo de sua

qualidade – do sagrado ao profano – como em

quantidade, do fi nito ao infi nito. Entretanto,

o processo complementar que os Antropólogos

do século XIX desenvolveram, para Fabian, foi

a espacialização do tempo, ou seja, na constru-

ção do Outro, a diferença foi encarada como

distância.

Desde então, os Antropólogos têm abordado

três dimensões do Tempo. A primeira delas Fa-

bian chama de Tempo Físico, que corresponde

a um parâmetro ou vetor na descrição de pro-

cessos sócio-culturais. A segunda diz respeito

ao tempo plotado em escalas (calendários, diria

eu), que se desdobra em duas abordagens: um

Tempo Mundano e um Tempo Tipológico. O

primeiro aglutina períodos de tempo em gran-

de escala, aos quais não se deseja qualifi car deta-

lhadamente, como a designação Idade de Ouro.

A segunda cobre períodos de tempo não tão

extensos, e que possuem entre si características

comuns e opostas, como, por exemplo, tradi-

ção versus modernidade, campesinato versus ur-

bano, sociedades com escrita versus sociedades

sem escrita. A terceira abordagem corresponde

ao Tempo Intersubjetivo. Para Fabian, quer o

|

cadernos de campo • n. 13 • 2005

antropólogo use uma abordagem sincrônica,

quer use um enfoque diacrônico, ambas estão

baseadas em uma dada cronologia, impensável

sem a dimensão do Tempo.

Uma das premissas de um Tempo Inter-

subjetivo é o fato de que os participantes do

“encontro” devem estar em uma mesma tempo-

ralidade, ou seja, serem coetâneos. Entretanto,

Fabian denuncia que a característica da escrita

etnográfi ca é exatamente oposta: há “uma ten-

dência persistente e sistemática em colocar os

referentes da antropologia em um Tempo dis-

tinto do presente daquele que está produzindo

o discurso antropológico” (: 31), ou seja, negar

ao Outro o direito de ser coetâneo, ou coevo.

Com isso não se está produzindo uma si-

tuação anacrônica, reveladora de um evolucio-

nismo ultrapassado. Para Fabian, na verdade, o

que se produz é uma situação em que o Outro

é revelado pelos antropólogos como sendo aló-

crono, ou seja, não está em temporalidade al-

guma. O exemplo marcante para a exclusão da

temporalidade na antropologia é o pensamento

de Lévi-Strauss, para quem o Outro que “não

está presente no mundo; ele habita uma ma-

triz que permite que ele, não só coloque, mas

marque todo e qualquer traço cultural em uma

rede lógica” (: 55).

No quarto capítulo Fabian analisa o pro-

cesso acadêmico, ainda vigente, de pesquisa de

campo, notadamente em seu constrangimento

temporal. As alternativas existentes, o aprendi-

zado da língua previamente – quando o caso –,

o estudo de pequenas comunidades através de

mapas, quadros de parentesco, censos diversos,

todos tem como objetivo fazer com que o pes-

quisador de campo “ganhe” tempo, não “perca”

tempo, cumpra seu “prazo”. Fabian afi rma que

existem três pressupostos subjacentes a estas

prescrições que merecem ser explicitados: co-

loca o aprendizado da língua nativa como uma

“ferramenta” para extração de informações,

adota uma perspectiva “visualista”, ou seja, que

“ver” uma cultura é equivalente a entendê-la, e

por fi m, é o tempo do antropólogo que dita as

relações de produção do conhecimento.

As conclusões de Fabian são claras: “como

relações entre os povos e sociedades que estu-

dam e aqueles que são estudados as relações

entre a antropologia e seu objeto é inevitavel-

mente política: a produção do conhecimento

ocorre em um fórum público de relações in-

ternas aos grupos, entre as classes e interna-

cionais” (: 143). Em sua busca por território,

o ocidente utilizou o Tempo para acomodar a

História unilinear: “progresso, desenvolvimen-

to, modernidade (e suas imagens contrárias:

estagnação, subdesenvolvimento, tradição)”.

Para Fabian, a geopolítica do ocidente tem seus

fundamentos em uma cronopolítica.

Trazer o Tempo para o centro das relações

de poder coloca uma ferramenta de análise que

supera em muito as discussões acerca do pa-

pel da antropologia e da dominação colonial.

O “presente etnográfi co” de etnografi as famo-

sas, mesmo aquelas que tiveram a sensibilida-

de de perceber diferenças entre os sentidos das

temporalidades particulares, como Os Nuer de Evans-Pritchard, congelam os grupos no

tempo. O povo nuer, observado na década de

1930, permaneceu o mesmo ao longo da trilo-

gia de seu etnógrafo, até seu último livro, Nuer Religion, publicado na década de 1950.

Enfi m, a crítica de Fabian coloca para os

antropólogos um desafi o: como superar em

nossas práticas acadêmicas e/ou profi ssionais

os limites de uma temporalidade linear, ca-

racterística de nosso modelo de cientifi cidade,

quando em contato com outras construções

sociais que não estão fundadas no mesmo mo-

delo? Neste livro, a resposta de Fabian é que

devemos reconhecer que nossas teorias sobre a

sociedade do Outro são “nossas práxis – as for-

mas pelas quais produzimos e reproduzimos o

conhecimento acerca do Outro em função de

nossa sociedade” (: 165).

192 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

E tal ensinamento é fundamental para que

se inicie um novo processo de compreensão so-

bre o modelo de reconhecimento de políticas

públicas nacionais voltadas para nossos Outros:

índios, quilombolas e populações tradicionais.

Os confl itos recentes de Roraima, acerca da

Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, sugerem

que a análise das temporalidades em jogo pode

fornecer uma pista para uma compreensão mais

acurada acerca dos interesses em disputa, e das

possibilidades de sua administração.

O livro de Fabian é, antes de tudo, uma re-

velação sobre nós mesmos. E, como tudo que

traz à tona o que está no fundo de nossas práti-

cas e nossas crenças incomoda, instiga, provoca

reações inesperadas. Talvez este seja o motivo de

seu ocultamento: o potencial questionador que

contém sobre nós mesmos e nossas certezas.

O espiritismo kardecista sem dúvida alguma

possui um espaço privilegiado dentro do pan-

teão de crenças existentes no Brasil. Tal espaço

foi galgado e construído ao longo do século XX

a partir de uma série de fenômenos que podem

ser resgatados e melhor compreendidos a partir

da fi gura do médium mais popular da história

do espiritismo brasileiro, Francisco Cândido

Xavier – Chico Xavier.

Percebo que a produção antropológica bra-

sileira ainda carece de estudos que se destinem

a discutir o espiritismo dentro dos códigos de

nossa disciplina. Pelo que conheço, a própria

discussão sobre a vida e a obra de Chico Xa-

vier parece ter se tornado condição sine qua non para desvelarmos uma discussão maior sobre o

espiritismo brasileiro.

Lançado recentemente, O grande mediador – Chico Xavier e a cultura brasileira, de Bernar-

do Lewgoy, de certa maneira precipita e insere

o olhar antropológico para dentro deste debate

que se demonstra cada vez mais atual e recor-

rente. A partir da análise da trajetória (mítica)

de Chico Xavier, o autor procura compreender

de que maneira o espiritismo brasileiro se cons-

tituiu da forma que o é, diferentemente, em

alguns aspectos, do espiritismo francês, berço

desta doutrina, e como a fi gura de Chico Xavier

pode ser compreendida como catalisadora de

uma retórica sincrética entre elementos nota-

velmente espíritas e notavelmente católicos. Tal

fenômeno contribuiu para o desenvolvimento

LEWGOY, Bernardo. 2004. O grande mediador: Chico Xavier e a cultura brasileira. Bauru: EDUSC; 135 pp.

MARCELO TADVALD

Mestre em Antropologia Social pela UFRGS.

Resenha aceita para publicação em 22/09/05

do espiritismo brasileiro e do espiritismo à bra-sileira.

Chico Xavier, falecido em 2002, é a princi-

pal referência do espiritismo no Brasil. Percebe-

mos que a trajetória religiosa deste médium se

confunde com a própria trajetória da doutrina

no Brasil durante o século XX (Chico Xavier

nasceu em 1910 e publicou seu primeiro livro

– Parnaso de Além-Túmulo – em 1932). Ber-

nardo Lewgoy nos sugere que a compreensão

da fi gura de Chico Xavier deve ser apreendi-

da em dois níveis distintos: um que se refere à

obra mediúnica do autor e outro que se refere

à hagiografi a do santo existente em torno da

fi gura do médium. Em todo caso, este estudo

demonstra que, quaisquer que sejam as leituras

realizadas em torno do médium, estas nos apre-

sentam uma personagem cercada de uma aura

de sacralidade que faz sentido para o imaginá-

rio religioso brasileiro, fato que contribuiu de-

cisivamente para a criação e consolidação deste

espiritismo tupiniquim.

A obra está dividida em cinco capítulos. O

primeiro capítulo se propõe realizar um breve

esboço biográfi co de Chico Xavier. Nesta par-

te, tomamos conhecimento do início de uma

trajetória mítica marcada pelo sofrimento e

pela provação, aspectos que iriam acompa-

nhar a fi gura de Chico Xavier durante toda sua

vida. De infância pobre e triste, Chico Xavier

começa desde cedo a tomar conhecimento de

sua “missão maior”, destinada a si nesta vida,

cadernos de campo n. 13: 193-196, 2005

194 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

através de encontros com o espírito de sua mãe.

Posteriormente, se encontraria com um dos es-

píritos mais presentes e “parceiro” durante seu

trabalho espiritual – Emmanuel. Aqui, o autor

procurou demonstrar como tais acontecimen-

tos da vida de Chico Xavier, encontrados em

suas diferentes biografi as existentes, possuem

elementos que podem ser tomados como co-

muns em histórias de santidade, ou seja, que

contribuíram para a constituição de uma ima-

gem de santidade para Chico Xavier.

O segundo capítulo, não por acaso o mais

extenso, reconstitui o contexto social, religio-

so, político e histórico da obra literária do mé-

dium ao longo do tempo e a articula à própria

constituição do “mito” Chico Xavier. O estudo

apresenta de que maneira o papel familiar e re-

ligioso das mães estará presente ao longo das

manifestações públicas do médium, chamando

a atenção para o fato de que tal aspecto esteve

inserido na vida de Chico Xavier de maneira

muito peculiar.

Para Lewgoy, a matrifocalidade da obra de

Chico Xavier resume, em parte, a aproximação

da doutrina espírita com o catolicismo popu-

lar, em um tempo em que a própria Igreja ata-

cava a doutrina. Isto nos permite pensar de que

maneira existira uma valorização da mulher

dentro do espiritismo brasileiro desde então.

Tal discussão pode contribuir para nosso en-

tendimento acerca dos motivos que expliquem

o fato de quase 60% dos espíritas brasileiros se-

rem mulheres, de acordo com o censo de 2000.

Como deixa claro esta obra, a aproximação

do espiritismo brasileiro com o catolicismo se

constitui como um dos fatos que diferem em

essência este espiritismo do europeu preconi-

zado por Allan Kardec, também mais secular e

racionalista.

Durante o Estado Novo ocorre uma reapro-

ximação do governo para com a Igreja Católica.

O grande mediador nos demonstra que o escritor

Chico Xavier entra em cena exatamente durante

este período. Ao ampliar o leque de trocas com o

catolicismo popular, revitalizado, Chico amplia

as possibilidades de difusão da doutrina espírita

entre as camadas populares, através de “um espi-

ritismo de vocação nacional e conciliador” (: 44).

Ficamos com a impressão, lendo este estudo, de

que graças ao trabalho de Chico Xavier, o espiri-

tismo no Brasil consegue se solidifi car e se inte-

grar a realidade urbano-industrial consolidada a

partir dos anos 1930.

Diferentemente do espiritismo francês de

Allan Kardec, o espiritismo brasileiro de Chico

Xavier se constitui a partir de uma estrutura

dissertativa que privilegia os pequenos relatos

espirituais em primeira pessoa, fato que para

Lewgoy pode ser explicado a partir da infl uên-

cia de uma moralidade católica e da literatura

de folhetim.

Para Lewgoy, a fi gura de Chico Xavier, que

se encontra em certo sentido consubstanciada

nas categorias de santidade e “caxias”, apontava

sempre para um ideal conservador aproxima-

do a um ethos militar de disciplina. O estudo

em questão propõe tal ethos ser parte inerente

do Estado Novo. Se Chico Xavier não fosse,

na conduta de sua vida pessoal, um verdadeiro

“caxias”, seria possível construir uma doutrina

espírita à brasileira sob tais características? É

bastante interessante o fato trazido pelo estu-

do de que, o tempo inteiro, a tensão entre os

“desígnios espíritas” e a vida pessoal de Chico

Xavier estarão presentes, assim como uma lin-

guagem burocrática e administrativa – “caxias”

– que fazia apologia à categorias da estirpe de

“serviço”, “trabalho”, “obra”, “mediunato”, etc.

Para o autor, “essa concepção cívica e orgânica

de cidadania afi na-se com a hegemônica matriz

autoritária do pensamento social brasileiro na

década de 1930” (: 68). A obra de Chico Xa-

vier está inserida perfeitamente em seu tempo.

Por exemplo, é curioso descobrirmos, lendo

O grande mediador, porque possuímos, desde

então, centros espíritas constituídos como se

|

cadernos de campo • n. 13 • 2005

fossem repartições do governo, com uma lógi-

ca administrativa e burocrática de atendimen-

to aos seus seguidores. De fato, se realizarmos

uma visita a algum centro espírita brasileiro,

podemos verifi car tal aspecto sem muitas sur-

presas.

A proposta do terceiro capítulo se resume

em resgatar certos elementos que constroem e

aproximam a fi gura de Chico Xavier a de um

“santo”. Tal imagem se consagra a partir dos

anos 1950, devido muito à ética de humildade

e caridade que perpassa a fi gura do médium.

Como demonstra esse estudo, sua biografi a de

entrega, de caridade e humildade, apropriadas

como são pelo imaginário religioso do brasi-

leiro e de suas relações sociais, adquiriu um

aporte indelével de santidade à fi gura de Chico,

ainda que este tenha recusado, durante toda a

sua vida, o epíteto de santo.

Uma vez o quarto capítulo versar sobre a

importância da obra escrita de Chico Xavier

para o Brasil, podemos verifi car a importân-

cia desta obra não somente no que se referiu

à disseminação da doutrina espírita no Brasil,

como também a sua importância política, dada

a unifi cação das federações espíritas então exis-

tentes (Pacto Áureo, em 1949) em torno da-

quela federação (FEB) que editava suas obras.

Se tal aspecto fortaleceu a representatividade

e a ampliação da doutrina em nível nacional,

em consonância a isso, a obra de Chico Xavier,

ao formar um conjunto próprio de referência e

ao possuir um mecanismo de divulgação bem

estruturado, contribuiu para consolidar um es-

piritismo brasileiro autônomo com relação ao

espiritismo francês. Tal proposta, apresentada

no livro de Lewgoy, nos parece coadunar certas

representações existentes dentre a comunidade

espírita brasileira que lhe agregam um certo

sentido de identidade específi co e bem funda-

mentado.

Ainda que o autor não discuta diretamente

tal questão, O grande mediador resgata alguns

elementos que nos permitem vislumbrar tais

categorias, pois demonstra como a obra de

Chico Xavier conseguiu constituir uma doutri-

na que clamava pelo pertencimento social sem

exageros ou radicalismos, agregando valores

católicos e somando a tudo isso símbolos de

prestígio e de diferenciação para seus seguido-

res, como o estudo, a erudição, a ciência e a va-lorização da leitura. Mesmo as camadas menos

favorecidas da sociedade encontravam valores

simbólicos importantes que também possibili-

tavam sua aproximação com a doutrina.

No quinto e último capítulo é traçada uma

análise histórica e contextual do espiritismo no

Brasil, relacionada à fi gura de Chico Xavier ao

longo do tempo. Aqui descobrimos como o es-

piritismo enfrentou problemas de legitimação

no Brasil durante toda a República Velha, en-

contrando forte oposição entre segmentos da

Igreja Católica e do próprio Estado. Porém, ao

combinar nacionalismo e profetismo e sofrer a

infl uência da matriz autoritária do pensamento

social existente nos anos 1930, a doutrina con-

seguiria encontrar paulatinamente seu espaço,

graças, em parte, ao trabalho de Chico Xavier.

Seria a partir dos anos 1950 que o espiritis-

mo encontraria seu momento maior de afi rma-

ção. Lendo O grande mediador, descobrimos

que, não por acaso, será neste período em que

haverá a maior oposição católica contra o es-

piritismo e que à fi gura de Chico Xavier será

agregada de fato uma imagem de santidade.

Para o autor, “nos anos 50 e 60, o espiritismo

buscou mostrar-se mais cristão do que os de-

mais cristãos, mais religioso e popular do que

os ‘falsos religiosos de batina’ que o perseguiam,

e, fi nalmente, mais branco, racional, europeu e

identitário que as demais religiões mediúnicas”

(: 115). Descobrimos também que durante os

anos de 1970-80, a fi gura de Chico Xavier se

resignara a de um homem de bem dentro do

regime militar, reforçando sua imagem de san-

to, laico, ecumênico e caridoso.

196 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

Ao concluir o estudo, Lewgoy reforça o fato

de que não há como desvincular uma análise

do espiritismo de uma análise dos diferentes

momentos sociais porque passaram as forças

armadas no Brasil, ao longo do século XX. Tal

perspectiva faz menção aos momentos históri-

cos da vida política brasileira em que o papel

das forças armadas se fez mais evidente; mo-

mentos estes em que o espiritismo conquistou

espaços importantes dentro da vida religiosa

brasileira. O sucesso desta doutrina pareceu es-

tar relacionado à abertura republicana realiza-

da em 1891 às diferentes crenças religiosas. De

fato, produto de seu tempo, o espiritismo sou-

be se incluir nas diferentes ordenações sociais

porque passou a sociedade brasileira ao longo

do século XX.

A sensação que podemos ter ao terminar

a leitura é a de que tal estudo nos parece co-

locar em xeque o limite entre o “escritor es-

piritual” e o “escritor encarnado”. Fato é que

Chico Xavier viria publicar 412 livros até a

sua morte, em julho de 2002, não por acaso

sendo considerado um dos autores mais profí-

cuos na história da língua portuguesa. E, se de

fato o “espiritismo se encontra na ordem do

dia”, nada melhor do que poder contar com

um estudo antropológico sobre aquele que

possivelmente deu a “cara” que o espiritismo

brasileiro possui hoje.

informe

OS CIRCUITOS DO NAUInforme das atividades desenvolvidas pelo Núcleo de Antropologia Urbana da USP

O Núcleo de Antropologia Urbana, NAU,

formado em 1988 no Departamento de An-

tropologia da USP, é um grupo de pesquisa e

discussões teórico-metodológicas sobre ques-

tões relativas às sociedades urbano-industriais

contemporâneas. O Núcleo integra pesquisa-

dores nos níveis de doutorado, mestrado e gra-

duação (iniciação científi ca), que se distribuem

em quatro linhas temáticas: Práticas culturais e

sociabilidade no contexto urbano, Formas de

religiosidade, Métodos em antropologia urba-

na e Antropologia das sociedades complexas.

A maioria dos estudos realizados pelos inte-

grantes do NAU é localizada na cidade de São

Paulo, mas há trabalhos que foram ou estão

sendo desenvolvidos em cidades como Floria-

nópolis (SC), Belém (PA), Curitiba e Londrina

(PR), Natal (RN), São Carlos (SP) e Campo

Grande (MT) e outras.

Os pesquisadores reúnem-se regularmente

no Departamento de Antropologia da USP

para exposição e discussão de projetos, das es-

tratégias metodológicas escolhidas, de textos

teóricos e resultados do trabalho de campo de

seus participantes (conforme a dinâmica das

diferentes pesquisas em andamento).

Nos últimos anos, o NAU se subdivi-

diu em três grupos temáticos: NAU Jovem,

NAU Estudos da Comunidade Surda e Cul-tura Brasileira. O primeiro reúne alunos de

gradua ção em Ciências Sociais e mestrado em

Antropologia e Sociologia que têm como tema

de estudo grupos de jovens da cidade de São

Paulo. Desde 2001, seus integrantes se encon-

tram para compartilhar dados sobre o traba-

lho etnográfi co, trocar experiências de campo

e discutir questões teóricas e metodológicas

transversais e comuns a todas as pesquisas.

Fruto deste trabalho foi a coletânea de artigos

intitulada Jovens na Metrópole: uma análise antropológica dos circuitos de lazer, encontro e sociabilidade (no prelo), organizada pelo coor-

denador do Núcleo e orientador dos trabalhos,

Prof. Dr. José Guilherme Cantor Magnani e

por Bruna Mantese.

Os pesquisadores do subgrupo NAU Estu-

dos da Comunidade Surda têm como temáticas

centrais de estudo a sociabilidade e a dinâmica

cultural das comunidades surdas na cidade de

São Paulo. Além de discutir as experiências et-

nográfi cas de cada pesquisador, o grupo estuda

o tema da surdez a partir de diferentes áreas,

como a Antropologia, a Lingüística e a História

Oral. Com uma equipe multidisciplinar, com-

posta por antropólogos, lingüistas e historia-

dores, o NAU Estudos da Comunidade Surda

integra, junto com o Departamento de Lingü-

ística da USP o grupo “Estudos da Língua e

Cultura Surdas em São Paulo”.

1. Uma introdução a essas discussões pode ser encon-

trada no recente artigo “Os circuitos dos jovens

urbanos”, de José Guilherme Magnani, publicado

na revista Tempo Social, vol 17, n 02, novembro de

2005.

cadernos de campo n. 13: 199-202, 2005

200 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

O grupo de Cultura Brasileira reúne alunos

do Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva e conta

também com a orientação da Profa. Dra. Rita

Amaral. Ambos desenvolvem o projeto “Do Afro

ao Brasileiro: Religiões Afro-Brasileiras e Cultura

Nacional: uma Abordagem em Hipermídia”, que

conjuga uma larga pesquisa de campo em cinco

estados do país e a experiência metodológica de

representação etnográfi ca em novas mídias. As

investigações desse grupo buscam compreender

as relações entre as práticas de grupos locais e a

cultura nacional e podem ser lidas, entre outros,

no artigo “Foi Conta pra Todo Canto – Músi-

ca popular e cultura religiosa afro-brasileira” de

ambos os pesquisadores, e nos volumes 1 e 2

da Coleção Memória Afro-brasileira, organizada

pelo Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva, além

de outros trabalhos como “Saints noirs, saints de

noirs: couleur et dévotion dans le catholicisme

afro-brésilien”, também de Vagner Gonçalves da

Silva, publicado na França, na coletânea organi-

zada por Christiane Falgayrettes-Leveau: Brésil, L’héritage africain.

Nos circuitos acadêmicos o NAU promove,

também, desde 2002, o seminário A Graduação em Campo – seminários de Antropologia Urba-na das Ciências Sociais. O objetivo do evento é

propiciar um espaço de apresentação e debate

(até então praticamente inexistente na gradua-

ção em Ciências Sociais na USP) de pesquisas

realizadas por alunos de graduação nas discipli-

nas voltadas ao estudo das sociedades comple-

xas. Em 2005 o evento teve sua quarta edição,

consolidando-se como espaço relevante para o

estímulo e aperfeiçoamento da pesquisa acadê-

mica entre os graduandos.

O NAU dialoga ao mesmo tempo com ou-

tros grupos de estudos e pesquisa, como o “Mo-

delos terapêuticos, políticas de saúde, práticas

corporais e a investigação antropológica”, lidera-

do por Luíz Henrique de Toledo, “Antropologia

do Estado e da Guerra”, liderado por Piero de

Camargo Leirner, ambos da Universidade Fede-

ral de São Carlos, o grupo “Dádiva, Estado e

Relações de Mercado”, liderado por Ciméa Bar-

bato Bevilaqua e Christine de Alencar Chaves,

da Universidade Federal do Paraná, o “Núcleo

de Arte, Ritual e Performance” coordenado en-

tre outros por Sandra Jacqueline Stoll da mesma

universidade e o grupo “Cultura, Identidade e

Representações Sociais”, coordenado por Elisete

Schwade da Universidade Federal do Rio Gran-

de do Norte.

Outra importante atuação do Núcleo, e que

o caracteriza desde sua formação, é a prestação

de consultorias para projetos culturais realiza-

dos fora do campo estritamente acadêmico. Um

exemplo recente foi a participação de nove pes-

quisadores do NAU (professores e alunos) no

evento Expedição São Paulo 450 anos, ocorrido

entre os dias 11 e 18 de janeiro de 2004. Re-

sultado de uma parceria entre a Secretaria Mu-

nicipal de Cultura, o Grupo “O Estado de São

Paulo” e o Instituto Florestan Fernandes, con-

tou com o patrocínio da Petrobras e foi parte

das comemorações dos 450 anos de São Paulo,

em janeiro de 2004. A Expedição tinha como

objetivo maior consolidar a implantação do

Museu da Cidade de São Paulo, projeto aprova-

do em decreto municipal desde 1993 e engave-

tado por diversas gestões. O objetivo da viagem

foi conhecer São Paulo por dentro, recolhendo

e documentando, durante o percurso, impres-

sões, entrevistas, atividades artísticas, políticas,

sociais, formas de trabalho, lazer, moradia e so-

ciabilidade que embasariam o acervo daquele

Museu. A expedição, dividida em duas equipes

compostas por especialistas em antropologia,

museologia, arqueologia, arquitetura e urba-

nismo, história, etnomusicologia, geografi a, so-

ciologia, artes, ciências ambientais, educação

e medicina, percorreu diversos bairros de São

Paulo nos sentidos Sul-Norte e Leste-Oeste a

partir de um roteiro previamente estabelecido.

O NAU colaborou neste projeto durante

todo o ano de 2004 e início de 2005 por meio

|

cadernos de campo • n. 13 • 2005

da consultoria e coordenação de José Guilher-

me Cantor Magnani e pela assistência de alguns

alunos integrantes do Núcleo, com o Projeto de Implantação do Museu da Cidade de São Paulo. Alguns resultados deste trabalho foram

a produção do livro Expedição São Paulo 450 anos – uma viagem por dentro da metrópole (São

Paulo, Secretaria Municipal de Cultura/IFF/

Petrobras, 2004), do documentário de mesmo

nome em DVD sobre a expedição, além de

um CD-Rom e da Exposição “Expedição São

Paulo 450 anos”, realizada na Galeria Olido, de

dezembro de 2004 a janeiro de 2005.

Ainda na área de consultorias a projetos

museológicos, o NAU participou, na pessoa

do Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva con-

tribuindo com suas pesquisas e dados de seu

projeto em parceria com a Profa. Dra. Rita

Amaral, de consultorias para a implantação e

consolidação do Museu Afro Brasil, inaugu-

rado no fi nal de 2004 em São Paulo. Desse

trabalho também resultou o texto “Devoção

católica, culto indígena” e a pesquisa sobre o

módulo Arthur Bispo do Rosário, presente no

catálogo da exposição “Brasileiro, Brasileiros”

no Museu Afro-Brasl em 2004. Na pessoa de

Rita Amaral o NAU prestou consultoria ao

projeto de implementação do Museu da Igreja

Presbiteriana de Pinheiros, em 2004.

Desde 2003 o NAU pôde, através de um es-

paço virtual, expandir seus circuitos e contatos

através da criação do seu website: www.n-a-u.org.

Idealizado e produzido pela Profa. Dra. Rita Ama-

ral,2 o site hoje disponibiliza gratuitamente artigos

de autoria dos integrantes do Núcleo, inclusive

alguns artigos produzidos a partir de trabalhos de

alunos de graduação apresentados em edições dos

seminários Graduação em Campo, além de links de interesse para os temas de pesquisa, divulgação

2. Rita Amaral contribui, também, para a divulgação de

trabalhos realizados na área de Antropologia urbana

editando a revista eletrônica “Os Urbanitas, Revista

Digital de Antropologia Urbana”.

de eventos, contatos dos pesquisadores, lança-

mento de livros e outros temas relacionados com

a Antropologia Urbana. Através deste website, o

NAU vem estabelecendo um amplo diálogo via

Internet com pesquisadores de todo o país e tam-

bém estrangeiros, que demonstram ávido interes-

se na troca de conhecimentos. O NAU, por meio

de seu espaço virtual, vem realizando na prática,

e em grande escala (o site recebeu 100.000 aces-

sos únicos em 2 anos) a proposta de difundir e

ampliar conhecimentos e de estabelecer parcerias

com a comunidade acadêmica nacional e inter-

nacional. Diariamente o Núcleo recebe e-mails de alunos, professores e pesquisadores solicitando

informações, dados, enviando notícias etc. Em

2004, o website do NAU foi indicado e incluído

pelo Portal UOL como um dos cinco melhores

na categoria Antropologia. O NAU tem assesso-

rado também a imprensa em geral em matérias

sobre a vida nas cidades, eventos e grupos urba-

nos e sempre que possível as matérias publicadas

são disponibilizadas aos internautas no ícone clippings do NAU.

Também com instituições de ensino priva-

do o NAU tem estabelecido diálogo por inter-

médio, atualmente, das pesquisadoras docentes

Profa. Dra. Denise Pirani, da Pontifícia Univer-

sidade Católica de Minas Gerais e Profa. Lilian

De Lucca Torres, da Fundação Armando Álva-

res Penteado e das Faculdades Integradas Alcân-

tara Machado. A Profa. Rosa Maria M. López

intermedeia o diálogo do NAU com a Univer-

sidade Federal de São Paulo, abordando temas

antropológicos relativos a questões de saúde em

São Paulo. Já a Profa. Dra. Fraya Frehse tem se

envolvido, como docente da Escola de Sociolo-

gia e Política e até o início deste ano, da Escola

da Cidade, em pesquisas sobre áreas defi nidas

de São Paulo visando a formulação de políticas

públicas para tais localidades. Em particular na

Escola de Sociologia e Política coordenou, en-

tre abril e novembro de 2005, uma investigação

etnográfi ca com alunos de graduação e de pós-

202 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

graduação para a elaboração de um diagnóstico

situacional sobre o berço histórico do bairro da

Mooca, popularmente conhecido hoje em dia

como “Mooca Baixa”. Retomando, com nova

roupagem, a antiga tradição de estudos urbanos

da Escola, a pesquisa desembocou na constru-

ção de uma metodologia para a formulação de

diagnósticos para outras regiões da cidade, sen-

do que os resultados etnográfi cos do empreendi-

mento vêm sendo trabalhados pelos alunos em

artigos que comporão uma coletânea que Fraya

está organizando atualmente.

Este conjunto de pesquisadores formados,

pós-graduandos e graduandos (ver www.n-a-u.org/

pesquisadores.html) tem constituído uma inesti-

mável massa crítica e vem fazendo do NAU um

espaço acadêmico vivo, democrático e empenha-

do não somente em produzir conhecimento em

nível de excelência, mas também em torná-lo

acessível à comunidade acadêmica e à sociedade.

www.n-a-u.org

[email protected]

Núcleo de Antropologia Urbana da USP

Prof. Dr. José Guilherme Cantor Magnani

- Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva

Rita Amaral (NAU/USP); Luis Henrique Toledo (UFSCar);

Piero de Camargo Leirner (UFSCar); Ciméa Barbato Bevilaqua (UFPR);

Sandra Jacqueline Stoll (UFPR); Elisete Schwade (UFRN).

Lilian De Lucca Torres (FAAP-FIAM); Denise Pirani (PUC-MG);

Rosa Maria M. López (UNIFESP); Fraya Frehe (FESP).

Alexandre Barbosa Pereira; Eufrázia Cristina Menezes Santos;

Janine Helfst Leicht Collaço; Silvana de Souza Nascimento

Antonio Gracias Vieira; Bruna Mantese; Carolina de Camargo Abreu;

Carol Roxo; César Augusto de Assis Silva; Daniela do Amaral Alfonsi;

Fernanda Silva Noronha; Márcio José Macedo; Paulo Malvasi;

Rachel Rua Baptista; Th omás Meira; Natacha Leal

Ana Luiza Mendes Borges; Angélica de Almeida Durante Pacheco;

Camila Iwasaki; Clara de Assunção Azevedo; Henrique Generese;

Renata de Toledo Rodovalho.

Objetivo e política editorial

1. Cadernos de Campo – revista dos alunos de pós-graduação em antropologia social da USP é

uma publicação anual dedicada a divulgar tra-

balhos que versem sobre temas, resultados de

pesquisas e modelos teórico-metodológicos de

interesse para o debate antropológico contem-

porâneo e que possam contribuir no desenvolvi-

mento de pesquisas em nível de pós-graduação,

no país e no exterior. As contribuições podem ser

apresentadas nos seguintes formatos: artigos e

ensaios, traduções, resenhas, entrevistas e pro-duções visuais.

2. A pertinência para publicação das con-

tribuições será avaliada pela comissão editorial

– quanto à adequação ao perfi l e à linha editorial

da revista – e por pareceristas ad hoc – no que

toca ao conteúdo e à qualidade dos trabalhos. Os

nomes dos pareceristas permanecerão em sigilo,

omitindo-se também os nomes dos autores pe-

rante os primeiros.

3. A comissão editorial entende que a remes-

sa espontânea de qualquer colaboração implica

automaticamente a cessão integral dos direitos

autorais a Cadernos de Campo. Publicados os

trabalhos, a revista reserva-se esses direitos, mes-

mo os de tradução, permitindo entretanto a sua

posterior reprodução, desde que citada a devida

fonte.

4. Conceitos e opiniões expressos nos traba-

lhos publicados são de responsabilidade exclusiva

dos autores, não refl etindo obrigatoriamente a

opinião da comissão editorial.

Instruções para colaboradores

Critérios para apresentação de colaborações

5. De preferência redigidos em português,

Cadernos de Campo publicará eventualmente tra-

balhos em língua estrangeira (espanhol, francês

e inglês).

6. Os trabalhos devem ser apresentados em

duas vias impressas, acompanhadas de uma có-

pia em mídia eletrônica (de preferência e-mail

ou CD, conforme o caso). Os textos devem estar

digitados em página A4, fonte Times New Ro-

man, corpo 12, espaçamento 1,5 cm, com mar-

gens esquerda/direita 2,5 cm, cabeçalho/rodapé

3 cm, em processador de texto compatível com

MSWord. As notas devem ser numeradas com al-

garismos arábicos, em ordem crescente e listadas

ao pé da página. Quadros, mapas, tabelas, ima-

gens etc., devem ser enviados em arquivo separa-

do, com indicações claras, ao longo do texto, dos

locais em que devem ser incluídos. No caso das

fotografi as, devem estar digitalizadas com resolu-

ção acima de 300 dpi e formato TIFF.

a) Artigos e ensaios inéditos. Devem indi-

car título (em português e inglês), nome(s) do(s)

autor(es), titulação, afi liação acadêmica, endere-

ço para correspondência e e-mail; devem também

apresentar um resumo com no máximo 15 linhas

e um elenco de palavras-chave que identifi que seu

conteúdo (em português e inglês). Limite máxi-

mo de 30 páginas, incluídas as referências.

b) Traduções de trabalhos relevantes e indis-

poníveis em língua portuguesa. Devem apresentar

título, nome(s) do(s) autor(es) e do(s) tradutor(es),

indicando deste(s) último(s) titulação, afi liação

204 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

acadêmica, endereço para correspondência e e-

mail. Devem ainda ser acompanhadas de cópia do

original utilizado na tradução, bem como autori-

zação – do editor ou do autor – para publicação.

c) Resenhas de livros, coletâneas, disserta-

ções, teses, fi lmes, documentários, discos etc.

Devem indicar a referência bibliográfi ca do tra-

balho resenhado, nome(s) do(s) seu(s) autor(es),

acompanhado(s) de titulação, afi liação acadêmi-

ca, endereço para correspondência e e-mail. Não

devem ultrapassar 6 páginas.

d) Entrevistas. Devem apresentar o(s) nome(s)

do(s) entrevistado(s) e entrevistador(es), indican-

do, deste(s) último(s), titulação, afi liação acadê-

mica, endereço para correspondência e e-mail.

Devem trazer também uma apresentação de, no

máximo, 1 página. Solicitamos também o envio

da autorização do(s) entrevistado(s), concordando

com a publicação do trabalho. As entrevistas não

devem exceder 30 páginas.

e) Produções visuais – ensaios fotográfi cos,

ilustrações, desenhos, caricaturas etc. – devem

trazer título e nome(s) do(s) autor(es), indicando

titulação, afi liação acadêmica, endereço para cor-

respondência e e-mail. Apresentação e legendas

são opcionais, não podendo a primeira ultrapas-

sar 1 página. Os trabalhos não devem exceder 8

imagens, acompanhadas da indicação do autor e

do ano. Quando necessárias, solicitamos também

as devidas autorizações de uso da imagem.

7. Menções a autores ou citações presentes no

corpo do texto devem adequar-se aos respectivos

modelos: (Geertz 1957) e (Geertz 1957: 235).

Títulos do mesmo autor com o mesmo ano de

publicação devem ser identifi cados com uma letra

após a data: (Lévi-Strauss 1962a) e (Lévi-Strauss

1962b). Recomenda-se o uso da data original de

publicação da obra.

8. As referências bibliográfi cas devem vir ao fi -

nal do trabalho, listadas em ordem alfabética, obe-

decendo aos seguintes padrões exemplifi cados:

a) Livros: LÉVI-STRAUSS, Claude. 1962a. La pensée

sauvage. Paris: Plon.

___. [1962]b. O totemismo hoje, tradução de

M. B. Corrie. São Paulo: Abril Cultural, coleção

Os Pensadores, n. 50, 1980.

___. [1964] O cru e o cozido (mitológicas 1), tradução de B. Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac

& Naify, 2004.

b) Artigos em periódicos:

GEERTZ, Cliff ord. 1957. “Ethos, world view

and the analysis of sacred symbols”. Th e Antioch review, 17 (4): 234-267.

c) Trabalhos em coletâneas:

GEERTZ, Cliff ord. 1966. “Th e impact of the

concept of culture on the concept of man”. In J. Platt (org.), New view of the nature of man. Chi-

cago: University of Chicago Press, pp. 93-118.

d) Teses ou dissertações acadêmicas:DAWSEY, John Cowart. 1999. De que riem

os bóias-frias? Walter Benjamin e o teatro épico de Brecht em carrocerias de caminhões. Tese de livre-

docência. São Paulo: FFLCH-USP, datilo.

9. As contribuições devem ser enviadas para:

Comissão editorial Cadernos de CampoDepartamento de Antropologia/FFLCH/USP

Av. Professor Luciano Gualberto, 315

São Paulo, SP

CEP: 05508-900

e-mail: [email protected]

Para adquirir os números de Cadernos de Campo,

escreva para [email protected]

Nº 12 (2004)

ARTIGOS

Nova sociedade emergente: consumidores de pro-

dutos ou produção discursiva?

Diana Nogueira de Oliveira Lima

Os peregrinos ecléticos cristãos

Gláucia Buratto Rodrigues de Mello

Rompendo tabus: a subjetividade erótica no traba-

lho de campo

Luiz Fernando Rojo

Construindo narrativas orais: interações sociais no

trabalho de campo

Marilda A. Menezes, Lídia M. Arnaud Aires, Maria

R. de Souza

O altar no laboratório: a ciência e o sagrado no pro-

jeto genoma humano

Guilherme José da Silva e Sá

Processo criativo e apreciação estética no grafi smo

Wauja

Aristóteles Barcelos Neto

ARTES DA VIDA

Dádivas da oleira navegante: ensaio fotográfi co so-

bre a cerâmica Wauja

Aristóteles Barcelos Neto

TRADUÇÃO

Apresentação: Cliff ord Geetz e o “selvagem cere-

bral”: do mandala ao círculo hermenêutico

John C. Dawsey

O Selvagem Cerebral: sobre a obra de Claude Lévi-

Strauss, de Cliff ord Geertz

Tradução de Antonio Maurício Dias da Costa

Números anteriores

Nº 11 (2003)

ARTIGOS

Considerações sobre a diplomacia num encontro

etnográfi co

Cristina Patriota de Moura

Amazônia em movimento: “redes” e percursos entre

os índios Ye’kuana, Roraima

Elaine Moreira Lauriola

Analogismo: a natureza do social

Gilton Mendes dos Santos

Uma faxina na identidade de imigrantes brasileiras

Soraya Fleischer

A propósito dos 500 anos do Brasil: Saudações a

Oxalá e ao Senhor do Bonfi m no sertão de Minas

Gerais

Rubens Alves da Silva

Catolicismo, massa e revival: Padre Marcelo Rossi e

o modelo kitsch

Sílvia Regina Alves Fernandes

ARTES DA VIDA

Entre arabescos e mesquitas

Francirosy Campos Barbosa Ferreira

ENTREVISTA

Entrevista com Mariza Corrêa

Carolina Abreu, Francirosy Ferreira, Francisco Paes,

Janine Collaço, Ronaldo Trindade e Ugo Maia

TRADUÇÃO

Apresentação: Roger Bastide e questões de mudança

cultural

Fernanda Arêas Peixoto

206 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

Sociologia das Mutações Religiosas, de Roger Bastide

Tradução de Rita de Cássia Amaral

RESENHAS

Ecologia Humana, de Daniel E. Brown e Edward

Kormondy

Ana Beatriz Miraglia e Joana Cabral de Oliveira

Art and Agency: an Anthropological Th eory, de Alfred

Gell

Aristóteles Barcelos Neto

Nº 10 (2002)

ARTIGOS

Narrativas e o modo de apreendê-las: a experiência

entre os caxinauás

Eliane Camargo

O Nome “Índio”: patronímico étnico como supor-

te simbólico de memória e emergência indígena no

Médio Jequitinhonha – Minas Gerais

Izabel Missagia de Mattos

Etnias de fronteira e questão nacional: o caso dos

“regressados” em Angola

Luena Nascimento Nunes Pereira

Atores/Autores: histórias de vida e produção acadê-

mica dos escritores da homossexualidade no Brasil

José Ronaldo Trindade

Um grande atrator: toré e articulação (inter)étnica

entre os Tumbalalá do sertão baiano

Ugo Maia Andrade

ARTES DA VIDA

Fotos de Luiz de Castro Faria

ENTREVISTA

Entrevista com Luiz de Castro Faria

Ana Paula Mendes de Miranda e Melvina Afra

Mendes de Araújo

TRADUÇÃO

Apresentação: Sylvia Caiuby Novaes

Estruturas elementares de reciprocidade: uma nota

comparativa sobre o pensamento sócio-político nas

Guianas, Brasil Central e Noroeste Amazônico, de

Joanna Overing

Tradução de Renato Sztutman

RESENHAS

Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos, de Loïc Wacquant

Antônio Rafael

O Mundo das calçadas: por uma política democrática de espaços públicos, de Eduardo Yázigi

Fraya Frehse

COMUNICAÇÕES E INFORMES

Informe sobre teses e dissertações defendidas no

Departamento de Antropologia da USP: janeiro de

2001 a dezembro de 2001

Nº 9 (2000)

ARTIGOS

Noções sociais de infância e desenvolvimento in-

fantil

Clarice Cohn

Elipses temporais e o inesperado na pesquisa etno-

gráfi ca sobre crise e medo na cidade de Porto Ale-

gre

Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert

A natureza da fartura

Flávia Maria Galizoni

As práticas e os cuidados relativos à saúde entre os

Karipuna do Uaçá

Laercio Fidelis Dias

Militância na cabeça, direitos humanos no coração e

os pés no sistema: o lugar social do advogado popular

Laura D. von Mandach

Aprendendo novas formas de representação polí-

tica: as inter-relações entre cursos de formação de

professores Waiãpi e o Conselho APINA

Silvia L. da S. Macedo Tinoco

ARTES DA VIDA

Artefatos dos povos indígenas do Oiapoque, Amapá

Miguel Pacheco Chaves

ENTREVISTA

Entrevista com Lux Vidal

Alecsandro J. P. Ratts, Fraya Frehse, Janine H. L.

Collaço e Melvina A. M. de Araújo

|

cadernos de campo • n. 13 • 2005

TRADUÇÃO

Apresentação: Marshall Sahlins ou por uma antro-

pologia estrutural e histórica

Lilia Moritz Schwarcz

Antropologia e história em Marshall Sahlins: “In-

trodução” e “Conclusão” de Historical Metaphors and Mythical Realities, de Marshall Sahlins

Tradução de Fraya Frehse

RESENHAS

A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no nordeste indígena, de João Pacheco de

Oliveira (org.)

Melvina Afra Mendes de Araújo

Oktoberfest: turismo, festa e cultura na estação do chopp,

de Maria Bernadete Ramos Flores

Sidney Antonio da Silva

COMUNICAÇÕES E INFORMES

Informe sobre teses e dissertações defendidas no

Departamento de Antropologia da USP: setembro

de 1999 a outubro de 2000

Nº 8 (1999)

ARTIGOS

A irmandade em redefi nição: tensões entre tradição

e coletivização num grupo camponês

Alessandra Schmitt

Soltando o Leão: observações sobre as práticas de

fi scalização do Imposto de Renda

Ana Paula Mendes de Miranda

Almofala dos Tremembé: a confi guração de um ter-

ritório indígena

Alecsandro J. P. Ratts

De festas, viagens e xamãs: refl exões primeiras sobre

os encontros entre Waiãpi setentrionais meridionais

na fronteira Amapá-Guiana Francesa

Renato Sztutman

Os peões de gado e a representação dos animais no

Pantanal da Nhecolândia

Álvaro Banducci Júnior

ENTREVISTA

Entrevista com Alba Zaluar

Alessandra El Far, Ana Paula Mendes de Miranda,

Edgar Teodoro da Cunha, Fraya Frehse, Melvina

Mendes de Araújo e Ronaldo R. M. de Almeida

TRADUÇÃO

Apresentação: A casa Kabyle na perspectiva estrutu-

ralista de Pierre Bourdieu

Paula Montero

A casa kabyle ou o mundo às avessas, de Pierre

Bourdieu

Tradução de Claude G. Papavero

RESENHAS

Tremembé, Torém, Etnicidade e Campo Indigenis-

ta, de Gerson Augusto Oliveira Júnior

Luena Nascimento Nunes Pereira

Antropologia urbana. Cultura e sociedade no Brasil

e em Portugal, de Gilberto Velho (org.)

Alessandra El Far

COMUNICAÇÕES E INFORMES

Direito, política e meio ambiente: diálogos entre a

Antropologia e a Ciência Política no NUFEP/UFF

Roberto Kant de Lima

Informe sobre teses e dissertações defendidas no

Departamento de Antropologia da USP: outubro

de 1998 a agosto de 1999

Nº 7 (1998)

ARTIGOS

Imposto de Renda e contribuintes de camadas mé-

dias: notas sobre a sonegação

Ciméa Bevilaqua

O Antropólogo no campo da justiça, o investigador

e a testemunha ocular

Joana Domingues Vargas

A formação de um grupo de imortais nos primeiros

anos da República

Alessandra El Far

Trocas, facções e partidos: um estudo da vida políti-

ca em Araruama-RJ

Ana Cláudia Coutinho Viegas

208 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

Antropólogos vão ao cinema: observações sobre a

constituição do fi lme como campo

Rose Satiko Gitirana Hikiji

Cidadania e práticas sociais: as disputas entre em-

pregadas e empregadores domésticos pela mediação

do sindicato

ENTREVISTA

Entrevista com Ruth Cardoso

Alessandra El Far, Carlos Machado Dias Jr., Edgar

Teodoro da Cunha, Fraya Frehse e Ronaldo R. M.

de Almeida

DEBATE

A responsabilidade ética e social do antropólogo

Dominique Gallois, Mariana K. L. Ferreira e Vag-

ner Gonçalves da Silva

TRADUÇÃO

Os dilemas do antropólogo entre “estar lá” e “estar

aqui”: primeiro e último capítulo de Works and li-ves: the anthropologist as author, de Cliff ord Geertz

Tradução de Fraya Frehse

RESENHAS

Diário no sentido estrito do termo, de Bronislaw Ma-

linowski

Vagner Gonçalves da Silva

Woman in the fi eld: anthropological experiences, de

Peggy Golde (ed.)

Heloisa Buarque de Almeida

A heresia dos índios: catolicismo e rebelião no Brasil colonial, de Ronaldo Vainfas

Marcos Pereira Rufi no

COMUNICAÇÕES E INFORMES

Extrativismo mineral por e para comunidades indí-

genas da Amazônia: a experiência do garimpo entre

os Waiãpi do Amapá e os Kaiapó do sul do Pará

Terence Turner

Informe sobre teses e dissertações defendidas no

Departamento de Antropologia da USP: setembro

de 1997 a setembro de 1998

Nº 5-6 (1995-1996)

ARTIGOS

Do velho ao antigo: etnografi a do surgimento de

um patrimônio

Bernardo Lewgoy

Classifi cações êmicas da natureza: a etnobiologia no

Brasil e a socialização das espécies naturais

Eduardo Carrara

Poder criativo e domesticação produtiva na estética

piaroa e kaxinwá

Elsje Maria Lagrou

Metáforas convencionais & atribuição de crenças

Paulo A. G. Sousa

A metáfora do olhar em Janela indiscreta, de Alfred

Hitchcock

José de Souza Martins

Quando o Metro era um palácio: salas de cinema e

modernização em São Paulo

Heloísa Buarque de Almeida

Entre largo e praça, matriz e catedral: a Sé nos car-

tões-postais paulistanos

Fraya Frehse

Representações depreciativas e espaços: notas sobre

um estudo de caso

Maria das Graças Furtado

Da raça à identidade: da disputa por paradigmas na

ciência do outro

Andreas Hofbauer

ENTREVISTA

Falando de Antropologia

Entrevista com Roberto Cardoso de Oliveira

Luís Donizete Benzi Grupioni e Maria Denise Fa-

jardo Grupioni

TRADUÇÃO

Édipo e Jó na África Ocidental, de Meyer Fortes

Tradução de Samuel Titan Jr.

RESENHAS

Em busca da China Moderna, de Jonathan Spence

Marcos Lanna

|

cadernos de campo • n. 13 • 2005

Under the rainbow. Nature and supernature among the Panare Indians, de Jean-Paul Dumont

Renato Sztutman

A trama das imagens, de Paulo Menezes

Rose Satiko Gitirana Hikiji

A vez e a voz do popular: movimentos populares e participação política no Brasil pós 70, de Ana Maria

Doimo

Carolina Moreira Marques

COMUNICAÇÕES E INFORMES

Imagens e o olhar das Ciências Sociais: a trajetória

do GRAVI

Edgar Teodoro da Cunha

Informe sobre teses e dissertações defendidas no De-

partamento de Antropologia da USP: 1995 a 1997

Nº 4 (1994)

ARTIGOS

Katukina, Yawanawa e Marubo: desencontros míti-

cos e encontros históricos

Edilene Coff aci de Lima

Antropólogos e seus Sortilégios: uma releitura do “Es-

boço de uma teoria da magia” de Mauss e Hubert

Emerson Alessandro Giumbelli

O Pluralismo Médico Wayana-Aparai: a intersecção

entre a tradição local e a global

Paula Morgado

Homo Solitarius: notas sobre a gênese da solidão

moderna

Celso Castro

Máscaras Iluministas: os usos retóricos do selvagem

Samuel Titan Jr.

A Reforma da Cultura Popular e suas Implicações

para a Construção do Sujeito Moderno

Fabíola Rohden

ENTREVISTA

Entrevista com Darcy Ribeiro

Luís Donizete Benzi Grupioni e Maria Denise Fa-

jardo Pereira

TRADUÇÕES

Apresentação: Introdução ao “Signifi cado Etnológi-

co das Doutrinas Esotéricas”, de Franz Boas

Margarida Maria Moura

Signifi cado Etnológico das Doutrinas Esotéricas

Franz Boas

Tradução de Margarida Maria Moura

Apresentação: Introdução a “A ‘Doença’ E Suas

‘Causas’”, de Andras Zempléni

Paula Morgado

A “Doença” e suas “Causas”, de Andras Zempléni

Tradução de Solange Unti Cunha Pinto

RESENHAS

No encalço da luta cidadã

Privado porém público: o terceiro setor na América La-tina, de Rubem César Fernandes

Marcos Pereira Rufi no

As redes e o cotidiano em Laboratory LifeLaboratory Life: Th e construction of scientifi c facts, de

Bruno Latour & Steve Woogar

Luís Eduardo Lacerda de Abreu

Os Bororo e a Igreja Católica: paradoxos da identi-

dade vistos em um caleidoscópio

Jogo de espelhos: imagens da representação de si através dos outros, de Sylvia Caiuby Novaes

Ana Lúcia Marques Camargo Ferraz

COMUNICAÇÕES E INFORMES

O grupo MARI: educação e respeito à diversidade

brasileira

André Luiz da Silva

Informe sobre teses e dissertações defendidas no De-

partamento de Antropologia da USP: 1991 a 1994

Nº 3 (1993)

ARTIGOS

A “Aquarela do Brasil”: refl exões preliminares sobre

a construção nacional do samba e da capoeira

Letícia Vidor de Souza Reis

Por que xingam os torcedores de futebol?

Luiz Henrique de Toledo

210 |

cadernos de campo • n. 13 • 2005

Quando 1 + 1 = 2: práticas matemáticas no Parque

Indígena do Xingu

Mariana Kawall Leal Ferreira

As mulheres negras do Oriashé: música e negritude

no contexto urbano

Luciana Ferreira Moura Mendonça

Para não ver cara nem coração: um estudo sobre o

serviço telefônico Disque-Amizade

Lilian de Lucca Torres

Bakhtin, Ginzburg e a cultura popular

Karina Kuschnir

Durkheim: uma análise dos fundamentos simbó-

licos da vida social e dos fundamentos sociais do

simbolismo

Heloísa Pontes

TRADUÇÃO

Apresentação: Introdução: a questão colonial revi-

sitada

Paula Montero

A noção de situação colonial, de Georges Balandier

Tradução de Nicolás Nyimi Campanário

ENTREVISTA

Entrevista com George Marcus

Heloísa Buarque de Almeida, Lídia Marcelino Re-

bouças e Vagner Gonçalves da Silva

RESENHAS

O espetáculo das raças

O espetáculo das raças, de Lilia Moritz Schwarcz

Alessandra El Far

Estrangeiros no Brasil

Estrangeiros no Brasil, de Fernanda Peixoto Massi

Ana Paula Cavalcanti Simioni

As ilusões do multiculturalismo

Questão de raça, de Cornel West

Omar Ribeiro Th omaz

COMUNICAÇÕES E INFORMES

Carnaval: o potlatch da sociedade complexa no Brasil

Angelo José Perosa

Até que nem tão Esotérico assim: o NAU e suas ca-

minhadas pelas formas de lazer e práticas esotéricas

da grande cidade

Flávia Prado Moi e Renato Sztutman

Nº 2 (1992)

ARTIGOS

Entre penas e cores: cultura material e identidade

bororo

Luís Donizete Benzi Grupioni

“Vídeo nas aldeias”: a experiência Waiãpi

Dominique T. Gallois e Vicent Carelli

Da exclusão à participação: o movimento social dos

trabalhadores atingidos por barragens

Lidia Marcelino Rebouças

Tribos urbanas: metáfora ou categoria?

José Guilherme Cantor Magnani

Dilemas da modernidade no mundo contemporâneo

Paula Montero

Ficção científi ca: um mito moderno

Piero de Camargo Leirner

Lógica e racionalidade em Lévi-Strauss

Felipe Soeiro Chaimovich

A antropologia e a “refl exão inacabada” em Merleau-

Ponty

Alberto Alonso Muñoz

A força e a fraqueza do argumento anti-liberal demo-

crata: a crítica à Primeira República em Oliveira Vian-

na, Sérgio Buarque de Holanda e Vitor Nunes Leal

Fernando Luiz Abrucio

A origem do Homo Sapiens Sapiens: uma questão

ainda não esclarecida

Diogo Meyer

Indigenismo sanitário? Instituições, discursos e po-

líticas indígenas no Brasil contemporâneo

István Van Deursen Varga

TRADUÇÃO

O sagrado selvagem, de Roger Bastide

Tradução de Rita de Cássia Amaral

|

cadernos de campo • n. 13 • 2005

ENTREVISTA

Entrevista com Claude Lévi-Strauss

Edmundo Magaña

RESENHAS

As estratégias textuais de Cliff ord Geertz

El antropologo como autor, de Cliff ord Geertz

Fernanda Massi

Rock brasileiro: retratos de uma tribo urbana

Retratos de uma tribo urbana, de Almerinda Sales

Guerreiro

Heloísa Buarque de Almeida

A morte é uma festa

A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX, de João José Reis

Íris Kantor

Índios no Brasil: os caminhos do futuro

Índios no Brasil, de Luís Donizete Benzi Grupioni

Edmundo Antônio Peggion

COMUNICAÇÕES E INFORMES

Estes quinhentos e outros tantos

Marcos Pereira Rufi no

Relações sujeito-objeto na pesquisa antropológica:

seminário temático e exposição fotográfi ca

Maria Denise Fajardo Pereira

Índios no Brasil: alteridade, diversidade e diálogo

cultural

Lilia Katri Moritz Schwarcz

Nº 1 (1991)

ARTIGOS

As tatuagens e a criminalidade feminina

Marina Albuquerque Mendes da Silva

Loucas, agitadas, doentes ou perigosas: representa-

ção e cotidiano das internas do Hospital de Juqueri

Cristina Pozzi Redko

Duas mulheres negras: histórias de religiosidade po-

pular e resistência

Neusa Maria Mendes de Guesmão

Ana Lúcia E. P. Valente

Ex-escrava proprietária de escrava: um caso de Seví-

cia na Bahia do século XIX

Jocélio Teles dos Santos

A crítica antropológica pós-moderna e a construção

textual da etnografi a religiosa afro-brasileira

Vagner Gonçalves da Silva

A etnopoesia de Hubert Fichte

Plácido Alcântara

TRADUÇÃO

Da cosmologia à história: resistência, adaptação e

consciência social entre os Kayapó, de Terence Turner

Tradução de David Soares

ENTREVISTA

Novas propostas para a pós-graduação: a academia

deve estar mais perto da sociedade

Entrevista com Eunice Ribeiro Durham

Luís Donizete Benzi Grupioni e Omar Ribeiro

Th omaz

RESENHAS

M. M. para não íntimos

Margaret Mead: uma vida de controvérsia, de Phyllis

Grosskurth

Luís Donizete Benzi Grupioni

Os escritos de uma “conquista”: a educação escolar

indígena

OPAN: a consquista da escrita, de Loretta Emiri e

Ruth Monserrat (org.)

Marina Kahn

Mutirão: utopia e necessidade, de Jeanne Bisilliat-

Gardet (org.)

Zulmara Salvador

COMUNICAÇÕES E INFORMES

A nova LDB e os índios: a rendição dos caras-pálidas

Luís Donizete Benzi Grupioni

Declaração Universal dos Direitos Coletivos dos Povos

Clara Massip

MARI: Grupo de estudos de educação indígena

Tribunal permanente dos povos

Lux Vidal

FONTE ADOBE GARAMOND PRO 11/14PAPEL PÓLEN SOFT 80 G/M2GRÁFICA PROL GRÁFICAIMPRESSÃO MARÇO DE 2006