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cadernos de campoREVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL DA USP
ISSN 0104-5679
A n o 1 4 • 2005 13
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
REITORA Prof. Dr. Adolpho José Melfi VICE-REITOR Prof. Dr. Hélio Nogueira da Cruz
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DIRETOR Prof. Dr. Sedi HiranoVICE-DIRETORA Profª. Drª. Sandra Margarida Nitirni
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
CHEFE Prof. Dr. John Cowart DawseyVICE-CHEFE Profª. Drª. Marta Rosa Amoroso
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
COORDENADORA Profª. Drª. Paula MonteroVICE-COORDENADOR Prof. Dr. Júlio Assis Simões
COMISSÃO EDITORIAL
André-Kees de Moraes Shouten, Cecília Rodriguez Sant’Ana, Daniela do Amaral Alfonsi, Danilo Paiva Ramos, Érica Peçanha do Nascimento, Francisco Simões Paes, Íris Morais Araújo, Isabela Oliveira, Lílian Sales, Maíra Santi Buhler, Rachel Rua Baptista e Rafaela de Andrade Deiab.
CONSELHO EDITORIAL
Alejandro Frigerio (FLACSO/CONICET, Buenos Aires), Carlos Sandroni (UFPE), Carlos Steil (UFRGS), Ciméa Bevilaqua (UFPR), Clifford Geertz (IEA, Princeton), Ellen F. Woortmann (UnB), Esther Jean Langdon (UFSC), Joaquim Pais de Brito (Museu Nacional de Etnologia, Lisboa), John Cowart Dawsey (USP), Márcio Ferreira da Silva (USP), Márcio Goldman (MN/UFRJ), Paula Montero (USP), Rose Satiko (USP), Tânia Stolze Lima (UFF), Terence Turner (Universidade de Cornell, Nova Iorque).
COLABORADORES DESTE NÚMERO
Alexandre Barbosa Pereira, Francirosy Campos Barbosa Ferreira, Giovanni Cirino, Herbert Rodrigues, Janine Helfst Leicht Collaço, John Cowart Dawsey, José Guilherme Cantor Magnani, Júlio Assis Simões, Lilia Moritz Schwarcz, Lilian Krakowski Chazan, Madian de Jesus Frazão Pereira, Marcelo Tadvald, Márcio Ferreira da Silva, Marcio Goldman, Maria Angela Gemaque Álvaro, Marisol Rodriguez Valle, Melissa Santana de Oliveira, Paula Siqueira, Peter Fry, Renata Bortoletto Silva, Renato Sztutman, Rita Amaral, Ronaldo Lobão, Tânia Stolze de Lima e Vagner Gonçalves da Silva.
PREPARAÇÃO E REVISÃO DE TEXTO
Com-Arte Jr.Comissão Editorial Cadernos de Campo
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E CAPA
Pedro Barros e Wildiney Di MasiPonto & Pixel (www.pontoepixel.com)
PROJETO GRÁFICO ORIGINAL
Ricardo Assis
FOTO DA CAPA
Peter FryFamília Fashu, aldeia Mangengwa, Zimbabwe, 1964
Cadernos da Campo – revista dos alunos de pós-gradua-ção em antropologia social da USP. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofi a, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. N. 13, ano 14, 2005 – São Paulo: USP, FFLCH. Publicada desde 1991.
Anual
ISSN 0104-5679
1. Antropologia, 2. Etnografi a, 3. Teoria e Método, 4. His-tória da Antropologia
Cadernos de Campo – revista dos alunos de pós-gradua-ção em antropologia social da USP é uma publicação anual dedicada a divulgar trabalhos que versem sobre temas, resultados de pesquisas e modelos teórico-metodológicos de interesse para o debate antropológico contemporâneo e que possam contribuir no desenvolvimento de pesquisas em nível de pós-graduação, no país e no exterior.
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
ADDRESS FOR CORRESPONDANCE
Cadernos de Campo – revista dos alunos de pós-graduação em antropologia social da USPDepartamento de Antropologia/FFLCH/USPAv. Professor Luciano Gualberto, 315 - 05508-900São Paulo/ SP - Brasile-mail: [email protected]
Esta revista é indexada peloÍndice Brasileiro de Ciências Sociais – IUPERJ/RJUlrich’s International Periodical Directory
Publicação Anual / Anual publicationSolicita-se permuta / Exchange desired
Tiragem: 600 exemplares
Todos os direitos reservadosCopyright © 2005 by Autores
FINANCIAMENTO: PPGAS/USP e NAU/USP
Para adquirir a Cadernos de Campo entre em contato pelo e-mail: [email protected]
sumário
editorial ..........................................................................................................................9
artigos e ensaios .....................................................................................................13
Vestindo o jaleco: refl exões sobre a subjetividade e a posição do etnógrafo em
ambiente médico
............................................................................................15
Os caminhos da memória
....................................................................................
Ipanema e suas modas: passado x presente
............................................................................................
“Filhos do Rei Sebastião”, “Filhos da Lua”: construções simbólicas sobre os nativos
da Ilha dos Lençóis
.................................................................................
Nhanhembo’é: infância, educação e religião entre os Guarani de M’Biguaçu, SC
.......................................................................................
Oloniti e o castigo da festa errada: relações entre mito e ritual entre os Paresi
.............................................................................................
Relendo Walter Benjamin: etnografi a da música, disco e inconsciente auditivo
- ..............................................
Imagens perigosas: a possessão e a gênese do cinema de Jean Rouch
......................................................................................................
artes da vida ............................................................................................................
Escrita urbana: a pixação paulistana
.......................................................................................
entrevista ..................................................................................................................
Entrevista com Peter Fry
, , , ,
.......................................................................................
traduções ..................................................................................................................
Jeanne Favret-Saada, os afetos, a etnografi a
.......................................................................................................
“Ser afetado”, de Jeanne Favret-Saada
....................................................................................
Victor Turner e antropologia da experiência
. ..........................................................................................................
Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em Antropologia da Experiência (primeira parte),
de Victor Turner
............................................................................
resenhas ....................................................................................................................
FABIAN, Johannes. Th e Time and the Other: how anthropology makes its object. ..........................................................................................................
LEWGOY, Bernardo. O grande mediador: Chico Xavier e a cultura brasileira. .......................................................................................................
informe
Os circuitos do NAU: informe das atividades desenvolvidas pelo Núcleo de
Antropologia Urbana da USP ......................................................................................
instruções para colaboradores .....................................................................
números anteriores ..............................................................................................
contents
editorial ..........................................................................................................................
articles and essays ................................................................................................
Wearing the white coat: thoughts about the subjectivity and the ethnographer’s
place in a medical environment
............................................................................................
Ways of memory
....................................................................................
Ipanema and its vogues: past x present
............................................................................................
“Children of King Sebastião”, “Children of the Moon”: simbolic constructions about
Ilha dos Lençóis’ natives
.................................................................................
Nhanhembo’é: childhood, education and religion among Guarani from M’Biguaçu, SC
.......................................................................................
Oloniti and the punishment of the wrong party: relashionships between mith and
ritual among the Paresi
.............................................................................................
Rereading Walter Benjamin: ethnography of music, record and aural unconscious
- ..............................................
Dangerous images: possession and genesis of Jean Rouch’s cinema
......................................................................................................
arts of life ..................................................................................................................
Urban writing: the pixação in São Paulo
.......................................................................................
interview ....................................................................................................................
Interview with Peter Fry
, , , ,
.......................................................................................
translations ..............................................................................................................
Jeanne Favret-Saada, the feelings, the ethnography
.......................................................................................................
“Being aff ected”, by Jeanne Favret-Saada
................................................................................
Victor Turner and the Anthropology of Experience
. ..........................................................................................................
Dewey, Dilthey and drama: an essay in the Anthropology of Experience (fi st part),
by Victor Turner
........................................................................
reviews .......................................................................................................................
FABIAN, Johannes. Th e Time and the Other: how anthropology makes its object. ..........................................................................................................
LEWGOY, Bernardo. O grande mediador: Chico Xavier e a cultura brasileira. .......................................................................................................
information
Th e NAU’s circuits: information about the activities of Urban Anthropology
Group from USP ........................................................................................................
instructions to collaborators ..........................................................................
previous editions ...................................................................................................
editorialTreize – j’eus un plaisir cruel de m’arreter sur ce nombre.
Às vésperas de seu début, já que completan-
do catorze anos de existência, é com uma espé-
cie de “prazer cruel” que trazemos a público o
décimo terceiro número de Cadernos de Campo,
revista editada pelos alunos de Pós-Graduação
em Antropologia Social da USP.
O número treze sempre esteve associado ao
infortúnio, à falta de sorte, ao risco, ao perigo.
De fato, contando com uma comissão editorial
quase que inteiramente renovada e ainda neófi -
ta nas artes da editoria, os riscos e perigos que
corremos na formatação desse número foram
imensos. Daí aquele prazer cruel, fórmula para-
doxal que talvez refl ita o nosso sentimento como
jovens editores, preocupados em realizar um tra-
balho condizente com a já consolidada tradição
da revista, em meio às difi culdades impostas ao
longo dessa iniciação. É certo que, durante o
processo, contamos com gentis ofi ciantes, an-
tigos editores sempre dispostos a nos ajudar na
superação dos percalços dessa jornada.
Mesmo estando sob um signo malfazejo, ou
mesmo por estar sob ele, arriscamos algumas
inovações na revista. A começar pelo projeto
gráfi co, procurando acertar minúcias e incor-
porar as alterações feitas nos últimos cinco
anos, num trabalho de passar a limpo aquilo
que foi acumulado nesse período. Este esforço
está presente também nas esquecidas “Instru-
ções para colaboradores” ao fi nal da revista,
onde procuramos tornar as informações mais
objetivas, eliminando algumas ambigüidades
constantes nas versões anteriores. Tais altera-
ções têm como norte os critérios Qualis (CA-
PES) de avaliação dos periódicos científi cos, na
tentativa de manter a boa avaliação que tive-
mos em 2004.
E já que revisávamos a revista, arriscamos
algumas ampliações nas seções que compõem
a Cadernos de Campo. Essas dizem respeito ao
número de traduções apresentadas nesta edição
e, especialmente, à seção de artigos, que passa
a contar também com ensaios teóricos, exercí-
cios que jovens antropólogos têm empreendido
em conjunto com suas pesquisas empíricas. Já
a seção batizada com o poético nome “Artes da
vida” – criada inicialmente para valorizar outras
linguagens que não o texto acadêmico, mas que
nos últimos números restringiu-se aos ensaios
fotográfi cos de pesquisadores em seus campos
de pesquisa –, está agora aberta para outras
produções visuais que possam iluminar o de-
bate antropológico por novos e surpreendentes
ângulos, no intuito de retomar a sua proposta
de origem. Nossa nova política editorial tam-
bém consagra às entrevistas uma outra dinâmi-
ca, uma vez que aceitaremos, para o próximo
número, colaborações de outros pesquisadores,
não apenas dos membros da própria comissão
editorial. Uma última ampliação diz respeito à
possibilidade da eventual publicação de traba-
lhos em língua estrangeira (espanhol, francês e
inglês), com o intuito de expandir o leque de
colaboradores da revista, sobretudo nossos vizi-
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
nhos hispano-americanos. Para usar uma fór-
mula consagrada neste espaço: Novos tempos, novos desafi os!
Mesmo que fi éis ao objetivo de apresentar a
variedade de temas com os quais lidam os an-
tropólogos do Brasil e do exterior, o presente
número traz trabalhos de autores ligados não
só aos programas de pós-graduação nas ciên-
cias sociais, mas também de colegas da área da
saúde, campo de estudos que há muito tempo
fl erta com a antropologia. É com grande prazer
que publicamos tais trabalhos, e nos colocamos
assim abertos às contribuições que, em diálo-
go com a nossa disciplina, propõem-se a ver o
mundo a partir de outras paragens. Assim, o
artigo que abre esta edição, “Vestindo o jale-
co: refl exões sobre a subjetividade e a posição
do etnógrafo em ambiente médico”, de Lilian
Krakowski Chazan, discute os procedimentos
de pesquisa que resultaram em seu trabalho
– acerca da construção do feto como Pessoa,
mediada pela tecnologia da imagem – a partir
da ambigüidade de suas identidades como pes-
quisadora, médica e antropóloga.
Já o texto de Maria Angela Gemaque Ál-
varo, “Os caminhos da memória”, nos leva ao
modo com que foram elaboradas as memórias
sociais de duas famílias consideradas tradicio-
nais em Belém (PA). A autora desvenda, pela
análise de depoimentos orais e de versões es-
critas dessas histórias de família, como se dá
a construção de lembranças, de relações entre
passado e presente.
Por sua vez, Marisol Rodriguez Valle em
“Ipanema e suas modas: passado X presente”
refl ete sobre como os livros e a imprensa cria-
ram representações sobre Ipanema, compa-
rando compreensões, passadas e atuais, deste
bairro carioca sobre modos de vida, percepções
de mundo, ícones e espaços de sociabilidade.
Madian de Jesus F. Pereira, em seu artigo
“‘Filhos do Rei Sebastião’, ‘Filhos da Lua’:
construções simbólicas sobre os nativos da Ilha
dos Lençóis”, nos revela diferentes construções
sobre os albinos da Ilha dos Lençóis (MA), ao
analisar as práticas discursivas acerca desses
ilhéus levando em consideração um “universo
de fora” e um “universo de dentro”.
O texto de Melissa Santana de Oliveira,
“Nhanhembo’é: infância, educação e religião
entre os Guarani de M’Biguaçu, SC”, apresen-
ta o modo com que três espaços de socialização
infantil – as rezas, o coral e a escola – foram
pensados pelas lideranças locais, tendo em vista
a participação ativa das crianças no processo de
“valorização da tradição” deste grupo Guarani.
Temos ainda o exercício etnográfi co de
Renata Bortoletto Silva, intitulado “Oloniti e
o castigo da festa errada: relações entre mito e
ritual entre os Paresi”, que descreve o Oloniti, ritual intercomunitário, e um mito Paresi, O castigo da festa errada. As relações de simetria e
inversão entre mito e rito possibilitam analisar
códigos que governam relações sociais, cujos
valores são a reciprocidade e a predação.
Partindo das mudanças provocadas na arte
à época das alterações dos meios de percepção
da mesma na contemporaneidade, o ensaio de
André-Kees de Moraes Schouten e Giovanni
Cirino, “Relendo Walter Benjamin: etnogra-
fi a da música, disco e inconsciente auditivo”,
retoma as refl exões de Walter Benjamin, Th e-
odor Adorno e Marcel Mauss, visando pensar
as possibilidades de uma etnografi a da música
a partir de materiais fonográfi cos.
Fechando esta seção, Renato Sztutman em
“Imagens perigosas: a possessão e a gênese do
cinema de Jean Rouch” procura compreender
a obra de Jean Rouch a partir do fi lme Les maîtres fous, já que é nele que esse cineasta
traz, pela primeira vez, uma discussão mais
apurada sobre a linguagem do fi lme etno-
gráfi co. Enquanto Jean Rouch refl ete sobre
imaginário e realidade, o autor costura uma
outra, acerca do cinema e suas relações com a
antropologia.
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A seção “Artes da vida”, por sua vez, se abre
a todas as possibilidades da arte – incluindo a
dúvida e o dissenso em relação a ela – ao apre-
sentar “folhinhas” de pixadores paulistanos,
material de pesquisa recolhido por Alexandre
Barbosa Pereira. O autor chama a atenção para
a forma dada, pelos pixadores, às letras usadas
para inscrever suas marcas, bem como os su-
portes desse tipo de intervenção – os espaços
urbanos e as “folhinhas” trocadas entre pixado-res, um modo de buscar perenidade a um tipo
de intervenção efêmera –, visto essencialmente
como poluição visual.
Já nossa entrevista foi realizada com Peter
Fry, antropólogo que desde os anos 1970 se in-
seriu no debate brasileiro estudando temas re-
lacionados a questões raciais, gênero e religião.
O mote da conversa foi dado pelo lançamento
de A persistência da raça, livro que reúne textos
sobre o trabalho do autor em Moçambique, no
Zimbábue e no Brasil. Na entrevista, Fry tra-
tou de pontos polêmicos que estão em pauta
na produção antropológica contemporânea,
como as políticas públicas específi cas para a
população negra. Além de tantas experiências
compartilhadas e problematizadas, Peter Fry
também nos forneceu a imagem da capa desta
edição, feita em sua pesquisa de campo entre os
Zezuru nos anos 1960.
Neste número 13, apresentamos, como já
mencionado, duas traduções. Seguindo um
procedimento consagrado da revista, apre-
sentamos textos ainda inéditos em português,
tornando-os mais acessíveis principalmente
aos alunos dos cursos de graduação. Com essa
prática, buscamos divulgar trabalhos de auto-
res importantes para a nossa disciplina. Nesta
seção, ainda contamos com a colaboração de
professores que se propuseram a apresentar o
material traduzido e, desta maneira, apontar
para a relevância das refl exões de cada autor
para o debate antropológico. Assim, o texto
“Ser afetado”, da antropóloga francesa Jeanne
Favret-Saada, foi traduzido por Paula Siquei-
ra e conta com uma apresentação de Márcio
Goldman. Já “Dewey, Dilthey e drama: um en-
saio em antropologia da experiência”, de Victor
Turner, foi traduzido por Herbert Rodrigues e
é discutido por John Cowart Dawsey.
As resenhas de Marcelo Tadvald e Ronaldo
Lobão, por sua vez, visam apontar para a rele-
vância da leitura dos livros de Bernardo Lewgoy,
O grande mediador: Chico Xavier e a cultura bra-sileira, e de Johannes Fabian, Th e Time and the Other: how anthropology makes its object.
Por fi m, nossa última modifi cação para
atender as exigências dos critérios Qualis foi
a reformulação de nosso Conselho Editorial.
Esse espaço agora agrega especialistas não ape-
nas da nossa própria casa, mas privilegia o diá-
logo com professores de diferentes instituições
acadêmicas, brasileiras e internacionais. Gosta-
ríamos, portanto, de agradecer o interesse dos
novos conselheiros que ao aceitar nosso con-
vite, passaram a partilhar conosco – tentando
aprimorar, sempre – a Cadernos de Campo.
Ao ver a Cadernos 13, assim, pronta, só nos
resta agradecer aos autores que, acreditando em
nosso projeto editorial, confi aram seus traba-
lhos em nossas mãos, e aos pareceristas externos
que, com rigor e generosidade intelectual, nos
auxiliaram na escolha dos textos aqui apresenta-
dos. Ademais, uma série de pessoas nos ajudou
a materializar essa edição. Agradecemos a co-
laboração da Profª Bela Feldman-Bianco, que
nos forneceu a lista completa dos critérios Qua-lis (CAPES); ao Prof. Peter Fry, que gentilmente
nos concedeu a entrevista e cedeu a imagem da
capa; ao Prof. Julio Assis Simões, que nos aju-
dou a organizar a entrevista com Fry; ao Prof.
Márcio Silva, editor chefe da Revista de Antro-pologia, que forneceu dicas preciosas para o tra-
balho editorial; à Profª Lilia Moritz Schwarcz,
que nos ensinou sobre os meandros de direitos
de tradução; e aos professores José Guilherme
Magnani e Vagner Gonçalves da Silva, que,
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em nome do Núcleo de Antropologia Urbana
(NAU), colaboraram fi nanceiramente para a
publicação deste número. Por fi m, mas não me-
nos importantes, deixamos os agradecimentos
às professoras Beatriz Perrone-Moisés e Paula
Montero, respectivamente ex e atual responsáveis
pela coordenação Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social da USP. Foi graças ao
apoio dado nesses 14 anos por esse programa
que a revista existe e será com a intenção de me-
lhorá-la ainda mais que continuaremos nesse
prazeroso, porém cruel, ofício editorial.
resumo A autora discute questões surgidas no
decorrer do trabalho de campo, parte da tese de dou-
torado, cuja temática consiste na construção do feto
como Pessoa, mediada pela tecnologia de imagem.
Foram observadas ultra-sonografi as obstétricas em
clínicas do Rio de Janeiro, RJ, e neste texto é pro-
blematizado o fato de buscar um olhar antropológi-
co em ambiente médico, sendo ela própria médica.
O pedido de que vestisse o jaleco em duas clínicas
gerou questões acerca da identidade da observadora,
como médica e como antropóloga. Discute-se como
esta dupla inserção opera no decorrer da pesquisa,
em relação aos atores deste universo e no olhar da
observadora. A presença desta pareceu ser mais per-
turbadora para os médicos do que para as gestantes.
O modo como a perturbação era expressa diferiu de
acordo com o gênero do ultra-sonografi sta. A for-
mação médica facilitou a entrada no campo e a acei-
tação da pesquisa por parte de seus sujeitos e por
outro lado há uma tensão quando a pesquisadora
busca estranhar uma situação duplamente familiar.
palavras-chave pesquisa qualitativa; etno-
grafi a; observação participante; identidade do pes-
quisador; subjetividades.
Vestindo o jaleco: refl exões sobre a subjetividade e a posição do etnógrafo em ambiente médico*
* Este texto é uma segunda versão do trabalho apre-
sentado na 24a Reunião Brasileira de Antropologia,
Olinda, PE, 2004, no FP 36: Antropologia, trabalho
de campo e subjetividade: desafi os contemporâneos.
LILIAN KRAKOWSKI CHAZAN
Doutora em Saúde Coletiva pelo PPGSC/IMS/
UERJ e bolsista FAPERJ.
Artigo aceito para publicação em 18/09/05
abstract Th e author discusses some issues
that arose in the course of fi eldwork, part of her
doctorate thesis about the social construction of
the foetus as a person through imaging technology.
Th e research involved the observation of obstetrical
ultrasound scans in private clinics in Rio de Janei-
ro-Brazil. Th e problem in point was the search for
an anthropological view in a medical environment,
the observer herself being a physician. Th e request
that she wear a white coat caused questions to arise
concerning the identity of the observer, as a doctor
as well as an anthropologist. It is queried how this
duality operates in the course of the research, with
regard to the actors in this universe and in the view
of the observer. Her presence appeared to be more
perturbing to the doctors than to the mothers-to-
be. Th e way in which the perturbation was expres-
sed diff ered according to the gender of the doctor.
Th e researcher’s medical background facilitated the
author’s attendance at the examinations and the ac-
ceptance of the research by the subjects observed;
on the other hand, there is a tension raised by the
observer’s attempt at reaching an anthropological
view in a situation that is doubly familiar to her.
keywords qualitative research; ethnography;
participant observation; researcher’s identity; sub-
jectivities.
cadernos de campo n. 13: 15-32, 2005
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Introdução
Neste texto são discutidos alguns aspectos
das relações intersubjetivas surgidas no decor-
rer do trabalho de campo observando ultra-so-
nografi as (US) obstétricas em clínicas privadas
– designadas por A, B e C – do Rio de Janeiro,
RJ, parte da pesquisa desenvolvida para a tese
de doutorado. O foco da investigação consistia
na construção social do feto como Pessoa me-
diada pela tecnologia de ultra-som, produtora
de imagens fetais.1 Ao longo da realização da
etnografi a surgiram diversas questões envol-
vendo a identidade profi ssional da observado-
ra. O principal ponto em discussão neste artigo
consiste no fato de ser graduada em medicina
e buscar um olhar antropológico em ambiente
médico. Esta dupla identidade, por assim dizer,
necessariamente confi gurou meu olhar e o re-
lacionamento com os atores do universo obser-
vado. Por um lado, facilitou os contatos iniciais
e a aceitação da pesquisa pelos responsáveis pe-
las clínicas, por se tratar de uma ‘colega’.2 Por
outro, a familiaridade com o ambiente médico
vez por outra difi cultava o distanciamento e o
estranhamento necessários para uma etnografi a.
O fato de ser psiquiatra e psicanalista também
emergiu como uma questão identitária no cam-
po mas, pelo prisma do estranhamento antro-
pológico, foi secundária à duplicidade principal
de ser médica e estar realizando uma pesquisa
antropológica naquele ambiente.3 Na clínica A,
1. A partir de fi ns da década de 1980, a US obstétrica tor-
nou-se uma prática médica considerada indispensável
no pré-natal. Na década de 1990, na América do Norte
e Europa, produziu-se uma série de estudos antropoló-
gicos sobre as práticas e os signifi cados da expansão do
uso do US na gravidez. A revisão desta literatura é par-
te de minha dissertação de mestrado (Chazan 2000).
2. Aspas simples são minhas; uso aspas duplas para ci-
tações de autores ou falas dos informantes, estas em
itálico.
3. Existe uma produção brasileira recente de etnografi as
em ambiente médico (Gonçalves 2001; Rojo 2001;
durante todo o tempo usei trajes comuns. O
pedido de que vestisse o jaleco nas clínicas B e
C catalisou diversas questões acerca da subjeti-
vidade presente no trabalho de campo e da mi-
nha inserção identitária como médica e como
antropóloga. Utilizo essa ocorrência como um
ponto-chave para a discussão sobre como esta
dupla inserção, de caráter dinâmico e bastante
signifi cativo, operou no decorrer da pesquisa,
em relação aos atores deste universo e ao meu
olhar.4 De um modo geral, a minha presença
na sala de exames pareceu perturbar mais aos
médicos do que as gestantes. O modo como a
perturbação era expressa diferiu de acordo com
o gênero do ultra-sonografi sta. Para situar em
que contexto se desenvolveram as questões que
abordo aqui, apresento de modo breve o de-
senho da pesquisa e características das clínicas
etnografadas, retomando adiante a entrada no
campo e o detalhamento do contexto.
Pouco depois de iniciada a observação na
primeira clínica, percebi a necessidade de mu-
dar o escopo do campo,5 por verifi car que, se se-
guisse o projeto original, o número de variáveis
em jogo tornaria a análise inviável no tempo de
que dispunha.6 Durante o ano de 2003 observei
Monteiro 2001; Luna 2004; Menezes 2000, 2004).
Dentre elas destaco especialmente a última, por dia-
logar de perto com o presente trabalho. Decorrente
do fato de termos formação similar, essa autora en-
frentou questões muito semelhantes às aqui aborda-
das. Rojo, em contraste, destaca o fato de “na maior
parte do tempo não me [sentir] estudando meu pró-
prio grupo” (Rojo 2001: 18).
4. Por conseguinte, é impossível escapar, neste texto, de
algum grau de confessionalidade.
5. A princípio, pretendia comparar a prática do US obs-
tétrico em um hospital público, um universitário e
uma clínica particular. Rojo (2001: 14) também dis-
cute a mudança de escopo ao entrar no campo e per-
ceber a complexidade e difi culdade de se estabelecer
uma abordagem comparativa em tempo exíguo.
6. Outros pontos relevantes para a mudança foram
a constatação da existência de uma interatividade
constitutiva dessa tecnologia de imagem e de um
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
exames, buscando compreender de que ma-
neira profi ssionais, gestantes e acompanhantes
lidavam com a US obstétrica, em termos de
discursos e práticas. Meu foco de observação
estava nas negociações ocorridas em torno das
imagens fetais, motivo pelo qual optei por não
realizar entrevistas com as gestantes.7 As con-
versas com elas e seus acompanhantes restrin-
giam-se em geral à explicação sobre a pesquisa
e ao pedido de autorização para observar. Entre
um e outro exame ocorreram diversas intera-
ções com os profi ssionais – meus principais
informantes – que constituem o núcleo das
refl exões e da discussão que desenvolvo neste
texto. Durante os exames tomava notas e mais
tarde construía relatos das situações e dos diá-
logos ocorridos em cada dia. As clínicas A e B
eram conveniadas com planos de saúde de pre-
ços variados que, em termos de renda, distribu-
íam a clientela. A clínica B costumava atender
a um grupo claramente menos abastado do que
as outras duas. A clínica C só realizava exames
particulares, com preços a partir de R$ 110,00,
à época. A peculiaridade de sua clientela advi-
nha de existir um vínculo com um centro de
reprodução assistida, motivo de ali encontrar
mais gestações consideradas de risco – do pon-
to de vista médico – e múltiplas do que nas
outras duas. Grosso modo, estimei que a clínica
processo de construção de uma cultura visual espe-
cífi ca dos atores do universo observado, temas que
me pareceram merecedores de uma investigação mais
aprofundada (Chazan 2005: 203-234). Daí decorreu
o trabalho de campo ser redirecionado para a obser-
vação de mais duas clínicas privadas que, por motivos
de ordem variada, atendiam a gestantes de diferentes
estratos das camadas médias da população (ver abai-
xo, nota 9).
7. Outro motivo da opção envolve ter considerado que,
por ser a psicanálise minha área original de atuação, se
me aproximasse de modo mais individualizado com
os sujeitos da pesquisa seria difícil me desvencilhar de
referenciais familiares. As interações me interessavam
mais do que apenas os discursos.
A atendia mais a clientes de camadas média e
média/alta, a B, média e média/baixa, e a C,
média/alta e alta.8
1 O familiar e o exótico: sobre o olhar e o estranhamento
Ao longo do tempo em que permaneci
no campo, as indagações foram mudando à
medida que construía uma identidade como
pesquisadora. Começando pelo problema que
inicialmente me ocupou, o de buscar um olhar
antropológico em ambiente médico sendo
graduada em medicina, existem ainda outras
particularidades que complexifi cam o proble-
ma do estranhamento necessário à análise do
material. O fato de explicitar esses aspectos e
delinear a minha posição no campo permite
que implicitamente se estabeleça uma discus-
são sobre as relações de poder que aí têm lu-
gar, conforme aponta Cliff ord (1986: 15). Por
questões pessoais, as imagens radiográfi cas e
uma noção, mesmo que incipiente, de ‘trans-
parência’ do corpo humano, estiveram presen-
tes em minha vida desde muito cedo, fazendo
parte da construção do meu olhar em termos
de cultura visual.9 Anos depois, cursei medici-
na, enveredando pela psiquiatria e, em seguida,
pela psicanálise. Estas peculiaridades produzi-
ram dois níveis distintos de familiaridade com
o universo etnografado: um primeiro, quase in-
trínseco, relacionado à construção cultural do
corpo e do meu olhar, e um segundo, vincula-
do ao conhecimento posterior de medicina. As
8. A divisão não é rigorosa, pois não investiguei o perfi l
sócio-econômico das gestantes. Estabeleci essa classi-
fi cação baseada na observação dos trajes e da lingua-
gem das gestantes, além da localização das clínicas na
cidade. A clínica A se situava na Zona Oeste, moradia
de camadas médias em ascensão, a B na Zona Norte,
área de grupos de menor poder aquisitivo, e a C en-
contrava-se na Zona Sul, área ‘nobre’.
9. Refi ro-me especifi camente ao fato de meu pai ser mé-
dico e radiologista.
18 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
pesquisas no decorrer da pós-graduação proble-
matizaram aspectos relacionados à visualidade,
ao uso de tecnologias visuais em medicina com
a conseqüente ‘transparência’ do corpo, e à
própria medicina. A proximidade com aspec-
tos constitutivos do campo que me propunha
a observar de um ponto de vista antropológico
eram, conforme apontado por Latour, o gran-
de desafi o, em termos de “disciplinar o olhar,
manter a distância” (Latour & Woolgar 1997:
27).10 Meu primeiro ‘aliado’ na possibilidade de
manter alguma distância residia na quase total
incapacidade – desde os tempos de graduanda
do curso médico – em decodifi car as imagens
sobre as quais meus informantes trabalhavam
e com as quais interagiam cotidianamente. Se-
gundo DaMatta,
(...) [S]ó se tem Antropologia Social quando se
tem de algum modo o exótico, e o exótico depen-
de invariavelmente da distância social (...) vestir a
capa de etnólogo é aprender a realizar uma dupla
tarefa (...) transformar o exótico no familiar e/ou
transformar o familiar em exótico. E, em ambos
os casos, é necessária a presença dos dois termos
(que representam dois universos de signifi cação)
e (...) uma vivência dos dois domínios por um
mesmo sujeito disposto a situá-los e apanhá-los
(DaMatta 1978: 28; grifos originais).
O primeiro passo, portanto, ao abordar
meu campo de pesquisa, consistia em trans-
formar o que me era bastante familiar em
‘exótico’, de modo a poder torná-lo objeto de
estudo e, em seguida, fazer o caminho de vol-
ta, transformando este exótico em familiar em
outro nível, por meio de tradução para uma
linguagem antropológica.11 Ainda conforme
DaMatta,
10. Sobre a tensão entre familiaridade e estranhamento
pelos mesmos motivos, cf. Menezes (2000: 22).
11. Sobre o exótico e o familiar, ver também o texto clás-
sico de Velho (1978).
As duas transformações estão, pois, intima-
mente relacionadas e ambas sujeitas a uma
série de resíduos, nunca sendo realmente per-
feitas. De fato, o exótico nunca pode passar
a ser familiar; e o familiar nunca deixa de ser
exótico (DaMatta 1978: 29).
O trânsito entre as duas esferas distintas
em termos epistemológicos e práticos esteve
presente todo o tempo durante o trabalho de
campo e operou em diversos níveis, dos mais
concretos aos mais abstratos. Do ponto de vista
prático, a ‘iniciação’ prévia na medicina, além
de propiciar contatos pessoais entre os especia-
listas em imagem, facilitou a minha aceitação
e a entrada no campo.12 Pode-se compreender
esta acolhida como os médicos me tomando
por ‘nativa’, pois mesmo informando-os que
me propunha a uma investigação antropo-
lógica, freqüentemente os profi ssionais em-
penhavam-se em me fornecer explicações de
cunho especializado, ‘de colega para colega’.13
Compreendi este comportamento como uma
estratégia não proposital dos meus informan-
tes visando neutralizar o desconforto provo-
cado pela minha presença como observadora,
em outras palavras, pela “violência irredutível
12. Considero aqui o estudo da medicina como um pro-
cesso iniciático sem me estender nele. Cf. o clássico
de Becker et al. (1997). A formação psicanalítica tam-
bém pode ser considerada como outra ‘iniciação’, mas
focalizo apenas a primeira por ser qualitativamente
a mais signifi cativa. As difi culdades iniciais de um
pesquisador não-médico em ter acesso ao ambiente
médico estão bem descritas por Rojo (2001: 21). Em
contraste, Monteiro, socióloga, assinala a facilidade
e a informalidade com que foi aceita na unidade do
hospital onde observou cateterismos cardíacos, em
Albany, NY (Monteiro, 2001: 45). O que parece
ocorrer é que, dependendo do campo a ser etnografa-
do, mesmo para o observador com formação médica
esse acesso pode ser bastante difi cultado, conforme
descreve Menezes (2004: 20-21).
13. Menezes (2000: 10) relata o mesmo tipo de atitude
‘didática’ em seus informantes do CTI observado.
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
do trabalho etnográfi co”, conforme Rabinow
(1977: 129), ou pela “intrusão” nos termos de
Cliff ord (1983: 140) – inerente a este tipo de
abordagem e parte essencial da produção dos
fatos a serem observados. Em um plano mais
abstrato, esta atitude ‘didática’ deles, conjuga-
da à minha reação, resultou em uma espécie
de aprendizado paralelo à minha revelia tendo
como fruto uma modifi cação efetiva na minha
[in]capacidade em decodifi car as imagens ul-
tra-sonográfi cas que eram exibidas na tela do
monitor. Aos poucos, involuntariamente, as
imagens tornaram-se mais familiares para mim
e tal mudança passava a obscurecer a estranhe-
za do fato de como diferentes manchas cinzen-
tas eram ‘subjetivadas’ pelos atores. De início,
a situação me preocupou, pois a incapacidade
em compreender as imagens era a minha prin-
cipal ferramenta para obter o distanciamento
de que necessitava. À medida que prosseguiu o
trabalho, contudo, percebi que o fato de conse-
guir, embora precariamente, entender sozinha
o que estava sendo visibilizado14 na tela per-
mitia-me acompanhar em ‘tempo real’ o que
estava sendo decodifi cado pelo médico e passar
a focar a atenção nas estratégias discursivas ou
visuais do operador para, por exemplo, dar ou
evitar fornecer más notícias à gestante.15 Em al-
guns momentos, contudo, notava estar dema-
siado interessada em questões médicas em si, e
aí percebia a necessidade de disciplinar minha
curiosidade. Ao afastar a medicina como foco
de curiosidade, aproximava-me do meu objeti-
vo. Duas atividades correlatas eram o principal
14. Utilizo ‘visibilizar’ e não ‘visualizar’ porque é um ter-
mo nativo e, a rigor, a tecnologia do US – assim como
todas as tecnologias de imagem médica – ‘torna visí-
vel’ algo não acessível ao olhar.
15. Monteiro refere experiência semelhante: ao se fami-
liarizar com as imagens de cateterismo sobre as quais
seus sujeitos trabalhavam cotidianamente, tornou-se
mais rápida nas anotações e passou a focar a aten-
ção em outros aspectos das interações entre os atores
(Monteiro 2001: 48).
modo de retomar a distância: o ato de tomar
notas durante as observações e a posterior
construção dos relatos.16 Essa última ativida-
de, em especial, permitia-me resgatar o foco da
observação. A oscilação entre duas identidades
profi ssionais foi constante e tornou-se consti-
tutiva do trabalho, como não poderia deixar de
ser. Em várias ocasiões utilizei-me consciente-
mente da familiaridade com o discurso médi-
co e de ter genuína curiosidade sobre temas da
medicina como estratégia para estabelecer um
contato menos formal e – porque não dizer –
menos persecutório para os profi ssionais. Com
freqüência percebia estar falando a ‘língua dos
nativos’, utilizando um jargão que me era fami-
liar, para perguntar e debater assuntos variados
dentro do campo médico. Esse comportamen-
to era bem recebido pelos meus informantes
e reduzia eventuais inquietações sobre “o que você tanto anota?”17 no pequeno fi chário utili-
zado para as notas de campo.18
Conforme aponta Geertz (1984: 134), um
aspecto essencial necessariamente presente em
uma etnografi a repousa na interpretação do
que está sendo focalizado. Para tal, é necessá-
rio conhecer-se e entender os elementos que
se apresentam, decodifi cando seus signifi cados
16. Sobre a alternância entre aproximação e afastamento
do objeto, cf. Menezes (2004: 23,24).
17. Nos exemplos do campo usei sublinhado sempre que
a ênfase era do autor da fala. Negritos são ênfases
minhas. Editei o mínimo possível o material visando
preservar ao máximo a vivacidade e a espontaneida-
de das falas dos atores. Adiante, a descrição extensa
e mais detalhada das clínicas visou contextualizar a
observação e, também, mantê-la “abert[a] à interpre-
tação acadêmica (e à reapropriação pelos nativos)”
como apontaram Codere e Hymes nesse tipo de abor-
dagem (Cliff ord 1998: 239).
18. Usava um fi chário de tamanho mínimo, repondo fo-
lhas após cada dia de observação, porque a capa dura
oferecia apoio para que eu tomasse notas – o que em
geral acontecia de pé, durante os exames – e também
porque isto permitiu que as folhas com os registros
diários fossem arquivadas separadamente.
20 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
para o grupo em questão. Nesse sentido, estar
familiarizada com a cultura médica e com o
jargão corrente entre os profi ssionais foi faci-
litador para a elaboração da etnografi a e pou-
pou um tempo precioso de aprendizagem da
‘língua nativa’. Foi como se eu ‘pulasse’ uma
etapa de iniciação na cultura do universo et-
nografado.19 Esta se deu, em um segundo mo-
mento, por meio do treinamento involuntário
do meu olhar. De acordo com Becker e Geer,
erros de interpretação sobre o teor do material
fornecido pelos informantes estão calcados no
fato de que “freqüentemente não entendemos
o que não estamos entendendo e assim fi ca-
mos propensos a cometer erros ao interpretar
o que nos é dito” (Becker e Geer 1978: 77).20
Ter sido ‘iniciada’ na linguagem e na cultura
próprias do universo que pretendia observar,
muito antes de pensar na área médica em ter-
mos antropológicos, produziu um deslocamen-
to da experiência de ‘iniciação’ no campo para
a esfera mais estrita da etnografi a, da qual in-
clusive o presente texto pode ser considerado
um dos elementos, como assinalam Marcus &
Fischer (1986: 21). Sentia-me segura de estar
entendendo meus informantes por seu próprio
ponto de vista, sendo este o lado positivo de
ter uma formação médica buscando uma visão
antropológica naquele ambiente. Por outro
lado, era um fator problemático para a segunda
‘iniciação’, antropológica, por difi cultar o es-
tranhamento necessário à elaboração da etno-
grafi a. A construção dos primeiros relatórios de
campo e, mais adiante, do texto etnográfi co em
si, produziram de fato um efeito de distancia-
mento da minha primeira ‘iniciação’ e o início
da segunda.
19. Acerca da questão de aquisição de conhecimento téc-
nico – “aquisição de competência nativa” – em etno-
grafi as médicas ou em ambientes tecnológicos, cf. a
discussão de Monteiro (2001: 47).
20. A tradução dos textos citados é de minha autoria, sal-
vo menção expressa.
2 Primeiros contatos e entrada no campo
O primeiro contato que obtive foi com
dra. Lúcia,21 da clínica B, indicada por uma
ginecologista-obstetra como uma competente
especialista em US obstétrico. Dr. Henrique,
da clínica A, foi recomendado nos mesmos ter-
mos, por um radiologista, meu conhecido de
longa data. Em diferentes ocasiões, ambos me
receberam para conversar após o expediente.
Os dois encontros antecederam em cerca de
um ano a entrada efetiva no campo. Dr. Hen-
rique, diferentemente de sua colega, discorreu
longamente sobre a especialidade, contou casos
e teceu críticas a certos usos – e, no seu en-
tendimento, abusos – da utilização de US na
gravidez. Nas duas vezes iniciei a conversa per-
guntando pela ‘rotina’ em US na gestação. Em
retrospecto, verifi quei que já nesses primeiros
contatos surgiu uma diferença de atitude que
emergiu como padrão ao longo da observação,
vinculada à questão de relações de gênero no
campo: os médicos sempre se mostraram muito
mais prolixos do que suas colegas, tema ao qual
retornarei. Para além desse aspecto, as longas
explicações e ‘palestras’ informais apontaram
para o fato de que meus informantes estavam
mais acostumados a serem eles os decodifi cado-
res de imagens e enunciadores de ‘verdades’ do
que objeto de uma observação que permitiria
produzir um texto etnográfi co sobre eles e sobre
as verdades produzidas por eles.
Cerca de um ano depois desses primeiros
contatos, iniciei a observação na clínica A, se-
manalmente, nela permanecendo por 3 me-
ses. Nesse período acompanhei em especial
dr. Henrique, o preferido pelas gestantes e
referência principal desta clínica para os exa-
mes obstétricos, embora outros profi ssionais
também os realizassem. Surgiu-me então uma
21. Nome fi ctício, como todos neste trabalho.
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
dúvida acerca do quanto certas práticas seriam
peculiares ao dr. Henrique, por singularidades
pessoais, daí decorrendo, entre outros motivos,
ter resolvido mudar o escopo da etnografi a, es-
tendendo a observação para mais duas clínicas
particulares. O contato com dr. Sílvio, dono da
clínica C, ocorreu por intermédio de dr. Hen-
rique, algum tempo após o início do trabalho
de campo.22 Ao telefone, ele aceitou que eu ob-
servasse em sua clínica, pois dr. Henrique lhe
teria dito que eu “só assistia e tomava notas”;23
fez ainda questão de me dizer que foi “o pri-meiro a fazer US no Rio de Janeiro” e pediu que
levasse jaleco para observar os exames. Na pri-
meira vez que fui à clínica, para preencher uma
formalidade,24 ele veio ao meu encontro em
trajes de centro cirúrgico25 e me reconheceu de
reuniões que participara com alguns psicanalis-
tas. Conversamos sobre a pesquisa e, sabedor
de que eu observara a clínica A, disse: “Aqui você vai observar uma situação completamente diferente de clínica de convênio, os exames levam uma hora ou mais...”, o tom de sua fala cono-
tando ‘aqui você vai ver como é que se faz de
verdade, para valer’. Na despedida, indicou-me
às atendentes, dizendo-lhes que eu freqüentaria
a clínica. Muito receptivo, satisfeito em mos-
trar sua clínica e seu renome profi ssional, de
modo análogo às explicações científi cas acima
mencionadas, este conjunto de atitudes deno-
tou um outro modo de delimitação e reafi rma-
22. Ver nota 6, acima. Como o contato com a clínica B já
havia sido estabelecido, foi a obtenção de permissão
para observar pelo dono da clínica C que emprestou
à etnografi a seu contorno defi nitivo.
23. A rigor, conhecia Dr. Sílvio há muitos anos, mas ele
não se lembrava de mim, obviamente.
24. Nas 3 clínicas apresentei o projeto para ser assinado
pelo responsável, sendo a seguir submetido ao comi-
tê de ética do IMS/UERJ, vinculado ao CONEPE.
Após essa aprovação iniciava as observações.
25. Nesta clínica eram realizados procedimentos tais
como biópsia de vilo corial e amniocentese, que re-
queriam ambiente asséptico.
ção de posição dentro das relações de poder no
campo. A noção veiculada por ele, de que ali eu
teria acesso à ‘coisa certa’, de um ponto de vista
de protocolos científi cos, sugeria uma tentati-
va de direcionar meu olhar para um campo no
qual ele seria o detentor de conhecimentos e
de uma posição privilegiados – como médico,
dono da clínica e precursor da especialidade no
Rio de Janeiro.
3 As clínicas
Alguns detalhes da decoração das três clí-
nicas, assim como os espaços de circulação e
das salas de exames eram signifi cativamente di-
ferentes e remetiam ao nível sócio-econômico
da clientela atendida.26 Os donos das clínicas
B e C são os primeiros profi ssionais que se es-
tabeleceram na área de US no Rio de Janeiro.
O dono da clínica A investe pesadamente na
aquisição de equipamentos de última geração
em diversas tecnologias de imagem médica e
representaria, por assim dizer, o ‘futuro’ em
termos de diagnóstico por imagem no Rio de
Janeiro. De certo modo, sua credibilidade re-
pousa parcialmente neste aspecto, em contras-
te com a autoridade mais calcada no peso da
‘tradição’, das clínicas B e C. A preocupação
em estarem atualizados, com a compra de equi-
pamentos cada vez mais sofi sticados, é comum
aos três, que investem grandes somas neste sen-
tido. A clínica B é uma fi lial modesta de uma
grande clínica de US, em cuja matriz estão os
equipamentos mais modernos.
A clínica A, denominada ‘A’-mulher, confor-
me o nome explicita destina-se exclusivamente
à clientela feminina: realiza US ginecológico e
obstétrico, mamografi as e densitometrias ósse-
as, sendo uma das unidades de uma clínica de
26. Em termos do nível de especialização e profi ciência
dos profi ssionais, as três clínicas se equivalem e, do
ponto de vista técnico, são igualmente bem conceitu-
adas entre ginecologistas e obstetras.
22 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
imagem. Encontra-se em um grande shopping,
na mesma área das lojas, e a fachada da clínica
é facilmente confundida com as outras: envi-
draçada, com portas de vidro com o logotipo
pintado. A sala de espera é ampla e na entrada
há um aparelho para retirada de senhas, como
em bancos, laboratórios de análises clínicas e
certos supermercados. À esquerda de quem
entra, existe uma bancada com três compu-
tadores e recepcionistas com crachás, unifor-
mizadas. Atrás delas, em um grande nicho na
parede, vê-se máquinas eletrônicas de cobran-
ça de cartões de crédito. O chão é de granito
polido e as cadeiras em série, fi xadas ao chão,
totalizam cerca de 30 lugares. Há uma TV de
20” permanentemente ligada e revistas de ‘ce-
lebridades’ em mesinhas de canto.27 Duas das
paredes desta sala são envidraçadas, permitindo
que se observe o movimento dos corredores do
shopping e vice-versa, como se os que aguardam
atendimento estivessem dentro de uma vitrine.
O conjunto todo evidencia os cuidados de um
decorador, criando um ambiente asséptico e
impessoal que tanto poderia ser uma recepção
de banco como de companhia aérea: não há
nenhuma indicação evidente de que se trate de
uma clínica para exames.28 Passando-se a por-
ta de vidro que separa a sala de espera da área
de exames, há dois corredores paralelos. No da
esquerda estão a sala do aparelho de US 3D de
última geração e as duas seguintes, com apare-
lhos mais antigos. Em frente às portas das salas
há dois banheiros e uma fi leira de 4 vestiários
pequenos; no fi nal deste corredor encontra-se a
sala de laudos, bastante acanhada, se compara-
da com os outros espaços da clínica. A ‘assepsia’
da decoração está coerente com as idéias high-tech e de cientifi cidade que são valores centrais
para os profi ssionais desta clínica. A distribui-
27. Do tipo Caras, Quem, Ricos e famosos e congêneres.
28. Mesmo o logotipo da clínica não pode ser imedia-
tamente associado a nenhum símbolo indicativo de
atividade médica.
ção dos espaços suscita algumas questões re-
lativas à privacidade oferecida para a troca de
roupa das gestantes; a exigüidade e o relativo
desconforto da sala de laudos remetem a um
certo grau de desvalorização dos profi ssionais,
tema que mais tarde surgiu na reclamação de
uma das médicas, à guisa de ‘cooptação’ e de
cumplicidade comigo.
A clínica B situa-se em um prédio comer-
cial modesto na Zona Norte do Rio. A sala de
espera é pequena, com uma TV de 10”, sempre
ligada, de cor e imagem instáveis. Na parede há
quadrinhos reproduzindo aquarelas com paisa-
gens de Paris. Na bancada da recepção há um
computador e uma atendente. Atrás dela exis-
tem máquinas manuais para emissão de boletos
de cartão de crédito, diversas pastas e, na pare-
de, um cartaz: “Vendemos fi tas de VHS”.29 Os
bancos são em alvenaria, com encosto pregado
na parede; em um canto há revistas de ‘genera-
lidades’.30 Ao entrar na clínica, à direita, está a
porta de acesso para um pequeno corredor que
leva às salas de exames e à sala de laudos, que
é ampla e tem diversas funções: nela, profi ssio-
nais e atendentes fazem refeições, preparam os
laudos, agendam exames, discutem casos com
outros médicos pelo telefone, trocam de roupa
e fofocam.31 A multiplicidade de funções dessa
sala, permitindo uma razoável mistura de ati-
vidades, é coerente com o aspecto mais mar-
cante desta clínica: a inexistência de qualquer
tipo de isolamento acústico entre os diferentes
compartimentos, provocando uma confusão de
sons análoga à mistura de atividades da sala de
laudos, apesar do cartaz na parede solicitando
que se fale baixo. Esta situação se deve ao modo
29. Muitas gestantes trazem suas próprias fi tas de vídeo
para gravar US ao longo da gravidez. O consumo da
imagem, um aspecto pregnante deste universo, é um
tema complexo e foge ao escopo deste artigo.
30. Veja, Isto é, Casa Cláudia.31. Por acaso, só havia mulheres nesta clínica durante o
período em que realizei a observação.
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
como os espaços da área de exames foram dis-
tribuídos: parece ter sido um único recinto que
foi subdividido n vezes, com divisórias de eu-
catex, às vezes de modo oblíquo; excetuando
a sala de laudos, todos os outros espaços são
exíguos, fechados com portas sanfonadas. Das
duas portas de madeira – a da sala de laudos e
a do corredor dos exames – uma está despen-
cando. O consultório tem relativo conforto,
mas é muito mais modesto do que a clínica
A, correspondendo ao padrão sócio-econômi-
co da clientela, bem abaixo do da primeira. A
aparelhagem tem mais de 5 anos de fabricação,
o que, traduzido em termos nativos, signifi -
ca ‘ultrapassados’, ou quase. A inexistência de
isolamento acústico produz uma situação de
praticamente total falta de privacidade, a não
ser que se sussurre todo o tempo. A ausência
de um espaço bem delimitado para as gestantes
trocarem de roupa aponta para a mesma ques-
tão. Estas características, associadas à decoração
modesta da sala de espera e ao tempo destinado
a cada exame, produzem a impressão de que ali
há um atendimento ‘de massa’.
A clínica C localiza-se em um prédio co-
mercial de alto luxo, e só atende a clientes
particulares; logo na entrada há uma placa in-
dicando que a clínica de US está vinculada a
uma de reprodução assistida. Entra-se por um
longo corredor com grandes quadros com fotos
coloridas de bebês gordinhos, ‘fofos’, trajados
de fl or e congêneres32 e desemboca-se em um
balcão perpendicular ao corredor, com alguns
computadores e atendentes. Para a direita e
para a esquerda da recepção se enfi leiram pe-
quenos compartimentos separados por vidros,
como ‘mini-salas’ de espera, cada uma com
capacidade para 4 pessoas sentadas, com ban-
cos de alvenaria estofados e revistas ‘materno-
32. A fotógrafa (Anne Geddes) que criou este estilo de
fotos registrou a marca que hoje movimenta fortunas,
com sites na Internet e toda uma indústria de artigos
para bebês, além de livros, posters etc.
infantis’.33 A parede oposta à entrada de cada
‘casulo’ é envidraçada, com uma vista absolu-
tamente deslumbrante da paisagem à volta. O
teto é rebaixado, as paredes são cor salmão até
80cm do chão e, daí até o teto, amarelo-claro.
Há uma certa saturação visual no ambiente;
possivelmente o intuito original era torná-lo
‘alegre’ e ‘aconchegante’.34 Para a direita, o cor-
redor dos ‘casulos’ desemboca no das salas de
US, uma de cada lado, ambas muito amplas
e confortáveis e com aparelhagem de última
geração. No fi nal desse corredor encontram-se
dois grandes toaletes e a pequena sala da admi-
nistração. O ambiente geral evidencia os dois
valores centrais que norteiam as atividades aí
desenvolvidas: tratamento vip privativo, ‘perso-
nalizado’, ‘aconchegante’, e tecnologia de ponta
– tanto a de imagem quanto a relativa às novas
tecnologias reprodutivas.
O aspecto principal que saltava aos olhos
na comparação da arquitetura das três clíni-
cas consistia na distribuição de espaços que
propiciavam o direito à privacidade, que te-
ria como que um ‘gradiente’ decrescente cujo
ponto máximo seria a clínica C, com suas salas
de espera individuais e o ponto mínimo a clí-
nica B, sem isolamento acústico algum. A clí-
nica A, neste particular, ocuparia uma posição
mediana. Este ‘direito à privacidade’ também
era evidenciado pelo espaço destinado à troca
de roupa das gestantes: na clínica C, nos dois
grandes toaletes estavam disponíveis chinelos e
aventais de pano para as clientes. Uma vez tro-
cada a roupa, a gestante dirigia-se diretamen-
te para a sala de exames, onde já estava sendo
esperada pelo profi ssional. Na clínica A havia
os pequenos vestiários individuais no qual as
gestantes deveriam permanecer até serem cha-
madas pela atendente; dirigiam-se então para
as salas de exame, onde aguardavam a chegada
33. Como Seu fi lho e você, Pais e fi lhos e outras que tais.
34. Também aí percebe-se o ‘dedo’ de um decorador, em-
bora de gosto – a meu ver – um tanto duvidoso.
24 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
do médico. Na clínica B existia um pequeno
nicho sem porta dentro de uma das salas, no
qual a gestante poderia se trocar, e tudo acon-
tecia ao mesmo tempo, sendo comum a mé-
dica e eu entrarmos e a gestante estar ainda se
despindo e colocando o avental, teoricamente
descartável.35 O mesmo ‘gradiente’ – C, A e B
– ocorria no tocante ao grau de sofi sticação da
aparelhagem e ao tempo disponibilizado para
cada exame. Nas clínicas A e C, as gestantes
costumavam dirigir-se aos profi ssionais e a
mim utilizando ‘você’. Na clínica B, o termo
em geral utilizado era ‘senhora’.36
4 Vestindo o jaleco
Ao chegar para o primeiro dia de observa-
ção, na clínica A, enquanto internamente me
debatia em questões de como me inserir nos
exames, Dr. Henrique me chama, dizendo:
“Vamos?” Sigo-o ainda desconcertada, ele en-
tra na sala de US, cumprimenta a gestante já
deitada na maca: “Olá, como vai?”, em seguida
aponta para mim, dizendo, calmamente: “Esta aqui é a dra. Lilian, ela está me acompanhando hoje.” A gestante me olha, sorri cumprimen-
tando, e em seguida volta toda a sua atenção
para o exame, que é iniciado imediatamente.
Preocupo-me com o fato de ser uma presen-
ça imposta pelo médico, mas ninguém parece
se incomodar com esse ‘pormenor’. Durante o
período em que permaneci na clínica A, este
foi o procedimento usual. Quando passei a
tomar notas no meu mini-fi chário, por vezes
fui inquirida pela gestante ou acompanhante
35. ‘Teoricamente’, porque havia ali apenas um avental
pendurado, de material descartável.
36. Este detalhe remete à existência de diferenças entre
as clínicas, no tocante às relações hierárquicas médi-
co-paciente-observadora baseadas em fatores sócio-
econômico-culturais, que fi caram evidentes ao longo
da observação, um aspecto que foge ao escopo deste
trabalho. Sobre o tema cf. Menezes (2000: 66).
sobre que tipo de estudo estava fazendo. De
todo modo, por estar trajando roupas comuns
e pela forma como o médico me apresentava,
pareceu-me ser evidente para gestantes e outros
presentes que eu não pertencia ao staff da clí-
nica. As gestantes tinham um vínculo afetivo
signifi cativo com dr. Henrique,37 o que possi-
velmente foi um dos fatores que tornaram mi-
nha presença ‘aceitável’ sem questionamentos.
Os exames duravam cerca de 20 minutos, e
com freqüência havia longos intervalos entre
um e outro, durante os quais interagia com os
profi ssionais. Passado o período que havia de-
terminado para esta clínica e tendo modifi cado
o projeto original, resolvi prosseguir as obser-
vações alternando entre as clínicas B e C, visan-
do uma perspectiva contrastante por conta de
suas diferenças sócio-econômicas.
O primeiro contato com dr. Sílvio havia me
alertado para a necessidade eventual do uso de
jaleco e, por via das dúvidas, resolvi levar um
guardado comigo no primeiro dia de observa-
ção da clínica B.38 Sem que eu dissesse nada,
foi-me solicitado que o vestisse para entrar
na sala de exames. Dra. Lúcia convidou: “Va-mos?”, acompanhei-a, ela entrou na sala e não
me apresentou à gestante. Percebi estar pouco
à vontade para tomar notas, parte por não ter
sido apresentada, o que tornava minha presen-
ça inexplicável para as grávidas, mas sobretudo
por estar de jaleco. Em suma, senti-me uma
intrusa, desconfortável em relação às gestantes,
como se estivesse ‘disfarçada’, praticando algo
ilícito. Contudo, nada me ocorreu parecido
com uma solução para este mal-estar. Percebi
37. Eram mais clientes dele do que da clínica, buscando-o
também em outras clínicas onde trabalhava.
38. Menezes vivenciou duas situações distintas no to-
cante a este quesito (2000: 10; 2004: 19). Outros
pesquisadores, oriundos da área de Ciências Sociais
e desenvolvendo etnografi as em ambiente médico,
também fazem referências e problematizam a solici-
tação de vestir o jaleco. Cf. Cussins (1998: 69).
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
que ter de vestir o jaleco havia introduzido um
elemento novo na observação, no tocante a
como me situava no campo, mas naquele mo-
mento não fi cou claro o porquê. O desconforto
experimentado apontou para o questionamen-
to sobre a explicitação da minha posição em
campo, em termos éticos. Estando de jaleco,
estava ‘disfarçada’ de médica, e a observação et-
nográfi ca fi cava impregnada por uma inverdade
– principalmente considerando a presença do
etnógrafo como parte integrante da etnografi a
(Cliff ord 1983: 140). Os exames nesta clínica
duravam entre 5 e 10 minutos e sucediam-se
sem intervalo; nesta primeira tarde observei o
dobro do número de exames que costumava
observar em dias inteiros na clínica A. Era uma
atividade exaustiva, sem tempo para pensar, e
o mal-estar fi cou como uma questão inconclu-
sa, a ser elaborada. A solução só surgiu na se-
mana seguinte quando, na clínica C, também
trajando jaleco, fui apresentada pelo dr. Sílvio
à gestante e acompanhante, dentro da sala de
exames, nos seguintes termos: “Esta é a dra. Li-lian, que trabalha conosco aqui na clínica.”
Obviamente não era o caso de desdizer o mé-
dico naquele momento, mas defi nitivamente a
apresentação não correspondia à verdade. Meu
desconforto tornou-se completo. O ‘disfarce’,
antes vago, havia sido verbalizado. Ao elaborar
o texto etnográfi co, dei-me conta de que, en-
tre outros fatores, esse foi um dos modos de o
médico se colocar em uma posição hierárquica
‘superior’, por ser ele o dono da clínica. Ocor-
reu-me então adotar um procedimento diverso
do que até então: apresentar-me às gestantes na
sala de espera, explicar brevemente a pesquisa e
pedir permissão para observar seu US. Solução
simples e óbvia, mas de implementação deli-
cada: tive medo que dr. Sílvio vetasse meu in-
tento, por receio de que esta interferência fosse
‘espantar’ a clientela que, rica, não gostaria de
ser ‘objeto de estudo’. De fato, dr. Sílvio estra-
nhou quando o consultei mas, embora relutan-
te, acedeu ao meu pedido. A partir de então,
passei sempre a conversar brevemente com as
gestantes, tanto da clínica C quanto da B sobre
o que estava pesquisando e o que signifi cava
o tomar notas, penitenciando-me por não ter
tomado esta atitude na clínica A. Um aspecto
digno de nota é que, em geral, as gestantes se
surpreendiam com o meu pedido de permissão
para assistir ao exame. Apenas uma vez a ges-
tante recusou, pedindo desculpas e alegando
encontrar-se em um momento delicado. Exce-
to ela, nenhuma grávida pareceu considerar a
minha presença como invasão de privacidade,
provavelmente por o exame conter de modo
intrínseco uma ‘naturalidade’ de expor suas
entranhas. Essa naturalização evidenciava-se
também na não-percepção, pelos médicos, da
minha presença como possivelmente invasiva
para as gestantes, fato que interpretei como re-
fl exo de sua atividade cotidiana: devassar o in-
terior dos corpos. Com meu reposicionamento
diante das gestantes e acompanhantes, percebi
estar muito mais à vontade para anotar e fi cou
claro o quanto o esclarecimento sobre minha
posição de observadora para todos os atores da
cena observada, e não apenas para os profi ssio-
nais, tivera uma repercussão signifi cativa sobre
o modo como me sentia como pesquisadora.
Essa decisão marcou um momento de tomada
de posição como etnógrafa no campo – para
meus sujeitos e para mim mesma.
5 Vicissitudes da presença da obser-vadora
Na clínica A, desde o início percebi que os
profi ssionais se sentiam mais desconfortáveis
com minha presença, na sala de US e na de
laudos – entre os exames –, do que as gestantes.
Durante as sessões este desconforto era expresso
de modo muito sutil, perceptível através de de-
masiadas explicações científi cas supostamente
fornecidas à gestante, mas evidentemente diri-
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
gidas a mim, pois observei que à medida que o
tempo passou elas diminuíram, denotando que
seu exagero estava vinculado à ‘novidade’ da
presença de uma observadora.39 Na sala de lau-
dos, o desconforto se manifestava sempre sob a
forma de brincadeiras, diretas ou indiretas. Pelo
fato de haver longos intervalos entre os exames,
meu convívio com os profi ssionais desta clínica
foi mais prolongado do que nas outras duas.
Estes mantinham entre si um relacionamento
muito bem-humorado, sendo comum haver
troças, piadas e gozações recíprocas, nas quais
fui logo incluída.40 Conjugando estes três as-
pectos – contato mais prolongado, explicações
e brincadeiras – e, sobretudo, considerando a
forma jocosa como um modo mais fácil de ex-
pressar constrangimento, fi ca claro porque há
mais exemplos interpretados por mim como
desconforto advindos desse grupo.
As manifestações diretas de mal-estar pela
minha presença consistiam em dizerem rindo,
no meio de uma conversa: “Ih! Cuidado com o que ela vai pensar da gente! Um bando de ma-lucos!”41 Nestes momentos entendia que estava
sendo vista efetivamente como alguém de fora
do grupo, embora fosse um tanto vago em qual
categoria me inseriam, se psicanalista ou antro-
póloga – assim como qual das duas percepções
provocava maior desconforto neles. Esta noção
um tanto confusa sobre o que eu estava a fazer
lá também surgia sob a forma de colaboração,
como:
Logo que chego, dr. Henrique me cumprimenta
dizendo: “Puxa, você perdeu! A descompensação de um pai quando soube o sexo! A clínica parou! Aquilo é para analisar. Tive que parar o exame,
39. Menezes passou pelo mesmo processo em sua primei-
ra etnografi a (Menezes 2000: 11).
40. Assim como apontado por Geertz em Bali, ali “ser
caçoado [era] ser aceito” (Geertz 1989b: 282).
41. Menezes observou o mesmo tipo de comentários em
sua etnografi a do CTI (Menezes 2000: 11).
dizer ‘Pera aí’... Parecia jogo de futebol! O cara berrava feito um louco!” Dra. Ana entra na sala
e comenta: “Puxa! Um exame (...), o pai deu um berro, eu até saí para ver (...)! Você tinha que es-
tar aí! P’ro teu trabalho...” (Clínica A).
Por vezes surgiram manifestações indiretas de inequívoco caráter persecutório:
Sentada em um canto, ocupada tomando notas,
presencio uma conversa sobre um panetone que
Henrique dera para Priscila e que fi cara na pra-
teleira de uma semana para a outra porque esta
não o levara consigo. O médico diz, brincando,
que vai pegar de volta e alguém ri: “Panetone? Isso não é panetone coisa nenhuma! Isso é uma
câmera escondida!” [Risos gerais] Ele comple-
ta no mesmo tom gaiato: “Mas isso é antiético!
Tinha que ter aquele cartaz ‘Sorria, você está
sendo fi lmado’! Vou processar...” Continuo ano-
tando, agora o episódio. (Clínica A).
Outro comportamento que interpretei
como desconforto com ‘toques persecutórios’
foram tentativas, em tom semi-jocoso, de ‘co-
optação’, sugerindo que eu estava sendo perce-
bida como uma espécie de ‘auditora’ externa:42
Dra. Priscila comenta comigo que os ultra-sono-
grafi stas são tratados como a “escória” da clínica,
porque “Ultra-som não dá lucro” e além disso há
o contato médico-paciente, o que não ocorre em
outras tecnologias. “As reclamações são sempre do US... é o único serviço que não tem chefe, cada um é responsável pelos exames que faz... Você vê que todos os outros serviços têm um chefe. Vê se você
42. Menezes refere que um de seus informantes pensou
a princípio que ela seria “fi scal do [Anthony] Garo-tinho” (Menezes 2000: 10), à época governador do
Estado do Rio de Janeiro. Monteiro relata que seus
sujeitos de pesquisa acharam inicialmente que ela es-
taria avaliando o desempenho dos fellows em catete-
rismo (Monteiro 2001: 46).
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
fala bem da gente, aí!” [Aponta para minhas
anotações]. (Clínica A).
Na clínica A, acompanhava em especial
dr. Henrique, embora observasse por vezes
outras médicas. Percebi que elas eram mais
silenciosas durante a realização dos exames,
e me perguntei acerca da possibilidade de ele
estar se exibindo para mim.43 Ao longo do
tempo, comparando as atitudes de médicos e
médicas nas clínicas B e C, no tocante a este
aspecto, consolidou-se a impressão de que,
para além das peculiaridades pessoais, havia
uma questão de gênero atravessando o campo:
via de regra as profi ssionais mantinham ati-
tudes aparentemente mais relaxadas, menos
tensas e exibiam menos ‘conhecimentos cien-
tífi cos’ durante os exames do que seus colegas
homens. Curiosamente – ou nem tanto – em
conversas meus informantes, ao perguntar-
lhes diretamente se durante as sessões minha
presença os incomodava, à exceção de dra.
Lúcia todas as médicas confessaram-se tensas
nos primeiros exames que observei, enquan-
to a resposta dos médicos – dr. Henrique e
dr. Sílvio – foi enfática: “Em absoluto, não me incomoda em nada!”, tendo dr. Sílvio acres-
centado: “Eu até gosto!”. No entanto, minha
impressão era justo o contrário. Pelo prisma
das relações de gênero, os médicos pareciam
apelar para os conhecimentos científi cos para
demarcar a posição de poder. Além disso, na
clínica C, durante os exames ocorria um tipo
de conversa entre dr. Sílvio, gestante e acom-
panhantes em torno de questões ‘médicas’
que evidenciava uma preocupação marcan-
te dele de que o exame se constituísse mais
como procedimento científi co do que como
‘evento social’ – um dos fantasmas temidos
43. A questão em foco consiste na exibição de conhe-
cimentos médicos ‘para a colega’. Menezes comenta
aspectos similares em suas duas etnografi as (Menezes
2000: 10; 2004: 95).
e depreciados pelos profi ssionais da área.
Na prática, contudo, não deixava de ser um
evento social, apenas revestido do que deno-
minei, para meu uso, de uma ‘medicalidade
explícita’.44
Na clínica A, as gestantes pareciam não
atentar para a minha presença. Apenas algumas
vezes percebi que me observavam de esguelha
enquanto tomava notas, e só eventualmente
perguntavam o que eu estava estudando. Um
aspecto a ressaltar é que as imagens ultra-so-
nográfi cas parecem exercer um poder quase
‘hipnótico’, sendo difícil para todos – inclusive
eu, nos primeiros tempos de observação – des-
pregar os olhos da tela do monitor do aparelho
ou da TV a ele conectada (existente nas clíni-
cas A e C).45 Nesse sentido é que pareceu-me
que, para as gestantes, o fato de eu estar na sala
tinha um caráter secundário. Por outro lado,
contudo, na clínica A, em situações tensas, em
especial diante de preocupação com possíveis
patologias, dei-me conta um dia de que eu estar
ali poderia representar um acréscimo de preo-
cupação para as grávidas, relacionado ao fato de
ser visivelmente mais velha que dr. Henrique e
44. Por ‘medicalidade explícita’ refi ro-me a um tipo de
explanação fornecido às gestantes em tom solene,
professoral, durante os exames. Era um discurso re-
buscado, com muitos termos científi cos. Mesmo já
familiarizada com os termos do campo, freqüente-
mente me perdia nessas explicações. Pergunto-me se
as gestantes e acompanhantes eram capazes de enten-
der a fala do médico e se esta atitude dele os tranqüi-
lizava. A rigor, pareceu-me que essa atividade tinha
um caráter de ‘exibição de conhecimentos’ para todos
os presentes na sala, eu incluída, e era, sobretudo, um
reasseguramento para o próprio médico.
45. As imagens polarizavam o olhar de todos os presentes
na sala de exame. No início do trabalho de campo
por diversas vezes dei-me conta do quanto era difícil
desviar a atenção do monitor, sendo necessário me
disciplinar para não ser ‘cooptada’ pela cultura nati-
va, magnetizada pelas imagens, e conseguir focalizar
a observação nos discursos, interações e negociações
que ocorriam incessantemente.
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
de ter sido apresentada por ele como “dra. Li-lian”. Percebi que, para elas, a minha presen-
ça podia signifi car algo como uma 2ª opinião,
‘mais abalizada’ sobre o assunto do que a dele;
neste caso eu estaria sendo percebida como
médica e não como pesquisadora. Ao me dar
conta disso, sempre que se evidenciava alguma
ocorrência similar eu parava de tomar notas e
dava a entender, implícita ou explicitamente,
que minha observação não se vinculava a moti-
vos ‘médicos’. Nas clínicas B e C, do momento
em que passei a pedir autorização para assistir
ao exame, ou seja, ao me posicionar como et-
nógrafa, tal não voltou a ocorrer. Ainda assim,
em momentos difíceis,46 em respeito à gestan-
te, deixava para anotar depois, pois parecia-me
uma atividade inadequada para situações de
tanta angústia e dor.47
Finalmente, o mini-fi chário como um fa-
tor de interferência. Inicialmente tomava no-
tas ao chegar em casa, mas diante da variedade
e da quantidade de informações, assim como
da rapidez com que as situações se sucediam,
a partir do 3o dia de observação na clínica A
optei por mudar o método. Senti que a única
saída era tomar notas no ‘local da ação’, sob
pena de empobrecer muito a etnografi a. Com
o tempo desenvolvi um tipo de registro quase
estenográfi co. Nas três clínicas, meu fi chário
minúsculo foi sempre uma fonte inesgotável de
curiosidade, comentários e gozações por parte
46. Refi ro-me à descoberta – esperada ou inesperada – de
patologias fetais durante o exame.
47. Menezes descreve o mesmo tipo de experiência (2004:
19-20). Aparentemente, nestas situações, surge para o
pesquisador uma sensação de desconforto por estar
presente ali nesta condição, concretizada pelo ato de
anotar. Parar de tomar notas teria o signifi cado de,
diante de questões literalmente de vida ou morte,
colocar temporariamente em segundo plano uma
questão comparativamente ‘menor’ – a sua própria
pesquisa. É impossível avaliar o quanto a formação
médica – minha e de Menezes – modela essa escala
de valores.
de médicos, médicas e atendentes.48 As reações
variavam desde perguntas do tipo “O que você tanto escreve aí? Vou querer ver...” até a mais re-
corrente de todas: “O que você vai fazer com es-sas anotações? Dá mesmo pra extrair alguma coisa daí?”. Eu costumava responder que fazia relatos
reconstituindo o que tinha visto e que esperava
sinceramente poder ‘extrair alguma coisa daí’.
De algum modo meus sujeitos de pesquisa
captavam um problema central de qualquer
etnografi a: a transformação das notas em texto
etnográfi co. A perturbação provocada pela mi-
nha atividade de anotar pode ser compreendida
como sendo resultado da explicitação do que
eu estava fazendo ali. Estar quieta observando
era uma coisa, anotar o que se passava era ou-
tra. As anotações por assim dizer ‘encorpora-
vam’ a atividade etnográfi ca e a intrusão. Meus
informantes mantinham uma atitude ambígua
em relação a este último aspecto em particular,
pois apesar do evidente incômodo provocado
pela minha atividade de registro, diversas ve-
zes fui inquirida por eles por que não fi lmava
ou usava gravador. Possivelmente o uso de um
dispositivo de registro mecânico, para eles, ha-
bituados à tecnologia, seria mais familiar, mais
‘neutro’, ‘objetivo’ e menos incômodo. Para
mim, contudo, o sentido de invasão contido
no uso de um dispositivo mecânico era exata-
mente o oposto.
Organizei os relatórios de observação no
computador de maneira modular, divididos
entre as observações das sessões ultra-sono-
gráfi cas, uma a uma, e uma parte relativa às
conversas, impressões e o que eu observava de
um modo geral – o diário de campo. Assim,
adotei a prática de, na observação seguinte,
trazer para quem eu observara a cópia do re-
lato de um dos exames. Selecionava algum
no qual houvesse mais registro de conversas e
poucos comentários meus sobre as práticas do
48. Menezes (2000: 11) foi alvo do mesmo tipo de reações.
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
profi ssional, visando evitar aumentar o senti-
mento persecutório daquele. Todos eles fi ca-
vam muito satisfeitos com esse procedimento
e muitos se surpreendiam: “Nossa! Como você vê tanta coisa acontecendo!”, ou então: “A gente fi ca só ali procurando imagens, nem repara nisso tudo que você viu.” A reação dos profi ssionais
ao meu texto de certo modo me apontou de
que ele estaria na linha da “fi cção verdadeira”
(true fi ction), delineada por Cliff ord e Marcus
(1986: 6). Um dia, dr. Sílvio pediu-me o re-
lato de certo exame que fora particularmente
difícil, pois pretendia discutir a situação com a
equipe; nessa ocasião fi quei satisfeita em poder
retribuir a acolhida que estava recebendo. O
pedido do médico – a quem eu já havia forne-
cido o relato de uma sessão – validou que parte
da “difi cílima transformação” (Pratt 1986: 32)
do trabalho de campo – mediado pelas notas
– em etnografi a formal encontrava-se em cur-
so. Percebi então que estava sendo vista como
alguém que trazia um outro olhar de alguma
‘utilidade’ para os profi ssionais, fornecendo
subsídios a eles para uma refl exão sobre sua
própria prática.49
6 Subjetividade e relações de poder na observação etnográfi ca
As relações de poder estabelecidas no campo
tinham um caráter dinâmico e cambiante. De-
pendendo do momento e da situação, mudava
o ator ‘detentor’ do poder, havendo áreas, por
assim dizer, de concentração deste. O profi s-
sional que realizava o exame era quem o con-
centrava na maior parte do tempo, parte por
estar investido do poder médico, mas principal-
mente por ser quem tinha o olhar treinado para
49. ‘Ter utilidade’ é um atributo bastante valorizado no
campo médico em geral e meus informantes não es-
capavam à regra. Atividades ‘apenas’ refl exivas e ana-
líticas eram bem menos respeitadas e, eventualmente,
sutilmente depreciadas por eles.
decodifi car e traduzir as imagens do monitor.
Contudo, não apenas muitas vezes as gestantes
‘aprendiam’ a ver, decodifi cando sozinhas o que
estava sendo exibido na tela como, a partir do
momento em que certas estruturas do feto eram
identifi cadas e explicadas pelos médicos, preen-
chendo de signifi cado as sensações maternas,
as grávidas eram ‘empoderadas’ e se sentiam de
alguma forma ‘mais donas’ de seus fetos. Além
desse aspecto, com freqüência as gestantes ou
acompanhantes solicitavam que fosse exibida
determinada parte do corpo fetal – em especial
a genitália – em tons que variavam de ‘pedidos’
até verdadeiras ‘ordens’, que via de regra os pro-
fi ssionais se apressavam em atender: as razões de
mercado aí se impunham.
Diferentemente do relatado na literatura
antropológica sobre o tema, na qual comumen-
te as gestantes declaravam sentir-se devassadas
e submetidas pelo poder médico, no grupo et-
nografado estas relações fl uíam de modo har-
mônico. É possível que neste universo o poder
médico tenha sido de tal modo ‘naturalizado’
no tocante à gestação, que os profi ssionais de
US, ‘permitindo’ às gestantes ‘ver’ seus fetos
e, desse modo, ‘se apropriarem’ deles, passa-
ram a ser vistos como ‘aliados’ das mulheres,
mais do que seus próprios obstetras. Conforme
uma gestante citada orgulhosamente por dr.
Henrique, “meu médico é você, que me mostra
o neném... o obstetra só mede, me pesa e mais nada...”. O contexto mais amplo da medica-
lização da gravidez e o conseqüente devassa-
mento do corpo feminino50 podem explicar,
em alguma medida, o espanto e a pronta anu-
ência das gestantes diante da minha solicitação
para assistir aos seus exames, indicando que o
pressuposto básico seria de que o interior de
seus corpos estivesse, por princípio, disponível
para ser visto por quem estivesse na clínica. O
fato de me apresentar como médica, realizando
50. Para aprofundamento deste tema, cf. Rohden
(2001).
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
uma pesquisa antropológica, e de ser mulher
com idade para ser mãe da maioria delas pos-
sivelmente contribuía para essa aquiescência
imediata. Porém, o aspecto que de fato me pa-
receu inusitado foi menos a pronta aceitação
do que o espanto manifestado por boa parte
das grávidas quando eu fazia tal pedido. Refl e-
tindo a posteriori sobre o período no qual não
pedi autorização alguma às gestantes, emerge
um sentimento de desconforto vinculado ao
entendimento de que minha presença na sala
de exames representou – do ponto de vista das
relações de poder – uma imposição do médico
para as pacientes, mesmo que não tenham ma-
nifestado nenhum mal-estar.
Conforme vimos, considerado pelo prisma
da possibilidade de decodifi cação das imagens,
o profi ssional era quem concentrava o poder
durante os exames. Contudo, tal situação pare-
cia sofrer um abalo quando eu me encontrava
na sala, pois, analogamente aos ultra-sonogra-
fi stas, de modo implícito dispunha-me a tam-bém decodifi car algo que ali se passava, ‘ver’ nos
gestos, imagens, interações e falas algo que não
era visível de imediato. Isto pode explicar em
parte o desconforto deles com minha presença.
Como já mencionei, as médicas confessaram
abertamente sentirem-se tensas, embora na prá-
tica me parecessem mais à vontade do que os
médicos. Estes desdobravam-se em explicações
às gestantes que mais sugeriam ser exibições de
conhecimentos e reafi rmação de posição hie-
rárquica do que esclarecimentos de fato para
elas. O exemplo mais evidente desta atitude
foi observado na clínica C quando o médico,
mediante a ‘medicalidade explícita’, reafi rmava
claramente quem detinha o conhecimento e,
portanto, o poder. O aspecto certamente incô-
modo e possivelmente persecutório da minha
presença pode ser atribuído a um velado desafi o
à posição hierárquica do especialista: em vez de
estar presente na sala apenas um profi ssional de-
tentor de conhecimentos esotéricos, havia uma
observadora, com conhecimentos outros, fora
da área médica, além do mais anotando coisas
em um misterioso fi chário, sabia-se lá para quê.
As médicas – possivelmente pelo fato de serem
mulheres diante de uma observadora mulher
–, mesmo se confessando incomodadas, eram
menos levadas à demonstração de competência
científi ca, de ‘disputa’ hierárquica e de gênero
do que os médicos que, de certa maneira, pare-
ciam sutilmente instigados a mostrar “who’s the boss” na situação.
Na clínica A, o fato de não usar jaleco, as-
sim como os termos utilizados pelo médico
para me apresentar ao entrarmos na sala de
exames, de algum modo indicavam que eu não
fazia intrinsecamente parte daquele universo –
embora atualmente eu não esteja muito certa
disso. Em geral não me sentia desconfortável
ao tomar notas durante os exames, deixando
o registro para depois apenas em poucas situ-
ações: morte ou patologias fetais. O ato de to-
mar notas sempre teve para mim o signifi cado
de uma intrusão, embora muitas vezes as ges-
tantes não parecessem sequer tomar conheci-
mento da minha presença, em especial a partir
do momento em que surgiam as imagens fetais
na tela do monitor. A solicitação de que vestis-
se o jaleco provocou-me um leve sentimento
de estranheza, sem contornos muito bem defi -
nidos, mas foi a surpresa experimentada na clí-
nica C – quando fui apresentada como médica
do staff – o elemento-chave para dar-me conta
da necessidade de reafi rmação, agora para ges-
tantes e acompanhantes, de qual era a minha
inserção naquele universo. Assim fazendo,
também construí para mim um self como pes-
quisadora. Fui notando que dispunha de várias
identidades e, sobretudo, que era assim perce-
bida pelos profi ssionais com quem convivi. O
fato de ser médica, psicanalista e aprendiz de
antropóloga foi sendo processado lentamente
pelos meus interlocutores e por mim mesma
à medida que a pesquisa prosseguia. Aos pou-
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
cos fui fi cando à vontade para transitar entre
as várias identidades no campo, o que se dava
quando, de uma conversa sobre temas médi-
cos – geralmente a partir de perguntas minhas
– passava-se para pedidos de explicação sobre
temas de sociologia ou antropologia e mesmo
à solicitação de um relatório de um exame. Em
algumas ocasiões, fui requisitada informal-
mente para consultas sobre questões pessoais
e dramas familiares dos profi ssionais. Embora
relutante de início, à medida que o trabalho
prosseguia fi quei gradual mente mais à vontade
e foi possível deixar os câmbios de identidade
fl uírem. Tenho certeza que essa fl exibilidade
permitiu que meus informantes adquirissem
confi ança e me fornecessem um material pre-
cioso de pesquisa. Como ocorre nas relações
que se aprofundam ao longo do tempo, a in-
teração com os profi ssionais foi multifacetada,
e ao mesmo tempo em que percebi neles sen-
timentos persecutórios, em outras revelou-se
uma confi ança – evidenciada parte pelo teor
de certas revelações, parte pela surpresa e a
leve decepção manifestadas sempre que eu
reiterava que os todos os nomes, inclusive das
clínicas, seriam mantidos em sigilo – que me
surpreendeu.
Embora qualquer análise envolva neces-
sariamente a busca de diversos ângulos para
abordagem do ponto em foco, considero que
as várias identidades entre as quais transitei ao
longo do trabalho de campo contribuíram de
maneira relevante para obter uma visão dinâ-
mica do universo pesquisado. Embora tenha
buscado todo o tempo manter um ponto de
vista antropológico, seria ingênuo supor que a
formação prévia, especialmente em medicina,
não tenha interferido e desempenhado algum
papel. Meu intuito neste artigo foi delinear de
que modo esta formação esteve presente no de-
correr do trabalho de campo e na elaboração
do texto etnográfi co. Mesmo correndo o risco
de ter sido demasiado confessional, espero ter
podido aqui avançar na discussão de alguns dos
aspectos metodológicos que me ocuparam ao
longo da etnografi a. Consolo-me de antemão
apoiando-me em Geertz (1989a), quando este
declara ironicamente que
A antropologia, ou pelo menos a antropologia in-
terpretativa, é uma ciência cujo progresso é mar-
cado menos por uma perfeição de consenso do
que por um refi namento de debate. O que leva
a melhor é a precisão com que nos irritamos uns
aos outros (39).
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resumo Este trabalho analisa a maneira de
construção da memória de dois grupos familiares
considerados tradicionais na cidade de Belém do
Pará, em virtude de uma trajetória histórica excep-
cional que é tornada pública. O fi o condutor dessa
discussão é a memória social, com atenção especial
à forma como ela é tratada nos estudos teóricos de
Maurice Halbwachs. Utilizando depoimentos orais
e a versão escrita da memória familiar, é feita uma
refl exão de como as trajetórias individuais, o per-
curso do grupo e as articulações entre passado e pre-
sente interferem na estruturação das lembranças.
palavras-chave memória, família, indiví-
duo, sociedade, tempo social.
Os caminhos da memória*
MARIA ANGELA GEMAQUE ÁLVARO
Mestranda pelo PPGCS/CFCH/UFPA e tecno-
logista em Análise Sócio-econômica do IBGE.
Artigo aceito para publicação em 19/09/05
abstract Th is paper analyses memory cons-
truction in two families considered to be traditional
in the context of their hometown, the city of Belém
do Pará, these groups being so judged in virtue of
an exceptional historic trajectory. Th e central con-
ducting element in such a discussion is social me-
mory, with emphasis on the way it is considered in
the studies by Maurice Halbwachs. Based on the
study of oral and written narratives, a refl ection is
made on the ways individual and group trajectories
as well as the links between past and present inte-
ract to form memory structure.
keywords memory, family, individual, socie-
ty, social time.
* Estas refl exões se integram ao projeto de pesquisa
intitulado “Memória emblemática: o que os tradi-
cionais nos contam sobre seu passado?”, que estou
desenvolvendo dentro do Programa de Pós-graduação
em Ciências Sociais, no nível de mestrado, do Centro
de Filosofi a e Ciências Humanas da Universidade Fe-
deral do Pará. O material etnográfi co foi coletado em
1990, consistindo em entrevistas com descendentes
dessas duas famílias, assim como em livros publicados
por cada uma delas, e pode ser encarado como um
documento revelador da memória familiar num mo-
mento específi co. O termo tradicional deve ser enten-
dido aqui como um adjetivo que é aplicado a famílias
cujos nomes e trajetórias estão associados à história
da cidade, na medida em que membros situados em
gerações distintas exerceram continuamente o poder
político e econômico, e/ou tiveram amplo destaque
social. São famílias que têm uma visibilidade pública
e a possibilidade de cruzarem a história familiar com
uma dada versão da história local voltada para o feito
(ou para a construção) de personagens. Para as famí-
lias enfocadas neste estudo, trata-se de um adjetivo
que é tanto assumido internamente, quanto reconhe-
cido pelos de fora do grupo.
cadernos de campo n. 13: 33-46, 2005
34 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
I
A partir das lições de Halbwachs (1990)
sobre a articulação entre memória individual e
os grupos nos quais o indivíduo toma parte,
farei uma abordagem sobre os processos sociais
que interferiram na formulação das lembranças
de duas famílias consideradas tradicionais no
contexto da cidade de Belém do Pará: os Albu-
querque e os Duvignaud.1
Trabalhei com dois grupos que, embo-
ra tenham um traço em comum – o adjetivo
tradicional que lhes é aplicado –, apresentam
diferenças no que se refere à trajetória e aos
vínculos com o Pará, o que me permitiu vis-
lumbrar duas construções distintas de memó-
ria. As diferenças se expressam nas imagens
formuladas acerca do passado do grupo, assim
como nos fenômenos que interferiram na es-
truturação das lembranças, e podem ser com-
preendidas com base no referencial fornecido
por Halbwachs (1990).2
1. Os nomes de família, assim como os nomes pessoais,
citados ao longo do trabalho são fi ctícios. Procedi des-
sa forma em virtude de alguns aspectos da memória
familiar terem sido tratados com parcimônia e certo
incômodo por alguns, havendo casos de solicitação
de não identifi cação pessoal. Procurei adotar nomes
que guardassem alguma proximidade com a ênfase
dada pelos entrevistados às suas origens (francesa no
caso dos Duvignaud, e portuguesa/nordestina para os
Albuquerque). Esclareço, ainda, que quando utilizo o
termo família para falar dos Albuquerque e dos Duvig-
naud, estou delimitando os grupos a partir do nome de
família. Assim, investigo dois grupos de parentes que
se reconhecem enquanto tal por possuírem um nome
de família em comum, o qual remete a uma história
cuja divulgação ultrapassa o âmbito do grupo.
2. Na teoria formulada por Halbwachs (1990) destacam-se
duas relações: entre o passado e o presente e entre o indi-
víduo e a sociedade. Ao considerar o ato de rememorar
como uma viagem ao passado que tem sempre como
referência o tempo e o espaço vivenciado por quem re-
lembra, o autor deixa claro que a memória estabelece
uma relação entre esses dois tempos sociais. Essa relação
torna-se dialética na medida em que o passado é visto,
A ligação histórica dos Duvignaud com o
Pará remete à época colonial, com a chegada
em 1760 do primeiro membro desta família no
que era, então, a Capitania do Grão-Pará. Sua
condição de ofi cial militar lhe dava uma apro-
ximação conveniente com o poder, que ele sou-
be potencializar ao casar-se com a descendente
de uma família já consolidada como grande
proprietária de terras. Nas gerações seguintes
esse patrimônio foi ampliado num processo de
concentração de riqueza, em que o estabeleci-
mento de alianças matrimoniais com outros
membros da elite fundiária local desempenhou
importante papel.
Essa família alcançou o ápice de seu des-
taque social, político e econômico durante a
Época da Borracha (1850-1910), quando a
exploração do látex se tornou a principal ati-
vidade econômica, representando um fl uxo de
capitais signifi cativo para a região, em virtude
dos interesses do capital internacional. Atentos
às novas oportunidades, os Duvignaud soube-
ram diversifi car seus negócios, até então situa-
dos no ramo pecuário, e criaram aproximações
– inclusive matrimoniais – com o grupo dos
comerciantes.
Embora a base de seu poder fosse local, con-
seguiram penetrar no cenário mais amplo da
política, tornando-se fi guras de destaque nos
primeiros anos da República, movimento fren-
te ao qual alinhavam-se entre os precursores no
também, como um referencial orientador para o presen-
te. Assim, a memória não é algo dado, mas um fenôme-
no construído. É a partir dessa percepção que a relação
indivíduo/sociedade adquire um caráter onde as forças
sociais são devidamente consideradas, mas não subju-
gam o papel do indivíduo. Nessa memória, vista como
construção, caberá ao indivíduo o papel de agente, pois
é ele que, ao transitar entre diferentes grupos sociais no
interior de uma sociedade, estabelece a articulação de
tempos e espaços sociais distintos. Confrontando suas
lembranças com as dos outros membros do grupo, ele
forja a sua memória individual e ajuda a estruturar a do
grupo.
|
cadernos de campo • n. 13 • 2005
Pará. Seus cargos políticos vieram somar-se aos
títulos de nobreza outorgados a eles durante o
Império, como elementos de distinção social da
família. Distinção que era marcada, também,
pelo estilo de vida que cultivavam, espelhados
nos padrões europeus amplamente dissemina-
dos entre os grupos cada vez mais enriquecidos
com o crescimento da exploração da borracha.
A partir do fi m desse ciclo econômico, a
família começou a se dispersar pela migração
de alguns ramos em direção à capital federal
da época: a cidade do Rio de Janeiro. Mas só
perdeu efetivamente sua expressão a partir da
década de 30, tanto em função da diluição de
seu patrimônio, como das novas articulações
que surgiram na política.
Já a família Albuquerque surge no Pará no
início do século XX, a partir da migração de
Pedro Albuquerque, descendente de um grupo
oligárquico nordestino já arruinado fi nancei-
ramente. Seus ancestrais maternos, de origem
portuguesa, haviam se fi rmado numa região do
Rio Grande do Norte, ainda no século XVIII,
consolidando-se como grandes proprietários
rurais da lavoura canavieira e chefes políticos
locais durante o Império. A decadência fi nan-
ceira da família, ocorrida na segunda metade
do século XIX, conduziu o pai de Pedro Al-
buquerque a investir na educação do mesmo,
empenhando-se pessoalmente do assunto, ao
assumir o papel de professor do fi lho até o seu
ingresso na Faculdade de Direito do Recife,
procedimento que é descrito nos livros e nos
depoimentos orais em termos artesanais.
Já formado em Direito, e não podendo con-
cretizar suas expectativas, que voltavam-se para
o principal centro político e cultural da época,
a cidade do Rio de Janeiro, Pedro Albuquerque
consegue carta de recomendação endereçada
ao governador do Pará, Augusto Montenegro,
diante do qual se apresentou em 1902, obten-
do uma colocação como promotor numa cida-
de do interior.
Nessa cidade, que chamaremos aqui de Re-
manso, ele se entronizou rapidamente nos qua-
dros da elite local, o que é confi rmado pelo seu
matrimônio poucos anos depois com a fi lha do
principal chefe político da cidade, que, como
o próprio Pedro, podia citar uma ascendência
nobiliárquica em sua biografi a: era, também,
neta de um barão do Império. No momento
em que se celebrava o casamento, a família So-
ares de Cabral, da qual provinha a noiva, vivia
em uma situação bastante favorável, tanto do
ponto de vista político quanto econômico, em
função de seu posicionamento ao lado dos per-
sonagens que dominavam a política paraense
e de suas participações no negócio da borra-
cha. Poucos anos depois, a queda do preço da
borracha amazônica no mercado internacional
reverteu esse quadro, respondendo pelo declí-
nio econômico dos Soares de Cabral, agravado
ainda mais por mudanças na política local, que
afastaram seus antigos pares do poder. Para Pe-
dro Albuquerque, que vivia então na capital do
Estado, para onde havia obtido sua transferên-
cia como promotor, as mudanças no cenário
político lhe custaram o cargo.
Embora as difi culdades fi nanceiras tenham
marcado sua trajetória, ele conseguiu construir
um nome a partir de sua atuação como pro-
fessor da Faculdade de Direito do Pará, como
advogado, como político e como homem das
letras (publicou vários livros e inúmeros ar-
tigos em jornais). Mais que isso, conseguiu
dar uma orientação bastante uniforme a sua
numerosa prole, basicamente masculina, que,
tendo como modelo a trajetória paterna, pro-
curou consolidar sua posição no cenário local,
articulando o exercício de uma profi ssão libe-
ral respeitada (medicina, direito, engenharia)
com funções públicas (às vezes políticas) e com
a participação em instituições voltadas para o
campo intelectual (Academias de Letras, Ins-
titutos Históricos, Ordens Profi ssionais). A
visibilidade da família, e seu reconhecimento
36 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
como tradicional no contexto da cidade de
Belém, resulta, portanto, da somatória destas
trajetórias e de seu passado familiar glorioso,
pontualmente divulgado.
II
Para os dois grupos familiares, entrevistei
pessoas próximas em termos de laços de paren-
tesco e de convívio, enfocando para cada um
deles um grupo de siblings. No caso da família
Albuquerque, os entrevistados foram três fi lhos
e dois netos de Pedro Albuquerque. Para a fa-
mília Duvignaud, coletei depoimentos de três
irmãos, de uma prima destes, e da fi lha dela,
que era também esposa de um dos irmãos en-
trevistados.
Pedro Albuquerque é a fi gura central das
memórias de seus descendentes, e é, também,
o grande articulador de práticas que ajudam
a preservar a memória familiar e torná-la co-
nhecida entre os paraenses. Nota-se nas me-
mórias – especialmente na oral – uma ligação
mais íntima com as raízes nordestinas da fa-
mília. As raízes paraenses são mencionadas e
valorizadas (títulos de nobreza, poder político
e econômico), mas os entrevistados não de-
monstram em relação a ela a mesma intimi-
dade, a mesma riqueza de detalhes. Um dos
fi lhos de Pedro Albuquerque nos dá indícios
que ajudam a esclarecer tal fato: a postura re-
servada da mãe, que falava muito pouco sobre
sua terra de origem, à qual não mais retornou
após o casamento, e, também, a dispersão dos
parentes.
Halbwachs (1990) levanta a importância
dos testemunhos para a formação e permanên-
cia das lembranças. Na formação da memória
individual, sobressai o papel dos laços de con-
vivência que estabelecemos com os membros
dos diversos grupos que fazem parte do nosso
dia-a-dia e da nossa trajetória, e que permitem o
contínuo confronto entre nossas lembranças e a
dos outros. Afi rma, também, que se o grupo se
dissolve e se já não temos com quem partilhar
nossas lembranças, o quadro vivido se esmaece
e as imagens tornam-se fugidias. Afastada da
sua cidade, do seu grupo familiar que se disper-
sa, dos amigos e vizinhos que compunham sua
rede de relações, parece ter faltado a Mariana
– esposa de Pedro Albuquerque – o apoio do
testemunho alheio.
Pedro Albuquerque também afastou-se de
sua terra natal, mas encontrou no Pará grupos
de convívio com os quais pôde partilhar suas
lembranças: famílias nordestinas de posição e
trajetória semelhantes às dos Albuquerque. Um
dos seus fi lhos afi rma:
quando o meu pai chegou aqui – chegou em
Remanso3 e depois veio pra Belém –, muitas fa-
mílias originárias do Nordeste já fl oresciam aqui
no Pará. Lá em Remanso mesmo, ele veio en-
contrar uns primos dele, o Juliano Albuquerque, que era um homem eminente lá em Remanso
e Manaus. Ele foi encontrar a família Tavares, que está vinculada com a nossa ancestralmen-
te, umas três ou quatro gerações mais pra trás.
Que eram famílias já implantadas no Pará (...)
Se formos verifi car, por exemplo, os professores
da Faculdade de Direito, vinte anos passados,
quase todos eles eram nordestinos e quase todos
formados pela Faculdade de Direito do Recife
(Arthur Albuquerque, 73 anos).
Pedro Albuquerque foi promotor numa ci-
dade pequena, onde fi gura pública de destaque
tinha linha de parentesco consigo. Depois, tor-
nou-se professor de Direito, numa faculdade
onde o corpo docente era, predominantemen-
te, oriundo da Faculdade de Direito do Recife.
Além disso, sua atividade de escritor conduziu-
o a tornar-se membro fundador da Academia
3. As palavras em itálico substituem outros termos utili-
zados pelos informantes em seus depoimentos, ou são
esclarecimentos que julguei necessário fazer.
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
Paraense de Letras, onde encontrou o campo
propício para o cultivo da memória familiar e
sua divulgação.
Representando o início de uma nova tradi-
ção, e procurando guiar seus fi lhos pelos mes-
mos caminhos, Pedro transita entre o passado
e o presente, tecendo uma história que é, tam-
bém, um respaldo ao seu projeto de ascensão.
Qual a tônica dos depoimentos dos seus fi lhos
e netos? O que sempre vai ser lembrado é a
trajetória do próprio Pedro, tendo por pano
de fundo o passado mais remoto de fausto e
poder. É a história da dedicação absoluta do
pai à sua formação, seu mestre desde a alfabeti-
zação até a entrada na faculdade de Direito. É
a descrição dos percalços e sacrifícios vencidos
através de um esforço ímpar, mas que conduz
à glória representada pela construção de uma
carreira pública.
Através do contar e recontar dessas histórias,
vai-se criando uma semelhança de elementos
narrativos nos discursos dos diferentes mem-
bros da família. E é nessa uniformidade e nessa
repetição que a memória dos Albuquerque se
aproxima de uma lenda. Pedro Albuquerque
narra sua trajetória, e, ao fazê-lo, orienta e
aconselha os seus. De acordo com Bosi:
Há episódios que gostamos de repetir, pois a
atuação de um parente parece defi nir a natu-
reza íntima da família, fi ca sendo uma atitude
símbolo. Reconstituir o episódio é transmitir a
moral do grupo e inspirar os menores. Podemos
reconstruir um período a partir desse episódio
(1987: 345-346).
Em seu papel de orientador e conselheiro,
Pedro Albuquerque adota uma prática com-
patível com o discurso. Ao dedicar-se a acom-
panhar os estudos de seus fi lhos, ele reproduz
rotina artesanal de ensino, semelhante àquela
levada a efeito por seu pai em sua educação.
Seus fi lhos afi rmam:
O meu pai foi um homem sempre voltado aos
livros, desde... Ele estudou, se alfabetizou, com
meu avô, no engenho, com vela de cera de car-
naúba feita pela minha avó. Não tinha luz elé-
trica, não tinha querosene, não tinha nada. Era
cera de carnaúba. Minha avó fazia aquelas velas
e o meu avô fez uma cartilha de abc, por onde
ensinou meu pai. Esta cartilha de abc, salvo en-
gano, está em mãos da minha irmã Lígia, não
sei bem por onde está. Mas ela existe, ela foi
feita pelo meu avô e nela, nessa cartilha de abc,
meu pai aprendeu a ler e a escrever (Arthur Al-
buquerque, 73 anos).
Papai deu um valor tão grande... como já lhe
disse, colocava um fi lho aos cinco anos no pri-
mário, onze no ginásio e dezessete nas faculda-
des. Quem nos visitava naquele tempo, que nós
morávamos na avenida das Andorinhas 21, era
uma coisa espantosa. Oito horas da noite estava
o papai na cabeceira, e todos os fi lhos, ele ensi-
nando. Um ensinando Geografi a, outro Histó-
ria. Todo mundo que viveu naquele tempo dizia:
“quando nós íamos à casa do Pedro Albuquerque, nós encontrávamos vocês todos estudando.” (...)
Papai só nos liberava do estudo sábado (Paulo
Albuquerque, 76 anos).
Indo além das narrativas, ele põe os fi lhos
em contato com o ambiente em que viveram
os antepassados, através das viagens constantes
a um dos engenhos da família no Nordeste,
que ele procurou recuperar e manter. As des-
crições dessas viagens remetem à importância
das mesmas na construção e permanência de
uma memória familiar. O mundo físico que
circundava os antepassados passa a ser vivido e
usufruído. Conforme Pollack: “Nas lembran-
ças mais próximas, aquelas de que guardamos
recordações pessoais, os pontos de referência
geralmente apresentados nas discussões são,
como mostrou Dominique Veillon, de or-
dem sensorial: o barulho, os cheiros, as cores”
38 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
(1989: 11). Ouvem-se narrativas diversas,
contadas pelos personagens desses engenhos,
que vão compondo um quadro vivo do que foi
a vida do bisavô major ou do tataravô barão.
Papai me dizia: “meu fi lho, nunca na mesa do
meu avô Carlos Seabra, ele comeu sozinho com
a Maria Antônia, com a Dindinha. Sempre
tinha gente. Quatro, cinco, seis, oito, dez co-
mensais. Vinham do sertão, vinham do Pontal, vinham de Natal”. Entravam na casa de meu bi-
savô como se entrassem na própria casa. Sempre
a mesa farta (Paulo Albuquerque, 76 anos).
Pollack (1992) indica que os acontecimen-
tos, personagens e lugares são elementos cons-
titutivos da memória, e podem resultar de um
conhecimento direto, quando fazem parte do
espaço-tempo de uma pessoa e foram viven-
ciados ou conhecidos pessoalmente. Mas a
memória de uma pessoa pode, também, incor-
porar lembranças que correspondem ao legado
do grupo – embora não advenham diretamente
de suas biografi as –, através de um processo de
socialização que leva a uma identifi cação com
determinado passado. Trata-se, neste caso, de
uma “memória herdada”, já que diz respeito a
experiências pessoais de outros.
O engenho é um lugar conhecido e usufruí-
do pessoalmente pelos fi lhos de Pedro Albuquer-
que, mas sempre com referência a personagens
e relações passadas. A perda da importância
econômica da região, após a queda da economia
açucareira, parece ter criado um nicho do pas-
sado, pois as narrativas revelam muitas perma-
nências, muitas continuidades. Nas descrições
do engenho permanece a ausência de certas co-
modidades, pois, como na época dos antepas-
sados, não havia sanitários. Os fi lhos de Pedro
Albuquerque tiveram, também, a oportunidade
de conviver com personagens que acompanha-
vam a família há anos, como ex-escravos e seus
fi lhos. E o proprietário, embora não dispusesse
da mesma situação que seus antepassados, ainda
se apresentava aos criados da mesma forma que
aqueles, deixando de lado as roupas domésticas
e envergando calça, camisa, paletó e gravata, já
que o traje distinguia o dono.
Halbwachs (1990) toca nos signifi cados
que o espaço assume ao ser marcado pelas re-
lações estabelecidas entre os homens. Regido
pelos mesmos símbolos que impregnam a vida
social, o espaço torna-se ponto de referência na
estruturação da memória. O passado é evocado
não apenas nas histórias de Pedro, mas o am-
biente, os personagens do engenho e vários as-
pectos da rotina diária parecem trazer de volta
os antepassados.
Ainda quando eu fui com doze anos – onze ou
doze anos – pro engenho, ainda conheci muitas
escravas. A Tamunda – que era Raimunda –, a
Cotó, a Sinhazinha. Ainda conheci essas escra-
vas e, inclusive, o grande amigo do papai, que
era um preto, que era tão preto que o apelido
dele era Cambraia. (...) E também da Maria que
era empregada de casa. Quando ia lavar as pane-
las à noite – sete horas da noite – o luar bonito,
ela cantava: “Luar da lua/ Sereno das estrelas...”.
Eram os primeiros versos. A canção era longa,
mas nunca me esqueci dela lavando, esfregando.
(...) Acabava a cozinha, sete horas da noite, ela
ia... não lavava dentro de casa. A panela era la-
vada do lado de fora, com areia, bem esfregada
(Paulo Albuquerque, 76 anos).
Ele fala, também, com tal intimidade da
avó que parece ter convivido com ela.
(...) minha avó, mãe do papai, dona Albertina,
era também uma mulher muito altiva e muito
dura. Muito, muito segura e de muito pulso.
Diferente da minha avó [na verdade, sua bisa-vó], que era a Dindinha, chamada Dindinha,
casada com o Major Carlos Seabra, que a fun-
ção dela era colocar as mucamas – quinze, vinte
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
mucamas – em torno dela, com bilro, ela ensi-
nando a fazer rendas. Ela fi cava na cabeceira e
botava as mucamas – as moreninhas – todas, ela
ensinando renda pra todas elas.
Assim, através das lembranças dos Albu-
querque é possível resvalar o cotidiano da fa-
mília, desde a época do seu apogeu enquanto
parte da oligarquia canavieira nordestina, pas-
sando pelo seu declínio e chegando à constru-
ção mais recente de uma tradição que enfatiza
a erudição do grupo e suas carreiras públicas.
Os membros dessa família – especialmen-
te os entrevistados mais velhos – conseguem
reconstruir verbalmente a trajetória da famí-
lia, e de forma muito semelhante a como ela
está escrita e publicada em livros e crônicas.
Nota-se que, aqui e acolá, aparecem informa-
ções que demonstram a existência, entre os
membros da segunda geração, de um trânsito
de informações e objetos de família – fotogra-
fi as, manuscritos, quadros, objetos pessoais e
aqueles que assinalam a distinção dos antepas-
sados –, revelando que o passado se constitui
em matéria de interesse a que continuamente
retornam. O fato de alguns membros da fa-
mília terem se dedicado à construção de uma
versão da história familiar, não individualmen-
te, mas através de um esforço conjunto, em
que contribuições particulares foram sendo
incorporadas, após serem reveladas ao grupo
e se tornarem recorrentes – talvez por expo-
rem alguma faceta que se pretendia destacar –,
criou uma aproximação entre o registro escrito
da história familiar e as memórias particulares
de seus descendentes. As vinculações de vários
deles a instituições culturais valorizadoras de
uma dada versão histórica, centrada nos gran-
des personagens e em biografi as, foi também
importante na criação de uma uniformidade
no discurso.
III
Embora tanto os Albuquerque quanto os
Duvignaud sejam adjetivados de tradicionais,
percebe-se que se trata de duas construções
distintas de memória familiar. As diferenças
compreendem a extensão temporal que as lem-
branças recobrem, a intimidade com o passado
dos antecedentes e a imagem fi xada sobre as fa-
mílias a partir daí. Também envolvem a ênfase
dada ao retorno ao passado, e sua articulação
com estratégias de manutenção ou recuperação
de posição social. Considerando a memória
como um fenômeno social, compreende-se a
formulação dessas diferenças a partir da obser-
vação das trajetórias – individuais e do grupo
familiar – em suas relações com o contexto
mais amplo.
A iniciativa de um dos membros da família
Duvignaud de pesquisar e registrar por escri-
to o passado de sua família, divulgando uma
versão, nos faz vislumbrar, na sua fi gura, um
guardião da memória familiar. Lins de Barros
nos fala destes sujeitos que, “ciosos da impor-
tância da família na construção da identida-
de dos indivíduos, tomam para si a tarefa de
preservar os arquivos da memória familiar”
(1989: 37).
Pollack (1989, 1992) destaca que toda
memória coletiva corresponde a um “tra-
balho de enquadramento”, no qual são es-
tabelecidas as referências sobre as quais
se constroem as fronteiras que defi nem a
identidade do grupo. Este trabalho apóia-se
sobre a história, material que permite dife-
rentes interpretações, sendo o limite dado
pelo reconhecimento, por parte do grupo, de
sua imagem na versão construída. Os guar-
diões da memória agem como atores desse
processo, controlando a imagem do grupo
pela divulgação de uma dada versão, que só
se consolida e permanece, obviamente, en-
quanto o grupo se reconhece nela.
40 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
Na versão de Antônio Duvignaud, autor da
obra, o destaque é dado à proeminência eco-
nômica e política dos Duvignaud, construída
através de várias gerações, assinalando não uma
situação passageira, mas uma tradição. Partindo
dos ramos e personagens destacados do grupo,
o autor enfatiza o período áureo da família no
Pará, vivido no início do século, momento maior
de expressão do seu refi namento e proximidade
com o poder. O livro não só diz quem eram os
Duvignaud, mas procura estabelecer linhas de
continuidade entre o passado e o presente, natu-
ralizando o que é fruto de circunstâncias históri-
cas e enxergando, na atual descendência, traços
do que seria a marca deste grupo familiar.
Em termos de narrativa oral, não encon-
trei nada parecido com a sistematização feita
no livro. Está claro que ele não foi escrito com
base apenas na memória do autor, mas em um
minucioso trabalho de investigação que incluiu
não só os depoimentos de familiares, mas uma
ampla pesquisa de fontes escritas. Para que o
conteúdo das entrevistas tivesse uma aproxi-
mação maior com o do livro, a busca de in-
formações sobre o passado familiar e o cultivo
dessa memória deveriam ser algo recorrente
entre os entrevistados. Nesse caso, o próprio
livro teria se tornado uma fonte importante na
composição de um discurso sobre o passado
familiar. No entanto, os entrevistados fazem
menção ao livro, mas não costumam repetir o
seu conteúdo, mostrando que ele não foi ple-
namente incorporado. Não apresentam, como
o autor, uma versão que reconstrua a trajetória
do grupo. Cabe notar que tanto as representa-
ções sociais, quanto o uso social da memória,
podem ser afetados por diferenciações inter-
nas a essas famílias e pelas particularidades das
trajetórias individuais. Assim, pode haver um
grupo de parentes que se destaca por contro-
lar, efetivamente, os recursos materiais, sociais
e simbólicos herdados e que compõem o atual
patrimônio familiar.
Dos cinco entrevistados, os três irmãos enfati-
zam apenas as marcas que caracterizariam os Du-
vignaud e denotariam sua distinção. Já nos outros
dois casos, mãe e fi lha reconstituem fragmentos
de trajetórias individuais de antepassados próxi-
mos, mas não sintetizam o percurso da família.
Remetendo, em especial, à “memória herdada”
de uma antepassada comum, falam sobre com-
portamento, hábitos do cotidiano e interação de
um grupo de parentes que viveu o fi nal do sécu-
lo XIX e parte do século XX. É possível, assim,
enxergar aspectos da vida dos Duvignaud tanto
em seu período de apogeu, como num momento
já marcado pelo declínio de sua expressão mas
no qual os traços de distinção social eram ainda
muito atuantes. Se não sintetizam a história do
grupo, dão vida a pedaços de uma história fami-
liar, ao traçarem um perfi l dos antepassados, que
completa a descrição de Antônio Duvignaud,
voltada para a descrição de carreiras públicas e
para a análise do percurso da família.
Ressalto que as entrevistas que realizei não
negam, absolutamente, a imagem de distinção
da família, tal como está traçada no livro de
Antônio Duvignaud. Se fosse de outra forma,
a fi gura do autor não seria a de um guardião da
memória. Ou então, isso indicaria modos dife-
renciados dos membros do grupo enxergarem
a si próprios, havendo múltiplas versões que,
provavelmente, disputariam entre si o papel de
versão válida. Vale lembrar a aproximação feita
por Pollack entre memória e identidade, a par-
tir da consideração da primeira como “(...) um
elemento constituinte do sentimento de iden-
tidade, tanto individual como coletiva” (1992:
204), chamando a atenção para o processo
contínuo de construção que as engendra. E isso
envolve uma permanente negociação entre os
agentes envolvidos nas defi nições construídas.
Mas, nesse caso em particular, as diferenças não
dizem respeito à natureza das versões, e sim aos
graus de envolvimento do autor e dos entrevis-
tados com o cultivo de uma memória familiar.
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
Os três irmãos em questão tiveram o nome
Duvignaud transmitido pelo pai – que foi pe-
cuarista, político e empresário –, sendo fi lhos
do segundo casamento deste. O que nos dizem
quando solicitados a falar sobre o passado dos
Duvignaud? Em linhas gerais, enfocam as mar-
cas da família: sua riqueza, a vocação política,
o gosto por posições de mando, o refi namento
de seus hábitos, a vinculação do nome da fa-
mília às terras da Ilha do Marajó e, até mesmo,
semelhanças físicas (beleza e altura). Embora o
nascimento do pai deles remeta ao auge do ci-
clo da borracha, são lembrados apenas aspectos
mais recentes de sua trajetória. Um refi namento
pessoal é evocado, como que traçando uma cor-
respondência entre o pai e o nome de família.
Então, ele gostava tudo dele do bom e do me-
lhor. Pra você ter uma idéia, na fazenda, a his-
tória que a mamãe conta – eu realmente não
conheci – era que todos os talheres eram de pra-
ta, prata importada, etc. Todas as louças eram
de porcelana. Papai tinha um cais na fazenda
que durou até quase... um sobrinho que fi cou
com essa parte da fazenda me diz que esse cais,
até uns cinco anos atrás, ele existia ainda. E os
lençóis de linho... papai sempre foi um homem
que gostou desse aspecto, se vestia muito bem,
talvez até melhor que a gente. Sempre uma ele-
gância a toda prova, não só de vestir, como da
roupa de dormir, da maneira de se alimentar,
etc. E a gente ouvia todas essas histórias (Carlos
Duvignaud, 41 anos).
Praticamente nada é dito sobre os avós pa-
ternos. Como compreender que um passado tão
próximo, já que vivido por pai e avós, chegue
até eles de forma tão residual? A resposta parece
estar, em grande parte, nas rupturas que acom-
panharam a formação desse núcleo familiar. A
primeira delas é o rompimento do pai, Olavo
Duvignaud, com sua primeira união, que havia
sido realizada com pessoa de origem familiar
semelhante. Em seguida, ele casa-se de novo,
agora com pessoa bem mais jovem e de origem
mais humilde, dando início a esse novo núcleo
familiar.4 Finalmente, ele reorienta a sua vida
profi ssional, deixando de ser pecuarista – ati-
vidade que marcou a trajetória da família –, já
que a fazenda que possuía foi legada aos fi lhos
do primeiro casamento. Essas rupturas pare-
cem ter contribuído para um distanciamento
em relação ao grupo familiar mais amplo e a
uma rede de relações que lhe servisse de apoio
ao cultivo de lembranças ligadas a um passado
comum ou entrelaçado.
Afi rmam que foi preservado pelo pai ape-
nas o convívio próximo com uma irmã, já que
dois irmãos morreram muito cedo, um terceiro
morava no Rio de Janeiro e uma outra irmã, no
exterior. Assim, há uma dispersão na geração
anterior aos nossos informantes que, associada
às quebras anteriores já citadas, conduz a um
distanciamento do passado pela ausência da-
queles com os quais se poderia compartilhar e
cultivar lembranças.
Voltando à memória dos três entrevistados,
podemos dizer que, embora não reconstituam a
vida dos antepassados nem o percurso familiar,
apontam com nitidez as marcas da família. Em
parte, porque foi possível extrair isso da própria
conduta do pai, e, também, por conta de aspec-
tos da vida da família vislumbrados em jornais,
livros e conversas com pessoas próximas, que
4. Sua segunda esposa vinha de uma família de peque-
nos criadores do Marajó, lugar onde os Duvignaud
fi caram conhecidos como grandes pecuaristas. As
diferenças de origem fi cam claras nas fotografi as de
família, sendo que uma delas é particularmente es-
clarecedora da distância social entre os dois grupos:
de um lado, aparece Olavo e um dos fi lhos do casal,
e de outro, os pais da segunda esposa. Todos estão de
pé, olhando para a câmera, e a distância que separa
os dois lados é muito grande, causa estranhamento e
sugere ausência de intimidade e um afastamento res-
peitoso da parte dos pais da esposa. A indumentária e
a postura reforçam essa sugestão.
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
servem a eles como um espelho. É como se eles
tivessem tido acesso a fragmentos de um cená-
rio e a uma conduta peculiar à família, mas não
à vida de personagens específi cos, pelo menos
não de modo a incorporá-las a sua memória.
Entre as pessoas citadas como importantes
canais de acesso ao passado familiar, a que parece
ter desempenhado melhor esse papel foi uma tia
paterna, Tereza Duvignaud, a única que perma-
neceu em Belém e com quem havia uma relação
de proximidade. Conquanto a vida desta tam-
bém tenha sido marcada por várias rupturas, ela
manteve uma ampla rede de relações, composta
predominantemente por parentes, e é retratada
pelos entrevistados como contadora recorrente
de histórias que remetiam ao passado familiar.
Essa senhora é mãe e avó das outras duas entre-
vistadas, que demonstraram maior desenvoltura
ao falar de parentes que as precederam.
E isso nos remete a um outro dado importante
para esclarecer a ausência de lembranças entre os
irmãos entrevistados: eles não conviveram, sequer
conheceram, seus avós paternos um importante
canal de ligação com o passado familiar, pois os
“avós reconstroem suas vidas, relembrando a tra-
jetória familiar e estabelecendo, na lembrança, o
espaço familiar, a representação da família e suas
relações internas” (Lins de Barros 1987: 77).
A importância dos avós para a atividade
mnemônica é reforçada pelo depoimento de
Vitória, neta de Tereza Duvignaud, que a criou
enquanto seus pais trabalhavam e residiam na
Ilha do Marajó. A sua entrevista apresenta uma
diferença signifi cativa em termos de intimidade
com o passado, reconstituindo em suas lem-
branças a trajetória da avó e remetendo a muitas
situações cotidianas que envolvem ela própria,
enquanto companhia constante daquela. São
relembradas as visitas de fi m de tarde a parentes
– denotando a força de uma parentela ainda nas
décadas de 1950 e 60 –, os lugares freqüentados
– para passeio, compra, atividade religiosa –, as
viagens ao Rio de Janeiro, aspectos da educação
que recebeu – a maneira de se vestir, de se por-
tar à mesa, de pensar sua condição de mulher
– e as reuniões familiares em datas festivas.
A partir da avó, surgem outras mulheres em
suas lembranças, que são pessoas próximas, tan-
to pelo parentesco e convivência, como pelo es-
tilo de vida. A entrevista de Vitória traz à tona,
portanto, um mundo feminino. Nem os homens
que se pressupõe mais próximos – pai, avô, irmão
– têm espaço em sua narrativa. Ela reconstitui a
história da avó desde as circunstâncias privilegia-
das em que passou a infância e parte da juven-
tude, assinalando os estudos feitos em Paris, seu
traquejo social e sua elegância. Descreve, tam-
bém, os percalços de sua vida, iniciados com um
matrimônio acordado pelo pai, e que se revelou
desastroso, não apenas pela ausência de sentimen-
tos, mas porque a trajetória do marido de Tereza
foi marcada pela ruína econômica, seguida de sua
morte precoce. Desse casamento resultaram dois
fi lhos, uma mulher e um homem. Posteriormen-
te, Tereza Duvignaud voltou a se casar e teve mais
uma fi lha, Flávia, mãe de Vitória.
Quando Vitória fala da avó materna, a
descreve como uma mulher forte e articulado-
ra de relações, que mesmo já não tendo um
patrimônio que se igualasse a alguns de seus
parentes, manteve a proximidade com eles,
inclusive através do estilo de vida que culti-
vou. Esta proximidade converteu-a, primeiro,
em protegida e, posteriormente, em herdeira
do patrimônio da viúva de um tio consangüí-
neo, a qual não possuía herdeiros diretos.5
5. A proximidade dessa relação fi ca evidente não só neste
fato, mas também em outras informações fornecidas por
Vitória e Flávia. O nascimento de Flávia, por exemplo,
ocorreu na casa desta senhora, tendo ela e o marido tor-
nado-se seus padrinhos. Já Vitória relata as freqüentes
visitas de fi m de tarde a ela e a outra tia de sua avó. Por
fi m, vale notar que esta senhora, ao repassar seus bens
para Tereza e sua fi lha Flávia, converteu em herdeiras
não parentes consangüíneas suas, mas sim de seu mari-
do, já falecido. Por intervenção de Tereza, coube a ela os
imóveis e jóias, sendo a fazenda repassada à Flávia.
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
Os lugares de passeio, a maneira de se vestir,
o exercício da fi lantropia, a formalidade e o
respeito que exigia durante as refeições, assim
como seu comportamento rígido, são aspectos
de uma vida que, nos detalhes, elaborava um
estilo e marcava uma distinção.6
A minha avó, sempre era a palavra dela que pre-
dominava, ela que controlava o dinheiro, ela que
decidia as coisas, tudo ela é que fazia. Ela domi-
nava a família toda, mas assim de uma coisa que
ninguém sentia. Todo mundo gostava muito
dela: avô, mãe [Vitória refere-se ao seu próprio avô e mãe], fi lhos, genro – meu pai tinha verdadeiro
pavor dela. E não era dominação pelo dinhei-
ro, era dominação pela palavra, dominação pela
vontade, dominação, assim, pela maneira dela
ser. Ela transava para que tudo saísse da manei-
ra que ela queria. Ela chantageava, ela usava de
todas as armas possíveis e imagináveis (...) Na
mesa, antigamente, ninguém podia falar, a não
ser quando a vovó desse a palavra pra todo mun-
do. A primeira que falava na mesa era ela, ela
que servia todo mundo (Vitória Duvignaud, 42
anos).
A mãe dessa entrevistada também deu um
depoimento no qual revela não apenas o passado
que foi vivido, mas aquele que lhe foi contado,
demonstrando conhecimento da trajetória do
avô materno e seus irmãos, assim como da gera-
ção de sua mãe. Essas informações particularizam
alguns antepassados em aspectos que marcaram
a sua feição dentro do grupo familiar, lembran-
do a afi rmação de Bosi de que “nenhuma comu-
nidade consegue como a família valorizar tanto
a diferença de pessoa a pessoa” (1987: 346). É aí
6. Provavelmente, alguns desses aspectos só se viabili-
zaram quando Tereza recebeu a herança de sua tia, o
que explicaria porque Vitória remete a eles, mas sua
mãe não. A trajetória delas é, também, bem diferente,
estando claro que Flávia viveu a infância e juventude
em circunstâncias mais modestas.
que aparece o tio-avô gourmet, um outro que era
fi lósofo, o tio dos carros importados, a avó que
adorava enterros, a pitoresca bisavó que vivia en-
tre Belém e Paris, sem saber falar francês, e de lá
trazia maçãs em penicos. Os parentes são, assim,
revelados através de “(...) uma face ideal que se
perpetua” (Bosi 1987: 352).
Flávia também fornece dados sobre o estabe-
lecimento de relação de propriedade, por parte de
membros da família, com algumas fazendas do
Marajó. Um aspecto interessante é a visualização
da endogamia de classe das famílias que compu-
nham a elite paraense, cujo domínio, em alguns
casos, se estendeu do período colonial até a Repú-
blica, como é, aliás, o caso dos Duvignaud.
As distinções entre as entrevistas de Vitó-
ria e Flávia se concentram no relato de sua
trajetória pessoal e no seu cotidiano durante
a infância e juventude, o que interfere no dis-
curso através do qual trazem à tona o passa-
do familiar. Enquanto Vitória nos mostra os
Duvignaud sob a ótica com a qual enxergava
a avó, evidenciando sinais de elegância, im-
ponência, refi namento e riqueza, sua mãe re-
porta uma infância e juventude mais distante
do passado de fausto que assinalou a trajetória
da família. Embora ela enfatize a riqueza dos
Duvignaud e sua proximidade com o poder,
não os descreve em termos de seu refi namen-
to, preferindo caracterizá-los por sua afobação
e pelo senso de humor, arrolando histórias
correntes na família sobre gafes cometidas por
antepassados e outras histórias pitorescas, que
passaram a fazer parte do anedotário familiar.
Mas seu relato – como o de Vitória – tam-
bém remete mais a antepassados femininos.
Embora o avô paterno de Tereza seja o único
membro consangüíneo da família homenage-
ado com um título nobiliárquico brasileiro,
sendo esse fato destacado no livro de família,
as duas entrevistadas não o enfatizam e nem
mesmo têm histórias a contar sobre esse an-
tepassado. Mas Flávia fala da bisavó, esposa
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
daquele, relatando diversos episódios vividos
por ela, quando já idosa e viúva. Em sua resi-
dência encontram-se dois móveis que não só
pertenceram à bisavó, como estão intrinseca-
mente ligados a sua fi gura:
As duas cadeirinhas, tu notas que são baixas,
que a mamãe diz que ela era pequenina. E a que
está dentro do closet era pra ela botar... que ti-
nha bota, mas bota de mulher era com botão, do
lado, assim. Era baixinho pra ela abotoar as bo-
tas. Isso é outra coisa que eu me lembro (Flávia
Duvignaud, 64 anos).
Como ponto comum a esses dois relatos,
pode-se dizer que ambos dão vida a persona-
gens que no livro de família não aparecem,
ou são tratados apenas em termos de sua vida
pública. O que mãe e fi lha contam sobre os
Duvignaud, mergulhando nas histórias de uma
antecedente feminina, são outras faces desse
passado, nas quais é assinalada a distinção da
família, mas remetendo principalmente ao co-
tidiano e a elementos de uma trajetória que foi
acompanhada de perto e passou a fazer parte
das conversas domésticas.
IV
Conforme assinalei no início deste trabalho,
ao levantar a memória oral e escrita de membros
das famílias Duvignaud e Albuquerque, encarei
a herança mnemônica de cada uma delas den-
tro da perspectiva de Halbwachs (1990), ou
seja, como uma construção em que indivíduo
e sociedade desempenham, cada qual, seu papel
para que ela se efetive. O ritmo das lembranças,
os lapsos do discurso – resultantes do oculta-
mento ou do esquecimento –, a extensão tem-
poral percorrida e o teor básico das recordações
são aspectos que podem ser entendidos quando
articulados à trajetória do grupo e a traços espe-
cífi cos de vidas particulares.
Ao enfocar o indivíduo, Halbwachs (1990)
enxerga-o como um ser social, ponto de con-
fl uência e de articulação das perspectivas de di-
ferentes grupos no contexto de uma sociedade
complexa. A memória individual resulta, por-
tanto, de um trabalho elaborado pelo sujeito
– de seleção, destaque, ocultamento, reelabo-
ração –, a partir da confl uência das lembranças
resultantes de sua experiência social. De acordo
com Lins de Barros:
Ao pretender expor o caráter social da reconstru-
ção das lembranças, Halbwachs acaba realçando o
aspecto individual da memória, que encerra um
sentimento próprio e particular. Sua existência
tem um caráter único, decorrente de sua posi-
ção espacial e temporal e que apenas um único
e determinado indivíduo possui em sua biografi a
(1989: 31).
Para evidenciar o papel que cabe ao indiví-
duo na arquitetura da memória, ressaltei aqui o
papel dos guardiões da memória, ou as especi-
fi cidades de falas individuais no interior de um
discurso que retrata o grupo. Tereza Duvignaud
foi, sem dúvida, uma guardiã da memória fami-
liar, e sua retomada do passado foi enriquecida
por sua vida social intensa e, em especial, pelo
cultivo das relações com parentes. A manuten-
ção de uma agenda com nomes e datas de nasci-
mento de parentes, a vasta correspondência que
manteve ao longo de sua vida, e sua constitui-
ção como uma fi gura adequada para lidar com
problemas familiares, mostra uma mulher para
quem a vida familiar extrapolava os limites de
sua residência ou de sua família nuclear.
Em sua dedicação ao passado, os guardiões
formam coleções – de objetos, fotografi as, his-
tórias – que permitem entrever o passado, não
como fragmentos esparsos e exteriores ao su-
jeito, mas como vibrações que trazem à tona a
atmosfera vivida pelos antepassados. Em suma:
em suas recordações, o passado é recriado de
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
forma vívida. Ressalto aqui que Halbwachs
(1990) encara a memória como um elemento
dinâmico, a construir continuamente o pas-
sado tendo por base os fatos ocorridos. Ecléa
Bosi, interpretando as palavras de Halbwachs,
afi rma: “Na maior parte das vezes, lembrar não
é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar,
com imagens e idéias de hoje, as experiências
do passado. A memória não é sonho, é traba-
lho” (1987: 17).
Pedro Albuquerque também agiu como
um perfeito guardião, tanto pelas histórias que
“colecionou” e contou, como por mediar o
contato dos fi lhos com os locais onde havia se
desenrolado a vida dos avós. Os engenhos da
família, no Nordeste, assemelham-se a “ilhas
de passado conservadas”, onde nos sentimos
“subitamente transportados” a um tempo an-
terior (Halbwachs 1990: 68).
A existência dessas fi guras chaves na preser-
vação da memória chama a atenção para como
o indivíduo pode tornar-se ponto de confl u-
ência de propósitos de manutenção do grupo,
ou das representações a ele vinculadas. Tereza
Duvignaud e Pedro Albuquerque são sujeitos
atuantes, interessados em preservar, resgatar ou
criar imagens para os grupos nos quais se in-
cluem. É interessante notar que desempenham
esse papel após vivenciar rupturas, o que mostra
que a tessitura das lembranças torna-se ainda
mais urgente nos momentos em que todo um
passado e uma tradição parece se esvanecer.
O papel do indivíduo na estruturação da
memória pode ser percebido, também, nas
diferenças que marcam as narrativas feitas por
membros de um mesmo grupo familiar. Embo-
ra exista entre os fi lhos de Pedro Albuquerque
um discurso bastante uniforme, o fi lho caçula
apresentará o passado num tom diferente dos
demais, por não enfatizar a distinção familiar.
Não tendo se incorporado, como os irmãos, a
instituições culturais e profi ssionais valorizado-
ras de um discurso enaltecedor de personagens
e suas origens, apresentará o passado sob uma
ótica que conjuga alguns aspectos caros à famí-
lia – como, por exemplo, a trajetória de Pedro
Albuquerque – com noções desenvolvidas em
outros círculos que fazem parte de sua vida.
Do lado dos Duvignaud, as diferenças entre o
depoimento de Vitória e o de sua mãe também
dão conta de como dois indivíduos podem
recriar um passado em comum, cada qual de
uma forma particular. De novo entra em cena
a vivência do indivíduo e seu trânsito entre os
diversos grupos, permitindo que ele elabore sua
memória individual através de uma tessitura,
em que a memória coletiva é um referencial,
mas um referencial assumido sob uma perspec-
tiva bastante particular.
Para ambos os grupos é possível destacar as-
pectos uniformes que marcam o que é recorda-
do, gerando um discurso que defi ne a imagem
do próprio grupo. As narrativas dos Albuquer-
que enfatizam a austeridade, a disciplina e a
dedicação à consolidação de uma formação
exemplar que, somadas à pontuação e naturali-
zação de seu passado oligárquico, tornam pos-
sível associar seus membros ao perfi l adequado
para o trato da coisa pública. No caso dos Du-
vignaud, é ressaltado o refi namento e poder
dos antecedentes, associando-os à recriação em
Belém de uma civilização dentro dos moldes
europeus por ocasião do ciclo da borracha.
No entanto, há diferenciais em termos da
extensão, da intimidade e da importância que
o passado assume no contexto presente dessas
famílias. Nesse ponto, é fundamental con-
siderarmos o peso do grupo na estruturação
das lembranças. Halbwachs (1990) chama a
atenção para o fato de que construímos nossa
memória recorrendo ao testemunho daqueles
que fazem parte dos grupos nos quais toma-
mos parte, e que partilham conosco não apenas
fatos de uma vida em comum, mas modos de
pensar muito próximos, desenvolvidos no inte-
rior dos mesmos.
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Observamos que Pedro Albuquerque e seus
fi lhos homens vão compor um grupo bastante
homogêneo em termos de suas trajetórias, co-
mungando objetivos próximos a partir da sóli-
da orientação do patriarca da família. Usando
as mesmas noções, e tendo a memória do pai
como guia, eles vão partilhar um vasto repertó-
rio de lembranças, as quais dizem respeito não
apenas aos fatos vividos, mas àqueles trazidos à
tona por Pedro Albuquerque e pelos cenários a
que ele os conduz.
A situação é bem distinta entre os Duvig-
naud. No momento em que realizei as en-
trevistas, era clara a dispersão familiar, assim
como a ausência de um convívio próximo com
parentes por parte dos informantes. Os nú-
cleos de convívio remontavam ao passado, tal
como é revelado pela história de vida de Tereza
Duvignaud. O grupo subsiste enquanto uma
realidade genealógica que partilha um referen-
cial simbólico em comum: o nome de família.
Mas esse por si só já não permite delimitar um
grupo unifi cado em torno de uma vivência em
comum, havendo um enorme fosso entre o
passado e o presente familiar.
As lembranças colhidas junto a essas famí-
lias evidenciam, assim, uma outra importante
lição de Halbwachs (1990): se por um lado é
o presente que desencadeia as lembranças, por
outro lado é mergulhando no passado que os
homens buscam sentido para suas experiências
cotidianas. O distanciamento de alguns des-
cendentes dos Duvignaud frente à memória do
grupo mostra que novos caminhos estão sen-
do trilhados, e que eles já não remetem tanto a
esse passado: os referenciais são outros. E se as
lembranças da segunda geração dos Albuquer-
que no Pará inclui de forma tão signifi cativa os
seus antepassados, não é só porque suas histó-
rias lhes foram continuamente contadas, mas
porque elas davam sentido a um projeto que só
se viabilizaria enquanto gerido pelo grupo.
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POLLACK, Michael. 1989. “Memória, esquecimento,
silêncio”. Estudos Históricos. 2 (3): 200-215.
_____. 1992. “Memória e identidade social”. Estudos Históricos. 10 (5): 3-15.
resumo O objetivo deste artigo é analisar a
contrução social do bairro de Ipanema nos meios
de comunicação. Realizo uma análise aprofundada
de três livros e três suplementos de imprensa e es-
tabeleço uma comparação entre as representações
sobre o passado e o presente do bairro. Verifi co os
espaços, as personalidades, as visões de mundo e os
estilos de vida que caracterizam a Ipanema de hoje
e de ontem.
palavras-chave representações, bairro, espa-
ços urbanos e estilo de vida.
Ipanema e suas modas: passado x presente
MARISOL RODRIGUEZ VALLE
Mestre em Sociologia e Antropologia pelo PPG-
SA/IFCS/UFRJ.
Artigo aceito para publicação em 22/09/05
abstract Th e objective of this article is to
analyze the social construction of the quarter of Ip-
anema in the media. I carry trough a comment on
three books and three supplements of the press and
establish a comparison between the representations
of the past and the present of the quarter. I verify
the spaces, the personalities, the world visions and
the life style that characterize Ipanema of before and
today.
keywords representations, neighborhood, ur-
ban spaces, life style.
A província da ousadia
Responder à pergunta “onde você mora?”
pode ser constrangedor para muitos cariocas. A
simples menção ao nome do bairro é capaz de
suscitar um conjunto de idéias sobre seu morador.
Quando a resposta é “Ipanema”, algumas reações
como “que chique!” ou expressões faciais como a
de levantar a sobrancelha revelam que existe um
determinado imaginário sobre esse bairro. Expe-
riências como essas fazem com que, em determi-
nadas circunstâncias, eu evite dizer onde moro ou
sinta vergonha de minha resposta.
No meu caso, o constrangimento se agrava
por não me perceber como alguém que corres-
ponda aos quesitos “típicos” do morador de
meu bairro. Morar em Ipanema sempre signi-
fi cou, sob meu ponto de vista, ter de sacrifi car
certas comodidades para poder pagar elevadas
taxas de aluguel, condomínio e impostos. Mui-
tas vezes me percebo como “peixe fora d’água”
nesse bairro, sobretudo ao constatar o elevado
padrão de vida dos vizinhos ou quando pas-
so em frente às vitrines das luxuosas grifes que
se encontram nos arredores. Há, contudo, um
aspecto simbólico muito forte em “morar em
Ipanema”, e a força desse simbolismo se tra-
duz nas práticas e nos projetos dos indivíduos,
como foi o caso da escolha de minha mãe por
morar ali apesar das conseqüências que essa
decisão sempre acarretou. Em grande núme-
ro de sociedades urbanas, e de forma muito
marcante no Rio de Janeiro, o espaço constitui
elemento importante para a defi nição do status dos indivíduos. Há, nessa cidade, uma nítida
hierarquia de bairros e, através desta, os indiví-
duos percebem a sociedade e se situam dentro
dela (Velho 1978).
cadernos de campo n. 13: 47-60, 2005
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Estranhar o bairro em que se vive pode se
converter em uma experiência bastante sig-
nifi cativa, principalmente para quem preten-
de exercitar uma visão antropológica sobre o
próprio meio social. Proporciona, talvez, uma
maior facilidade para “transformar o familiar
em exótico”, como sugere Da Matta (1978).
Este exercício refl exivo que pratico cotidiana-
mente no bairro onde moro fez com que Ipa-
nema se tornasse, para mim, além de um local
intrigante, um objeto a ser pesquisado.
Uma vez decidida a realizar uma investiga-
ção sobre Ipanema, iniciei uma busca por refe-
rências bibliográfi cas sobre o local. Deparei-me
com livros que continham descrições, fotos e
comentários que em nada se assemelhavam ao
que costumo observar no bairro. A Rua Gar-
cia D’Ávila, por exemplo, que me surpreende
às vésperas do Natal com seu tapete vermelho
estendido na calçada de lojas como Louis Vuit-
ton, Cartier, Mont Blanc e H. Stern, não ocu-
pava uma página sequer de tais livros. Aquelas
evidências que para mim atestam que Ipane-
ma é uma das localidades mais caras do Rio
de Janeiro passavam quase despercebidas nessas
obras sobre o bairro. O que encontrei foi uma
certa regularidade no modo como os autores re-
tratam Ipanema, como por exemplo, através de
uma referência constante a épocas passadas. A
Ipanema dos livros é uma Ipanema “de memó-
rias”, aparecendo como um local que vivenciou
grandes mudanças comportamentais, artísticas
e culturais nas décadas de 1960 e 1970.
Enquanto era transportada para uma Ipa-
nema por mim desconhecida – um bairro
“provinciano”, “boêmio” e “libertário” – os
jornais e revistas de grande circulação no Rio
de Janeiro celebravam os 110 anos de uma
Ipanema “moderna”, “luxuosa” e “cosmo-
polita”. Notei, portanto, o caráter subjetivo
e simbólico das informações contidas nos
meios de comunicação. Mais do que apresen-
tar fatos sobre Ipanema, os livros e a imprensa
contêm versões que produzem e reproduzem
concepções específi cas sobre esse bairro. Foi a
partir dessa percepção que o material no qual
esperava obter informações “documentais” e
“objetivas” se transformou em um objeto de
refl exão para minha pesquisa.
Neste trabalho realizo uma análise sobre
os meios de comunicação para compreender o
modo como Ipanema é percebida, elaborada e
divulgada.1 Busco examinar os valores, símbolos
e noções que constroem o passado e o presen-
te do bairro comparando os diferentes espaços,
personalidades e características que representam
a Ipanema de ontem e a de hoje. Considerando
que “Ipanema”, mais do que um espaço físico de-
limitado, exprime um conjunto de crenças e de
representações culturalmente elaboradas, busco
analisar o processo de construção social de um
bairro emblemático da cidade do Rio de Janeiro.
Um bairro carioca
Ipanema possui 1,67 quilômetro quadrado.
Seu território consiste em uma estreita faixa de
terra, de formato quase retangular, banhada ao
sul pelo oceano Atlântico e ao norte pela Lagoa
Rodrigo de Freitas. Em comparação com a maio-
ria dos bairros do Rio de Janeiro, Ipanema pode
1. Os livros que constituem o material do trabalho são:
Ela é carioca (1999), de Ruy Castro; Ipanema, se não me falha a memória (2000) de Jaguar e Os degraus de Ipanema (1997), de Carlos Leonam. Dentre as ma-
térias publicadas na imprensa no ano de 2004, esti-
pulei como critério de seleção aquelas dedicadas ao
aniversário de 110 anos do bairro de Ipanema. Utili-
zei como objeto de refl exão suplementos dos jornais
O Globo, Jornal do Brasil e da revista semanal Veja Rio que apresentavam “Ipanema” estampada em suas
capas. Trata-se, respectivamente de Caderno Zona
Sul – “Ipanema, 110 anos na vanguarda” (O Globo,
22.abr.2004); Caderno H – “O garotão de Ipane-
ma – Ipanema 110 anos, edição especial” (Jornal do Brasil, 25.abr.2004) e “Ipanema 110 anos: Histórias
e personagens do bairro mais charmoso da cidade”
(Veja Rio 26.abr.2004-02.maio. 2004).
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ser classifi cada como pequena, no entanto, suas
dimensões espaciais não são proporcionais às
simbólicas: Ipanema é entendida como um em-
blema de sua cidade e até mesmo de seu país.
Essa representação aparece de diversas manei-
ras no material selecionado para este estudo, como
por exemplo, através das noções de “moda”, “ca-
pital cultural”, “boemia” e “estilo de vida”: “Ipa-
nema está para o Rio como Paris para o mundo.
É sinônimo de moda. Tudo o que a menina de
Ipanema usa a caminho do mar, da universidade,
das compras, as meninas de todo o Brasil copiam”
(Jornal do Brasil: 8); “o bairro era a capital cultural
do Rio, e portanto, a capital cultural do Brasil”
(O Globo: 34); “Talvez seja impossível defi nir o
carioca sem o espaço informal de cordialidade...
Em Ipanema, como bairro carioquíssimo que é,
não podia faltar botequim” (Jornal do Brasil: 14)
e “Ipanema traduz um estilo de vida bem carioca:
praia, calçadão e espontaneidade” (O Globo: 16).
O livro de Ruy Castro sobre Ipanema ex-
pressa as mesmas idéias encontradas na impren-
sa. O título Ela é carioca sugere que o bairro
não poderia estar localizado em outra cidade
que não fosse o Rio de Janeiro. Em abril deste
ano, esse escritor foi convocado por uma livraria
para tratar o aniversário de 110 anos do bairro.
Em suas primeiras palavras, Ruy Castro sugeriu
que Ipanema é um bairro típico do Rio através
da oposição “formalidade x informalidade” que
comumente se estabelece entre paulistas e ca-
riocas. O autor negou que naquela ocasião faria
uma “palestra com viés acadêmico”, pois “isso
só seria possível se Ipanema fosse em São Pau-
lo”, e preferiu denominar de “bate-papo” a sua
participação na homenagem ao bairro.
A importância de um projeto de preservação
cultural para o bairro de Ipanema fundamenta-se
no decreto publicado em julho de 2003, no Di-
ário Ofi cial da Prefeitura do Rio de Janeiro, por
meio de considerações como estas: “...Ipanema,
pela sua história, tornou-se uma referência do
modo de vida do carioca, refl etindo-se em todo
o país”. O depoimento do Secretário Municipal
das Culturas também dissemina a mesma idéia:
“Pela peculiaridade de Ipanema não poderíamos
tombar apenas imóveis. Ipanema resume bem o
espírito do carioca, seu comportamento, suas ati-
tudes. E é isso que estamos preservando também”
(O Globo 20.jul.2003).
Ao considerar a relação metonímica que
se estabelece entre bairro, cidade e país, pode-
se pensar que as representações sobre Ipanema
apresentam dimensões mais amplas do que as de
um simples bairro e se estendem a um imaginário
sobre “ser carioca” e “ser brasileiro”. Apesar dis-
so, os elementos que estabelecem a ligação entre
o ipanemense, o carioca e o brasileiro, como os
conceitos de moda, boemia e estilo de vida, são
tratados aqui como típicos de Ipanema. É preci-
so ter em mente, contudo, que essa simbologia
é capaz de transcender os limites territoriais de
1,67 quilômetro quadrado desse lugar.
A Ipanema do passado
Nos suplementos de imprensa pesquisa-
dos, a idéia de moda é recorrentemente utili-
zada para designar o passado de Ipanema: “Nos
anos 60 e 70, Ipanema viveu uma espécie de
fase áurea, exportando personagens, moda, ar-
tistas, posicionamentos políticos e modos de
vida” (Jornal do Brasil: 4). O bairro é qualifi ca-
do como “Laboratório de moda... centro irra-
diador de tendências” (O Globo:18) ou “Lugar
onde não faltaram musas, modismos, aconteci-
mentos e polêmica” (Veja Rio: 12). Nos livros,
a idéia também é freqüente. Jaguar acredita que
o bairro “se intrometia na cidade e no estado,
ditava moda, hábitos e costumes para o Brasil e
o mundo; cagava regras” (: 12).
A concepção de moda utilizada para qua-
lifi car Ipanema não se relaciona somente ao
sentido mais comum de inovações nas vesti-
mentas ou nos acessórios de uso pessoal; en-
volve também outros signifi cados. A associação
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entre Ipanema e moda fundamenta-se na idéia
de que os ipanemenses do passado tinham uma
habilidade peculiar de transgredir, criar e in-
ventar estilos de vida, comportamentos e ati-
tudes. Para ilustrar esta idéia não é preciso ler
os livros ou as matérias de jornais e revistas que
falam sobre o bairro, bastando observar as foto-
grafi as que se repetem nesse material.
A praia serve como o cenário privilegiado
das imagens mais emblemáticas do passado de
Ipanema, como a da atriz Leila Diniz grávida de
biquíni; a do ex-guerrilheiro Fernando Gabeira
de “tanga” tomando uma limonada ou a de um
grupo de mulheres com os seios à mostra, rode-
adas de repórteres e de curiosos. Ipanema teria
sido, sob esse ponto de vista, um local pionei-
ro, onde nasceram costumes e comportamen-
tos que romperam com padrões tradicionais de
conduta. De acordo com os livros e o material
de imprensa, as atitudes ipanemenses teriam
sido posteriormente difundidas e até copiadas
em outros locais do Rio de Janeiro e do Brasil.
A barriga grávida de uma personalidade pú-
blica, o “topless” feminino e a semi-nudez de um
militante de esquerda são imagens estrategica-
mente utilizadas para tornar concretas as idéias
de “moda”, “inovação” e “ousadia” que também
contribuem para o imaginário que associa Ipane-
ma ao conceito de “vanguarda”. Percebe-se que
essas fotos não são selecionadas arbitrariamente,
já que são justamente aquelas em que a “trans-
gressão” está mais evidente por recair no próprio
corpo das personalidades fotografadas.
A partir da pesquisa de Velho (1998) sobre
jovens da década de 1970, nota-se que a idéia
de ser “vanguarda” aparece como um valor
fundamental para as camadas médias da zona
sul do Rio de Janeiro nessa década. Esse grupo
apresentaria forte anseio por mostrar um esti-
lo de vida “vanguardista”, que se traduziria no
valor atribuído ao tema da mudança como um
modo de se opor a uma visão de mundo tradi-
cional e conservadora:
O grupo defi nia-se como sendo orientado para a
mudança. O vanguardismo implica na inovação,
na invenção... ser um artista de vanguarda, por
exemplo, implicaria não ser pessoalmente “qua-
drado”, “careta”, “pequeno-burguês”. Mesmo as
pessoas que não desempenhavam uma atividade
que não fosse considerada especialmente inova-
dora ou vanguardista aceitavam, em princípio, a
importância de ser “aberto”, rejeitando as escalas
de valores das famílias de origem, consideradas
hipócritas, repressivas etc. (: 63-64).
Se Ipanema é entendida como um bairro
onde se desenvolveram comportamentos “van-
guardistas”, é no espaço da praia – mais propício
para a exposição corporal – que as novas mora-
lidades de Ipanema ganharam um destaque pú-
blico. A partir da análise de Goldenberg (1995)
sobre a trajetória da atriz Leila Diniz, pode-se
argumentar que é na praia que o corpo ipane-
mense aparece sob sua forma “transgressora”,
“polêmica” ou “libertária”. Lembrando que na
década de 1970 as mulheres grávidas evitavam
freqüentar espaços como a praia ou procuravam
disfarçar suas barrigas com trajes de banho apro-
priados, Goldenberg (1995) sustenta que a bar-
riga grávida de Leila Diniz, tornada pública em
1971, materializou e corporifi cou seus compor-
tamentos transgressores. “A barriga grávida de
Leila Diniz, exibida de biquíni nas praias de Ipa-
nema, é ainda hoje lembrada como símbolo da
liberação da mulher no Brasil...” (: 208-209).
Para compreender a crença de que Ipanema
“lançou modas” é preciso atentar para o desta-
que atribuído às personalidades desse bairro. O
material pesquisado sugere que falar de Ipane-
ma não signifi ca apenas descrever um espaço
geográfi co delimitado, mas principalmente,
lembrar de indivíduos “ousados”, “irreveren-
tes” e “polêmicos”. O bairro recebe as mes-
mas qualifi cações que são atribuídas aos seus
freqüentadores e habitantes, o que faz pensar
em uma espécie de “contágio” que se estabelece
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: X |
entre o espaço e os indivíduos e vice-versa. O
ipanemense teria a capacidade de “contagiar” o
bairro, ao mesmo tempo em que é contagiado
pelas características desse espaço.
A imprensa endossa esta associação entre
Ipanema e suas personalidades quando se refere
ao “bairro de Tom e Vinícius”, “da Garota de
Ipanema” e divulga as fotos da tanga de Gabei-
ra e da gravidez de Leila Diniz. O formato de
Ela é carioca – que se apresenta sob a proposta
de uma enciclopédia – também induz à idéia de
que cada indivíduo retratado na obra é porta-
dor de uma defi nição particular. A descrição dos
comportamentos, manias, gostos, preferências e
vontades de cada ipanemense, demonstra uma
valorização das escolhas individuais e enfatiza o
caráter autônomo de um grupo social, sobretu-
do de jovens de classes médias, que vivenciavam
de modo pioneiro no Brasil, um processo de
socialização marcadamente individualista. Ruy
Castro salienta, ainda, que a experiência com a
prática psicanalítica tornou-se recorrente entre
aqueles jovens de Ipanema na década de 1970.
Não seria incorreto afi rmar que é apenas
em sociedades que tomam o indivíduo como
um valor moral que a moda poderia despontar
como um tema possível para análise acadêmica.
A maneira como a maioria dos fi lósofos, soci-
ólogos e historiadores concebem o fenômeno
– por meio de mecanismos constantes de imita-
ção e de distinção – revela a tensão do indivíduo
moderno ocidental que oscila entre o desejo de
receber apoio e aceitação de grupos sociais e as
exigências internas e externas por criar os con-
tornos de uma individualidade singular. Esse
“dualismo de nossa existência”, como se refere
Simmel (1988), auxilia o entendimento das
sociedades metropolitanas e individualistas co-
laborando também para a compreensão da as-
sociação entre Ipanema e a idéia de moda.
Sem deixar de lembrar que o foco desta pes-
quisa é um bairro e, portanto, uma estrutura
física delimitada, é interessante observar que
as representações elaboradas pelos livros e pela
imprensa recaem, muitas vezes, sobre espaços
específi cos de Ipanema. Nem todas as ruas, casas
e esquinas recebem as mesmas qualifi cações que
são atribuídas ao bairro como um todo. Existem
localidades que recebem maior destaque por
“assumirem” o “espírito ipanemense”. É eviden-
te que os espaços emblemáticos do passado são
precisamente aqueles onde os indivíduos “criati-
vos” e “que lançam modas” se encontravam.
Além da praia, antigos botequins são lem-
brados como locais da “efervescência” cultural
ipanemense da década de 1960. No livro de
Ruy Castro, os botecos e “pés-sujos” ocupam
oito verbetes da enciclopédia: Bar Lagoa, Bo-
fetada, Calypso, Jangadeiro, Mau Cheiro, Va-
randa, Veloso e Zeppelin. Na imprensa, esses
locais aparecem como os principais pontos de
encontro de artistas brasileiros, como os mú-
sicos da Bossa Nova e os cineastas do Cinema
Novo. O Caderno Zona Sul do Jornal O Globo
diz que os artistas cariocas da década de 1960
“fi zeram nascer uma nova Ipanema a partir dos
movimentos nascidos em mesas de bar. Crias
dessa geração foram a Bossa Nova e o Cinema
Novo” (: 35). A imprensa especifi ca cada bar
ipanemense segundo seu tipo de público: “Es-
critores e jornalistas reuniam-se no Zeppelin...
músicos no Veloso... Havia também o Jangadei-
ro, reduto da Banda de Ipanema... e o pé-sujo
Mau Cheiro freqüentado pelo pessoal do Cine-
ma Novo” (Veja Rio: 14).
Assim como o Mau Cheiro é pensa-
do como o “pé-sujo” do “pessoal do Cinema
Novo”, os músicos da Bossa Nova são recor-
dados por freqüentar, principalmente, o Bar
Veloso. O signifi cado do Veloso como um dos
espaços que associam a Bossa Nova ao bairro
de Ipanema relaciona-se, em primeiro lugar, à
criação de “Garota de Ipanema”, a música mais
famosa desse estilo musical. Em decorrência do
grande êxito alcançado por Garota de Ipanema
no Brasil e no exterior – a canção está entre as
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mais executadas do mundo – a história da cria-
ção dessa música, que envolve os compositores
Tom Jobim e Vinícius de Moraes, a musa ins-
piradora Helô Pinheiro e o bar Veloso, trans-
formou-se em uma lenda do bairro, narrada
por todas as matérias analisadas:
Nenhuma canção nacional foi – e continua sen-
do – tão executada quanto “Garota de Ipane-
ma”.... A música de Tom e Vinícius, de 1962,
foi inspirada em Helô Pinheiro quando passa-
va a caminho do mar em frente ao bar Veloso
– hoje Garota de Ipanema (O Globo: 38).
Uma das mais executadas canções do mun-
do foi composta em 1962, na casa de Tom Jo-
bim. A idéia nasceu nas mesas do bar Veloso,
onde Tom e Vinícius passavam horas beberi-
cando, jogando conversa fora e observando
as mulheres, entre elas a musa Helô Pinheiro
(Veja Rio: 14).
A ligação entre o Cinema Novo e a Bossa Nova
com o bairro de Ipanema se faz pelo caráter
“vanguardista” desses dois movimentos; ambos
são entendidos como estilos artísticos que rom-
peram com os padrões estéticos e musicais tradi-
cionais. Todavia, nota-se que o vínculo da Bossa
Nova com o bairro aparece de modo ainda mais
peculiar se comparado ao do Cinema Novo.
Como a própria imprensa menciona, embora a
troca de idéias entre os cineastas brasileiros se
desenrolasse nos botecos de Ipanema, os fi lmes
desse movimento voltaram-se para cenários nada
parecidos com o bairro, como, por exemplo, o
sertão nordestino. No caso da Bossa Nova, Ipa-
nema aparece não apenas como um ponto de
encontro de seus principais representantes, mas
fi gura também como temática de suas canções
mais famosas.
A construção simbólica de Ipanema como um
bairro que “lançou moda” e que se consolidou
como vanguarda dos costumes e das manifes-
tações artísticas brasileiras edifi ca-se por uma
associação entre espaços e pessoas. O bairro
como um todo é tomado por suas partes. A
valorização da praia e dos bares demonstra que
Ipanema não era apenas o local onde os indiví-
duos se encontravam, criavam e executavam os
acontecimentos pioneiros. Mais do que isso, o
bairro é entendido como um local propício para
as inovações por servir de fonte de inspiração e
motivo de celebração para os ipanemenses.
O livro de Jaguar fornece outras evidências
de que os botequins foram importantes para
defi nir o passado de Ipanema. O autor expres-
sa essa idéia a partir da caracterização dos ipa-
nemenses, narrando histórias bem humoradas
ocorridas no espaço dos bares:
Aquela história do coelho no Jangadeiros acho
que todo mundo já conhece. Quando um ga-
roto gritou “papai, olha um coelho!” foi um alí-
vio geral. Ninguém ousava dizer que tinha um
coelho correndo entre as mesas; pensavam que
estavam tendo alucinação alcoólica (: 52).
Entre os “ipanemenhos padrões” descritos
no livro de Jaguar, quase todos são apresenta-
dos como assíduos freqüentadores de bares e
botecos, ou lembrados pelas “loucuras” come-
tidas em estados alterados de consciência, sob
o efeito de bebidas alcoólicas. O próprio autor
não se exclui dessa caracterização, desculpan-
do-se, em pelo menos dois trechos do livro,
pela sua “amnésia alcoólica” que o fez esquecer
de pessoas ou “embaralhar as lembranças”. O
estilo de vida boêmio do autor e de seus ami-
gos de Ipanema está evidenciado no capítulo
dedicado ao “ipanemense ilustre” “Carlinhos
de Oli”:
Nunca marcamos encontro, mas durante anos a
gente se esbarrava na ronda dos bares... chegáva-
mos em horários diferentes mas amiúde éramos os
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últimos a sair. Só íamos embora quando os garçons
começavam a jogar baldes d’água nos nossos sapa-
tos. Numa dessas madrugadas, no Degrau, estáva-
mos tomando a saideira em pé porque as cadeiras
já estavam empilhadas em cima da mesa. Carli-
nhos pagou a conta com um cheque que assinou
contra a parede. Teve um ataque de fúria quando o
cheque foi devolvido; a assinatura “José Carlos de
Oli” não conferia. O “veira” restante estava escrito
na parede (: 31-32).
O trecho acima poderia representar uma des-
continuidade nas representações sobre o bairro
de Ipanema, já que o bar mencionado locali-
za-se no Leblon. Contudo, Jaguar insiste que,
embora o seu grupo freqüentasse outros locais
da cidade, inclusive os bares da Lapa, Leblon e
Copacabana, o “clima” que emprestavam a esses
ambientes era marcadamente “ipanemense”:
As festas que Albino e eu dávamos na Estudan-
tina Musical, na praça Tiradentes, no Silvestre,
em Santa Teresa, no Elite, na Praça da Repúbli-
ca, e na Banda Portugal, na Presidente Vargas,
eram festas ipanemenses... A turma de Ipanema
aprontava no Degrau (Leblon)... no Alfredão
(Lido), no Bar Brasil (Lapa), na Gôndola, Ka-
takombe e Galeria Dezon (Copacabana)... e até
em Petrópolis (: 17).
Com base nessa idéia de Jaguar, pode-se pen-
sar que a categoria “Ipanema”, pensada como
um adjetivo que qualifi ca pessoas, lugares e com-
portamentos, não precisa estar necessariamente
vinculada ao espaço físico do bairro. Da mesma
forma, “ipanemense” ou “ipanemenho” são iden-
tidades utilizadas para designar pessoas que não
têm, necessariamente, um vínculo direto com os
limites territoriais de Ipanema. Morar no bairro,
por exemplo, não é uma condição necessária, nem
tampouco sufi ciente, para que um indivíduo as-
suma essa identidade. De modo análogo, “ipane-
menses típicos” podem ser habitantes de outras
localidades, como é o caso do próprio Jaguar:
Nós, ipanemenses dos anos 60, estávamos nos
lixando para os limites geográfi cos do bairro.
Eu mesmo, enchendo a boca falando em “nós,
ipanemenses”, morava em Copacabana.... Havia
uma espécie de imperialismo ipanemense. Como
grileiros, invadíamos a cidade e até o estado do
Rio (: 17).
Na obra de Ruy Castro essa idéia também
é marcante já que nem todas as personalidades
que aparecem em seu livro foram moradoras
de Ipanema. Exemplos paradigmáticos da “au-
tonomia” que esse conjunto de representações
apresenta diante das fronteiras do bairro são os
artistas internacionais que aparecem na enci-
clopédia desse autor.
Um verbete interessante é o de Isadora Dun-
can, que esteve de passagem pelo Rio de Janeiro,
em 1915, na seqüência de uma turnê mundial.
Percebe-se que o que explica a presença dessa
dançarina na “enciclopédia de Ipanema” não é
somente o fato da artista ter conhecido a praia
do Arpoador durante sua estadia na cidade, mas
a percepção de que seu “perfi l” assemelha-se ao
da típica mulher ipanemense, defendido por
Ruy Castro. O autor descreve Isadora Duncan
como “uma modernista radical, na dança e no
comportamento: escolhia os homens que queria
como amantes, tinha fi lhos com eles, dispensa-
va-os de casar e aonde fosse, arrastava séquitos
de todos os sexos” (: 174). Aqui, o bairro é as-
sociado não ao imaginário “boêmio”, mas às
noções de “ousadia” e “liberdade”, que também
são empregadas na descrição de quase todas as
mulheres da enciclopédia. A percepção de que
as ipanemenses teriam uma inclinação para
romper com os papéis de gênero convencional-
mente prescritos aparece no seguinte trecho:
As mulheres de Ipanema tinham desprezo por
conceitos como virgindade, casamento burguês,
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fritar bolinhos, monogamia e maridinho-prove-
dor-do-lar. Elas estudavam, trabalhavam, mo-
ravam sozinhas, namoravam quem quisessem
e não davam satisfações. Nada que fi zessem era
chocante em Ipanema (: 210).
Ao qualifi car como “ipanemenses” a ameri-
cana Isadora Duncan e as festas na Praça Tira-
dentes e em Santa Tereza, Ruy Castro e Jaguar
sugerem que os aspectos simbólicos atribuídos à
Ipanema transcendem os limites territoriais do
bairro. Ao contrário do que pode parecer, esse
aspecto somente comprova a importância do
espaço para a criação de classifi cações sociais.
Como sugeriu Mauss (1974) – ao pesquisar a
sociedade esquimó – e Halbwachs (1990) – ao
refl etir sobre o tema da memória – o espaço é
uma categoria de pensamento que estrutura re-
presentações e práticas sociais. Assim, embora
o imaginário sobre Ipanema seja sólido o sufi -
ciente a ponto de se desligar das fronteiras do
bairro, é somente em referência àquele espaço
que esse conjunto de representações e de me-
mórias se consolida, adquirindo sentido.
São muitas as representações evocadas pela
palavra “Ipanema”, podendo designar tanto
estilos de vida “livres”, “transgressores” e “mo-
dernos” quanto “boêmios”, “criativos” e “infor-
mais”. De uma maneira ou de outra, “Ipanema”
é uma categoria repleta de signifi cados, e vale
a pena pensar que, se por um lado, essas ela-
borações são utilizadas para enaltecer o bairro,
por outro, elas também podem assumir valores
negativos e transformar a identidade “ipane-
mense” em uma categoria de acusação.
Para compreender de que modo “Ipanema”
simbolizou um rótulo negativo é interessante
buscar alguns emblemas capazes de traduzir
aquilo que se considera como o “espírito” do
bairro em épocas passadas. Dentre todas as per-
sonalidades, acontecimentos e lugares recor-
rentemente citados nos livros e na imprensa,
acredito que a atriz Leila Diniz e o jornal O
Pasquim podem ser “bons para pensar” um tipo
de representação atribuído à Ipanema contra o
qual voltaram-se alguns discursos acusatórios.
A associação entre Leila Diniz e o passado
de Ipanema é evidente. A atriz integrava a “tur-
ma de Ipanema” de que falam Jaguar e Carlos
Leonam, e na enciclopédia de Ruy Castro sua
descrição possui um número de páginas supe-
rior ao da grande maioria dos demais verbetes.
A imprensa também sustenta que “poucas mu-
lheres encarnaram tão bem o espírito de Ipa-
nema. Bem-humorada, curiosa, transgressora,
Leila Diniz foi a grande musa do bairro.” (Veja Rio: 13). Na célebre entrevista ao jornal O Pas-quim, comenta Goldenberg (1995), Leila Di-
niz transgrediu as regras de linguagem, negou
os principais valores do campo artístico afi r-
mando que escolhia o trabalho pela “patota” e
pela diversão e mostrou viver sua sexualidade
de forma livre e intensa. A fotografi a de sua
gravidez de biquíni amplamente divulgada pela
imprensa da época (e de hoje também) simbo-
lizou a transgressão em relação aos usos do cor-
po feminino, além de trazer para a polêmica a
rejeição da atriz pelo casamento convencional
e pelos papéis tradicionais de “ser mulher”. As-
sim, se a fi gura de Leila Diniz é apropriada pe-
los meios de comunicação para exemplifi car o
“tipo ideal” ipanemense, isso se deve, em gran-
de medida, pelo fato de a atriz ter demonstrado
publicamente sua recusa a uma série de valores
predominantes na sociedade brasileira das dé-
cadas de 1960 e 1970.
A partir das acusações que recaíram sobre os
comportamentos dessa atriz, é possível pensar
sobre o modo como a identidade “ipanemen-
se” foi vivenciada como um rótulo negativo. O
trabalho de Goldenberg (1995) mostra que as
acusações de desvio variam conforme o grupo
que cria o rótulo. Enquanto Leila foi chamada
de “puta” e de “subversiva” pela “direita”, a “es-
querda” e as feministas da época acusavam-na
de ser “alienada”, “superfi cial” e “porra-louca”.
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Outro ícone do passado de Ipanema capaz
de colaborar para o entendimento das acusações
de desvio é o jornal O Pasquim. Vale dizer que os
três autores aqui analisados – Jaguar, Carlos Leo-
nam e Ruy Castro – já trabalharam ou, pelo me-
nos, colaboraram com esse semanário. Em fi ns
de 1970, nove integrantes de O Pasquim foram
presos pelo governo militar e o jornal foi man-
tido sob censura. Na enciclopédia ipanemense,
Ruy Castro defende que o jornal era “engraçado,
provocativo e desrespeitoso, mesmo quando tra-
tava de assuntos sérios” (: 281) e faz ressalvas ao
classifi cá-lo como um jornal de oposição:
Nitidamente era um jornal “de esquerda” – mas
não da esquerda ofi cial, do Partidão... ou mes-
mo da esquerda estudantil, maoísta, que já co-
meçara a assaltar bancos e a fazer caixa para a
luta armada. Era uma esquerda de humoristas,
mais para festiva, tipo Ipanema, que os militares
ainda não levavam a sério (: 280).
Era o apogeu da Esquerda festiva, da qual o Pas-
quim era um alegre porta-voz, e do mito de Ipane-
ma, de que ele foi o grande estimulador (: 282).
No livro Os degraus de Ipanema, Carlos Le-
onam mostra que as críticas dirigidas aos ipa-
nemenses eram uma preocupação para Jaguar,
fundador d’O Pasquim, nas primeiras tiragens
do jornal. Em resposta ao pedido de Carlos
Leonam para colaborar com o tablóide, Jaguar
teria advertido: “queremos fazer um jornal que não seja rotulado de ipanemenho” (: 218). Se-
gundo Braga (1991: 193), uma acusação fre-
qüente que se fez a O Pasquim é que, apesar
de crítico e politicamente avançado, o jornal
era machista. De acordo com o autor, embora
O Pasquim abrisse espaço para artigos escritos
por colaboradoras que participavam das lutas
da mulher, ele também ironizava as feministas
mais engajadas em algumas frases de capa como
“Pasquim – um jornal ao lado da mulher. E se
for o caso, sobre e sob”; “Pasquim – Um jornal
por dentro das feministas” ou “Desculpe Dona
Betty [Friedan], mas nós vamos dar cobertura
às furadoras da greve do sexo”.
Se Ipanema representava, de um lado, uma
“ameaça” ao governo militar por ter sido, se-
gundo Ruy Castro, “um reduto permanente
de oposição que combateu ou criticou todos
os governos dos últimos sessenta anos” (: 11),
muitas acusações dirigiam-se, por outro, à pos-
tura excessivamente “descontraída” e à falta
de compromisso e seriedade dos ipanemenses
frente às questões mais “importantes” do país.
Talvez seja em referência a esses aspectos que o
autor comenta a condenação da cantora Nara
Leão à “alienação de Ipanema” (: 59).
As acusações dirigidas a O Pasquim e à atriz
Leila Diniz variaram conforme grupos sociais
distintos. De um lado, sofreram perseguições
por representarem uma ameaça à ideologia do
governo militar; eram considerados “perigosos”
pelos segmentos mais conservadores da socie-
dade brasileira da década de 1960. De outro,
aos olhos dos militantes políticos de oposição
ou das lutas feministas, esses ícones de Ipanema
simbolizavam o “desbunde”, a falta de serieda-
de e a alienação. Sob esse aspecto, os ipane-
menses típicos ocupavam uma posição peculiar
em um sistema de rotulação e de acusação. A
ameaça apresentada por esses jovens resultava
de uma condição que oscila entre pólos anta-
gônicos, como o de “subversivo”, de um lado, e
o de “alienado”, de outro. Estes exemplos mos-
tram de forma paradigmática a idéia de Becker
(1971) segundo a qual não existem condutas
essencialmente desviantes, mas diferentes ma-
neiras de se reagir a elas. Para o autor, o desvio
não é criado por aquele que o realiza mas pelos
grupos que o classifi cam como desviante.
A Ipanema do presente
Os autores aqui investigados sugerem que
Ipanema não é mais como antes pois os locais
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e acontecimentos mais representativos de suas
memórias, como os bares, a praia e a Banda
de Ipanema perderam o seu caráter distintivo e
“autêntico”. Sob o ponto de vista de Jaguar e de
Carlos Leonam, Ipanema é “aquela Ipanema”,
ou seja, o bairro que marcou os “anos glorio-
sos” de sua geração. Já o material de imprensa,
embora também celebre o passado de Ipane-
ma, apresenta uma versão mais positiva sobre
o bairro. Ipanema teria adquirido, segundo os
jornais e revistas, novos atributos igualmente
valorizados. Os maiores responsáveis por em-
prestar um novo caráter ao bairro teriam sido
os serviços de alto luxo inaugurados nos últi-
mos anos em Ipanema. Esta idéia pode ser vista
nos três suplementos pesquisados:
Tudo está muito distante da velha Feira Hippie
que marcou os anos loucos do bairro. O comér-
cio sofi sticou-se para atender uma rica clientela
de várias partes do mundo....Ipanema se profi s-
sionalizou... A maioria dos velhos casarões do
bairro já não existe mais. Eles deram lugar a
hotéis de luxo, edifícios comerciais modernos e
inteligentes ou a condomínios residenciais sofi s-
ticados (Jornal do Brasil: 4).
Além de uma volta ao passado, este especial
do Globo-zona sul revela que a história do bair-
ro, da qual fazem parte Tom Jobim e Vinícius de
Moraes, continua sendo escrita, hoje, por em-
presários da moda que, sediados em Ipanema,
exportam seu estilo de vida (O Globo: 16).
Nas últimas décadas, enquanto os saudosistas la-
mentavam o fi m do agito cultural que marcou o
bairro dos anos 40 aos 70, estilistas, designers e
restaurateurs foram, aos poucos, mostrando mais
uma vocação de Ipanema... o bairro hoje é o mais
luxuoso shopping a céu aberto da cidade. É tam-
bém praia de modismos e corpos esculturais, mesa
de inovações gastronômicas, vitrine de roupas e
acessórios impecáveis (Veja Rio: 11).
A Ipanema atual é retratada pela impren-
sa por meio das categorias “luxo”, “charme” e
“sofi sticação”. Essas noções ganham contornos
mais específi cos quando se observam quais são
as localidades percebidas como “luxuosas” e
“sofi sticadas”. O Caderno H do Jornal do Bra-sil, por exemplo, fundamenta o “glamour” de
Ipanema quando ressalta que no bairro “es-
tão reunidas as joalherias mais sofi sticadas do
mundo como Amsterdam Sauer, H. Stern,
Mont Blanc, Cartier...” (: 4). Os restaurantes,
as livrarias e algumas lojas também aparecem
como exemplos do caráter “moderno” e “re-
quintado” da região. A importância conferida a
esse novo comércio para a nova feição do bairro
se manifesta através da freqüência com que os
proprietários ou representantes desses locais são
solicitados pela imprensa. As matérias abrem
espaço para os indivíduos dessa categoria justi-
fi carem suas escolhas por Ipanema, e eles argu-
mentam tratar-se de um local estratégico:
‘Hoje Ipanema é fundamental para projetar uma
marca no país e internacionalmente. Como a
Rua Oscar Freire em São Paulo’, explica o esti-
lista Tufi Duek, que inaugura na terça uma me-
galoja da sua Forum na Praça Nossa Senhora da
Paz (Veja Rio: 14).
O prestígio conquistado por esse grupo en-
volvido com o novo comércio do bairro é tal
que eles são solicitados não apenas para discu-
tirem o caráter rentável ou promissor de Ipane-
ma, mas também para revelarem suas opiniões
pessoais sobre o bairro:
‘Minha mulher está sempre descobrindo coisas
fantásticas por aqui’, conta Rui Campos, o Rui
da Livraria da Travessa.... ‘A gastronomia é hoje,
sem dúvida, um dos trunfos de Ipanema’ diz
Angela Hall, gerente da Louis Vuitton e mora-
dora do bairro... ‘É um bairro cheio de vida’,
afi rma a arquiteta Bel Lobo, que deu forma a
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vários restaurantes e lojas da região... (Veja Rio:
15-16).
Não é difícil imaginar que a imprensa de-
monstre outros interesses – para além da co-
memoração do aniversário de 110 anos – para
elaborar uma imagem positiva sobre Ipanema.
Seria ingênuo desconsiderar os interesses econô-
micos dos meios de comunicação nos empresá-
rios atuantes no bairro. Nesse sentido, é possível
pensar que muitas matérias acabam cumprindo
uma função publicitária que visa tornar mais
atrativos os serviços dos anunciantes por meio
de uma exaltação do bairro onde estes se locali-
zam. De qualquer maneira, é possível refl etir que
se o passado do bairro – conforme expressam os
livros – é elaborado por uma elite intelectual que
se coloca como protagonista das memórias do
bairro, a atualidade de Ipanema – como reve-
la a imprensa – é elaborada por uma elite co-
mercial que também se inclui com destaque nas
representações simbólicas desse bairro. Pode-se
sugerir que os critérios que tornam determina-
das pessoas “legítimas” para falar sobre Ipanema
variam segundo o recorte temporal que se pre-
tende abordar. Enquanto os portadores das “me-
mórias autênticas” ou do relato mais “confi ável”
sobre o passado são artistas e intelectuais, a hie-rarquia de credibilidade (Becker, 1977) se trans-
forma quando o tema é a atualidade, em que os
indivíduos que ganham maior legitimidade são
os representantes do comércio de luxo.
Dentre os profi ssionais ligados ao campo da
moda e da gastronomia, há dois indivíduos que
merecem atenção por receberem destaque nos
três suplementos analisados. São eles, Oskar
Metsavaht e Alexandre Accioly. O primeiro
é proprietário da cadeia de lojas Osklen, gri-
fe que vende roupas para um público jovem
de classe média/alta. Já o segundo é sócio de
quatro restaurantes de elevado padrão relativa-
mente recentes no bairro. Ambos são descritos
como fortes investidores na região:
Ipanema fi rma-se como endereço predileto
das grifes e atrai novos investidores. Entre eles,
Oskar Metsavaht, dono da Osklen há 15 anos,
que há apenas dois abriu a primeira loja no lo-
cal: – “Ipanema foi o bairro que escolhi para fi n-
car a primeira loja internacional da Osklen...”
(O Globo: 18).
Alexandre Accioly, capa deste H, acredita em
Ipanema. Ele é seguramente quem mais inves-
te no bairro nos últimos anos... Somando tudo,
são US$ 12 milhões jogados no pano verde que
hoje se tornou investir no Brasil (Jornal do Bra-sil: 11).
Não é apenas a imagem de “proprietários de
negócios” que torna curiosa a aparição desses
dois indivíduos na imprensa. Accioly e Metsa-
vaht parecem “corporifi car” um tipo de represen-
tação sobre o bairro. Nas fotografi as e em alguns
trechos presentes nessas matérias, os hábitos e as
preferências de ambos, como a prática de espor-
tes ao ar livre, são descritos por meio de uma re-
lação estreita com os espaços do bairro. A praia
de Ipanema, por exemplo, é representativa de
seus hábitos cotidianos, servindo inclusive como
o cenário de quase todas as fotografi as em que os
dois aparecem nos jornais. A relação de Accioly
com a praia surge na descrição de sua trajetória
como morador do bairro desde a infância:
Pedra do Arpoador, o point de suas tardes, onde
[Accioly] curtia o pôr-do-sol... Adulto, transfe-
riu-se para a rede de vôlei em frente ao Country,
onde dava plantão nos fi ns de semana. Das nove
até a noitinha’ (Jornal do Brasil: 11).
Esse empresário foi eleito “O garotão de Ipa-
nema”, aparecendo em uma enorme fotografi a
de capa do Caderno H. Alto, de pele bronzeada
e aparência jovial, o empresário está vestido com
camisa social, calças compridas e chinelo, sen-
tado à noite no calçadão da praia de Ipanema.
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Essa mistura de elegância com informalidade
também é transmitida na foto do interior da
matéria, onde Accioly está de trajes “sociais”, to-
mando água de coco mas com os pés descalços
na praia. O texto localizado abaixo diz: “Coco
verde, areia no pé e o privilégio de ser, desde
sempre, um garoto de Ipanema” (: 11). Outra
matéria ressalta que Accioly vive no edifício Cap
Ferrat, “supra-sumo do luxo à beira-mar, onde
não se compra um imóvel por menos de 3,5 mi-
lhões de dólares” (Veja Rio: 15).
De modo semelhante, Oskar Metsavaht
aparece no Caderno Zona Sul do jornal O Globo com a praia ao fundo, vestindo uma ca-
miseta que diz “United Kingdom of Ipanema”.
Seu depoimento é colocado em destaque abai-
xo dessa fotografi a: “Ipanema é muito privile-
giada, com uma vida cosmopolita integrada à
natureza” (: 20). Essa mesma opinião está pre-
sente na Veja Rio, que dedicou um trecho da
reportagem para a apresentação das atividades
físicas realizadas por Metsavaht em Ipanema:
“O bairro simboliza uma vida urbana integra-
da com a natureza, o que não existe em ne-
nhum lugar do mundo”, diz o estilista gaúcho
Oskar Metsavaht, que há vinte anos mora,
surfa, corre, pedala e anda de skate no bairro.
(Veja Rio: 16).
A idéia de que Ipanema é um bairro de pes-
soas “jovens”, “ricas” e “descoladas” também
está implícita na escolha de suas atuais musas.
Esse bairro está fortemente associado a uma
dimensão lúdica que se constrói por meio de
uma exaltação de elementos “naturais”. A praia,
o mar, os coqueiros e a pedra do Arpoador, por
exemplo, são símbolos que associam o bairro à
idéia de beleza. Insistindo na percepção de um
contágio entre espaço e pessoas, Ipanema é per-
cebida como um local que produz pessoas be-
las, sobretudo, mulheres. Na medida em que o
imaginário do bairro sofre transformações com
o passar dos anos, o perfi l das musas de Ipa-
nema também se modifi ca. Se Leila Diniz foi
considerada musa do bairro na década de 1960,
a imprensa atual elege a apresentadora de um
programa televisivo de esportes como um ícone
da Ipanema de hoje. Cíntia Howlett já foi eleita
“musa do verão” e é lembrada por habitar em
uma localização de prestígio em Ipanema; em
um edifício de frente para a praia do Arpoador.
Fotos ou depoimentos ligados a essa ipanemen-
se são recorrentes em matérias sobre Ipanema:
Entre os rostos manjados de Ipanema está a
apresentadora Cíntia Howlett, moradora do
Arpoador. Geração saúde, Cíntia corre no calça-
dão, nada, anda de bicicleta na ciclovia. “Minha
ginástica é Ipanema, e isso não tem preço”, ob-
serva. (Veja Rio: 16)
Assim como os emblemas masculinos an-
teriormente citados, Cíntia Howlett também
representa uma dimensão “nobre” combinada
a um estilo de vida “despojado”, “jovem” e “es-
portivo”. No suplemento da revista Veja, outras
mulheres são assim percebidas na matéria de pá-
gina dupla “Ipanema, uma jovem de 110 anos”.
Na página direita, a fotografi a revela uma mu-
lher branca, jovem, cabelos lisos, de óculos es-
curos, caminhando na calçada da Rua Visconde
de Pirajá: “A estilista Joana Saladini: compras a
pé pelas ruas do bairro” (: 11). Na outra página
há uma garota de short e biquíni na praia com
a seguinte descrição “A wakeboarder Juliana na
Praia de Ipanema: beleza no Posto 10.... corpo
moldado pelo treino de wakeboard” (: 10-13).
Segundo a matéria, as duas moças de Ipanema
“não hesitam em apontar o mesmo passatempo
para as horas vagas: bater perna de olho nas vi-
trines que se espalham pelas ruas dali” (: 13).
Assim como um único ipanemense pode
reunir as diferentes características atribuídas ao
bairro, o estilo de vida “descontraído” e “requin-
tado” também pode ser identifi cado em uma
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mesma localidade. O Caderno Zona Sul destaca
que os restaurantes com varandas e mesas na cal-
çada se multiplicaram em Ipanema nos últimos
anos e sugere que “sem perder a descontração da
cidade praiana, eles têm o típico requinte ipane-
mense”(: 45). A Veja Rio destaca o “almoço na
varanda” e a “vida saudável à beira mar” como
programas típicos de Ipanema: “além da vida
saudável à beira-mar, programa em Ipanema é o
footing pelas ruas aos sábados, compras todos os
dias, almoços na varanda do Gula Gula, cinemi-
nha no Estação” (Veja Rio: 16).
A categoria “Ipanema”, tal como é transmi-
tida pelos jornais e revistas, parece representar
algo mais do que o espaço geográfi co de um
bairro. Ela denota, acima de tudo, um estilo
de vida. A descrição de personalidades como
Oscar Metsavaht, Alexandre Accioly e Cíntia
Howlett é apenas uma maneira de expressar
algumas das representações associadas ao bair-
ro, como a de um lugar informal, com belezas
naturais, propício para os esportes e, ao mesmo
tempo, urbano, de elevado padrão e sofi stica-
do. Essa junção de atributos se transfere para
os indivíduos do bairro. Ipanema teria produ-
zido pessoas que assumem um estilo de vida
“esportivo” e “espontâneo” sem deixarem de ser
“elegantes” e “cosmopolitas”.
Para tornar essas representações mais con-
cretas, vale mencionar a estratégia do estilista
Oskar Metsavaht em explorar comercialmen-
te esse imaginário através da criação de uma
identidade “ipanemense” para sua grife de
roupas Osklen. Vale lembrar que mesmo an-
tes da instalação da Osklen de Ipanema, a
marca, voltada para um público de elite, já
era identifi cada com as idéias de valores como
“juventude”, “esportes” e “natureza”. Com a
chegada à Ipanema, a estratégia de marketing
parece ter sido a de reforçar esses conceitos
associando a Osklen a um estilo de vida típico
“de Ipanema”:
Ipanema é admirada no mundo inteiro e tem
uma condição privilegiada com uma vida urba-
na cosmopolita integrada à natureza – diz Met-
savaht, que estampou “Arpoador” e “Posto 9”
em blusas da última coleção da Osklen e criou a
campanha “United Kingdom of Ipanema”, que
dá a dimensão do quanto ele gosta do bairro (O Globo: 20).
Através dessa “jogada” publicitária nota-se
que o bairro de Ipanema também se apresenta
sob a forma de um bem de consumo. O que
se vende na Osklen não são simples camisetas,
mas um estilo de vida “ipanemense” que é so-
cialmente valorizado.
Dois bairros, duas moralidades
A partir da análise sobre os livros e as matérias
de imprensa observou-se que, mais do que um
território espacial, Ipanema é pensada como um
adjetivo capaz de qualifi car pessoas, comporta-
mentos e estilos de vida. De uma visão de mun-
do orientada para a vanguarda comportamental,
a criatividade artística e a boemia, o bairro passou
a simbolizar uma dimensão “de elite”, inclinada
para o consumo e para as atividades físicas.
Notou-se, portanto, a elaboração de duas
Ipanemas; uma do passado e outra do presen-
te. Enquanto a primeira é caracterizada como
um bairro “transgressor”, que “lançou modas”,
a Ipanema atual é um local “sofi sticado” e “des-
colado”. Essas duas construções simbólicas se
elaboram por meio de uma associação entre
espaços e indivíduos, evidenciando-se através
de uma mudança nas personalidades e nos lo-
cais tidos como emblemáticos do bairro. Se os
ipanemenses do passado são artistas, cineastas e
músicos, os de hoje são empresários, estilistas e
esportistas. Enquanto os bares representaram o
“espírito ipanemense” do passado, as joalherias,
os restaurantes e as grifes de roupa defi nem o
“espírito atual” desse bairro.
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Para ilustrar essas variações de imaginário é
interessante refl etir sobre o perfi l das musas e
sua relação com o principal espaço do bairro;
a praia. Foi na praia que a musa de Ipanema
na década de 1960 – Leila Diniz – fi cou pu-
blicamente conhecida por seu comportamen-
to “transgressor”. As musas atuais de Ipanema
percebem a praia como o local da “ginástica” e
dos “esportes”. Se a praia “de antes” simbolizou
o espaço da “transgressão” às normas, onde o
corpo ipanemense se apresentou de modo “po-
lêmico” e “livre”, a praia de hoje é o local das
atividades físicas, da moralidade da boa forma
onde o corpo valorizado é “trabalhado”, “sau-
dável” ou “sarado” (Goldenberg 2002).
Esta pesquisa permitiu pensar sobre algumas
mudanças sociais dos últimos quarenta anos na
medida em que os valores utilizados para enalte-
cer um bairro emblemático da cidade do Rio de
Janeiro tornaram-se quase antagônicos. Embora
permaneça a noção de um bairro lúdico, “bonito
por natureza” e propício para um estilo de vida
“descontraído” e “informal”, pode-se pensar em
uma mudança de atitude frente às normas so-
cialmente prescritas. O signifi cado de Ipanema
como um bairro peculiar da cidade do Rio de
Janeiro na década de 1960 foi construído por
uma exaltação de aspectos contestadores e trans-
gressores, como a liberação do corpo e da sexua-
lidade, a arte de vanguarda e a boemia. De modo
contrário, esse bairro é atualmente celebrado por
representar uma conformidade com os valores
predominantes, como a produtividade, a rique-
za, o consumo, o corpo saudável e estético.
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“O garotão de Ipanema – Ipanema 110 anos, edição espe-
cial”. 25.abr.2004. Caderno H. Jornal do Brasil.“Ipanema 110 anos: Histórias e personagens do bairro
mais charmoso da cidade”. 26 abr. 2004-02 maio
2004. Veja Rio.
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resumo Este artigo aborda a construção do
imaginário de uma ilha considerada “encantada”: a
Ilha dos Lençóis, no Estado do Maranhão. Apresen-
ta uma simbologia sobre os ilhéus, principalmente
acerca daqueles singularizados por marcas corporais,
os albinos. Enfatiza a compreensão explicativa das
práticas discursivas do “universo de fora” (sobretu-
do matérias veiculadas na imprensa de uma manei-
ra geral) e do “universo de dentro” (representações
nativas) sobre duas denominações que sintetizam o
imaginário sobre os albinos da Ilha dos Lençóis: “fi -
lhos da Lua” e “fi lhos do Rei Sebastião”.
palavras-chave imaginário, práticas discur-
sivas, albinos, ilha encantada.
“Filhos do Rei Sebastião”, “Filhos da Lua”: construções simbólicas sobre os nativos da Ilha dos Lençóis
MADIAN DE JESUS FRAZÃO PEREIRA
Mestre em Antropologia Social pelo PPGAS/
UFPA e doutoranda em Sociologia pelo PPGS/
UFPB.
Artigo aceito para publicação em 28/09/05
abstract Th is article approaches the construc-
tion of the imaginary of an island considered “en-
chanted”: the “Ilha dos Lençóis” (Lençois Island),
in the State of Maranhão. It presents a symbology
about the islanders, principally about those indivi-
dulized by body birthmarks, the albinos. It empha-
sizes the explanatory understanding of the discursive
practices of the “outside universe” (above all matters
transmitted in the press in a general way) and of the
“inside universe” (native representations) on two
denominations that synthesize the imaginary on the
albinos of the “Ilha dos Lençóis”: “children of the
Moon” and “children of King Sebastião”.
keywords imaginary, discursive practices, al-
binos, enchanted island.
Na rota de lugares que incitam o imaginário
sobre paraísos insulares, com uma verve que enal-
tece a “vida natural” e elementos “fantásticos”,
insere-se a Ilha dos Lençóis, situada no litoral
norte do Estado do Maranhão. Pertencente ao
município de Cururupu, numa área denomina-
da Reentrâncias Maranhenses, a Ilha dos Lençóis
é singular e merece uma apreciação no intercru-
zamento de suas características naturais, culturais
e simbólicas. Digamos que uma pluralidade sim-
bólica reveste a Ilha, considerada “encantada”, en-
quanto morada do “encantado” Rei Sebastião, e
que abriga uma comunidade de pescadores, com
cerca de 450 habitantes, que pode ser considera-
da sui generis pela presença signifi cativa de quase
3% de albinos em sua população, onde todos os
nativos, albinos e não-albinos, autodenominam-
se como “fi lhos do Rei Sebastião”.
Os nativos da Ilha dos Lençóis afetados
pelo albinismo – uma anomalia congênita ca-
racterizada principalmente pela ausência total
ou parcial da melanina, do pigmento da pele
– incitam uma simbologia muito rica a partir
de suas marcas corporais e do espaço onde seus
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símbolos estão alocados – numa ilha “encanta-
da”, “isolada”1 e “misteriosa”.
A Ilha dos Lençóis é considerada uma ilha
encantada, enquanto lugar privilegiado para mo-
rada de El Rei Dom Sebastião, fi gura histórica,
morto em batalha contra os mouros, nos campos
de Alcácer-Quibir, na África, no ano de 1578.
Segundo a crença messiânica, difundida em vá-
rias partes do Brasil, Dom Sebastião, o jovem rei
de Portugal, não morrera, ele havia se encantado
com todo o seu reinado, por sortilégio dos mou-
ros, numa ilha (provavelmente marcada por mui-
tas dunas à semelhança do deserto marroquino
onde ocorrera a batalha), e que um dia ele há de
emergir do fundo do mar, onde está sediado seu
palácio de riquezas, para instaurar seu Império e
distribuir bens materiais para os seus adeptos.
Crenças e mitogeografi a permeiam a cons-
trução de um imaginário fantástico sobre a Ilha
dos Lençóis. Segundo Pedro Braga (2001: 32):
Os primeiros portugueses que se instalaram na-
quela região, provavelmente escolheram as praias
dos Lençóis para habitat do Rei pelo fato de suas
dunas sugerirem alguma semelhança com a pai-
sagem do Norte da África, onde desaparecera
Dom Sebastião; ou talvez porque era presumi-
velmente a Ilha Afortunada a que se referem os
textos antigos.2
1. A Ilha dos Lençóis, caracterizada pelo seu imponente
conjunto de dunas, é uma ilha déltica (fl uviomarinha),
localizada no arquipélago de Maiaú, a 160 km noroes-
te da capital do Maranhão, São Luís. O acesso à ilha é
muito difícil, somente de barco ou de avião mono ou
bimotor. A viagem de barco dura, em média, 12 horas
a partir de São Luís e 7 horas a partir de Cururupu.
Essa difi culdade de acesso é signifi cativa na constru-
ção do imaginário sobre os mistérios de Lençóis. Uma
“ilha encantada” não é para ser conhecida facilmente;
as difi culdades fazem parte de um processo de desafi o
imposto aos aventureiros, àqueles que querem olhar o
“Reino Encantado de Dom Sebastião”.
2. Poderia ser considerada uma das “ilhas afortunadas”
(Insulae Fortunae), na medida em que se localiza no
Oceano Atlântico, à esquerda da Mauritânia, como
O sebastianismo foi transplantado para o
Brasil sob várias vertentes, tais como: a dos mo-
vimentos messiânicos ocorridos no século XIX,
com caráter de fanatismo, em torno de líderes
carismáticos que se diziam reis e que pregavam
o desencantamento de Dom Sebastião à cus-
ta de muito sangue, como nos movimentos da
Cidade do Paraíso Terrestre (Monte Rodeador
– PE), da Pedra Bonita (Vila Bela – PE) e do
Império de Belo Monte (Canudos – BA) (cf.
Queiroz 1976; Ribeiro 1982); e a vertente da
Encantaria. Interessa-nos aqui destacar esta
última vertente, na qual o gentil ou fi dalgo
Dom Sebastião surge como Rei Sebastião, uma
entidade de cultos afro-brasileiros identifi ca-
da como “encantado”, categoria – retirada da
Pajelança amazônica – utilizada para se referir
àqueles que viveram na Terra há muitos anos,
“venceram a morte” e continuam “vivos” nas
“encantarias”: “...que geralmente são conce-
bidas como mundos situados no fundo das
águas, dentro das árvores, ou abaixo da Terra
(em outro planeta).” (Ferretti 2000: 108).
Segundo Maués & Villacorta (2001: 19),
o Rei Sebastião “...habita em várias praias de
ilhas existentes ao longo do litoral entre Belém
e São Luís...”. No Pará, na região do Salgado,
as “moradas” que se destacam são a da ilha de
Maiandeua (no município de Maracanã) e a da
ilha de Fortaleza (no município de São João de
Pirabas). No Maranhão, muitos pescadores e
adeptos do Tambor de Mina – religião afro-
brasileira predominante neste Estado – não
têm dúvidas de que o “encante” mais forte está
na “Praia do Lençol”.3
sugeria Santo Isidoro de Sevilha, a respeito da exis-
tência dessas ilhas, consideradas “ditosas”, que não
deveriam ser confundidas com o paraíso bíblico. (Cf.
Holanda 1994: 159).
3. “Praia do Lençol” ou “Praia de Lençóis” são os termos
mais populares, utilizados sobretudo pelos ilhéus, re-
ferentes tanto ao povoado quanto à parte desabitada
da ilha.
cadernos de campo • n. 13 • 2005
“ ”, “ ” |
O imaginário sobre a Ilha dos Lençóis é
muito rico. Seja no discurso de jornalistas, de
literatos, de compositores,4 seja no discurso de
pescadores, de adeptos das religiões afro-brasi-
leiras, muito já se comentou sobre o “encante”
da ilha: relatando-se que muitas pessoas de lá
já viram El Rei Dom Sebastião em sua forma
humana, ou em forma de um animal, mais pre-
cisamente de um touro negro; que na praia é
possível encontrar-se objetos de ouro, mas que
ninguém deve ousar em retirá-los de lá, pois os
mesmos pertencem às riquezas do Rei Sebastião;
e que a conhecida toada de caráter messiânico
– “Rei, ê Rei, Rei Sebastião, quem desencantar Lençóis, vai abaixo o Maranhão” – aponta que
no momento em que Rei Sebastião se desencan-
tar, o seu reinado emergirá e a ilha de São Luís,
capital do Maranhão, submergirá. Além de tudo
isso, o alto índice de albinismo verifi cado na
“ilha encantada” suscitou diversas interpretações
imaginárias sobre a comunidade local.
O índice de albinismo na ilha é considera-
do alto, já que é bastante superior à freqüência
normal que é de 0,0005% numa dada popu-
lação. O alto índice de albinismo chamou a
atenção de pesquisadores da área médica que,
patrocinados pela Organização Mundial da
Saúde (OMS) e outras instituições, foram até
a localidade, em 1972. A explicação científi -
ca sobre o albinismo local foi dada por uma
junta de médicos (oftalmologista, dermatolo-
gista, cardiologista e especialista em genética
celular), interessada em estudar esta anomalia
genética numa amostragem isolada. A expedi-
ção foi liderada pelo geneticista Newton Freire-
Maia, da Universidade Federal do Paraná, que,
4. O patrimônio simbólico-cultural dessa comunidade
é de certa forma conhecido, pois por várias vezes foi
enredo de escola de samba, roteiro de peças teatrais,
temas literários etc.; no entanto, não é reconhecido,
pois a comunidade continua desassistida, seja pelo
poder público, seja por aqueles que se apropriam de
sua imagem.
através do levantamento de uma genealogia de
seis gerações (com quase 400 pessoas), cons-
tatou a presença “...de uma forma muitíssi-
mo rara de albinismo” em 18 pessoas (dentre
estas, 3 falecidas e 5 não residiam na ilha), o
que corresponde a uma freqüência aproxima-
da de 3% (Freire-Maia 1973: 13), decorrente
de casamentos consangüíneos entre pessoas
descendentes de Sebastiana Silva, fi lha de um
português e de uma albina, que chegou à Ilha
em 1900 – data em que, segundo fontes orais,
o povoamento da Ilha é iniciado.
Embora haja uma explicação científi ca sobre
a presença de uma concentração de albinos (de
origem branca – descendentes de portugueses)
bastante signifi cativa numa amostragem isolada,
o caráter de “mistério” que envolve essas pesso-
as ainda é muito grande e refl ete um conjunto
de representações dadas pelos moradores locais,
albinos e não-albinos (na defi nição nativa, res-
pectivamente, “brancos” – ou “louros” – e “mo-
renos” – que podem ser considerados como
caboclos, descendentes, em grande maioria, de
índios e brancos),5 pela religiosidade local (in-
tercruzamento da Cura/Pajelança e do Tambor
de Mina), e pela imprensa que de uma maneira
geral vem veiculando matérias sobre a “excentri-
cidade” da Ilha dos Lençóis e dos albinos que ali
vivem.
Em meio a tantos dados instigantes, lan-
cei-me a fazer uma pesquisa antropológica que
resultou na minha dissertação de Mestrado,
intitulada “O Imaginário Fantástico da Ilha dos Lençóis: estudo sobre a construção da identidade
5. A população de Lençóis, bem como a de outras praias e
ilhas do litoral cururupuense, caracteriza-se principal-
mente pela presença de pessoas de pele clara, indício
da fraca penetração do contingente populacional negro
expressivo nas áreas urbana e rural (campo) do municí-
pio de Cururupu. Tal contingente negro é representa-
do por descendentes de africanos trazidos, sobretudo,
da Costa D’Ouro e do Daomé (hoje, Benin) para ser-
virem de mão-de-obra escrava na fabricação do açúcar
e da farinha de mandioca, nos engenhos da região.
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albina numa ilha maranhense” (Pereira 2000),
por meio da qual busquei analisar as práticas
discursivas do “universo de fora” (sobretudo ma-
térias veiculadas na imprensa, de uma maneira
geral, e fragmentos encontrados na literatura,
nas artes e nos registros de visitantes da ilha) e
do “universo de dentro”, através de pesquisa de
campo, apreendendo representações nativas, no
sentido de perceber a construção do imaginário
possibilitada por tais discursos e representações.
Colocando em evidência pontos dessa
empreitada, através do intercruzamento das
temáticas sobre corpo, imaginário e encanta-
ria sebastianista, o presente artigo apresenta,
de forma mais detida, uma parte do material
proposto na dissertação, em que procuro es-
miuçar as duas denominações que são funda-
mentais na construção da comunidade da Ilha
dos Lençóis: 1) “os Filhos da Lua” – criação de
fora, sobretudo de repórteres, a qual os ilhéus
(albinos e não-albinos) rejeitam, posto que a
consideram numa concepção negativa, que os
estereotipa numa imagem de anormalidade;
2) “os Filhos do Rei Sebastião” – vertente da
Encantaria, aceita por eles, na qual se pensam
coletivamente nessa descendência mitológi-
ca cujo imaginário marca uma fi liação com o
“dono da ilha”.
O discurso de fora sobre os “Filhos da Lua”
Como ilha encantada, cheia de mistérios,
ainda considerada isolada, criou-se um imagi-
nário sobre o desconhecido:
Conta-se que lá vive um bando de gente bran-
ca, de pele e cabelos da cor das dunas, que não
suportam a luz do sol. Cognominaram-nos de
‘Filhos da Lua’, supondo que ela os teria con-
cebido. E nas noites de luar mais intenso, essa
mesma gente saía em longas caminhadas pelas
praias (romarias), cantando hinos estranhos
numa linguagem indecifrável (Vasconcelos in Manchete 1980: 36).
A divulgação de um exotismo da Ilha dos
Lençóis e de seus habitantes – dos albinos, em es-
pecial – se dá sobremaneira pelo discurso literário
da imprensa, que ao exaltar “o natural” mantém
estereótipos sobre esses ilhéus que entranham
no imaginário dos receptores de tal discurso. A
imprensa sensacionalista, de uma maneira geral,
utiliza a expressão “os Filhos da Lua” para se refe-
rir aos albinos da Ilha dos Lençóis, com o intuito
de “vender” uma imagem de exotismo.
O levantamento desse aspecto discursivo,
que apresento em minha pesquisa,6 consiste na
apreciação de um material que se pode designar
como documento de divulgação sobre a Ilha
dos Lençóis e seus habitantes. Nesse material,
estão inseridos, por exemplo, artigos de revistas
de circulação nacional, artigos disponibilizados
na internet, artigos de jornais locais, catálogos,
informativos turísticos e vídeos-documentários
transmitidos em canais televisivos.
De antemão, coloco que, dentre o material
analisado, a divulgação do imaginário sobre os
albinos é exaltada com uma reportagem da re-
vista Manchete, de 24 de maio de 1980.7 Em tal
6. Durante a elaboração da dissertação de Mestrado fi z
um levantamento, sobremaneira, de matérias veicula-
das na imprensa que discorrem sobre a excentricidade
da Ilha dos Lençóis. Atualmente, estou dando conti-
nuidade a esse levantamento (sem pretensões de fazê-
lo exaustivamente) na minha pesquisa de doutorado,
cujo projeto de tese intitula-se Ecoturismo e patrimônio cultural na “ilha encantada”. Nesse empreendimento,
colocam-se questões emergentes no momento em que
em que a Ilha dos Lençóis é apresentada como vitrine
num dos pólos de ecoturismo do Estado do Maranhão,
procurando identifi car o que e de que forma está sendo
exposto como atrativo turístico e em que medida os
nativos estão re-elaborando suas posições nesse novo
cenário, com vistas tanto à conservação da biodiversi-
dade local como do seu patrimônio cultural.
7. Em conversa com alguns nativos da ilha e com outras
pessoas de São Luís que tiveram acesso às primeiras
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matéria, lê-se a afi rmação de que durante muito
tempo a presença da colônia de albinos na ilha
foi fruto de lendas e histórias fantásticas, mas
que uma tentativa de desmistifi cação foi feita
quando da expedição organizada pela OMS ao
local, para estudar as características de tal albi-
nismo e a sua origem. Alguns resultados da in-
vestigação, realizada por essa expedição médica,
foram apontados na matéria jornalística. Contu-
do, o estilo de um jornalismo literário encontra-
do na matéria contribuiu para que o imaginário
sobre os albinos continuasse vivo, através de um
discurso que concebe os albinos como pessoas
arredias, desconfi adas e de difícil contato, prin-
cipalmente em relação ao assédio da imprensa.
Pela força de tais práticas de linguagem, os
albinos ainda hoje são pensados como seres arre-
dios. Uma gente estigmatizada por um discurso
que além de ter sido impresso repetidamente, é
expresso, transmitido de “boca em boca”, por
aqueles que têm um conhecimento superfi cial
ou ao menos já “ouviram falar” da Ilha dos Len-
çóis e seus mistérios. Mas se os albinos são assim
considerados, não se descarta a hipótese de que
haja uma base para que o estigma se perpetuasse;
ou seja, apreendendo-se algumas representações
nativas sobre o conteúdo dessa matéria, nota-se
que alguns albinos tornaram-se por certo tem-
po arredios numa atitude reativa ao contato que
para eles foi mal sucedido.
Entre os escritos analisados, um dos que
chama maior atenção é o do jornal Vagalu-me (jan.-fev. 1989) – suplemento cultural do
Diário Ofi cial do Estado do Maranhão – que
formulações escritas sobre os albinos da Ilha dos Len-
çóis, essa construção primeva se deu no ano de 1972
com duas reportagens: uma da revista O Cruzeiro e a
outra da revista Veja. A referência da matéria principal-
mente da revista O Cruzeiro está no discurso dos nati-
vos, como a reportagem que primeiro lançou mão da
denominação “Filhos da Lua” para se referir aos albinos
da localidade, cujo conteúdo é criticado pelos nativos
porque, segundo seus relatos, foi muito pejorativo em
relação a eles e cheio de “invenção de repórter”.
é uma compilação de várias matérias sobre a
Ilha dos Lençóis em que se percebe, de uma
maneira geral, um discurso naturalista presen-
te nos textos. Uma matéria (sem autoria) do
referido jornal apresenta o povo da Ilha como
fatalmente marcado pelo determinismo do
meio, reforçando a idéia de que tudo é pro-
visório e precário, e, ainda mais, a ressaltar o
destino a que os albinos da Ilha estão sujeitos,
devido ao envelhecimento precoce e doenças
de pele.
Para o nativo, principalmente os albinos, tudo é
provisório, precário.
Existencialistas, os seres humanos da Ilha dos
Lençóis constroem suas casas de estrutura leve,
isto é, de madeira, sobre jiraus – casas modestas,
simples, sem a expectativa da permanência, do
imóvel construído para durar.
Tem o habitante de Lençóis o instinto de que
a vida para eles é breve e não alimenta sonhos
para o futuro. Existe e aproveita o tempo pre-
sente (Vagalume 1989: 6).
Além do discurso naturalista, nota-se que
em todos os escritos há uma exaltação da beleza
fantástica do lugar, e que a maioria privilegia
o mito sebástico e os mistérios da Ilha. Senão
vejamos:
Tal qual o mito que a cerca, Lençóis, uma das
muitas ilhas das Reentrâncias Maranhenses, pa-
rece impalpável. Vista do ar, das janelas de um
velho Sêneca que a sobrevoa, é como uma pérola
luzidia em meio ao oceano, tantas e tão brancas
são as suas areias. Neste pedaço do mar ociden-
tal do Maranhão, banhado e escurecido por um
incontável número de rios a fazer meandros e
a criar mangues, ela salta aos olhos. Ilha-mito-
miragem (Rocha 1996: 78).
São miragens que despontam no desenho irre-
gular desse litoral, o mais recortado do Brasil,
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já em terras da Amazônia.[...] Ali confl uem o
bafo quente do deserto e o verde da fl oresta. Da
memória ancestral saltam fantasiosas visões que
deram origem a lendas. Numa delas aparece o
rei D. Sebastião. Em noites de lua, o monarca
derrotado pelos mouros toma a forma de um
touro negro, com uma estrela na testa. [...] Na-
vega também pelos “furos”, canais formados pe-
las águas das marés mais altas da nossa costa, que
invadem o continente e encontram os rios. [...]
A imensidão de águas serve de refeitório para
bandos de aves pernaltas de colorido averme-
lhado, símbolo dessas paragens. São os guarás.
Estamos na costa oeste do Maranhão, fronteira
com o Pará. Bem-vindos às Reentrâncias. Bem-
vindos à fl oresta dos guarás (Pavone. Disponível
em http://www.jt.estadao.com.br/suplementos/
turi/2002/01/31/turi003.htm).
O Maranhão é uma terra de alma negra. Disso
não há dúvida. As tradições africanas, trazidas
na pestilência do navio negreiro, criaram raízes
profundas na cultura regional, transformando
o Estado num pedaço de Mãe África no Brasil.
[...] Há um lugar, porém, onde o Maranhão é,
antes de tudo, branco, muito branco: na Ilha
dos Lençóis, no Arquipélago de Maiaú. Para
começar, o panorama é dominado pela palidez
monocromática de dunas sem fi m, a Morraria,
segundo os locais. Os habitantes deste lugar,
aliás, merecem destaque especial: são brancos,
branquíssimos, mais até que as próprias dunas.
De tão brancos que são, fi caram conhecidos
como os “Filhos da Lua” pelos poucos viajantes
que se aventuravam pela região (Ajl. Disponí-
vel em http://www.terra.com.br/turismo/dia-
rio/2003/03/14/).
A geografi a exótica da “ilha-mito-miragem”
fornece matéria-prima para a construção do
imaginário fantástico, dado pela perplexidade
ou deslumbramento diante do diferente, con-
tribuindo para a imaginativa popular. O que
dizer então de ilhas isoladas que oferecem praias
desertas, paisagens desconhecidas que abrigam
um povo e sua cultura quase intocados?
Se há por um lado questões sobre a natureza
do espaço, há também questões sobre as gentes
que ocupam esse espaço. O foco central conti-
nua sendo a busca desse “outro”. A busca se dá
ou como forma de exploração ou como forma
de refl exão e anseio por um “retorno” a uma
vida mais natural.8
Os nativos da Ilha dos Lençóis são apresen-
tados, pela análise que faço, ora na visão infer-
nista (principalmente pelos artigos de matérias
sensacionalistas), ora na visão edênica (princi-
palmente sob a ótica dos relatos dos visitantes e
das incipientes propagandas ecoturísticas).9 Os
8. Se os viajantes de outrora se aventuravam além-mar
em busca do éden bíblico que se acreditava perdido
em algum lugar recôndito ou de um eldorado pagão
– as “Ilhas Afortunadas” que “...se achavam perdi-
das entre as águas do oceano, quase inacessíveis aos
mortais...” (Holanda 1994: 160) – os viajantes atuais,
como os que visitam a Ilha dos Lençóis, parecem con-
tinuar envolvidos com a busca de espaços desconheci-
dos, de preferência, terras distantes e isoladas, só que
agora em busca de um outro tipo de “riqueza”: a pos-
sibilidade de encontrar um refúgio paradisíaco para
que possam se afastar dos problemas das sociedades
urbanizadas e industrializadas. A observação sobre os
viajantes é interessante para se perceber como se dá
a construção de um mercado simbólico do exotismo
que propaga a imagem da Ilha dos Lençóis no projeto
de desenvolvimento do ecoturismo na região. Nessa
construção vem à tona o mito do paraíso perdido,
através da idéia da natureza intocada (cf. Diegues
1998), o que faz crescer um consumo visual do meio
ambiente atrelado à ilusão do primitivismo.
9. Na esteira do Programa de Desenvolvimento do Eco-
turismo na Amazônia Legal (PROECOTUR), perce-
be-se que a divulgação do lugar está crescendo através
do programa de turismo do Governo do Estado do
Maranhão denominado “Plano Maior”. A Ilha dos
Lençóis faz parte do pólo ecoturístico intitulado, pelo
referido programa, de “Floresta dos Guarás”, cuja porta
de entrada é o município de Cururupu. Chamo a aten-
ção para que não se confunda a Ilha dos Lençóis com
o Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses, que se
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discursos analisados são reveladores de como as
imagens sobre a Ilha dos Lençóis são reinter-
pretadas e reapresentadas constantemente. O
imaginário em torno da Ilha é marcado por es-
sas leituras através de lentes. Tem-se uma visão
ofuscada pela rememoração dos muitos mitos
contados e pelo contato direto com a “geogra-
fi a fantástica”. São construídos, assim, discur-
sos literários, entre a fi cção e a realidade.
Ainda sobre meios de comunicação que par-
ticipam da construção do imaginário sobre os
albinos da Ilha dos Lençóis, não poderia deixar
de mencionar uma das matérias sobre o assun-
to em que fui solicitada a conceder entrevista,
como pesquisadora do universo de representa-
ções sobre os albinos da “ilha encantada”.10
A respeito da referida matéria, da revista
Seara, há uma deturpação muito grande das
informações passadas por mim ao repórter, e
que não pude revisar porque não tive acesso ao
material antes de sua publicação. E um fato a
mais a destacar: como se trata de uma revista
evangélica, sua divulgação fi ca muito restrita ao
circuito das igrejas evangélicas, em especial, da
Assembléia de Deus, ou à compra pelo sistema
de assinaturas.11
A matéria é construída por fragmentos da
minha entrevista (por três vezes são citadas fa-
las minhas) e por depoimentos de um pastor
que faz pesquisa sobre o mito do sebastianismo
e que esteve na ilha no ano de 1984. E o que
chama muito a atenção são os estereótipos atri-
buídos aos albinos e a insistência na urgente
localiza na porção oriental do Estado, ocupando uma
área de 155 mil hectares, e que vem se consolidando
como o carro-chefe do turismo no Maranhão.
10. Concedi entrevistas a jornalistas das seguintes revis-
tas: Parla (Garrone & Fávia Regina fev. 1999), Se-ara (Soarez abr. 1999), National Geographic Brasil (Moura & Correa fev. 2004) e Almanaque JP Turismo (Moura & Correa ago./set. 2004).
11. Lamentavelmente, só recebi um exemplar da revista
em dezembro de 1999, enquanto que a mesma foi
posta em circulação desde abril daquele ano.
propagação do evangelho na comunidade de
Lençóis. Assim, encontram-se na matéria de
Soarez (Seara abr. 1999) trechos tais como:
O fenômeno genético chamado albinismo está
presente em toda população local [...] Seriam
extra-terrestres? Gente de outro mundo? Afi nal,
que seres humanos são esses que assustam uns e
chamam a atenção de outros?! (: 13).
O pastor acredita que um trabalho de evangeli-
zação adequado deva ser feito com urgência, pois
atualmente, embora seus descendentes estejam
nascendo de cor diferente e conseguindo pro-
longar um pouco mais seus anos de vida, outro
fator constitui desafi o para a obra missionária:
os moradores cultuam o rei Sebastião e afi rmam
que um dia ele virá para arrebatá-los. (: 14).
Na exaltação da diferença são atribuídos
fortes estigmas e preconceitos. No discurso
evangélico os albinos estão fora da cultura e
fora da religião que lhes possibilitaria a salva-
ção. Há um clamor para que um forte trabalho
de evangelização não tarde a chegar na “comu-
nidade de albinos” que, para os evangélicos, se
encontra adormecida sob o mito sebastianista,
sem conhecer a salvação em Jesus Cristo.
A grande maioria das matérias da impren-
sa escrita sobre o imaginário da Ilha dos Len-
çóis procura instigar o leitor sobre as lendas e
mistérios do lugar, enfatizando a excentricida-
de dos albinos que ali residem, através de um
estilo de discurso que designo como pseudo-
documentário (apresentado por meio não só
de textos como de imagens),12 interessado em
12. Chama-se a atenção aqui para uma das matérias mais
recentes de circulação nacional que foi a da revis-
ta Isto É – Filhos do Encanto (06 fev. 2002). O fato
é que “o diferente” é apresentado como uma peça
à visitação de curiosos, como foi mostrado – pelos
responsáveis da reportagem – o corpo de Seu Ma-
cieira, um dos albinos mais velhos da comunidade
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propagar o imaginário sobre lugares e pessoas
“exóticas”. O fato é que essas reportagens aca-
baram gerando muito constrangimento para a
comunidade, principalmente para os albinos.
Desde a década de 1970, a Ilha sofre visitas, so-
bretudo de repórteres que por lá aportam, em
busca do exótico ou da sua invenção, o que de
alguma forma agrediu a população. Chega-se
a essa conclusão através do bloqueio colocado
por alguns albinos e moradores mais antigos da
Ilha. Tal bloqueio se dá, por exemplo, na forma
de taxas cobradas para entrevistas e fotografi as
aos visitantes, com certas exceções a pesquisa-
dores que conseguem estabelecer uma relação
de maior confi ança.
O discurso de dentro: albinismo, en-cantaria e os “Filhos do Rei Sebastião”
Além de me enveredar em destrinchar os
discursos de fora, o empreendimento antropo-
lógico vigente consiste na abordagem da com-
preensão explicativa, tomando a cultura como
um texto a ser interpretado, investigando como
os observados representam e através de quais
lentes percebem suas próprias crenças e con-
dutas, apreendendo, assim, as representações
nativas pelo exercício da interlocução.
Como entender então um pouco do “uni-
verso de dentro”? Como os nativos da Ilha dos
Lençóis se auto-representam? Diante disso, co-
mecei as minhas indagações sobre a genealogia
da suposta genitora da “história” da localidade,
D. Sebastiana Silva. Para tanto, busquei apre-
ender fragmentos de narrativas biográfi cas de
três albinos, descendentes de D. Sebastiana
– atualmente, residente em Cururupu – que sempre
se mostrava muito simpático e receptivo para dar
informações às pessoas de fora. E com tanta recepti-
vidade, e talvez ingenuidade, foi alvo de exploração,
no que se refere à exposição indelicada que teve de
suas marcas corporais, já tão combalidas pelo câncer
de pele.
Silva: D. Neusa (80 anos), Seu Macieira (72
anos) e Telma (38 anos).13 Os dois primeiros
são netos de D. Sebastiana Silva e são primos
paralelos. Telma é bisneta de D. Sebastiana Sil-
va, sendo fi lha de uma prima paralela de D.
Neusa e de Seu Macieira. Segundo seus rela-
tos, da união de D. Sebastiana Silva com Seu
Tributino Marino Oliveira nasceram quatro fi -
lhas não-albinas – Basília, Vicência, Raimunda
Amada e Alzira – que geraram fi lhos albinos.14
Uniões entre parentes são freqüentes na
comunidade de Lençóis, o que nos leva a pen-
sar numa tendência endogâmica. Difi cilmente
uma mulher se casa com um homem “de fora”.
Aliás, casamento não é um termo muito utili-
zado pelos nativos de Lençóis. Como a maioria
dos casais não são reconhecidos pelo contrato
civil e/ou religioso, isto é, não são casados for-
malmente, alguns interlocutores, no início da
minha investigação, diziam que em Lençóis não
havia casamentos entre parentes, muito menos
entre primos. Fiquei então intrigada: como se
justifi ca a tese de que o alto índice de albinismo
na Ilha é devido a casamentos consangüíneos?
Somente com a observação direta e com
conversas informais junto a diversas pessoas da
localidade é que percebi que eu estava formu-
lando perguntas “atropeladas”, sem, portanto,
utilizar o vocabulário nativo. Quando as re-
formulei, indagando se havia parentes que se
“amigavam”, a resposta era bem diferente da
anterior. Como diz Seu Macieira:
Aqui o pessoal não são muito à distância uns dos
outros. A maioria aqui tudo é parente. [...]Essa
fi lha aqui minha é amigada a bem dizer com
um primo dela, que é o Domingos Araújo. Ele
13. Os trechos das entrevistas apresentados neste ensaio
foram coletados, em sua maioria, em 1999, porém as
idades dos meus interlocutores estão atualizadas, isto
é, referentes ao ano de 2005.
14. D. Neusa é fi lha de Basília, Seu Macieira é fi lho de
Vicência, e Telma é neta de Alzira.
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é fi lho duma prima minha. Tem outro fi lho que
é parente da mulher. Eu sou fi lho do pai que é
irmão do pai dele. Meu primo era fi lho do pai
que é irmão do pai dele (18.01.1999).
As descrições do grau de parentesco parecem
um tanto confusas; no entanto, são reveladoras da
freqüência com que se dão as uniões e de como
são consideradas corriqueiras. Não são considera-
das, portanto, algo inusitado, que seja observado
com tantas minúcias. Sabe-se apenas que “todo
mundo é parente”, porque são “do lugar”.
A tendência endogâmica na comunidade re-
monta a uniões de duas fi lhas não-albinas de D.
Sebastiana Silva (Basília e Alzira) com dois irmãos
não-albinos (Saturnino e Nazaseno) de uma outra
família. “Daí para frente o casamento entre primos
foi o responsável pelo grande número de albinos
na Ilha.” (Vasconcelos in Manchete, 1980: 37).
Aqui começa uma confusão terminológica
que frutifi cou uma “maldição” sobre os ha-
bitantes da Ilha dos Lençóis. Segundo relato
de um primo não-albino de Seu Macieira, Zé
Mário,15 que é curador/pai-de-santo, quando
a imprensa noticiou que a história dos albinos
de Lençóis tivera início com a união conjugal
entre dois irmãos e duas irmãs, interpretou-se
que se tratava de uma relação incestuosa, en-
tendendo-se que seriam irmãos e irmãs, fi lhos
dos mesmos pais. Isso levou muitas pessoas “de
fora”, até mesmo de lugares vizinhos, a consi-
derá-los como uma “raça amaldiçoada”.
Apesar dessa defi nição de que o povoado de
Lençóis seria habitado por uma “raça amaldiço-
ada” não se encontrar de forma corriqueira nas
representações dos nativos, conforme indaga-
ções feitas por mim a várias pessoas, ela aparecia
quase sempre como alguma “invenção” de re-
pórter para “maltratar na revista os brancos” (D.
15. O pai de Zé Mário, Flaviano, era irmão de Basília,
Vicência, Raimunda Amada e Alzira. Ele quase nun-
ca é citado pelos ilhéus na reconstituição genealógica,
porque não teve descendentes albinos.
Neusa 02.07.1999). Também se pode dizer que
a representação quanto ao termo “amaldiçoa-
do”, em outras apreensões do discurso nativo,
reforçava a idéia de que essa designação dada a
um povo resulta da quebra de uma regra uni-
versal: a proibição do incesto (cf. Lévi-Strauss
1976). Embora esse dado seja interessante, o
mesmo não foi aprofundado devido à carência
de informações a seu respeito.16 Com isso, pas-
sei a observar outros aspectos referentes às rela-
ções de parentesco encontradas em Lençóis.
Entre os ilhéus de Lençóis o parentesco apre-
senta um marcado bias matrilateral. Do universo
de parentes conhecidos de uma pessoa, a maio-
ria é formada por parentes matrilaterais, e os la-
ços de solidariedade e afetividade são mais fortes
entre estes. Outro dado que deve ser observado
é quanto à transmissão do albinismo. Os relatos
dos meus interlocutores convergem no sentido
em que atribuem às quatro irmãs, fi lhas de D.
Sebastiana Silva, a procriação dos fi lhos e dos
demais descendentes albinos.17 Os companhei-
ros dessas mulheres nunca são citados, a não ser
16. O que se pode destacar do contexto narrativo aqui
ventilado são elementos estruturais que evidenciam
as categorias de incesto como sendo base lógica em
quase todos os mitos, conforme indicações de Leach
(1983: 67) em sua análise sobre mitos bíblicos, de
onde se extrai os seguintes fragmentos: “...o tema do
incesto homossexual da estória de Caim e Abel reapa-
rece na saga de Noé quando este, bêbado, é seduzido
por seu próprio fi lho Cam (9, 21-5). Os cananeus,
descendentes de Cam, são por isso amaldiçoados. [...]
Bêbado, Lot é seduzido por suas próprias fi lhas (19,
30-8). Os moabitas e amonitas, descendentes dessas
fi lhas, são por isso amaldiçoadas”.
17. Vale ressaltar que pela explicação científi ca (da gené-
tica) não há nenhum dado que indique que a mãe, e
não o pai, seja a principal transmissora dos genes re-
cessivos que condicionam o albinismo. “Como cada
pessoa recebe um ou outro desses genes [A e a], atra-
vés de cada gameta que recebe de seus pais, há indiví-
duos AA, Aa e aa. Os indivíduos AA e Aa são normais
(o alelo A é dominante; o a é recessivo); os indivíduos
aa são albinos.” (Freire-Maia 1987: 33; grifo meu).
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que se insista em perguntar quem eram eles. A
ausência dos nomes dos “maridos” das fi lhas de
D. Sebastiana na rememorização da árvore ge-
nealógica dos albinos acentua, portanto, o viés
matrilateral da comunidade.
A rede de parentesco de qualquer pessoa na-
tiva é bastante signifi cativa. Todos sobrevivem
através de suas relações com parentes, principal-
mente no que diz respeito às pescarias, das quais,
geralmente em grupo, eles obtêm seu sustento.
Os albinos, como os outros ilhéus, participam
das pescarias sem nenhum tipo de discriminação.
Entretanto, não se pode dizer que eles interagem
em perfeita harmonia com o ambiente natural
que os cerca, pois sentem na pele, literalmente,
os efeitos de um trabalho sob o sol escaldante.
Sem poderem se proteger habitualmente
(com óculos escuros, chapéu, camisa de manga
comprida e bloqueador solar) contra os raios ul-
travioletas, os albinos são vítimas de doenças de
pele, e alguns foram levados ao mais grave tipo
de câncer de pele: o melanoma. Estes albinos
morreram precocemente por falta de uma assis-
tência médica adequada. A única assistência que
tinham, de fato, segundo alguns depoimentos,
era a de suas mães (principalmente), de fi lhas ou
de irmãs. A maioria dos outros parentes tinham
“nojo” e nem chegavam perto do convalescen-
te. Esta constatação leva-nos à observância do
princípio de “distância de sangue”, trabalhado
por Woortmann: “...quanto maior a distância,
tanto menor a obrigação. [...] Teoricamente os
laços mais fortes seriam aqueles entre dois pa-
rentes afastados um grau (irmãos, pais e fi lhos)
que vivem próximos um do outro e que man-
têm contato constante...” (1987: 156).
A “doença que come as partes do corpo”18
18. O câncer de pele é denominado pelos nativos através dos
termos “canco”, “ferida”, “doença que come as partes do
corpo”, “doença que maltrata os brancos”. A presença do
“canco” só é reconhecida quando a doença se apresenta
bastante explícita. Muitas pessoas de Lençóis com certo
grau de albinismo apresentam uma pele bastante espessa
de certa forma é um assunto tabu para os ilhéus
que se consideram, pelo menos por enquanto,
estar livres da doença. O câncer é uma doença
da qual se evita comentar, pois é “a antivida em
estado puro, objeto de vergonha e de escânda-
lo” (Laplantine 1991: 103). O câncer do qual
os albinos padecem, particularmente, manifes-
ta-se no mais exposto órgão humano (o mais
exteriorizado e visualizado), a pele, e, portanto,
sujeito à percepção dos sinais corporais e à es-
tigmatização.
Embora os ilhéus não exprimam com cla-
reza a origem ou as causas das “feridas” ma-
lignas, eles consideram que os “brancos” estão
mais sujeitos à doença por conta da fragilidade
de suas peles em exposição excessiva ao sol. Os
nativos colocam as representações do câncer
assentadas em causas naturais, ou simples-
mente acham que a doença seja uma fatalida-
de; isto é, que alguns podem ser acometidos,
outros não. Assim, o câncer é pensado como
doença individual e não coletiva. Em contra-
partida, a anomalia congênita caracterizada
pela falta de pigmentação na pele é tida como
uma manifestação corporal muito mais coleti-
va que individual, não importando o pequeno
número de albinos da localidade que expressa
essa coletividade.
Para acrescentar um ponto já ventilado,
uma das representações coletivas sobre os albi-
nos de Lençóis é a de que eles se confi guram
como uma “raça amaldiçoada”. Aqui recorro
a Laplantine (1991: 229), que nos faz pensar
na categoria “doença-punição”, que é a repre-
sentação da doença como “...conseqüência de
uma transgressão coletiva das regras sociais, [...]
conseqüência do pecado coletivo e individual”.
Desse modo, os albinos de Lençóis puderam
ser pensados na categoria de “raça amaldiçoa-
da”, como relatou o curador/pai-de-santo Zé
com manchas na pele e pequenas feridas, mas afi rmam
que isso é uma coisa normal, uma conseqüência da expo-
sição excessiva ao sol, sem maiores complicações à saúde.
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Mário, como um castigo merecido para a co-
letividade pelo fato de determinados integran-
tes do grupo terem transgredido a uma lei: a
proibição do incesto. Porém, há de se levar em
conta que essa defi nição é a mais fracamente
percebida no universo das representações nati-
vas sobre o albinismo; talvez porque seja muito
mais interessante os ilhéus se pensarem en-
quanto uma “raça” privilegiada, “Filhos do Rei
Sebastião”, partícipes da corte “encantada”, a se
pensarem enquanto uma “raça” castigada.
O que está em questão é que nas represen-
tações nativas o albinismo sempre se manifes-
tará: “Essa raça dos ‘brancos’ sempre vai ter,
porque acredito que isso é do lugar.” (Zé Mário
26.05.1999); “...uns morrem, outros já nascem:
assim é que é.” (Seu Macieira 19.01.1999).
Independente da causa da morte, pessoa al-
guma falecida é enterrada na Ilha dos Lençóis,
a não ser natimortos, os “anjinhos”. Na Ilha
dos Lençóis não há cemitério. O receio, então,
não é só com as pessoas acometidas pelo câncer
de pele. Alguns depoimentos sobre a ausência
de cemitério na ilha fornecem representações
sobre o fato:
O fi nado Sissi e a Zuca tentaram reunir algumas
pessoas do Lençol pra fazer um cemitério, mas o
pessoal não tinha coragem de fazer o cemitério
aqui no lugar. Morre uma pessoa tem que enter-
rar lá no Bate-Vento... (D. Neusa 04.07.1999).
Não tem cemitério por causa do encante e porque a terra anda muito. Eles têm medo. Eu tenho certeza que Lençóis é encantado (Zé Mário 26.05.1999;
grifo meu).
A partir desses depoimentos, extrai-se o se-
guinte dado: os nativos de Lençóis têm medo
de construir um cemitério no lugar, uma mo-
rada (no plano material) para os mortos, por
causa do “encante” da ilha – mundo do fundo
onde “vivem” pessoas que nunca morreram.
Os mortos, situados “nas fronteiras do no man’s land antropológico” (Morin 1997: 24),
são seres ambíguos que precisam ser colocados
em seus devidos lugares, de acordo com o tra-
tamento dado pela cultura especifi cada. Para
os nativos de Lençóis, enterrar o corpo morto
“é um meio de a comunidade assegurar a seus
membros que o indivíduo morto caminha na
direção da ocupação do seu lugar determinado,
devidamente sob controle.” (Rodrigues 1986:
53). E é justamente isso que não aconteceria
em Lençóis se ali fossem enterrados os seus
mortos, pois supõe-se que debaixo daquelas
areias há um mundo da Encantaria que repro-
duz o mundo real, cheio de vitalidade.
Com a constatação desse fato, pude perce-
ber o quão é signifi cativa a crença na Encan-
taria sebastianista, interferindo no ethos e na
visão de mundo dos nativos, dando subsídios
para se analisar as construções simbólicas em
torno da nominação “Filhos do Rei Sebastião”.
Por outro lado, muitas pessoas “de fora” fazem
referência aos albinos através da seguinte des-
cendência mitológica: “Filhos da Lua”. Essa de-
nominação foi memorizada através da recepção
de um discurso dos meios de comunicação que
assim faziam suas “chamadas”. Na matéria da
revista Manchete (1980), o repórter atribuiu a
origem dessa cognominação a uma história in-
ventada pelo patriarca da Ilha, Saturnino Oli-
veira, pai de D. Neusa. Com uma conotação
de um furo jornalístico, o repórter diz o que o
patriarca da Ilha lhe confessou:
O patriarca da ilha, Saturnino de Oliveira, que
diz ter oitenta e tantos anos, bom de conversa e
com a vitalidade de um pescador mais jovem,
ri quando se fala nos Filhos da Lua: ‘Essa his-
tória foi inventada por mim para me livrar de
um português perguntador que apareceu por
aqui, senhor. Ele vivia sempre olhando meus
fi lhos, com tanta admiração que dava até pra
desconfi ar. Um dia ele tomou coragem e veio
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falar comigo. Disse que na sua terra havia mui-
tos brancos e louros, mas ninguém tão branco
como meus fi lhos. E perguntou como eu ex-
plicava aquilo... Aí para não estender muito a
conversa, eu disse que quando as mulheres, nos
primeiros meses de gravidez, saíam a passear nas
noites de lua cheia pelas dunas, o clarão da lua
transformava os meninos, dando-lhes à pele e
aos cabelos a brancura de sua luz’... (in Manche-te 1980: 38).
Como Seu Saturnino já é falecido, recorri à
D. Neusa para que ela desse a sua versão sobre
esse depoimento posto na reportagem. Ela diz
que seu pai gostava muito de conversar com as
pessoas “de fora” e que falava que a natureza do
lugar poderia ter alguma relação com o nascimen-
to de albinos, mas que essa suspeita nunca chegou
a ser afi rmada categoricamente para ninguém, e
que tudo não passa de invenção dos repórteres.
De qualquer forma, cabe ainda instigar a
consideração sobre o princípio associativo que
rege a simbologia do nascimento dos albinos
com a atuação do brilho da Lua sobre as mães
grávidas que passeiam sobre as dunas em “noite
de lua”. Ou seja, a simbologia da transmissão de
cor de um corpo (humano ou não) para outro
nos remete ao princípio da “magia simpática”,
trabalhado por Frazer (1982: 35), o qual supõe:
“...a possibilidade de interação entre coisas que
estão distantes umas das outras, através de uma
simpatia secreta, sendo o impulso transmitido
de uma a outra por meio do que poderíamos
conceber como um éter invisível...”. Daí o ima-
ginário sobre a Lua e o nascimento de albinos
ser frutifi cado por um princípio simpático.
Também não se pode desprezar que a Lua
acompanha a imaginação desde as primeiras
civilizações, estando associada à fertilidade e à
mulher. Há de se notar que a Lua fomenta uma
pluralidade de representações associadas à “...
morte e renovação, obscuridade e clareza...” (Du-
rand 1997: 295). O imaginário sobre os “Filhos
da Lua” busca emitir uma explicação fantástica
sobre fenômenos naturais envoltos numa redoma
de “mistério”, como é o caso do nascimento de
pessoas albinas numa incidência fora do comum
constatada numa amostragem isolada. Mas tam-
bém há de se chamar atenção para o fato de que
essa é uma explicação mais “de fora” que “de den-
tro”, buscando-se uma lógica, uma invariabilida-
de no conjunto das representações universais.
Buscando-se as representações nativas, per-
cebe-se que os albinos sempre fi cam contraria-
dos com essa alcunha a que foram relegados
porque lhes dá a impressão de que seriam pes-
soas desconhecedoras do processo de fecunda-
ção, e assim rejeitam a idéia de que o astro lua
substitua o genitor masculino. Conforme a in-
dignação de Telma e de D. Neusa:
Dona, como é que Lua vai fazer fi lho?! Lua
não ‘nhanha’... Isso é só invenção. (Telma
06.09.1998).
Como é que a gente vai ser Filho da Lua,
senhora?! (risadas). Foi isso que inventaram.
Foram botar isso numa revista. Isso foi o que o
papai também se aborreceu: que o fi lho do Sa-
turnino mais a Basília Oliveira Silva era Filho
da Lua.” (D. Neusa 19.01.1999).
O “diferente” é apresentado na Ilha dos
Lençóis por discursos internos e externos que
exaltam a Encantaria do lugar e a misteriosa
presença de pessoas de pele tão alva como a cor
das dunas ou da Lua, e cuja referência a tais
pessoas se dá por uma postura de exotismo e
perplexidade advinda, sobretudo, de reporta-
gens que têm interesse em lançar mão da moda
ocidental do exotismo. A Ilha dos Lençóis,
quando é retratada pelos meios de comunica-
ção, pelo teatro e pela literatura, é apresentada
sob os adjetivos: encantada, misteriosa, fan-
tástica, fascinante, isolada etc. Tais adjetivos
tornam-se ícones do imaginário sobre o lugar,
tanto pela formação geográfi ca marcada por
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“ ”, “ ” |
um imponente conjunto de dunas, como pela
Encantaria, morada do Rei Dom Sebastião. O
“cenário fantástico” se completa com a presen-
ça de “nativos exóticos”: os albinos.
Re-signifi cações sobre a fi liação dos nativos da “ilha encantada”
A representação do “diverso”, através da pig-
mentação da pele, está em pauta. Identifi ca-se
a construção de um estigma a partir de marcas
corporais e também do imaginário mítico que
o envolve, onde se dá a explicação da existência
desses seres humanos “descoloridos” através da
fi liação no universo mítico, ora como “Filhos
do Rei Sebastião”, ora como “Filhos da Lua”.
E através desta última designação, alguns ele-
mentos dão subsídios para ser pensada a cria-
ção de um imaginário fantástico – a cor da pele
(a “não-cor”) dos albinos e o lugar “encantado”
onde vivem – com a possibilidade de se refl etir
sobre uma gênese ambígua:
Brilho da Lua Cheia Mulher Grávida Feto (atingido) = Albino
↕ ↕ ↕
(Natureza) (Humanidade) (Natureza/Humanidade)
Se levarmos em conta que esta tríade apon-
tada seja uma operação de uma estrutura mítica,
logo devemos pelo menos suspeitar que haja em
seu conjunto uma mensagem cifrada que precisa
ser interpretada. O mito sobre “os Filhos da Lua”,
embora rechaçado pelos albinos, possui um gran-
de valor não em termos de uma “verdade”, mas
sim por possuir uma efi cácia ao criar e projetar
para o “universo de fora” uma imagem “exótica”
dos ilhéus “descoloridos” de Lençóis. Imagem
essa reforçada pelos princípios estruturais do
mito, no qual a gênese dos albinos não pressupõe
um tempo cronológico e é marcada pelo desapa-
recimento de barreiras entre Natureza e Cultura
(Humanidade), e por isso a comunicação e a fer-
tilidade entre esses planos tornam-se possíveis.
Concebo que, pela análise privilegiada na
presente abordagem, a perplexidade é o foco
instaurador da identidade/alteridade. Forneci-
da pelos discursos “de fora”, a perplexidade con-
tribui para apresentar os albinos numa imagem
estereotipada, em que o ethos do grupo é condi-
cionado pela natureza somática dos indivíduos,
tendo sua gênese condicionada também à “exó-
tica” natureza mesológica da “ilha encantada”.
E assim tem-se uma identidade sobre os albi-
nos construída, sobretudo, pela terminologia
“os Filhos da Lua”. Por outro lado, os nativos
reforçam uma identidade de pertencimento a
um povo, mas não como descendente do saté-
lite natural, e sim como descendente do rei que
se encontra “encantado no fundo” da Ilha dos
Lençóis: seriam “os Filhos do Rei Sebastião”.
As representações “de dentro” a respeito de
símbolos diferenciadores, contrastados em rela-
ção a outros grupos, como por exemplo em rela-
ção às comunidades vizinhas de pescadores, vêm
à tona quando propagam que os nativos da Ilha
dos Lençóis são “Filhos do Rei Sebastião”, con-
cebendo a presença dos sinais adscritos marcados
nos corpos de determinados ilhéus como revela-
dora de uma identidade que se estende a toda co-
letividade nativa. Ou seja, é reveladora de que não
são só as pessoas estigmatizadas que representam
o sobrenatural, mas que toda a Ilha dos Lençóis
é misteriosa, cujo o reinado é do Rei Sebastião, e,
portanto, todos os nativos são seus fi lhos/súditos.
Dessa forma, o “outro” não quer ser apresentado
como “exótico” no plano da natureza, mas sim
identifi cado no plano da sobrenatureza, identifi -
cação esta em direção a uma identidade onírica de
pertencimento a um povo “eleito”.
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
resumo Este artigo tematiza a participação
das crianças no processo de “valorização da tradi-
ção” na Aldeia Guarani M’Biguaçu, SC. A partir
de uma abordagem etnográfi ca, discorro sobre a sua
atuação nas rezas, no coral e na escola, três espaços
considerados fundamentais neste processo. Com
base nos pressupostos recentes da Antropologia da
Educação e da Infância, mostro que a construção da
Opÿ (casa de rezas Guarani), e mais especifi camen-
te, a formação do coral e a implantação da escola
revelam uma intenção pedagógica das lideranças na
organização de espaços de ensino-aprendizagem da
“tradição” voltados para a educação das crianças.
Além disso, demonstro que a participação das crian-
ças nesses contextos está pautada numa noção de
educação que concebe o ensinar (mbo’é) e o apren-
der (nhanhembo’é) como ações que se constituem
mutuamente, de modo que tanto aquele que ensina
como aquele que aprende são considerados sujeitos
atuantes no ensino-aprendizagem.
palavras-chave antropologia da educação e
da infância, ensino-aprendizagem, “valorização da
tradição”.
* Este artigo foi redigido com base em minha disserta-
ção intitulada “Kÿringue y kuery Guarani – Infância,
educação e religião entre os Guarani de M’Biguaçu,
SC”, defendida pelo Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da Universidade Federal de Santa
Catarina em 2004. Apesar de ter estabelecido contato
com o grupo desde o ano 2000, o trabalho de campo
Nhanhembo’é: infância, educação e religião entre os Guarani de M’Biguaçu, SC*
MELISSA SANTANA DE OLIVEIRA
Mestre em Antropologia Social pela UFSC.
Artigo aceito para publicação em 25/11/05
abstract Th is article has as its theme children
participation in “tradition valorization” process in
M’Biguaçu village, SC. Th rough an ethnographic
boarding, it discourses upon their atuation in pray-
ing, choral and school, three fundamental spaces in
this process. With base in recent presuppositions
of Anthropology of Education and Childhood, it
shows that construction of Opÿ (Guarani Praying
House), and most especifi cally, the formation of a
choral and the implantation of a school in the vil-
lage reveal a conscious and systematic leaderships’
pedagogical intention in the constitution of con-
texts for “tradition” teaching and learning, directed
to children education. Besides, it shows that chil-
dren active participation in these spaces is suited in
an education notion in which the act of learning
(nhanhembo’é) and the act of teaching (mbo’é) are
conceived as mutually implicated actions and both
who teaches and who learns are considered subjects
in the teaching and learning.
keywords anthropology of education and
childhood, teaching and learning, “tradition valo-
rization”.
direcionado para a problemática da dissertação foi rea-
lizado mais sistematicamente entre os meses de março
e agosto de 2003. Os dados de campo são aqui apre-
sentados como recurso de fl uidez textual. Agradeço aos
Guarani de M´Biguaçu pela receptividade e colabora-
ção em campo e a Antonella Maria Imperatriz Tassina-
ri pela orientação e incentivo à minha pesquisa.
cadernos de campo n. 13: 75-89, 2005
76 |
“As crianças, quando choram, estão falando com
Nhanderu, estão indo longe. Do outro lado do
oceano elas olham...” (Canção Kÿringué y kuery
–Wherá Tupã / tradução – Karaí Djerá)
A Tekoá Ÿÿ Morotĩ Wherá: “tradição” e religiosidade
A Aldeia M’Biguaçu (Mbyá Biguaçú) ou
Tekoá1 Ÿÿ Morotĩ Wherá (Refl exo das Águas
Cristalinas), está localizada no km 190 da BR-
101, próximo ao município de Biguaçu, Grande
Florianópolis. Sua população é de aproximada-
mente cento e cinqüenta indivíduos, que em
sua maioria identifi cam-se e são identifi cados
como Guarani Xiripá, havendo também a pre-
sença de pongué (“mestiços”, descendentes de
casamentos interétnicos).
Dentre todos os moradores, Wherá Tupã,
de noventa e três anos de idade, é considera-
do o mais sábio e respeitável. A ele se referem
como Tche ramõi (meu avô) e à sua esposa
como Tche djarÿ í (minha avó), independente
do laço de parentesco. Wherá Tupã é o Karaí, liderança religiosa2 da aldeia que conduz sessões
de reza diárias na Opÿ (casa de rezas Guarani),
e é quem atribui o tchererÿ (nome Guarani) às
crianças. Sobre isso me contou:
É uma tarefa muito trabalhosa. Eu tenho que
ver a criança, ir para casa e conversar com o
Nhanderu. O céu é dividido em vários lugares e
a cada lugar corresponde um nome. Cada crian-
ça recebe o nome do lugar de onde vem...3
1. O termo tekoá é o modo pelo qual os Guarani se re-
ferem a uma terra onde podem viver de acordo com
seus preceitos morais, ou seu modo de ser (Melià
1989). Nimuendajú ([1914] 1987) afi rma que para
os Guarani o termo tekó signifi ca religião e costume.
2. Karaí também consiste num nome masculino co-
mum. Ao longo do texto grafarei Karaí (em itálico)
ao referir-me à liderança religiosa e Karaí (sem itáli-
co) ao referir-me a nome masculino comum.
3. A liderança religiosa Guarani é quem realiza a no-
minação das crianças, que consiste na atribuição do
Nos últimos anos as lideranças de
M’Biguaçu têm investido num movimento
de “valorização” do que consideram ser a sua
“tradição”. Ao referir-me ao termo tradição não
estou fazendo alusão a aspectos “imutáveis” da
cultura Guarani, mas sim a um conceito êmi-
co apropriado por sujeitos que tomam alguns
conhecimentos e práticas a eles relacionadas
como elementos constituintes de um “passado
comum”, que lhes confere um sentimento de
unidade e que os caracteriza como um grupo
específi co no presente (Toren 1988).
Na direção desta “valorização da tradição” é
possível apontar três movimentos de suma im-
portância: 1) A criação de uma escola na aldeia
em 1996, no contexto mais amplo da conquis-
ta do direito à educação escolar diferenciada
por parte dos povos indígenas no Brasil.4 Essa
escola foi instituída a partir de uma decisão
política das lideranças no intuito de propiciar
aos alunos Guarani um estudo que permitis-
se o seu acesso aos conhecimentos não-índios
mas, principalmente, o aprendizado da escrita
e leitura da língua Guarani. 2) A formação do
Coral Ÿvÿtchĩ Ovÿ (Nuvens Azuis) em 1998. O
coral performatiza músicas e danças Guarani,
relacionadas a questões míticas e religiosas. 3)
A construção, na mesma época, de uma Opÿ, feita de taquara, barro e coberta por palha, em
frente à casa do Karaí. A existência de uma casa
de rezas é considerado um fator fundamental
na confi guração da vida religiosa do grupo.
Essas iniciativas revelam uma preocupação
das lideranças, especialmente do Karaí, com a
nome por meio de cerimônia em que se identifi ca o
lugar de origem da alma da criança. A este local cor-
responde uma divindade a qual o nome faz referên-
cia (Nimuendajú ([1914] 1987). Borges (2002: 55)
mostra que alma da criança ainda não nascida pode
aparecer em sonho para o pai e lhe contar seu nome,
mas apenas uma confi rmação fi nal do rezador poderá
referendar este nome.
4. Constituição de 1988; Lei Darcy Ribeiro n. 9.394/96,
de 20.dez.1996.
cadernos de campo • n. 13 • 2005
NHANHEMBO’É: , ’ |
construção de um local adequado para se viver
segundo certos preceitos religiosos, o que apon-
ta para a busca da constituição de um tekoá, um
lugar onde os Guarani vivam de acordo com o
seu tekó ou rekó, seu modo de ser.
Neste artigo discorrerei sobre a participação
e o papel das crianças neste contexto político-
religioso, através da descrição de sua atuação
nas rezas, no coral e na escola, concebidos
como espaços/momentos privilegiados de ensi-
no-aprendizagem da “tradição”. Para isso par-
to dos pressupostos das pesquisas recentes da
Antropologia da Educação (Pelissier 1991) e da
Infância (Silva, Nunes & Macedo 2002; James
& Prout 1997) assumindo uma perspectiva
que está atenta à atuação da criança como um
sujeito ativo na construção da vida social e no
desenrolar dos processos educativos, às especi-
fi cidades das noções de infância de diferentes
grupos sociais, ao caráter histórico e processual
da educação e à interatividade das relações de
ensino e aprendizagem.
As crianças Guarani
Antes de abordar a atuação das crianças na
vida social da aldeia é necessário defi nir quem
são as crianças do ponto de vista Guarani. Um
caminho para o entendimento da categoria nativa
de infância está na atenção ao modo pelo qual os
Guarani estabelecem os limites entre as diferentes
categorias de idade. Aqui, apresentarei uma breve
sistematização das categorias de idade, tal como
são referidas pelos Guarani de M’Biguaçu.
Tabela. Categorias de idade com distinção de gênero. Grifo na categoria Kyringué – criança.
Idade aproximada Sexo masculino Sexo feminino 0-3 anos Myntaĩ (nenês)
3-13 anos5Kÿringué
Ava í (menino) Kunhã í (menina) 13-18 anos Kunumy (moço) Kunhãtã í (moça) 20-50 anos Tudjá (homem adulto) Vaivi (mulher adulta) A partir dos 60 anos Tudjá í (velhinho) Vaivi í (velhinha)
Os Myntaĩ (nenês) dependem inteiramente
do cuidado dos mais velhos. Geralmente es-
tão nos colos de suas mães e de seus irmãos,
que improvisam panos ao estilo de uma tipóia,
para carregá-los junto a suas cinturas. Quando
estão soltos, engatinhando ou arriscando seus
primeiros passos, sempre há alguém por perto
acompanhando seus afazeres, fazendo-lhes ca-
rinhos, brincadeiras ou cuidando para que não
se machuquem.5
As Kÿringué (crianças) apresentam uma
maior autonomia em suas ações cotidianas e
desempenham um papel mais ativo nas ativi-
dades da aldeia. Apesar de não haver uma dis-
tinção terminológica entre Kÿringué maiores
e menores, no dia-a-dia, elas não constituem
um bloco homogêneo. As crianças menores
são livres de ocupações: pela manhã acordam,
recebem o alimento preparado por suas mães
ou irmãos e saem de casa para brincar. Geral-
mente brincam em frente à escola, e vez em
quando entram na sala de aula, sentam-se nas
carteiras e fazem desenhos. Na hora do recreio,
comem a merenda e brincam junto às crianças
maiores, mas logo são chamadas por suas mães
para voltarem para casa, pois apesar de terem
liberdade para circularem sozinhas pela aldeia
sempre há alguém verifi cando o que estão fa-
zendo. Seus dias se passam assim, em meio a
brincadeiras. Ao entardecer, durante os ensaios
do coral, põem-se a cantar e dançar, e mesmo
sem ocuparem uma posição defi nida guardam
na memória todas as canções. Ao anoitecer, sua
participação na Opÿ é descontraída, entram e
saem, brincam lá dentro e algumas vezes can-
tam e tocam instrumentos, mas ao sentirem
5. A partir do momento em que se tornam “adolescen-
tes” os indivíduos de sexo masculino são chamados
Ava e os de sexo feminino são chamados Kunhã, ter-
mos que, segundo meus interlocutores, não corres-
pondem a categorias de idade mas apenas marcam
a diferença de “sexo” e estão relacionadas a questões
biológicas, de maturação.
cadernos de campo • n. 13 • 2005
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cansaço aconchegam-se ao lado de suas mães e
dormem.
A partir dos seis ou sete anos, as crianças
passam a ter um cotidiano composto por ocu-
pações pré-defi nidas. Pela manhã, preparam seu
próprio café-da-manhã e partem para a escola.
Ao longo do dia não deixam de brincar, mas
assumem algumas atribuições na vida da al-
deia. Cuidam de seus irmãos menores, iniciam
atividades de artesanato, ajudam no preparo de
alimentos em casa e auxiliam os adolescentes
em algumas tarefas como na coleta de lenha na
mata, onde cumprem tarefas mais leves como
carregar gravetos. Algumas crianças maiores fa-
zem parte do coral. Participam ativamente das
rezas na Opÿ, cantando, dançando, tocando
instrumentos, e até mesmo auxiliando o Karaí nas atividades de cura. Suas vidas continuam
restritas à aldeia e não têm liberdade para sair
de lá sozinhos. As incursões ao mundo djuruá
(não-índio) restringem-se às apresentações do
coral e viagens familiares.
Algumas evitações6 e prescrições marcam a
6. Quando o menino começa a apresentar a voz mais
grave, não pode comer à noite e não pode mais brin-
car. Não deve falar muito, nem falar no mato, e nem
tomar banho de rio, pois pode pegar odjepota (encan-
tamento sexual). Após um período de mais ou menos
um ano estas proibições são abolidas. Logo quando
tem a primeira menstruação, a menina corta os ca-
belos, até então nunca cortados. Um pano é posto
entorno da cabeça, para evitar dores de cabeça e “fria-
gem”. É improvisado para ela um canto separado da
casa que pode ser um quarto ou um lugarzinho feito
com lençóis e cobertores. Deve permanecer durante
um mês restrita a esta área da casa, sendo iniciada para
a vida adulta, aprendendo afazeres como o artesanato.
Não pode sair, o que inclui a interrupção à freqüên-
cia das aulas na escola. Nem sorrir, nem ver televisão.
Deve alimentar-se com comidas leves como arroz
puro e mbojapé. Não deve comer doce nem gorduras.
A menina também deve, ao sair de casa para realizar
alguma tarefa andar depressa e realizá-la rapidamen-
te. Nesta fase de passagem são o tche ramõi(avô) e a
tche jary í(avó) que aconselham meninos e meninas
respectivamente em relação ao comportamento que
passagem da infância para a adolescência para
meninos e meninas. A mudança de categoria
implica novas atribuições sociais. Os Kunumy (moços) ajudam o pai a buscar lenha no mato,
vão à venda sozinhos, carregam comida e apri-
moram suas habilidades na confecção do arte-
sanato, especialmente bichinhos de madeira.
As Kunhãtã í não podem mais brincar, ajudam
a mãe em seus afazeres domésticos, principal-
mente a preparar a comida e a lavar roupa, e
começam também a se aperfeiçoar na confec-
ção de artesanato: colares, cestarias e zarabata-
nas. Esta época é marcada pela ida a “bailões”
nas cidades próximas e pelo estabelecimento de
laços afetivos, “namoros”, entre moços e mo-
ças, preferencialmente Guarani, quer sejam de
M’Biguaçu ou de outras aldeias. Além disso,
alguns jovens passam a freqüentar a escola dos
djuruá (não índios).
Tendo delimitado o período corresponden-
te à infância Guarani, apresento a seguir uma
descrição da sua atuação nos contextos da esco-
la, do coral e das rezas.
As crianças e a religiosidade
Em reconhecida obra sobre os Apapocuva-
Guarani, Curt Nimuendajú ([1914] 1987), ao
descrever as atividades de reza entre os Guara-
ni, em nenhum momento se refere à atuação
das crianças, a não ser quando, através de um
desenho, mostra os movimentos de danças dos
homens e mulheres e indica em determinado
local do que chama “casa de dança” a presença
de “crianças adormecidas”. Em M’Biguaçu as
Kÿringué participam de modo ativo das rezas
noturnas realizadas diariamente na Opÿ.As atividades de reza Guarani, chamadas
em M’Biguaçu de mboraí, incluem o canto,
devem manter durante o período de passagem e a
partir dele. Durante o período de passagem, rituais
específi cos são realizados na Opÿ, os quais não tive a
oportunidade de presenciar.
cadernos de campo • n. 13 • 2005
NHANHEMBO’É: , ’ |
a dança, o toque de instrumentos musicais e
sessões de cura. Ao anoitecer, os Guarani reú-
nem-se na Opÿ. Alguns se sentam em roda so-
bre bancos dispostos ao redor do fogo, outros
se dispõem sobre seus cobertores, tomam kaÿ (chimarrão) e impreterivelmente fumam seu
petynguá7 (cachimbo). As Kÿringué (crianças) fazem o mesmo, sustentando pequenos petyn-guá. Este momento inicial é marcado por certa
descontração: as pessoas estão chegando, tro-
cam cumprimentos e conversam. As Kÿringué passam as mãos nos cabelos umas das outras,
riem e conversam entre si. A fumaça da foguei-
ra e do tabaco e o odor que produzem atribuem
ao ambiente uma “atmosfera” peculiar. Desde o
momento em que entram na Opÿ para rezar,
os indivíduos de sexo masculino são chamados
Yvyraidjá (dono da madeira: yvyrá – árvore, idja – dono) e os de sexo feminino, Kunhã Karaí8 (mulher Karaí), termos sagrados que indicam a
cooperação com o trabalho do curandeiro.
Muitas vezes são as Kÿringué (crianças) que
iniciam a reza. Formam uma fi leira e, uma a
uma, realizam uma espécie de “benção” nos
presentes, colocando uma mão em suas cabe-
ças e borrifando a fumaça do petynguá sobre as
mesmas. Em seguida, as Kunhã í (meninas), a
7. Na mitologia Guarani, ao criar os seres humanos:
“Nhamandu fez existir as imagens desse tempo,
a chama como calor e luz, a bruma como signo da
chama. Haverá nesse mundo uma dupla cópia des-
sa bruma: de uma parte a neblina que os primeiros
longos sóis fazem surgir acima das fl orestas no fi m
do inverno; de outra parte, a fumaça do tabaco que
fumam em seus cachimbos os sacerdotes e os pensa-
dores indígenas.” (Clastres 1990: 27) De acordo com
um interlocutor Guarani de M’Biguaçu: “O petyn-guá é um instrumento de comunicação direta com o
Nhanderu (nosso pai/deus).”
8. Este termo também é utilizado em referência a mu-
lher que é uma líder religiosa de fato. Este caso de
polissemia, dentre outros, confi rma a afi rmação de
Montardo (2002: 32): “Uma característica dos ter-
mos que se relacionam ao ritual e ao xamanismo
[Guarani] é a polissemia.”
partir de sua iniciativa própria, às vezes segui-
das por algumas Kunhãta í (moças), colocam-
se umas ao lado das outras próximas ao altar, e
com a cabeça voltada para o leste9 começam a
cantar, dançar e bater no chão o takuapu, ins-
trumento feminino que consiste num bastão
feito de taquara e utilizado na marcação do
compasso das músicas. O canto/dança é acom-
panhado pelo ravé (rabeca) e mbaraka (violão),
tocado por homens.
Enquanto isso, o Karaí, sentado em um
banco ao redor do fogo, prepara-se para a ses-
são de cura10, fumando petynguá junto a seus
“auxiliares especiais”, que são seu fi lho mais
velho, Karaí O Kendá, um neto “adolescente” chamado Karaí Wherá e seu neto de oito anos
de idade, Karaí Mirim. Os “auxiliares” mais
jovens são denominados Yvyraidja í Kuery (pe-
quenos yvyraidja: í – pequeno, kuery – plural).
Karaí O’Kendá, “auxiliar mais velho”, é cha-
mado Yvyraidja Tenondé (tenondé: aquele que
está adiante).11
9. Karaí O’ Kenda me disse que: “O Guarani quando
reza deve fi car voltado para o leste, a direção do sol,
o Nhamandu, e se concentrar. Desta forma ele conse-
gue ver através da parede, o sol e o mar.” De acordo
com Nimuendaju ([1914] 1987: 100) os Guarani
“realizam todos os seus atos religiosos com o rosto
voltado para o sol nascente...”. Numa outra passagem
o autor afi rma: “Mais de uma vez ouvi os Apapocuva
afi rmarem que o sol é o verdadeiro pai de tudo o que
existe na terra...” (1987: 65).
10. Como já foi apontado por Littaif (1996), entre os
Guarani é impossível dissociar rezas e cura.
11. Nimuendajú ([1914] 1987: 42) afi rma que yvyrai já
é o ajudante especial do pajé. O autor também refe-
re-se ao termo yvyraijá (neste caso grifa-se tudo jun-
to) para designar um tipo de melodia acelerada e com
forte marcação rítmica ([1914] 1987: 36). Segundo
Montardo (2002: 32-33): “O termo yvyra’ija, etimo-
logicamente, quer dizer “dono da madeira pequena”
e é usado em várias situações. Uma delas é a designa-
ção dos ajudantes do xamã na execução do ritual, bem
como dos ajudantes divinos, os mensageiros do herói
criador.[...]. As pessoas têm seus yvyra’ija também, se-
res que as acompanham e as protegem de situações
cadernos de campo • n. 13 • 2005
80 |
Em seguida, um banco é posto no centro
da Opÿ e para lá se encaminha a pessoa que será
curada. Os “benzedores”, entre eles o pequeno
Karaí Mirim, aproximam-se em fi leira, com o
tronco rígido, levemente inclinado para frente
e os braços um pouco afastados do corpo, ca-
minhando lentamente, passo a passo, sempre
fumando seu petynguá. O Karaí entoa o nhe-enmongaraí,12 reza/canto específi co para cura,
circunda o doente e borrifa a fumaça do petyn-guá sobre ele. Toca o corpo do doente e age
como se dele estivesse extraindo algo com as
mãos, e concomitantemente realiza com a boca
uma espécie de sopro. Nesses atos é sempre
seguido pelos outros “benzedores”, que fazem
o mesmo, inclusive o pequeno Karaí Mirim.
O momento de êxtase ocorre quando o Karaí “extrai do corpo do doente” uma semente, que
segundo os Guarani personifi ca o “mal”, a “do-
ença” que está no corpo da pessoa.
Karaí Wherá, o Kunumy (moço) que partici-
pava da cura, me disse que as Kÿringué que par-
ticipam das sessões são responsáveis por curar
apenas doenças mais leves. Já Karaí O’Kendá, o
Yvyraidja Tenondé, falou que as Kÿringué tam-
bém têm o poder de curar e a presença destas
é importante, pois delas se retira força visto
que são “puras e sagradas”. Karaí Mirim, por
sua vez, me disse sem eu nada perguntar: “Eu
sou ‘benzedor’ e seguro o petynguá para o meu
avô”. De fato, especialmente enquanto o Karaí “retira a doença” do corpo do doente Karaí Mi-
rim é quem segura o seu petynguá.
O Karaí me disse uma vez que, assim como
ele decidiu aprender a curar com seu falecido
difíceis. [...] Yvyra’ija é utilizado também para falar das
canções do repertório do jeroky que tem andamento
rápido e são acompanhadas por coreografi as de lutas.”
Este gênero musical “... entre os Mbyá, teria corres-
pondência com o Xondaro ou Sondaro” (2002: 225).
12. Nimuendaju ([1914] 1987: 31) afi rma que o
“ñeẽngaraí (...) constitui o ponto culminante de toda
dança de pajelança.”
pai, “o interesse em ser curandeiro parte das
próprias Kÿringué, porque cada um escolhe
seu próprio caminho. O problema é daquele
que escolhe o caminha errado...” Porém, ainda
segundo o Karaí, elas estão livres para desistir
a qualquer momento, e apenas as que “agüen-
tam” (ndepyaguachu)13 permanecem. Logo que
iniciei minha pesquisa um outro ava í (meni-
no) participava junto a Karaí Mirim das sessões
de cura, mas geralmente ele se cansava antes
deste e no meio da sessão juntava-se a “roda
de chimarrão”. Com o tempo, simplesmente
deixou de participar. Sobre isto Karaí Mirim
comentou: “Ele não ‘agüenta’!”.14
Após as sessões de cura, as rezas são re-
tomadas com a participação de “adultos”,
“adolescentes” e também das “crianças”. A
participação dos Myntaĩ (nenês) é mais des-
contraída, mas os mais velhos acreditam que os
Guarani devem participar da reza desde cedo,
pois “aos poucos vão entendendo o sentido”.
Geralmente os bebês fi cam dormindo nos co-
bertores estendidos no chão ou brincando. Vi
algumas vezes Mbodjeré, de um ano de idade,
tentando tocar um takuapu que tinha o dobro
do seu tamanho e acompanhar balbuciando al-
guns cantos. Sua mãe e outros presentes riram e
se mostraram muito orgulhosos com o feito.
As rezas diárias costumam ser fi nalizadas
perto das 21 horas. Segundo Karaí O’ Kendá:
“Os Guarani de outras aldeias viram a noite re-
zando. Aqui nós não podemos pois as crianças
têm aula no dia seguinte...”.
Muitas vezes, cedo pela manhã, as Kÿringué entoam músicas repentinamente. Em uma
13. A tradução literal deste termo é: o que tem coração
grande. Nde – 2a pessoa do singular, pya – coração,
guachu – grande. Um interlocutor afi rmou que, além
de “agüentar” esta palavra signifi ca “rezar com o cora-
ção e ter coragem.”
14. Alguns meses depois em uma visita a aldeia fi quei
sabendo que ele havia voltado a participar como “au-
xiliar” das sessões de cura.
cadernos de campo • n. 13 • 2005
NHANHEMBO’É: , ’ |
conversa Karaí O’Kendá me falou que, por se-
rem “mais puras”, elas têm facilidade em rece-
ber músicas das divindades e que quando ouve
alguma criança entoando uma música que nin-
guém conhecia antes, sabe que foi “recebida”
em reza. Pelo que pude perceber, a música re-
cebida pelas crianças não possui letra.15
Através do que foi descrito acima se pode
observar que em M’Biguaçu as Kÿringué parti-
cipam de modo ativo das atividades religiosas
da aldeia e realizam elaborações signifi cativas
a respeito das mesmas. Sustentam uma postu-
ra autônoma em toda sua atuação nas rezas. A
fi gura de Karaí Mirim, o pequeno “benzedor”,
ilustra exemplarmente esta autonomia, pois sua
inserção, bem como sua permanência no cargo,
dão-se a partir de uma escolha pessoal baseada
no seu “interesse” em participar. Ninguém tem
o poder de coagir uma Kÿringué a assumir este
papel, nem a permanecer nele.
O modo autônomo pelo qual as Kÿringué inserem-se na vida religiosa da aldeia pode ser
compreendido se atentarmos a uma caracte-
rística fundamental da religião Guarani, que
consiste na valorização da experiência religiosa
pessoal e na crença de que o aprendizado das
rezas se dá através de uma relação direta entre
o indivíduo e Nhanderu. De acordo com Scha-
den (1974), os Guarani-Nandeva afi rmaram-
lhe que não ensinam as rezas às crianças pois
estas são individuais e mandadas diretamente
pelas divindades. Assim, as crianças partici-
pam das cerimônias familiares e comunitárias,
aprendendo o que faz parte do “patrimônio
grupal” e esperando que suas rezas lhes sejam
enviadas durante o sonho. Clastres (1978), por
sua vez, destaca que para os Guarani as rela-
15. Durante a descrição de um ritual mbya e chiripá,
Montardo (2002: 128) chama a atenção para o fato
de que um pajé lhe falou que por ser muito jovem a
reza de determinado rapaz de quinze anos ainda não
tinha palavra. Tudo indica, poranto, que as rezas só
passam a ter palavra na idade adulta.
ções com o sagrado são sempre pessoais e que
depende do indivíduo pessoalmente, segundo
seu desejo e esforço, alcançar a aguyje (estado
de completude/perfeição, imprescindível para
se atingir a “Terra sem mal”). Aponta também
que o arandu porã (belo saber, inspirado pelas
palavras dos deuses que revelam, entre outras
coisas, as normas do aguyje) não varia com o
indivíduo que o detém, mas sua aquisição não
é coletiva e só pode ser desvendado numa co-
munidade singular com as divindades.
Uma outra noção que apareceu e mostrou ser
de grande importância no contexto religioso dos
Guarani de M’Biguaçu, presente até mesmo nos
discursos das próprias Kÿringué, é a de “agüen-
tar”/ “suportar” / “ ter coragem de enfrentar”
(ndepyaguatchu) as difi culdades. Isso pode ser
constatado no modo como é encarada a perma-
nência ou não da Kÿringué no papel de benzedor,
interpretado como uma questão de “agüentar” a
situação da cura. Este “agüentar” neste caso sig-
nifi ca uma disposição para o exercício da cura,
que de acordo com Karaí O’Kendá não consiste
numa tarefa simples, pois implica que “a alma
do benzedor entre na alma do doente”, o que
exige uma certa preparação pois “os problemas
dos outros podem ser fortes e podem causar uma
reação naquele que o está curando”. “Agüentar”
e “ter coragem”, ambas defi nidas pelo termo
ndepyaguatchu, vão de acordo com aquilo que
Clastres (1978) apontou como qualidades que
os Guarani acreditam ser essenciais para alcançar
o aguyje, a saber: a perseverança obstinada (mbu-ru), a coragem (py’ aguachu) e a força espiritual
(mbaraete). Segundo a autora, o mburu pode ser
atribuído a quem consagra tempo aos cânticos e
palavras, à dança e ao jejum. Apenas o manter-
se no esforço permite adquirir mbaraete, a força
por excelência, e o py’aguachu, o coração grande.
Força e coragem para enfrentar sozinho a grande
água, e desta forma chegar a yvy marã ey. Se partirmos da fala do Karaí de que cada
um “escolhe seu próprio caminho”, podemos
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afi rmar que em M’Biguaçu as Kÿringué têm es-
colhido seguir o “bom caminho” indicado por
este líder espiritual. Esta escolha é acatada e in-
centivada pelos outros Guarani, que, partindo
da noção de que as Kÿringué são “seres puros e
sagrados” e “fonte privilegiada de força para o
bom rendimento dos processos curativos”, con-
sideram-nas seres aptos a lidarem com assuntos
de extrema importância e delicadeza e de gran-
de infl uência no bem estar de todo o grupo.
A participação das crianças no Coral Ÿvÿtchĩ Ovÿ (Nuvens Azuis)
O Coral Ÿvÿtchĩ Ovÿ16 mantém ensaios re-
gulares e uma agenda lotada de apresentações.
Essas apresentações são realizadas durante todo
o ano, na própria aldeia, em cidades próximas
e até mesmo em outros estados. Além disso, o
coral alcançou em 2003 sua mais esperada con-
quista, a gravação de um CD.17
Segundo Coelho (1999: 26) uma parte das
canções que compõem o repertório do coral
são aquelas canções que o Karaí aprendeu na
sua infância e que ele relembrou devido a um
interesse demonstrado por seus fi lhos “em sa-
ber como eram essas canções que já estavam
esquecidas há muito tempo.” O Karaí passou a
cantá-las e um de seus fi lhos, Karaí Djerá (na
época apenas um Kunumy – moço), fez os ar-
ranjos, “... para então ensiná-las às crianças.”
Em uma conversa que tive com o Karaí, este
me falou: “os cantos do coral foram recebidos
por mim em reza e depois meu fi lho anotou
as letras e melhorou com o violão. Mais tarde
ele mesmo passou a ‘recebê-los’ em sonho e até
mesmo durante o dia. Nhanderu lhe falou o
que ele devia cantar...”.
16. De acordo com Clastres (1990: 35), entre os Guarani:
“ São chamadas de azuis todas as coisas e todos os seres
não-mortais que povoam o território celeste do divino.”
17. CD Nhẽe garai marã eÿn. FAPEU, BADESC, Gover-
no do Estado de Santa Catarina, 2003.
Apesar do coral não ser constituído apenas
pelas Kÿingué, os Guarani costumam referir-se a
ele como “coral das crianças”.18 Os componen-
tes do coral vestem-se com trajes elaborados por
Karaí Djerá a partir de visões. Os trajes apresen-
tam diferentes cores, às quais correspondem ca-
tegorias mitológicas. A cor vermelha, utilizada
pelos Tudja (adulto), corresponde à categoria
do Sondaro (Guerreiro). A cor verde, utilizada
pelos Kunumy (moço), corresponde à categoria
dos Sondaro mirim (pequeno soldado). A cor
branca, utilizada pelos Ava í (menino) e Kunhã í (menina) menores, corresponde à categoria
dos Yvyraidja (dono da madeira pequena).19 E
a cor azul, utilizada pelas Vaivĩ (mulher), Ku-nhãta í (moça) e Kunhã í (menina) que estão
prestes a tornarem-se Kunhãta í, corresponde à
categoria das Sondarya í (ya – indica fl exão de
gênero). Ocorre portanto, uma reclassifi cação
das categorias de idade em termos de categorias
mítico-religiosas.
Segundo a explicação de um interlocutor:
Os Sondaro são aqueles que comandam o
coral e os Sondaro mirim, são seus “aprendizes”.
As Sondarya í, são as pequenas soldadas... Es-
ses termos têm a ver com guerras entre grupos
indígenas que não existem mais. Hoje a gente
ataca e se defende do mundo aí fora...
Essas categorias são utilizadas, portanto, em
um sentido bélico que remete a um passado
povoado por guerras intertribais. Na atualida-
de esta atitude guerreira seria acionada frente
18. Durante a redação da dissertação assisti a uma apresen-
tação feita apenas por “crianças” e “adolescentes”, sem
a presença de homens e mulheres. Surpreendeu-me a
confi ança dos Guarani no trabalho dos mais jovens.
19. Este termo tanto é utilizado para designar a todos
os Ava (homens) durante as rezas, que são concebi-
dos sem exceção como auxiliares do Karaí, como é
utilizado em referência a seus “auxiliares especiais”,
que exercem com ele especifi camente as atividades
de cura.
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aos perigos cotidianos, entre estes o relaciona-
mento com os djuruá (não-índios).
De acordo com outro interlocutor, a cate-
goria dos Yvyraidja, a qual pertencem as duas
pequenas Kunhã í e os dois Ava í, tem grande
importância pois considera-se que eles cuidam
dos mais velhos. Isto está de acordo com uma
das defi nições apontada por Montardo (2002:
32-33) para o termo Yvyra’ija, como seres que
protegem as pessoas em situações difíceis. Meu
interlocutor me falou ainda que eles são conside-
rados os “donos da palavra”, atentando-me para
o fato de que são eles que ao término de cada
canção pronunciam em alto tom “Aguydjeuete!”,
ao que os outros respondem “Aguydjeuete!”.A classifi cação dos componentes nessas ca-
tegorias guardam certo grau de equivalência
com a atuação dos mesmos nas rezas e com as
categorias que eles então assumem. Isto pode
ser vislumbrado na fala deste interlocutor:
Os Sondaro do Coral são aqueles mesmos que
conduzem os cantos na Opÿ, tocam o mbaraká e o ravé. Os Sondaro mirim são os que tocam os
outros instrumentos nas rezas. As Sondarya í são
as Karaí Kunhã, meninas, moças e mulheres que
cantam e tocam o takuapu. Os Yvyraidja são os
pequenos que ajudam o Karaí.
Portanto os Guarani entendem que a cada
categoria do coral corresponde uma categoria
de reza. A categoria Sondaro, que, segundo um
interlocutor, não é acionada durante as rezas,
aparece no coral. Ela é desempenhada pelos Ava,
que são aqueles que durante as rezas cumprem
o papel de Yvyraidja, entendido aqui no sentido
de auxiliar do xamã de modo geral. Os termos
Yvyraidja e Sondaro20 são deste modo aproxima-
dos, tornados equivalentes, no nível reza-coral.
20. Na literatura (Mello 2001; Montardo 2002, entre
outros) o termo Yvyraidja é utilizado no sentido de
“mestre do Sondaro”, o que aponta para uma equiva-
lência entre ambos.
Os meninos que são classifi cados como Yvyraid-ja no coral são justamente os que recebem a
denominação Yvyraidja í nas rezas por serem
“auxiliares” especiais do Karaí durante as curas.
A continuidade em relação à Opÿ faz-se notar
durante os próprios ensaios que lá são rea lizados ao
entardecer. Coelho (1999) afi rma que, segundo o
que os Guarani lhe disseram, a Opÿ foi construída
para se ter um lugar para “cantar e ensaiar”.
Os Sondaro se responsabilizam em organizar
o espaço, preparar os instrumentos musicais, e
exigir que todos os componentes compareçam
aos ensaios. E ainda são eles que chamam a
atenção daqueles que se mostram distraídos ou
estão conversando. Durante um dos ensaios que
presenciei, ao perceber o pouco envolvimento
de algumas Kunhã í e Kunhãta í, o Sondaro Ka-
raí Djerá pediu a todos que parassem de cantar
e dançar e proferiu um discurso em tom solene,
durante o qual falou: “Todos nós temos que
nos ‘concentrar’, cantar pensando no Nhande-ru e não ter vergonha dos outros...”.21 Após essa
fala os componentes fumaram um petynguá,
passando-o de mão em mão, e recomeçaram a
cantar e dançar com muito entusiasmo.
Nos dias de apresentação todos costumam
reunir-se na entrada da aldeia e esperar o ônibus
locado pela instituição que os contratou, o qual
vem buscá-los para levá-los até o local onde a
apresentação será feita. As Kÿringué são sem-
pre as primeiras a descer a aldeia para esperar
a chegada do ônibus. Enquanto o ônibus não
chega, os instrumentos vão sendo afi nados, e as
Kunhã í e Kunhãta í retocam suas vestimentas,
21. Montardo (2002: 242) já apontou a importância da
concentração para os Guarani no cotidiano e nos
rituais xamanísticos. Em relação aos rituais, afi rma
que “ocorre uma alteração ou ampliação de estado de
consciência provocada pela conjugação de vários fa-
tores, sendo um deles a concentração”. Ainda segundo
a autora: “Entre os Guarani a concentração é uma
atitude valorizada também no cotidiano. A pessoa
deve estar inteira no que está fazendo. (...) No caso
do ritual, esta concentração é levada ao extremo”.
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cabelos, fazem maquiagens e põem colares. As
Kunhãta í ajeitam as Kunhã í, ajudando-as a se
vestir, fazendo tranças em seus cabelos, ou en-
feitado-as com colares e pintando suas faces.
Esta incursão ao mundo djuruá toma a
característica de um passeio. É marcada pela
descontração e alegria, mas, ao mesmo tem-
po, exige o seguimento de algumas regras de
comportamento, entre as quais: o cuidado em
não se afastar do grupo e o respeito ao “modo
de ser do branco”. As crianças costumam ser
bastante silenciosas ao longo da viagem de ôni-
bus, algo que contrasta com o comportamento
das crianças não-índias em ônibus escolares ou
turísticos. Vez ou outra as Kÿringué entoam al-
gum canto durante o trajeto.
Em todas as apresentações chamou-me aten-
ção a presença de familiares. Entre eles destaco a
presença do tcheramõi (avô) e da tchejarÿ í (avó).
O tcheramõi que, como já foi dito, é o Karaí, costuma ser chamado para discursar ao público a
respeito da situação atual dos Guarani e da vida
em M’Biguaçu. Puxa o canto Nhẽ e mbaraete (traduzido como “O poder do grande espírito”22)
que costuma ser evocado por ele durante as rezas
na Opÿ. Karaí O’Kendá apresenta o coral, res-
ponde às perguntas feitas pelo público, e faz al-
guns comentários sobre a letra das canções.
As apresentações feitas pela manhã contam
como atividade de aula e são assistidas pelas
crianças pongué (“mestiças”). Estas crianças cos-
tumam prestar atenção no coral durante certo
tempo, mas logo cansam-se e começam a brin-
car. Muitas vezes fazem barulho enquanto o coral
está se apresentando, o que causa certo descon-
forto por parte dos Guarani, que tecem comen-
tários a respeito de seu “mau comportamento”.
Durante as apresentações, os componentes
cantam sempre com muito afi nco e os Guara-
ni que estão na platéia acompanham atencio-
samente. O modo apaixonado com o qual as
22. Tradução retirada do encarte do CD anteriormente
citado.
Kÿringué realizam as apresentações não passa
despercebido pelos djuruá, que ao observá-los
cantando e dançando de olhos fechados, excla-
mam frases como: “Que concentração!”.
Em épocas festivas para os djuruá, especial-
mente na “Semana do dia do índio”, o coral
costuma se apresentar várias vezes. Nos interva-
los das apresentações, os “adolescentes” e “adul-
tos” costumam sentar-se nos pátios externos
das escolas e estádios, onde se apresentam, para
conversar e fumar. As Kÿringué aproveitam es-
sas pausas para brincar muito nas quadras de
esporte, nos parquinhos, ou em qualquer local
onde possam se movimentar à vontade. Às ve-
zes aproveitam para coletar pequenas sementes
que caem das árvores, guardando-as em seus
bolsos para utilizá-las na confecção de colares.
Nos períodos de intervalo ocorre uma
maior interação entre os Guarani e os djuruá.
As crianças djuruá olham com curiosidade
para as Kÿringué Guarani e procuram se apro-
ximar destas por meio de perguntas variadas
sobre a vida na aldeia, tais como: “O que vocês
comem lá?” e até mesmo: “Como é o Natal na
aldeia?”. As Kÿringué Guarani costumam res-
ponder com poucas palavras ou simplesmente
não respondem. Pude observar que algumas
vezes isso ocorre porque elas nem mesmo
compreendem as perguntas que lhes foram
feitas. Em geral, as Kÿringué mantêm um certo
distanciamento das crianças “não-índias” que
me parece estar pautado num sentimento de
timidez ou vergonha. Mas isso pode variar de
acordo com o modo de abordagem adotado
pelas crianças não-índias.
Apresentações em cidades distantes causam
grande empolgação nas crianças, são comenta-
das vários dias antes de acontecerem e reque-
rem ensaios mais árduos. Costumam envolver
um número maior de familiares, principalmen-
te as mães que vão para cuidar dos seus fi lhos.
O coral também realiza apresentações na
própria aldeia, quando há visitas de turmas
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de estudantes djuruá de escolas próximas. As
Kÿringué pouco interagem com os estudantes.
Algumas se escondem quando avistam um ôni-
bus escolar subindo o morro que dá acesso à
aldeia. No entanto, mostram-se sempre entu-
siasmadas a apresentar o coral. Ao perguntar-
lhe sobre o que achava das visitas dos estudantes
djuruá, uma Kunhã í não hesitou em respon-
der: “Eu gosto porque a gente canta!”.
É certo que o Coral Yvÿchÿ Ovÿ consiste
numa fonte de renda alternativa para a aldeia. E,
ainda, que consiste num novo modo de interação
entre os Guarani e os djuruá, no qual o canto e
a dança são eleitos como símbolo diacrítico. Po-
rém, mais do que isso, a existência de um coral
envolve signifi cados religiosos de grande impor-
tância interna para o grupo. O coral revela sobre-
tudo um investimento consciente e sistemático
no ensino-aprendizagem de cantos, danças e
toques de instrumentos e de certas disposições,
como a concentração (edjapitchaka). Daí a im-
prescindibilidade da participação do Karaí, que
é considerado detentor privilegiado dos saberes
“tradicionais” Guarani, e o envolvimento de
adultos, jovens e crianças. O teor educativo do
coral pode ser vislumbrado numa afi rmação de
Karaí O’Kendá que, ao ser perguntado sobre o
signifi cado das canções que compõem o repertó-
rio do coral, respondeu: “As canções falam sobre
as crianças, a educação e a religião.”
O aprendizado das crianças se dá ao mes-
mo tempo em que são imbuídas de desempe-
nhar um papel de destaque na vida do grupo,
tomando a posição de protetores, guardiões
e guerreiros do grupo. Em reza, as categorias
Yvyraidja, Sondaro e Sondarya í são acionadas
no enfrentamento dos perigos do mundo so-
brenatural. No caso do coral, parece haver um
duplo sentido: são acionadas na mediação com
um Outro, os djuruá.
O coral representa também uma oportuni-
dade de sair da aldeia, algo que pouco ocorre
no seu cotidiano. Durante o passeio ao “mun-
do do djuruá”, pode-se afi rmar que as Kÿringué elegem como modo privilegiado de interação o
canto, ocupando assim posição de destaque do
qual detêm um saber (musical e cosmológico)
respeitado e apreciado pelo outro.
A Escola na vida das Kyringué Guarani
Durante os dias de semana, as Kyringué Guarani que possuem aproximadamente entre
sete e dez anos de idade freqüentam a escola
presente na aldeia. Acordam entre seis e sete da
manhã e vestem suas roupas. Fazem uma refei-
ção, muitas vezes preparada por elas mesmas,
que consiste geralmente em café preto, acom-
panhado de mbojapé ou tchipa í (pão e bolinho
feitos à base de trigo e água), pegam seu mate-
rial escolar e partem para a escola para partici-
parem das aulas, que iniciam mais ou menos às
oito horas da manhã.
O ambiente da escola é composto por
apenas uma sala de aula, que comporta uma
turma de alunos multi-seriada, uma turma de
“alfabetização” (que corresponde ao 1o ciclo) e
uma de “complemento” (correspondente ao 2o
ciclo). Metade dos alunos do primeiro ciclo e
dois alunos do segundo ciclo fazem parte de fa-
mílias consideradas pongué (mestiças). Os alu-
nos Guarani e mestiços, do 1º ciclo, sentam-se
diariamente em lados opostos da sala, apesar
de cursarem ambos o mesmo ciclo. O professor
guarani Karaí O’Kendá leciona para a turma
do primeiro ciclo e a professora não-índia Isa-
bel Eiko leciona para o segundo.
Apesar do espaço físico da escola apresen-
tar um aspecto convencional – quadro negro,
carteiras distribuídas em fi leiras e mesa para os
professores a frente –, a forma como as Kÿringué guarani dão vida a este cenário é peculiar. As
crianças sentam-se sobre suas pernas, debru-
çam-se sobre as mesas, mexem-se bastante.
Durante as aulas, há um burburinho contínuo,
uma constante circulação das crianças pela sala
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de aula, um entra e sai de crianças pequeninas
que ainda não ingressaram na escola e também
de suas mães.
O ensino-aprendizado dos saberes “não-
índios” é realizado apenas na medida em que
consiste num instrumento para a luta por di-
reitos do grupo e para a intensa convivência
com os djuruá. O foco central da escola está
voltado para o que os Guarani consideram ser
o “conhecimento tradicional da sua cultura”. Esse conhecimento é tematizado por meio do
desenvolvimento de projetos junto à liderança
religiosa do grupo, o Karaí, tcheramõi (avô) de
grande parte das crianças.
Pude acompanhar o desenrolar de alguns
projetos. Um deles consistiu na plantação de
mudas por parte das Kÿringué em um terreno
acima da escola. Cada criança acompanhou o
desenvolvimento de sua muda, realizando vi-
sitas semanais à plantação nas quais mediam
seu tamanho, verifi cavam o quanto ela cres-
ceu e a regavam quando necessário. Tudo isso
foi registrado através de anotações e desenhos
realizados em um diário específi co para este
fi m. Nessa atividade estavam sendo trabalha-
dos conceitos da biologia e matemática. As
Kÿringué envolveram-se bastante nesse projeto,
entusiasmando-se nos períodos em que visita-
vam suas “plantinhas”. Uma Kunhã í (menina),
chegou a apresentar uma sugestão que foi aca-
tada por todos: fazer fotografi as de cada aluno
junto a sua planta. Essas fotografi as foram afi -
xadas em porta-retratos produzidos pelas pró-
prias Kÿringué em sala de aula e entregues aos
seus pais como presente do “Dia dos Pais”.
Tive a oportunidade de observar também um
projeto de construção de uma maquete de argila
da Opÿ. Karaí O’Kendá, que possui grandes ha-
bilidades artísticas, esteve à frente dessa atividade.
As Kÿringué por sua vez não deixaram de ajudar,
trazendo ripas de madeira, modelando a argila e
dando palpites: “O tcheramõi (avô) não vai caber aí
dentro!”, “Vamos ter que diminuir o tcheramõi!”.
Pesquisas relacionadas a rituais de cura e
cerimônias Guarani são realizadas com fre-
qüência e costumam suscitar grande envolvi-
mento por parte das Kÿringué. Durante uma
pesquisa os alunos do 2º ciclo ouviram o Karaí falar sobre o poder curativo do uso do petyn-guá (cachimbo) e de ervas medicinais dentro
da Opÿ. Como atividade complementar reali-
zaram desenhos de objetos rituais, atribuindo
seus respectivos nomes, e sob a orientação do
professor Karaí O’Kendá elaboraram pequenos
petynguá de argila.
Outro tipo de atividade realizada na escola
são as caminhadas pelo território da aldeia sob a
orientação do Karaí, que indica para as crianças
os nomes das espécies de plantas que compõem
o terreno e suas propriedades medicinais.
Todos esses projetos, além de outros aqui
não citados, tiveram a participação ou até
mesmo a idealização (como é o caso dos dois
primeiros) do Karaí. Além dos projetos reali-
zados em parceria com o mais velho da aldeia,
as crianças têm semanalmente momentos de
aprendizagem da confecção de artesanato (ces-
taria e colares) na escola, com Karaí O’Kendá.
Não posso deixar de salientar que essa situa-
ção é favorecida pela existência de um consenso
entre os professores em relação ao que deve ser
tematizado na escola. Karaí O’ Kendá, além de
professor, tem ocupado um papel importante
na vida religiosa da aldeia, pois vem se aprimo-
rando a cada dia como “benzedor”. A professora
Isabel assume uma postura de “pesquisadora da
cultura Guarani”, consultando sempre os mais
velhos, especialmente o Karaí, para o desenvol-
vimento de uma abordagem dialógica dos sabe-
res Guarani e não-índios em suas aulas.
Pode-se afi rmar que em M’Biguaçu a es-
cola está numa relação de continuidade com
a vida da aldeia e constitui-se num espaço de
(re)construção de relações sociais de grande
importância para o grupo. Apesar da existên-
cia de professores, na escola, o líder espiritual,
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fi gura central no contexto atual da aldeia, é re-
conhecido como aquele que deve ser ouvido.
As Kÿringué valorizam esta inserção da esco-
la na vida aldeã, participando com entusiasmo
das atividades referentes à “tradição”. No depoi-
mento de uma kunhã í:
Já estudei em outra escola, mas gosto mais daqui
porque a gente estuda Guarani e Português. Se-
não a gente fala só Português, e isso é ruim, por-
que a gente perde nossa cultura. Na outra semana
vamos fazer história de ervas que a gente conhece.
Lá em casa tem uma árvore bem grandão que tem
uma folha assim... Meu pai tira, coloca na panela,
faz e a gente toma quando dá dor de cabeça. Às
vezes eu sozinha vou no mato, buscar remédio,
quando minha mãe tá doente. Na semana que
vem os professores vai tirar foto e a gente vai es-
crever. Vamos no mato e o tcheramõi vai pra tirar
o remédio. O remédio do índio é mais forte.
Considerações Finais: As crianças, a educação e a religião
Acompanhamos a descrição da atuação das
Kÿringué Guarani da aldeia M’Biguaçu em três
contextos fundamentais no processo de “valori-
zação da tradição”: as rezas, o coral e a escola. O
“resgate e a valorização da tradição Guarani” tem
como elemento central a religiosidade, que tanto
é acionada na criação de um ethos interno, como é
eleita símbolo diacrítico na relação com os djuruá.
A “valorização da tradição” signifi ca fundamental-
mente uma preocupação em “não esquecer-se de
Nhanderu” e em manter uma comunicação inten-
sa com este por meio das rezas. Centralizado que
está nos saberes do Karaí, o “resgate da tradição”
exige uma atitude pedagógica, de ensino-apren-
dizagem desses saberes. Essa pedagogia envolve a
todos, e dá-se mediante um duplo movimento:
uma “preocupação” em ensinar, por parte das ge-
rações mais velhas, e um “interesse” em aprender,
por parte das gerações mais jovens, entre estas as
Kÿringu, de modo que tanto quem ensina como
quem aprende são considerados sujeitos no pro-
cesso de ensino-aprendizagem.
O caráter coletivo da noção de educação
Guarani e a inter-relação entre o ensino e a
aprendizagem podem ser notados na própria
composição dos termos utilizados em referên-
cia aos atos de ensinar e aprender. Os Guarani
de M’Biguaçu se referem à palavra aprender por
Nhanhembo’é, que traduzem literalmente como
“Vamos aprender” (nhanhe – vamos, mbo’é –
aprender), o que remete a uma concepção que
preza a coletividade. A partícula mbo’é, que foi
traduzida por meus interlocutores como apren-
der, também é utilizada por estes em referência
ao ensinar. Há, portanto, uma sinonímia entre
os dois termos, o que indica uma aproximação
entre as duas ações. Em uma pesquisa etimo-
lógica no dicionário de Dooley (1999), pude
verifi car que Nhanhembo’é é composta pela
partícula /nha/, que indica 3a pessoa do plural, /nhe/, que indica pronome refl exivo, e /mbo’e/, ensinar. Ou seja, uma tradução literal formal
deste termo seria: Nós nos ensinamos, o que
aponta para uma noção de aprendizagem como
espécie de auto-ensinamento coletivo.
O ensino-aprendizagem da tradição não se
dá de modo “natural”, mas implica na constitui-
ção de contextos de prática e agência favoráveis
ao desenvolvimento de processos educativos.
A construção da Opÿ, idealizada pelo Karaí, e sua ativação como um locus de realização de
rezas envolveu grande parte dos Guarani de
M’Biguaçu. Fundamental foi o interesse de
alguns, dentre estes as Kÿringué, em aprender
cantos, danças e toque de instrumentos, mas
também em receber os ensinamentos referentes
ao exercício de cura. Isso implica fundamen-
talmente em um ensino-aprendizado de técni-
cas e posturas corporais e o desenvolvimento
de uma certa resistência física e psicológica
para se “agüentar” (pyaguatchu) a permanência
nas rezas, que além de envolverem sentimentos
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intensos, muitas vezes têm um longo período
de duração. A importância da “concentração”
(edjapychaka), de “escutar seu coração e o de
Nhanderu” também é ressaltada.
Desde sua idealização, a formação de um
“Coral de Crianças” esteve marcada pela inten-
ção de constituição de um contexto de ensino-
aprendizagem voltado mais especifi camente à
educação das Kÿringué. O termo pelo qual os
Guarani de M’Biguaçu se referem à palavra en-
saiar é o mesma pelo qual se referem à palavra
aprender, Nhanhembo’é. Em relação de con-
tinuidade com a Opÿ, a participação no coral
propicia uma formação no mesmo sentido.
A implantação de uma escola, do mesmo
modo, envolveu uma preocupação com a edu-
cação das Kÿringué. No processo de “resgate”
cabe às Kÿringué, além do aprendizado da lín-
gua e da história, a problematização de assuntos
referentes à vida religiosa da aldeia, na qual elas
mesmas estão ativamente inseridas. Espaço de
ensino-aprendizagem da “tradição”, a escola é
chamada pelos Guarani de nhanhemboeaty, que
eles traduzem literalmente como “lugar onde a
gente aprende”.
Apesar de haver claramente uma intenção
das gerações mais velhas na formação das ge-
rações mais novas, esta não é concebida como
uma mera assimilação de saberes e exige um
envolvimento consciente e prático das crianças.
Nas rezas e no coral, enquanto aprendem, as
Kÿringué simultaneamente assumem posições
que possuem importante signifi cação mítico-
religiosa. São consideradas “protetoras”, “auxi-
lares” (Yvyraidjá) e “guerreiras” (Sondaro mirim /Sondarya) e atuam como mediadoras dos
adultos na relação com dois Outros: o “mundo
sobrenatural” e o “mundo djuruá”. Na escola, o bom andamento dos projetos depende prin-
cipalmente de seu envolvimento nos mesmos.
A partir do ponto de vista Guarani, pode-se
afi rmar que aquilo que a criança aprende com
o grupo, especialmente com o Karaí, consiste
apenas em meios para se atingir um tipo mais
pleno de aprendizado, aquele que se dá dire-
tamente entre o indivíduo e o Nhanderu, as
divindades e os antepassados. O líder religioso
é quem indica o “bom caminho”, aponta para
a “direção” que leva a Nhanderu. Cabe ao pró-
prio indivíduo, a partir de seu “interesse”, “es-
colher” segui-lo ou não. Como escolhedoras de
seus próprios “caminhos”, as Kÿringué seguem
de modo autônomo a direção indicada pelo
Karaí, o tcheramõi (avô). O fato de “escutarem” Nhanderu não im-
pede que tenham um certo deslumbramento
em relação aos djuruá, e que estejam sempre
dispostas a realizar incursões a este “outro
mundo”. Mas mesmo nesses momentos é à
“tradição” que recorrem para se relacionar com
o Outro. Ao eleger o canto como modo privi-
legiado de comunicação interétnica, escolhem
assumir-se como crianças Guarani.
Enfi m, as Kÿringué Guarani de M’Biguaçu
assumem em seu dia-a-dia papéis de extrema
importância para a vida social do seu grupo: são
crianças-religiosas, crianças-cantoras e crianças-
estudantes. Apesar da seriedade inerente a estes
papéis, estas Kÿringué não deixam de encontrar
modos de, em meio a estas experiências, ocu-
par grande parte de seu tempo em brincadeiras,
ensinando aos adultos que não precisam deixar
de lado a vivência lúdica do mundo para par-
ticiparem ativamente do processo de fazer-se
Guarani na atualidade.
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crianças Guarani”. Cadernos Cedes. Campinas: XXII
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CLASTRES, Helene. 1978. Terra sem mal: o profetismo tupi-guarani. São Paulo: Brasiliense.
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
resumo Este artigo se propõe a realizar um
exercício etnográfi co envolvendo a descrição de um
ritual intercomunitário conhecido como oloniti, que
coletamos entre os Paresi, grupo Arawak do Brasil
Central. O exame do ritual, em especial por sua re-
lação de simetria e inversão com o mito denomina-
do O castigo da festa errada, também oriundo dos
Paresi, permite desvelar certos códigos que gover-
nam as relações sociais, códigos estes que contêm,
a um só tempo, valores como a reciprocidade e a
predação. Apesar de seu caráter mais marcadamente
etnográfi co, acreditamos que esse caso, ora analisa-
do, possa vir a contribuir para uma refl exão teórica
feita hoje na Etnologia Sul-Americana sobre o lugar
da parceria e da guerra para os povos da região.
palavras-chave relações entre mito e ritual,
índios Paresi, reciprocidade, predação.
Oloniti e o castigo da festa errada: relações entre mito e ritual entre os paresi*
* Quero agradecer a Stela Abreu, Marcio Silva e João
Dal Poz pela leitura minuciosa e pelas valiosas suges-
tões ao texto.
RENATA BORTOLETTO SILVA
Mestre em Antropologia Social pelo IFCH/
UNICAMP e doutoranda em Antropologia So-
cial pela FFLCH/USP.
Artigo aceito para publicação em 12/07/05
abstract Th is article is an ethnographic exer-
cise intending to describe an intercommunity ritual
known as oloniti, that we collected among the Paresi,
an Arawak group of Central Brazil. Th e study of
this ritual, especially regarding its symmetrical and
reverse relationship with the so-called myth Th e punishment of the wrong party, that also originated
from the Paresi, allow to watch certain codes that
govern social relationships, and such codes consist
of values like reciprocity and predation. In spite of
its ethnographic aspect, we believe that the case
presently analyzed can contribute to a theoretical
refl ection done at present at South-American Eth-
nology about the question of war and partnership
among the people of this region.
keywords myth and ritual relationships,
Paresi indians, reciprocity, predation.
Introdução
Os Paresi falam uma língua da família Ara-wak e somam uma população de cerca de mil
indivíduos (OPAN 1996). Eles serão aqui cha-
mados Paresi, termo que, embora não corres-
ponda a uma autodenominação, é veiculado
na literatura etnográfi ca pelo menos desde o
século XVIII, quando ocorreram os primeiros
contatos. Eles costumam referir-se a si mesmos
como haliti, categoria que possui vários signi-
fi cados, dentre eles “dono” e “gente” (Schmidt
1943: 11; Costa 1985: 50).
Habitantes imemoriais da região sudoeste do
estado de Mato Grosso, os Paresi entraram em
contato com diferentes e, no mais das vezes, no-
civas frentes de expansão, tanto de ordem econô-
mica (mineração, extrativismo), como de ordem
religiosa (missões católicas e protestantes), o que
levou o grupo a uma severa depopulação nos
primeiros anos de contato. Hoje, sua população
cadernos de campo n. 13: 91-100, 2005
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encontra-se em expansão e está distribuída em
trinta aldeias ou grupos locais, freqüentemente
localizados ao longo de rios.1
Muito embora a bibliografi a etnográfi ca
recente sobre os Paresi seja razoavelmente ex-
pressiva, estamos ainda longe de ver esgotados
temas bastante elementares. Aí, certos aspectos
do domínio ritual aparecem muito timidamen-
te diluídos em outros temas como a história de
contato e a política indigenista, interesses mais
imediatos dessas pesquisas (Costa 1985; Ro-
berto 1994; Costa Filho 1996).
A morfologia social parece caracterizar-se por
constantes cisões dos grupos locais que, por de-
corrência, apresentam, em sua maioria, pequenas
dimensões e encontram-se dispersos geografi ca-
mente por um território relativamente vasto.
Apesar disso, as aldeias mantêm um certo grau
de integração, sobretudo aquelas de uma mesma
origem, ou seja, que são resultado da fragmen-
tação de um único grupo local, e costumam li-
gar-se por trocas matrimoniais e rituais. Uma das
formas de ocorrência de tais associações é o ritual
do oloniti, momento em que grupos com laços
socialmente distantes se encontram e expressam
suas relações. Seu caráter conjuntivo também se
expressa simbolicamente, como procuraremos
demonstrar neste exercício analítico, de tal modo
que valores como a generosidade e a reciprocida-
de são continuamente evocados durante o ritu-
al. Além disso, o caso paresi pode se tornar um
exemplo etnográfi co interessante, vindo a contri-
buir para uma refl exão bastante atual na Etnolo-
gia Sul-Americana sobre o lugar da reciprocidade
e da guerra nos esquemas sociais da região (Vi-
veiros de Castro 1986; McCallum 1990; Rivière
1. Estive entre os Paresi nos meses de outubro de 1996
a janeiro de 1997, quando realizei meu trabalho de
campo para a pesquisa de mestrado junto ao Progra-
ma de Pós-graduação em Antropologia Social pela
UNICAMP. Os dados aqui arrolados estão contidos
na dissertação de mestrado que resultou dessa pesqui-
sa (Bortoletto 1999).
2001; Fausto 2001), uma vez que o ritual evoca,
seja como possibilidade, seja como efetivação, a
predação em seu quadro geral. Passemos a ele.
Etnografi a do oloniti
Oloniti é o nome dado à principal festa dos
Paresi. Esse é também o termo usado para a be-
bida fermentada, feita com o polvilho torrado
da mandioca brava (Manihot esculenta), servida
durante o ritual. A festa é motivada pelos se-
guintes acontecimentos: nominação da criança,
iniciação feminina e cura de doenças. Apesar de
ocasiões aparentemente díspares, há algo que
une esses momentos, pois em todos eles trata-se
de receber um nome, novo no caso do batizado,
reforçado no caso da iniciação e da cura.
Assim, o rito tem um papel na produção da
pessoa, pois para os Paresi o nome “é o espírito
da pessoa” e “serve para dar vida” (Costa 1985:
188). Liga-se ainda à fertilidade da natureza,
uma vez que apresenta íntima relação com as
fases do ciclo produtivo. Ele é realizado durante
a seca, entre os meses de abril e setembro, pe-
ríodo de colheita da mandioca e no qual a caça
é mais abundante (Rondon & Faria 1948: 58;
Costa 1985: 167; Rowan & Rowan 1972: 67).
A oferta de comida e bebida em grande
quantidade é a condição material da realiza-
ção do ritual. Já as condições sociológicas e
cosmológicas são garantidas pela presença dos
convidados que são, via de regra, indivíduos de
grupos locais relativamente afastados no coti-
diano e, como veremos, simbolizam os espíri-
tos que acedem ao ritual. Tais requisitos podem
ser depreendidos na maneira como é feito o
convite para as grandes festas de chicha, oloniti kalorecê (kalorecê = grande), ou seja, para aque-
las em que concorrem várias aldeias. Depois
que os caçadores retornam da caçada, o dono
da festa, harekaharé, ou um outro homem da
aldeia, sai levando uma corda feita de tucum na
qual são feitos nós indicando os dias que faltam
cadernos de campo • n. 13 • 2005
OLONITI : |
para o início da festa. Chegando à aldeia a ser
convidada, o dono da festa profere, no pátio
central, o manati, uma “dissertação histórica
ou religiosa que se faz nos festivais” (Rondon
& Faria 1948: 52). Como introdução do con-
vite, é relatado o mito da origem da mandioca,
conforme o qual uma menina, aborrecida com
o desprezo com que era tratada pelo pai, pede
à sua mãe que a enterre no mato. Do corpo da
menina surge a mandioca. Depois de contado
o mito, assim se expressa o dono da festa:
“Morreu muita ema, muito veado, muito peixe e mais caça ainda”, obtendo como resposta do
mais velho da aldeia:
“Morreu muita ema, muito veado, muito peixe e mais caça ainda: nós vamos para a festa de vocês”
(Pereira 1986: 128).
Aceito o convite, as pessoas arrumam seus
pertences e prontamente seguem o dono da fes-
ta até a aldeia anfi triã. Chegando lá, a entrada
não ocorre imediatamente. Eles permanecem na
região que circunda a aldeia e se vestem com rou-
pas especialmente reservadas para essas ocasiões.
Mais tarde, os primeiros convidados, apenas os
homens, adentram o pátio da aldeia. Dois dentre
eles são designados zekáhatihareze, aproximada-
mente “festeiro malvado” (Costa 1985: 177), e
empunham varas compridas com penachos em
suas pontas denominadas iohoho, com as quais
batem nas casas onde estão as mulheres da aldeia
anfi triã: a simulação do ataque cessa com a che-
gada dos anfi triões trazendo chicha. Num dos
lados da aldeia, juntam-se todos os homens para
quebrar o tanohã, duas varas de tamanhos dife-
rentes que são colocadas sobre duas estacas fi xas
ao chão e rompidas pelos homens com a utiliza-
ção de seus ombros. As varas quebradas, pintadas
com círculos feitos de urucum, são entregues aos
donos da festa e levadas em seguida para a casa
das fl autas, Yámaka, permanecendo ali durante
um tempo e depois dispensadas.
Yámaka ou jararaca é, segundo Pereira (1986:
31), o nome dado às fl autas secretas, as quais as
mulheres não devem avistar. Tais objetos fi cam
cotidianamente guardados numa casa especial-
mente construída para elas e denominada yámaka hanã (em que hanã = folha, casa). Ao contrário
das malocas paresi, com duas portas voltadas para
o nascente e poente, as casas das fl autas possuem
apenas uma porta, sobre o eixo norte-sul.2
Um dos temas que subjaz ao oloniti diz res-
peito precisamente aos oferecimentos que se faz
aos espíritos. Como mencionado, alguns desses
espíritos são personifi cados em instrumentos
musicais, tais como yámaka. Essa associação
entre instrumentos musicais, em especial os
aerofônicos, e espíritos poderosos e perigosos é
bastante difundida em grupos das Terras Baixas
da América do Sul, sejam eles Arawak ou não.
Do mesmo modo a interdição ligada às mu-
lheres também é comum e aparece referenciada
pela mitologia com base na posse ancestral que
elas tinham do instrumento e lhes foi roubada
pelos homens (Piedade 2004: 111-ss).
No ritual do oloniti, além de yámaka, há
também xíhali, um outro tipo de fl auta que en-
tra também em cena. Ao contrário da yámaka,
xíhali fi ca guardado cotidianamente dentro de
casa, não sendo interdito às mulheres. A referi-
da fl auta, cujo nome é o mesmo que se dá aos
2. É interessante notar que, embora não sendo Paresi,
a interdição foi estendida a mim, o que se verifi cou
também com uma pesquisadora que esteve entre os
Waujá, grupo Arawak do Alto Xingu (Piedade 2004).
No entanto, Gregor (1982), em seu trabalho entre
os Mehináku, os quais também têm restrições a que
as mulheres do grupo avistem as fl autas, nos faz o
seguinte relato: quando mulheres Txicão, um outro
grupo xinguano, em visita aos Mehináku, adentra-
ram a casa das fl autas, não sofreram a punição espera-
da, o estupro, segundo os Mehináku, por não serem
mulheres do grupo. Desse modo, o fato de ter sido
proibida de presenciar a dança com as yámaka indica
que, para os Paresi, eu era mulher antes de ser branca,
ou seja, ao contrário dos Mehináku, aí prevalece o
gênero em detrimento da origem do indivíduo.
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besouros (Coleóptero, indistintamente), uma
vez que o formato circular e achatado da fl auta
lembra o inseto, fi ca guardada em um bornal
pendurado na haste principal da casa.3 Ambos,
yámaka e xíhali, são instrumentos de posse
individual e sua transmissão se dá de pai para
fi lho. Porém, para quem os possui, e também
em relação aos parentes próximos do dono, são
exigidos oferecimentos cotidianos de carne,
beiju e chicha, caso contrário tais espíritos po-
dem trazer malefícios aos seus donos.
Há ainda outros seres para os quais é possível
estabelecer relações com oloniti. São os donos
de alguns animais consumidos pelos Paresi, tais
como o dono das emas e dos veados campeiros,
Enoharé (Pereira 1986: 21), e o dono do quei-
xada grande, Ahózay (Pereira 1987: 463). Para
esses são feitos oferecimentos cotidianos à porta
da casa das fl autas, bem como nos rituais.
Se não houver os cuidados regulares para
com os espíritos, sejam eles personifi cados ou
não nas fl autas, esses podem se indispor com
os humanos causando-lhes doenças bem como
outros infortúnios. Além dos oferecimentos, há
também uma série de tabus a serem obedecidos
quando da preparação dessas festas, tais como
as interdições sexuais, dentre outras que, se não
forem seguidas, podem ocasionar malefícios ao
descumpridor e aos seus parentes próximos.
Voltando ao esquema do rito, temos que a
quebra de Tanohã é seguida pela entrega das
fl autas sagradas pelos anfi triões aos convidados
que, por sua vez, deixam a aldeia em direção ao
mato. A passagem das Yámaka vem a indicar
uma associação, já apontada por outra autora
(Costa 1985: 180; 184), entre homens e espí-
ritos que ocorre no ritual. Segundo os Paresi,
quem, de fato, participa da festa são os espí-
ritos: eles bebem a chicha, cantam e dançam.
Vejamos isso mais de perto.
3. Segundo os Paresi, nem todas as casas têm a fl auta xíhali, assim como nem todos os homens têm fl auta secreta.
Convidados e anfi triões
A entrada das mulheres no ritual nos ajuda
a esclarecer melhor a posição de convidados e
anfi triões na festa. Elas entram na aldeia depois
dos homens e são recebidas apenas pelas anfi triãs
que as encaminham para os locais onde fi carão
as redes. Os homens retornam ao pátio da aldeia
onde, empunhando outras varas, novamente ata-
cam a casa onde estão agora todas as mulheres.4
Dessa perspectiva, os ataques às casas onde es-
tão as mulheres nos levam a pensar que a clave an-
fi trião/convidado pode corresponder a uma outra,
de caráter sexual, que opõe mulheres e homens.
Como se viu, são todas as mulheres que vão para
casa (ocupando a posição de anfi triões, de dentro),
enquanto os homens estão no pátio (na posição
de convidados, de fora). Além disso, os anfi triões
levam a chicha para os convidados, desempenhan-
do uma tarefa que é feminina no cotidiano.
Além das questões de gênero, oloniti im-
prime também nas relações entre convidados e
anfi triões sentimentos de hostilidade próprios
aos afi ns. O canto chamado Zeratyalo – em
que zerati signifi ca cantar (Rondon & Faria
1948: 70), e cujo nome designa um dos tipos
de fl auta5 – apresenta motivos que evidenciam
4. As convidadas, durante o ataque realizado pelos ho-
mens à casa, permanecem ajeitando suas redes e os seus
pertences, enquanto as anfi triãs continuam seus afaze-
res, enchendo os baldes de chicha que os anfi triões vêm
apanhar, dentre outras tarefas. Dito de outro modo,
no interior da casa, o clima predominante não é o de
temor pelos ataques sofridos da parte dos homens.
5. A informação que me foi dada em campo fazia alusão
a quatro tipos de fl autas, a saber, amore, tzéyrû, zerá-tyalo, xíhali. Já Pereira (1986: 31) refere-se a, além des-
tas, outras nove: hiétã, hwerare, txeyxikaharé, imókolo, zoláhî, kaxie, tiryama, ayririkwaré e walalosé. Imókolo, foi dito por um informante ser uma das varas com
as quais os homens atacam as casas. Já walalosé cor-
responde, segundo outro informante, a um momento
ritual que ocorre dentro da casa e tem como instru-
mento musical xíhali, como veremos adiante. Kaxie é
também o nome dado à fl auta de Pã, Zerô.
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OLONITI : |
certos confl itos entre sogro e genro. Vejamos
então,
Abandone Uati
Meu genro Macaquarece
Não tem nada
Meu genro preguiçoso
Não se vê serviço dele
(...)
Nem jacaré tem pra comer
Eu mesmo cuido de ti
Minha fi lha Cahala.(Rondon e Faria 1948: 78)
Essas e outras canções com as yámaka esten-
dem-se até por volta das duas horas da madru-
gada, quando essas últimas são guardadas na
casa das fl autas, e os homens ainda de braços
dados adentram a casa onde está a chicha. Com
a entrada dos homens na casa, as mulheres, que
até esse momento descansavam em suas redes,
preparam-se para dançar o zolane, termo para o
qual não obtive tradução, mas que Rondon &
Faria (1948: 72) e Costa (1985: 183) afi rmam
tratar-se de um instrumento musical.
A dança cessa nos momentos em que os anfi -
triões oferecem bebida e comida aos cantadores
e dançadores, precisamente as pessoas que mais
bebem durante uma festa. A obrigação de acei-
tar chicha está embutida na própria designa-
ção de convidado, oloniti hoaheré, “aquele que
bebe chicha” (Rowan e Rowan 1972: 67; Costa
1985: 170). A chicha (de mandioca e abacaxi)
trazida pelos festeiros é bebida em quantidade
pelos convidados até provocar o vômito.
Esses oferecimentos, por sua vez, podem
apresentar um caráter ambíguo. De um lado, tal
obrigação parece ter conotação semelhante àque-
la dos Wari descritos por Vilaça (1992), para os
quais as ofertas constantes de chicha aos convi-
dados até que esses “morram” são tidas como
uma vingança pela destruição que provocaram às
casas dos anfi triões. No caso aqui em questão, o
mesmo parece se dar, pelo menos num determi-
nado momento, já que, segundo Costa (1985:
181), os festeiros malvados, aqueles que primeiro
adentraram a aldeia empunhando as varas com as
quais batiam nas casas, bebem mais porque de-
vem ser punidos por terem danifi cado as casas.
De outro lado, é interessante contrapor aqui
um trecho retirado de uma canção enunciada
quando se fazia a preparação para a festa do Ko-titiko. Diziam os cantadores: “estamos cantando
bonito, nos dê chicha”. Nesse período da prepa-
ração apenas participam os co-anfi triões, além
de partes do ritual serem suprimidas, sobretudo
aquelas que simulam ataques guerreiros. Pare-
ce-nos, assim, que a diferença nos atributos as-
sociados à bebida, ora como punição, ora como
gratifi cação, corresponde a diferenças atribuídas
aos participantes: para os primeiros, tidos nesse
momento como inimigos, a chicha viria a do-
mesticá-los; já para os segundos, parentes pró-
ximos, a chicha viria a gratifi cá-los.
O momento ritual descrito até aqui parece
expressar-se, portanto, por uma certa agressivi-
dade e, conseqüentemente, caracteriza-se pela
potencialidade dos confl itos. Tal caráter torna-
se mais evidente pelos acontecimentos que des-
creverei a seguir.
Estes fatos têm lugar apenas durante a pri-
meira noite de execução da dança no interior
da casa, num determinado momento em que
os cantos que têm como temas certos mitos são
substituídos por improvisações que versam sobre
fatos do cotidiano, em especial relações extra-
conjugais ou outros fatos geradores de intrigas e
desentendimentos que envolveram a platéia pre-
sente, colocando em perigo o convívio social, e
que são relatados e discutidos abertamente.6 As
6. Assim, à diferença das improvisações que marcam os
cantos dos caçadores guayaki, belamente descritos por
Clastres (1990), através dos quais esses homens pro-
curam proclamar a sua individualidade, e, portanto,
uma afi rmação do indivíduo, são a vida em sociedade
e os problemas que colocam em risco uma convivência
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atitudes dos convidados para com os anfi triões
a essa altura da festa não se caracterizam pela
polidez. Há, por exemplo, inúmeros relatos de
brigas ocorridas durante as festas, o que muitas
vezes resulta na saída antecipada de um grupo de
convidados, antes do fi m do ritual.
É ainda durante essa etapa do ritual que os
homens deixam a maloca e se dirigem à casa das
fl autas com alimentos recebidos. Lá, as porções
são distribuídas entre os ocupantes, que então
retornam à maloca, levando nesse instante a
fl auta denominada xíhali. A referida fl auta, cujo
nome é o mesmo que se dá aos besouros, uma
vez que seu formato lembra o inseto, fi ca guarda-
da em um bornal pendurado no esteio principal
da casa. Nos dias de festa, enquanto é tocada,
predomina um clima de euforia geral em que os
convidados tentam destruir objetos da casa, vo-
mitar sobre a comida, ou ainda apagar o fogo.
Aí, como se referiu um informante, “já é uma
questão de bagunça”. Os donos da casa, na ten-
tativa de proteger alimentos e outros pertences,
tentam escondê-los do ataque dos convidados.
A intenção não é a de consumir tais bens, como
ocorre em situações similares descritas para ou-
tras sociedades, como em um ritual dos Cinta
Larga, grupo Tupi Mondé que habita a porção
noroeste do estado de Mato Grosso, relatado por
Dal Poz (1991). Entre os Paresi, o intuito é o da
destruição de tais bens. De qualquer modo, am-
bos parecem evocar um potlatch, instituição de
troca total descrita por Mauss (1974), em que o
ofertante, ao se despojar de todos os seus bens,
submete o convidado, que se torna um devedor
e deverá retribuir com outro, porém mais consi-
derável do que aquele que recebeu.
No dia seguinte, os homens costumam ini-
ciar um dos dois jogos comumente praticados
nas festas paresi: zicunati e tirimore.7 Tais disputas
harmoniosa, os temas para os cantos e as improvisações
paresi que ocorrem durante a primeira noite do ritual.
7. O primeiro, no qual dois times compostos de três a
dez jogadores se enfrentam, tem como objetivo evitar
apresentam um caráter fortemente ritualizado e,
por essa razão, devem ser distinguidas de outras
modalidades, como os campeonatos de futebol,
de que também participam os Paresi,8 uma vez
que nos confrontos rituais as equipes devem se
enfrentar até que ambas tenham obtido a vitória
(Costa 1985: 408; Machado 1994: 102). Pode-
mos, inclusive, fazer um contraponto dos jogos
rituais com as partidas de futebol que acontecem
entre as aldeias.
Assim, a diferença entre as partidas de fu-
tebol e os jogos tradicionais pode ser melhor
esclarecida ao recorrermos às sugestões feitas
que a bola feita de mangaba caia no chão, utilizando
para isso a cabeça. Ganha aquele que conseguir lançar
três bolas no campo adversário, um retângulo traçado
no pátio da aldeia. Já tirimore, do qual participam duas
equipes ou apenas dois indivíduos, consiste em arremes-
sar manualmente uma bola de marmelo com o objetivo
de atingir duas estacas de arame fi ncadas no solo e sobre
as quais espetam-se dois grãos de milho. Os jogadores
posicionam-se a cerca de dez metros das estacas que de-
vem acertar. Muito embora os jogos aconteçam nas fes-
tas, eles não estão circunscritos apenas a essas ocasiões.
Para que um jogo de bola de cabeça ocorra, basta que
uma aldeia convide outra que, por sua vez, não pode
recusar o convite, que os Paresi chamam de “desafi o”
(Costa 1985: 406). Este é o termo usado para descre-
ver a forma como se dão os convites para as lutas entre
os Mehináku do Alto Xingu. Um outro ponto comum
com os vizinhos xinguanos é que entre esses as lutas não
fi cam restritas aos rituais, podendo acontecer no coti-
diano, quando se enfrentam pessoas de uma mesma
aldeia. Já nos rituais, os times que entram na disputa
são compostos por pessoas das aldeias anfi triãs contra
as dos convidados. Atualmente, as apostas restringem-se
aos bens ditos de imoti (branco) – sabão, fósforos, linha,
agulha –, mas antigamente apostavam-se arcos, fl echas
e machados (Faria 1924: 272), ou ainda alguns homens
podiam apostar suas irmãs (Costa 1985: 406-ss).
8. Os Paresi realizam em alguns fi nais de semana, com-
petições semelhantes aos nossos campeonatos, das
quais participam equipes de futebol de grande nú-
mero de grupos locais. Também como nos nossos
torneios, lá os times se enfrentam até que o melhor
classifi cado seja considerado vencedor, com direito
inclusive a um troféu.
cadernos de campo • n. 13 • 2005
OLONITI : |
por Lévi-Strauss (1970b: 54) sobre a distin-
ção entre rito e jogo. O jogo, por seu caráter
disjuntivo, resulta em uma divisão diferencial
entre jogadores individuais ou equipes, que não
eram designados, a princípio, como desiguais.
No entanto, no fi m da partida, distinguir-se-ão
em vencedores e perdedores. De maneira simé-
trica e inversa, o ritual é conjuntivo, uma vez
que, de uma diferenciação inicial, institui uma
união ao fi nal. Nessa perspectiva, nas partidas
de futebol paresi, terminada a competição, os
homens voltam às suas respectivas aldeias, al-
guns como vencedores, outros como perdedo-
res. De modo inverso, percebemos nos “jogos”
que acontecem durante um ritual, que terão
continuidade em outras ocasiões para que, en-
fi m, terminem “empatado”, ou seja, até que os
oponentes terminem iguais, como no ritual.
Essa “igualdade” está também relacionada
a um outro aspecto desse momento ritual, a
saber, à preparação pelas mulheres, a partir da
mandioca d’água, do kazalo, em substituição
ao oloniti (chicha), não mais ingerido. Kazalo,
feito na tarde do segundo dia do ritual, é uma
bebida doce servida quente. Ao contrário do
oloniti, cuja ingestão exagerada provoca o vômi-
to, kazalo não é ingerido para ser vomitado. Do
mesmo modo como afi rmou Dal Poz (1991)
para uma das bebidas rituais dos Cinta Larga
que, por ser bebida exageradamente e provocar
o vômito não serve como alimento, o oloniti também possui o caráter de anti-alimento.
Assim, a mudança do tipo de bebida consu-
mida marca, ao meu ver, a distinção entre dois
momentos do ritual. O primeiro descrito até
aqui, consistiu na chegada dos festeiros, bem
como na primeira execução da dança no pátio
com as yámaka e da dança na maloca, cujo fi nal
culminou com a destruição dos bens dos anfi tri-
ões por convidados “bagunceiros”. Uma segunda
fase, que já começamos a descrever, tem início
com os jogos entre as equipes formadas por an-
fi triões e convidados, seguido pelo banho no rio
e a nominação, bem como pelas novas execuções
da dança na casa e com a yámaka. O ponto fi nal
dessa segunda fase corresponde aos pedidos de
presentes pelos convidados. Vamos a ele.
Já quando os convidados preparam-se para
deixar a aldeia, acontece a “dança da formigui-
nha”, “zokó-zokó”. Esse termo designa a formiga-
de-fogo ou lava-pés (Solenopsis sp). Esse momento,
assim como os ocorridos no interior da casa, é
marcado por grande descontração. Um ou mais
homens convidados colocam-se à porta da casa
onde a festa se realizou e, com passos curtos de
dança vão e vêm na direção da casa, solicitando
roupas, alimentos, fi os de linha, animais, assim se
expressando textualmente: “A formiga de fogo já
vai embora. Ela mora longe e quer alguma coisi-
nha para a viagem” (Roquette Pinto 1950: 346).
Os moradores que permanecem dentro da casa
depositam, do lado de fora, os presentes no chão e
respondem, a cada entrega, de acordo com o que
foi pedido. Assim, para oloniti: “Toma o resto da
chicha que oferecemos a yámaka”.
A referência à formiga nessa parte do ritual
parece-me associar-se a uma característica do ani-
mal de apanhar e levar nas costas para a casa ali-
mentos que encontre pelo chão. Os Paresi fazem
o mesmo nesse momento ritual e vão para casa
carregando os presentes. Além disso, no zokó-zokó
que presenciei, o último pedido, proferido num
tom de brincadeira ainda maior, tinha como ob-
jeto uma criança da casa. Anunciaram o nome da
menina e completaram dizendo que ela já estaria
grande quando voltassem.9 Todos riram, o grupo
se desfez e começou a partida.
Mito e ritual
O percurso seguido na descrição dos pas-
sos do ritual procurou evidenciar dois de seus
9. Nesse caso, o rito promove uma inversão da prática
social, uma vez que a regra de uxorilocalidade tempo-
rária, seguida pelos Paresi, faz com que o homem se
mude para a aldeia do sogro e não o contrário.
cadernos de campo • n. 13 • 2005
98 |
momentos que nos parecem distintos e corres-
pondentes a atributos e comportamentos dife-
renciados que se associam aos convidados da
festa. Há um mito, denominado “O castigo da
festa errada” (Pereira 1986: 424-26) que, por
conter a imagem invertida dos procedimen-
tos considerados corretos no ritual, ajuda-nos
a elucidar esses aspectos do ritual. O mito, em
resumo, conta que:
As pessoas de uma aldeia preparavam-se para
dar uma festa. O dono da festa resolveu então
sair para caçar, enquanto as mulheres fi cavam na
aldeia preparando a chicha. Seu fi lho, que vivia
sempre junto das mulheres, não quis acompa-
nhá-lo. Quem seguiu o caminho do pai foi sua
fi lha, que estava perto da primeira menstruação.
Nesse caminho passou por um morro, uma
baixada até chegar ao mato, onde fi nalmente
encontrou o pai. Surpreso com a chegada da
menina, o pai a repreendeu pois estava perto
da menarca e por esse motivo não deveria estar
lá, mas em casa. A menina respondeu que sabia
disso, mas quis vir assim mesmo e foram pescar.
Foi no rio que a garota menstruou, mas nada
disse ao seu pai. Dormiram à beira do rio. En-
quanto dormiam, seres espirituais denominados
homens do mato e homens da água foram se
aproximando, até que mataram e comeram pai
e fi lha. Depois disso os espíritos, transformados
nos humanos que haviam matado, tomaram o
caminho da aldeia.
Lá, sabendo da menstruação da menina, sua
mãe, que não percebeu que a fi lha havia se
transformado em homem do mato, mandou-a
para o quartinho de reclusão. A menina dormia
muito e se recusava a tomar banho.
Nos dias seguintes começaram a chegar os con-
vidados. O dono da festa-homem do mato, em
vez de fazê-lo ele mesmo, mandou que os outros
levassem chicha aos convidados no acampamen-
to da festa. De novo recusou-se a levar chicha
para os convidados que tocavam a fl auta secreta,
assim como não ofereceu carne de caça a eles.
Ao invés disso, fumava os cigarros preparados
para a ocasião. A moça, por sua vez, recusava-se
a dançar com os moços.
A um sinal dos espíritos que se apresentavam
sob a forma de pai e fi lha, outros espíritos aden-
traram a aldeia matando e comendo todos os
participantes.
O não retorno dos convidados às aldeias de ori-
gem começou a despertar preocupação em seus
parentes, que foram tentar descobrir o que acon-
tecera. Então, um espírito lhes falou que todos
haviam morrido porque Enoharé mandara os
homens do mato e da água matá-los e comê-los,
como punição a alguns fatos ligados à festa como
a menina ter sua primeira menstruação no mato
e homens e mulheres terem relações sexuais du-
rante a preparação da bebida fermentada.
O mito acima descrito contém várias passa-
gens do ritual paresi de iniciação feminina, só
que os apresenta de maneira invertida ao modo
como deveriam ocorrer. Senão vejamos.
Em relação aos procedimentos correspon-
dentes à fase de preparação do ritual, a menina
deve permanecer em reclusão, tendo contato
apenas com a mãe e a irmã do pai até que chegue
a sua primeira menstruação. Sua saída do quarto,
onde esteve reclusa, só ocorre durante o segun-
do dia do ritual quando, acompanhada por dois
rapazes, corre em direção ao rio para banhar-se.
Posteriormente, a inicianda participa da festa,
devendo dançar com os rapazes, numa atitude
de plena disposição para com os convidados.
Esses últimos, durante a festa, devem fartar-se
de bebida, servida insistentemente pelo dono da
festa. Por fi m, os convidados pedem presentes
aos anfi triões, para só depois irem embora.
Por sua vez, o mito, como para anunciar
um conjunto de inversões que vão se suceder,
tem início com um absurdo, não apenas do
ponto de vista do ritual como da própria vida
social, ao relatar que uma moça menstrua no
cadernos de campo • n. 13 • 2005
OLONITI : |
mato quando deveria estar em reclusão, e que o
irmão não acompanha o pai na caçada, fi cando
com as mulheres na aldeia. Além disso, quando
pai e fi lha voltam, “homens do mato”, na ver-
dade, escapam às suas obrigações de doadores
em relação aos convidados, receptores.
O interesse da Etnologia pelas relações entre
mito e ritual remonta a Durkheim e Malino-
wski, dentre outros importantes autores, mas é
apenas a partir de Lévi-Strauss que tais relações
deixam de ser tomadas unicamente como re-
dundância. Conforme nos mostra Lévi-Strauss
(1970a: 255) ao comparar um mito Pawnee
com ritos dos Mandan e Hidatsa, povos das
planícies norte-americanas, essa relação não se
funda em uma espécie de causalidade mecâni-
ca, mas no “plano de uma dialética acessível
somente sob a condição de ter, previamente,
reduzido ambos a seus elementos estruturais”.
É assim também que, no caso paresi, redu-
zindo o mito “O castigo da festa errada” e o
rito de iniciação feminina a alguns de seus ele-
mentos estruturais, podemos visualizar então
os contrastes encontrados.
Rito: enquanto as mulheres permanecem na aldeia, os homens saem como caçadores.
Mito: enquanto o fi lho permanece com as mulheres na aldeia, pai e fi lha tornam-se caça.
Rito: quando entram na aldeia, os convidados transformam-se em espíritos ancestrais.
Mito: quando estão no mato, os homens do mato transformam-se em anfi triões.
Rito: anfi triões dão em excesso aos convidados-espíritos an-cestrais, que nunca recusam.
Mito: homens do mato-anfi triões sequer fazem oferecimentos aos convidados, que sempre pedem.
Rito: convidados-espíritos ancestrais pedem presentes para leva-rem, quando saírem da aldeia.
Mito: anfi triões desmascarados trazem outros homens do mato para dentro da aldeia, a fi m de devorarem os convidados.
Tais contrastes, fl agrados na comparação en-
tre mito e ritual merecem alguns comentários:
em primeiro lugar, o mito, pela imagem invertida
que fornece, chama a atenção para a importância
dos oferecimentos para o bom desfecho da festa.
Como vimos, no oloniti, as atitudes dos convi-
dados, a princípio pouco amistosas, vão sendo
modifi cadas. O motor de tal transformação nos
parece ser a bebida, posto que ela é servida so-
bretudo nos momentos em que os convidados
se mostram mais perigosos: quando tentam des-
truir a casa com as varas e no momento em que,
já no seu interior, tentam destruir tudo o que
nela se encontra. Além disso, quando os convida-
dos vão adquirindo boas maneiras, já no segun-
do dia do ritual, e começam os jogos que, como
observamos, apresentam um caráter conjuntivo,
de aproximação entre os participantes, a bebida é
substituída: oloniti não será mais ingerido e kaza-lo, bebida adocicada consumida como alimento
no cotidiano, ou seja, nos momentos em que se
está entre iguais, passa a ocupar o seu lugar.
A substituição da bebida aparece ainda as-
sociada a outras oposições que diferenciam o
momento ritual que se inicia. Primeiramente, a
ordem das danças é invertida, pois se no primei-
ro dia a dança com yámaka precede aquela no
interior da casa, no segundo, é com a dança no
interior da casa que a noite se inicia. Em segundo
lugar, durante a dança na maloca já não aconte-
cem mais as improvisações dos cantos relatando
brigas e desentendimentos entre os participantes,
bem como não se praticam mais ataques às casas
ou aos bens nelas contidos, indicando mudanças
nos atributos associados aos convidados.
Nesse sentido, as relações com os convidados,
vistas no início sob o signo da inimizade e do
confl ito, rumam para um fi nal em que o acento
é colocado sobre a parceria e a troca entre os gru-
pos envolvidos. Digo isso me amparando no fato
de que a continuidade nos rituais é enunciada
em vários de seus momentos: nos jogos que terão
seqüência até que terminem empatados, no mo-
mento da partida, quando se pede uma menina
dizendo que virão buscá-la numa ocasião futura,
cadernos de campo • n. 13 • 2005
100 |
ou ainda porque, ao aceitar o convite, o convida-
do se vê obrigado a retribuir.
Por outro lado, ao aproximarmos oloniti a ou-
tros rituais de grupos lingüisticamente aparenta-
dos ou geografi camente próximos, percebemos
que nesses últimos o próprio ritual encerra uma
troca, já que o convidado retribui durante a exe-
cução da festa os presentes recebidos, seja levan-
do o peixe, como entre os Enawene Nawe (Silva
1998), seja entregando o artesanato, no caso dos
Cinta Larga (Dal Poz 1991). Já no ri tual paresi
o anfi trião é o único doador: de bebida, comida,
roupas, artesanato, dentre outros bens. Porém,
assim como aqueles, oloniti também instaura
reciprocidade, mas aqui, esta se desenrola em
um ciclo longo, com desdobramentos num mo-
mento futuro quando houver a retribuição dos
presentes, completando um ciclo de troca.
Enfi m, o rito parece se constituir em um
circuito de trocas diferidas, ou seja, em que as
posições de doadores e receptores não são inter-
cambiáveis e que agrega também em si o tema
da predação, seja esta como possibilidade, como
nos mostra a narrativa mítica, em que a recusa
em oferecer leva a um desfecho de guerra e ca-
nibalismo, seja efetivamente pelas atitudes dos
convidados que pedem o tempo todo, chegan-
do a destruir bens e alimentos dos anfi triões.
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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1986. Araweté: os deuses canibais. ANPOCS/Zahar.
cadernos de campo • n. 13 • 2005
resumo Conforme Walter Benjamin apontou
em seu ensaio “A obra de arte na era da sua repro-
dutibilidade técnica”, diante das modernas técnicas
de reprodução a arte vê-se destituída de sua aura,
fundamento de sua autenticidade. Para o autor, só
seria possível mostrar as condições sociais de tal de-
cadência entendendo-a não como perda de impor-
tância da arte no mundo moderno, mas sim como
alterações no medium de percepção contemporâneo.
Tratando do cinema e da fotografi a, diz Benjamin
que a reprodução técnica tanto autonomiza a arte
de sua existência no ritual, inserido-a agora numa
práxis política, como as obras que reproduz permi-
tem acessar o inconsciente óptico da sociedade mo-
derna. Partindo das sugestivas idéias deste autor, e
tomando como objeto de refl exão o disco, procura-
mos nesse trabalho explorar algumas possibilidades
de tratamento etnográfi co do material fonográfi co
no âmbito de uma etnografi a da música, procuran-
do neste material algo além de sua capacidade de
testar hipóteses.
palavras-chave teoria crítica e etnografi a
da música, reprodução técnica da música (disco),
medium de percepção contemporâneo, inconsciente
auditivo.
Relendo Walter Benjamin: etnografi a da música, disco e inconsciente auditivo*
* Versão revista e ampliada do trabalho apresentado
na 24ª Reunião Brasileira de Antropologia, FP 25:
Perspectivas antropológicas das sensibilidades musi-
cais contemporâneas, coordenado pelas professoras
ANDRÉ-KEES DE MORAES SCHOUTEN
Mestrando em Antropologia Social pela FFLCH/
USP, membro do Núcleo de Antropologia da
Performance e do Drama (NAPEDRA/USP) e
bolsista FAPESP.
Artigo aceito para publicação em 05/09/05
GIOVANNI CIRINO
Mestrando em Antropologia Social pela FFLCH/
USP, membro do Núcleo de Antropologia da
Performance e do Drama (NAPEDRA/USP) e
membro do Grupo de Som e Música em Antro-
pologia (SOMA/USP).
abstract According to Walter Benjamin’s es-
say “Th e work of art in the age of mechanical re-
production” the art’s aura, its autenticity basis, is
destroyed facing modern techniques of reproduc-
tion. For this author, we can show the social condi-
tions of this decadence understanding it not as a
reduction of the importance of the art in the mod-
ern world, but as alterations on the contemporary
perception medium. Analysing the cinema and the
photography, Benjamin writes that the thecnical re-
production emancipates the art from its parasitary
existence inside the ritual, and puts it in the politi-
cal praxis, as well as the works that it reproduces give
access to the optical unconscious of the modern so-
ciety. From the suggestive ideas of this author, and
assuming the record as refl ection object, we would
like to explore some possibilities of ethnographic
treatment for phonographic material, in the range
of ethnography of music, searching in this material
something beyond its capability to test hypothesis.
keywords critic theory and ethnography of
music, technical reproduction of music (record),
contemporary perception medium, aural uncon-
scious.
Elizabeth Travassos (Instituto Villa-Lobos – PPGM/
UNIRIO) e Santuza Cambraia Naves (PUC/RJ
– NUM/CESAP/UCAM). Olinda, junho de 2004.
cadernos de campo n. 13: 101-114, 2005
102 | -
Introdução
Apesar de realizarmos pesquisas um tanto
distintas (as práticas da música popular instru-
mental na cidade de São Paulo e a experiência
do sertão na obra fonográfi ca de Elomar Fi-
gueira Mello), temos nos discos um importante
material, o que nos colocou às voltas com um
problema comum:1 seria possível um tratamen-
to etnográfi co deste material fonográfi co ou, em
outras palavras, que lugar ele ocuparia no con-
texto de um empreendimento etnográfi co? O
que por ora apresentamos são algumas ponde-
rações acerca das possibilidades de tal tratamen-
to no âmbito de uma etnografi a da música.
De início, apresentamos a maneira como
Anthony Seeger (1992) e John Blacking (1995)
entendem a noção de etnografi a da música, sa-
lientando a posição que reservam aos discos e
outros meios técnicos de captação e reprodução
sonora. Para esses autores, dada a capacidade
que trazem de iludir quanto à essência humana
da música (o fazer musical), tais meios não for-
neceriam chaves signifi cativas para a compreen-
são da natureza do discurso musical, servindo
apenas como ferramentas no teste de hipóteses
junto aos músicos e à sua audiência. Indaga-
mos então se não seria possível tratar esta ilusão
auditiva produzida pelos meios técnicos como
constituinte do fazer musical contemporâneo,
tentando trazer os discos para o foco central
do empreendimento etnográfi co. Nesta tenta-
tiva é que encontramos amparo na (re)leitura
de Walter Benjamin, cujas idéias são alvo de
atenção no segundo momento do texto.2
1. Agradecemos ao nosso orientador, professor John
Cowart Dawsey, por nos ter apontado esta ‘comu-
nhão problemática’, sugerindo que trabalhássemos
juntos sobre ela. O presente trabalho surge, então,
como tentativa de responder ao desafi o apontado.
2. Neste sentido, o presente trabalho dialoga com o en-
saio do antropólogo José Jorge de Carvalho, “Trans-
formações da sensibilidade musical contemporânea”
No ensaio “A obra de arte na era da sua
reprodutibilidade técnica” ([1936] 1985d;
[1955] 1992), o crítico alemão propõe que a
câmara seria capaz de nos conduzir ao incons-
ciente óptico da sociedade contemporânea,
uma vez que sua linguagem é essencialmente
diferente daquela do olho humano. É neste
sentido que procuramos reler Walter Benja-
min, interrogando pela pertinência de se pensar
a reprodução técnica como capaz de produzir
efeito análogo na apercepção musical, ou seja,
se a diferença de linguagem entre gravador e
ouvido humano não nos permitiria acesso ao
inconsciente auditivo. Para tanto, resgatamos
também o diálogo com seu parceiro intelectual
Th eodor Wiesengrund Adorno em “Idéias para
a sociologia da música” ([1959] 1983a) e “O
Fetichismo na música e a regressão da audição”
([1963] 1983b), procurando passar da imagem
ao som tecnicamente reprodutível.
Feita esta arriscada incursão em certos
campos de caça da teoria crítica, procurando
salientar, no diálogo estabelecido entre Ador-
no e Benjamin, como a reprodução técnica
(visual/musical), na sua diferença de lingua-
gem, se relaciona com o acesso ao inconsciente
(óptico/sonoro), passamos ao terceiro e último
momento, buscando retornar a paragens mais
antropológicas.
Na leitura dos autores acima, foi possível
perceber que eles lançam mão de certas noções
da psicanálise para enfrentar os problemas de
comunicação colocados pelas inovações técni-
cas, pela reprodução técnica. Na antropologia
moderna, um dos primeiros a indicar uma
aproximação entre etnologia e psicanálise foi
Marcel Mauss, como nos lembra Claude Lévi-
Strauss em sua célebre “Introdução à obra de
(1999), onde procura refl etir sobre tais mudanças a
partir das profundas transformações na tecnologia
da produção musical contemporânea. Como aqui,
o autor também recorre aos pensamentos de, entre
outros, Benjamin e Adorno.
cadernos de campo • n. 13 • 2005
: , |
Marcel Mauss” ([1950] 2003), afi rmando ser
esta uma das características mais signifi cativas
do modernismo do outro.3 Mas se é possível re-
lacionar os pensamentos de Mauss e Benjamin
a partir da psicanálise, uma outra opção, talvez
mais frutífera para este trabalho, seja enfocar
as maneiras como ambos encaram as relações
entre técnica e corpo, na tentativa de entender
os problemas que a linguagem técnica coloca à
comunicação humana.
Ao fi nal retornamos ao problema inicial,
qual seja, a compatibilização entre discos e et-
nografi a da música, procurando costurar algu-
mas considerações acerca das possibilidades de
tratamento etnográfi co do material fonográfi co,
numa perspectiva que incorpore a ilusão audi-
tiva trazida pela técnica de reprodução sonora
como parte do fazer musical contemporâneo.
Com Seeger e Blacking: discos e etno-grafi a da música
Entendemos etnografi a da música nos
termos defi nidos por Anthony Seeger e John
Blacking, ou seja, como “(...) escrita sobre as
maneiras que as pessoas fazem música” (Seeger
1992: 89, tradução nossa), prática que exige
do pesquisador uma abordagem atenta ao fa-
zer musical, obrigando-o a incluir na sua vi-
sada não só os sons produzidos, mas também
os seres humanos envolvidos na sua realização
(dos músicos à audiência), perseguindo as ma-
neiras como concebem, produzem e apreciam
estes sons, assim como infl uenciam outros in-
divíduos, grupos, processos sociais e musicais,
3. “Assim, Mauss não apenas estabelece o plano de traba-
lho que será, de forma predominante, o da etnografi a
moderna ao longo dos dez últimos anos, mas percebe
ao mesmo tempo a conseqüência mais signifi cativa des-
sa nova orientação, isto é, a aproximação entre etnolo-
gia e psicanálise” (Lévi-Strauss [1950] 2003: 13). Um
pouco mais à frente, Lévi-Strauss adverte ainda que “O
problema etnológico é portanto, em última análise, um
problema de comunicação (...)” (idem: 29).
sendo a música entendida como um sistema de
comunicação utilizado pelos membros de uma
comunidade para se comunicarem com outros
membros (Seeger 1992; Blacking 1995).
Essa combinação – discos e etnografi a da
música – a princípio pode soar estranha, pois se
são as pessoas que fazem música para outras ou-
virem, a atenção demasiada aos discos perderia
de vista o fazer musical. Isto porque, segundo
esses autores, todo o aparato técnico-eletrôni-
co de captação e reprodução sonora utilizado
em nossa sociedade, captando e reproduzindo
apenas o aspecto acústico da música, criariam
uma ilusão auditiva (Seeger 1992) ou de obje-
tividade (Blacking 1995), como se os sons pu-
dessem ser produzidos independentemente da
ação humana, confundindo quanto à
(...) essência do fazer musical e da compreensão
musical [que] são os atos humanos de produzir sen-
tido com os símbolos musicais através da composi-
ção, da performance e da audição (Blacking 1995:
229; tradução nossa).
De acordo com os autores, então, dada sua
característica ilusória, os meios técnicos de re-
gistro e reprodução sonora não são capazes de
fornecer chaves signifi cativas para a compreen-
são da natureza do discurso musical – quando
muito são boas ferramentas de pesquisa, pela
sua capacidade de testar hipóteses (Blacking
1995); bem como são em parte responsáveis
pela confusão entre música e som na sociedade
contemporânea (Seeger 1992).
Mas é graças a esses meios técnicos que nós,
pelo menos desde meados do século XX, ouvi-
mos grande parte da música que conhecemos:
músicas do mundo inteiro nos são acessíveis
por meio de discos, fi tas e rádios. E mesmo
que aquela ilusão auditiva não seja caracterís-
tica da própria música, mas um aspecto dos
meios técnicos utilizados, é preciso levá-la em
consideração – e não descartá-la – para tentar
cadernos de campo • n. 13 • 2005
104 | -
entender o que seria fazer música com o auxílio
de tais meios. Em outras palavras, mais do que
iludir quanto à essência humana da música, a
ilusão auditiva que acompanha a técnica de re-
produção participa criativamente do fazer mu-
sical contemporâneo, provocando alterações
na concepção, na produção e na apreciação das
músicas que reproduz.
Como certa vez afi rmou Walter Benja-
min ([1929] 1985a), de nada adianta “apontar
no enigmático seu lado enigmático”, já que o
mistério só é desvelado na medida que o en-
contramos no cotidiano, graças a uma ótica
dialética que permita ver “o cotidiano como
impenetrável e o impenetrável como cotidia-
no”.4 Em busca do aspecto produtivo que a
ilusão auditiva assume quando a música passa
a ser tecnicamente reprodutível é que nos pro-
pusemos a reler Walter Benjamin. Partindo de
uma afi rmação feita em seu ensaio “A obra de
arte na era da sua reprodutibilidade técnica”
([1936] 1985d; [1955] 1992), indagamos: da
mesma maneira que a “(...) câmara leva-nos ao
inconsciente óptico, tal como a psicanálise ao
inconsciente das pulsões (...)” ([1936-1955]
1992: 105), o gravador seria capaz de nos con-
duzir ao inconsciente auditivo?
Com Benjamin e Adorno: reprodução técnica, inconsciente ótico e apercepção
No ensaio acima referido, dirigindo a pa-
lavra aos críticos de arte de sua época, Walter
Benjamin defende que os valores artísticos
encerrados na fotografi a, mas sobretudo no
cinema, já não são apreensíveis pelos concei-
tos tradicionais – criatividade e gênio, validade
eterna e estilo etc. –, exigindo a formulação de
4. A este procedimento Walter Benjamin deu o nome
de “iluminação profana”, que não será tratado no
presente trabalho. Para uma exposição de tal proce-
dimento, ver o ensaio “O surrealismo – o último ins-
tantâneo da inteligência européia” ([1929] 1985a).
novos conceitos em teoria da arte. Para ele, isto
só é possível entendendo quais as novas exigên-
cias que o cinema, fruto da técnica de reprodu-
ção artística, impõe ao modo de percepção do
homem contemporâneo (condicionado natural
e historicamente). Segundo o autor, a apercep-
ção5 de um fi lme exige de seu espectador um
estado de descontração, atitude bem diferen-
te da atenção e do recolhimento diante de um
quadro, por exemplo. A atitude crítica que o
cinema requer de seu público se dá na descon-
tração, sendo o público caracterizado por ele
numa fórmula um tanto paradoxal: um exa-
minador distraído (Benjamin [1936] 1985d;
[1955] 1992).
Para o autor, o que caracteriza o fi lme não é
só a forma como o homem se apresenta dian-
te do equipamento de registro, mas também
como, com a ajuda deste, reproduz o seu meio
ambiente. Embora reconhecendo que a psico-
logia do desempenho ilustra a capacidade de
teste do equipamento, ele prefere abordar tal
fato a partir de um diálogo com a psicanálise:
(...) o cinema enriqueceu o nosso horizonte de
percepção com métodos que podem ser ilus-
trados pela teoria freudiana (Benjamin [1955]
1992: 102).
Vale lembrar que Walter Benjamin não está
propondo nenhuma espécie de psicanálise do
social a ser feita através do cinema, mas que
as alterações produzidas pela linguagem cine-
matográfi ca na percepção que o homem con-
temporâneo tem de si e do seu meio (natural
e histórico) são comparáveis às alterações que
a psicanálise trouxe para a compreensão que o
indivíduo tem de sua psique. Ou seja, da mes-
ma maneira que a psicanálise tornou possível
5. apercepção s. f. 1. Ação ou faculdade de perceber. 2. Consciência imediata de si e do mundo. 3. Intuição;
percepção. (Grande Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa 1999).
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ao indivíduo apreender seu eu mais secreto, to-
mar consciência das formas de atividade de seu
inconsciente individual, o cinema possibilitou
ao homem contemporâneo acesso ao incons-
ciente da sociedade onde está inserido.
Para o autor, assim como o trabalho de
Freud6 permitiu isolar e analisar o que antes
passava despercebido no fl uxo do perceptível,
como um lapso numa conversa que transcorre
superfi cialmente, levando agora à abertura de
perspectivas profundas, o cinema teria como
conseqüência um aprofundamento semelhante
da apercepção, já que os desempenhos em um
fi lme podem ser analisados com maior exati-
dão e sob mais pontos de vista do que aqueles
apresentados num quadro ou no palco. Afi rma
então que através dos grandes planos, do real-
ce de pormenores escondidos nos aspectos do
cotidiano, e na exploração dos ambientes mais
banais pela direção genial da objetiva, o cine-
ma foi capaz de aumentar a compreensão das
imposições que regem nossa existência, assim
como nos assegurou um novo campo de ação
imenso e insuspeitado. E não apenas porque a
câmara e seus meios auxiliares revelam motivos
conhecidos em movimento, mas antes por des-
cobrir nesses movimentos conhecidos outros,
desconhecidos. E isso torna compreensível que
a natureza da linguagem da câmara seja dife-
rente da linguagem do olho humano. Diferen-
te, sobretudo, porque ao invés de um espaço
preenchido conscientemente pelo homem,
surge um outro preenchido inconscientemente
(Benjamin [1936] 1985d; [1955] 1992).7
Feita esta rápida apresentação do problema
em Benjamin, é possível indagar: a técnica de
6. Benjamin se refere ao “Psicopatologia da Vida Quo-
tidiana”, de Sigmund Freud. Para as relações do pen-
samento benjaminiano com a teoria freudiana ver o
trabalho de Sérgio Paulo Rouanet (1981).
7. Esta discussão já havia sido feita por Benjamin num
ensaio anterior: “Pequena história da fotografi a”
([1931] 1985b).
reprodução sonora teria, na apercepção con-
temporânea, um efeito análogo à técnica cine-
matográfi ca? O ouvinte de discos, fi tas e rádios
seria capaz de se colocar no mesmo estado de
descontração que o cinema exige de seu espec-
tador? E sendo a linguagem do gravador dife-
rente da linguagem do ouvido humano, seria
possível falar num espaço sonoro preenchido
inconscientemente? Neste ponto a leitura dos
textos de Th eodor Wiesengrund Adorno nos
ajuda nessa difícil passagem da imagem ao som
tecnicamente reprodutível.8
Para Walter Benjamin, o seu ensaio “A obra
de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”
([1936] 1985d; [1955] 1992) e o de Adorno
“O Fetichismo na música e a regressão da audi-
ção” ([1963] 1983b), são duas abordagens dife-
rentes do mesmo fenômeno, onde ele procura
articular os momentos positivos daquilo que o
outro ressalta como negativos, apontando para
uma possível mediação dialética entre seus pon-
tos de vista na análise do fi lme sonoro.9 Esta
8. Para uma brilhante e instigante exposição das con-
vergências e divergências entre os pensamentos de
Benjamin e Adorno, neste e noutros ‘confrontos’ que
marcaram ambas as produções, ver o trabalho de Flá-
vio René Kothe (1978).
9. “In my essay [‘Th e Work of Art in the Age of Me-
chanical Reproduction’] I tried to articulate positive
moments as clearly as you managed to articulate
negatives ones. Consequently, I see strengths in your
study at points where mine was weak. (...) An analy-
sis of the sound fi lm would constitute a critique of
contemporary art which would provide a dialectical
mediation between your views and mine” (Benjamin
[1938] 1994: 140). Como lembrou Flávio René Ko-
the (1978), tanto Benjamin quanto Adorno, nestes
e em alguns outros ensaios da mesma época, tinham
como preocupação comum à decadência como pro-
blema da arte moderna, apresentando todavia pro-
postas diferentes no enfrentamento da questão. Nas
palavras de Flávio Kothe: “Enquanto Adorno enfatiza
o desenvolvimento autônomo das técnicas da obra de
arte, Benjamin enfatiza a ligação e o condicionamen-
to delas em relação às técnicas de produção social” (1975: 32).
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ida às idéias de Adorno acerca da música con-
temporânea nos autoriza, na chave da relação
entre reprodução técnica e inconsciente, pensar
num paralelo auditivo do inconsciente óptico
de Benjamin, mas que olhe positivamente para
a técnica de reprodução musical, ou seja, vendo
a inovação técnica na música não do ponto de
vista do desenvolvimento autônomo das técni-
cas da obra de arte, mas do seu condicionamen-
to em relação às técnicas de produção social.
No referido ensaio, Th eodor W. Adorno
afi rma que a atual música de massas encontra
na descontração o seu modo de comporta-
mento perceptivo, lembrando que a observa-
ção de Walter Benjamin quanto à apercepção
de um fi lme em estado de distração é válida
também para a música ligeira. No entanto,
afi rma também que, se o fi lme enquanto to-
talidade é adequado à apreensão em estado de
descontração, a audição desconcentrada torna
impossível apreender uma totalidade (Adorno
[1963] 1983b). Assim, ao mesmo tempo em
que Adorno reconhece a possibilidade da aper-
cepção musical na descontração, ele aponta
que, ao contrário do que Walter Benjamin vê
no cinema, a técnica de reprodução na músi-
ca não se apresenta como um progresso, mas
como um retrocesso.10 O autor parece dizer: há
um ouvinte descontraído, mas que é incapaz de
10. A título de ilustração da maneira como os autores
entendem a relação entre técnica e arte, citamos aqui
estes dois trechos: “(...) o conceito de técnica pode
ajudar-nos a defi nir corretamente a relação entre ten-
dência e qualidade (...). Se em nossa primeira formu-
lação dissemos que a tendência política correta de uma
obra inclui sua qualidade (...), porque inclui sua ten-
dência (...), é possível agora dizer, mais precisamente,
que essa tendência (...) pode consistir num progresso
ou num retrocesso da técnica (...)” (Benjamin [1934]
1985c: 122-123); “O que decide se uma determinada
técnica pode ser considerada ‘racional’ e constitui um
progresso, é o sentido original, a sua posição no con-
junto social e no conjunto da obra de arte concreta e
individual” (Adorno [1963] 1983b: 189).
atitude crítica semelhante ao espectador distra-
ído do fi lme.
Neste ponto caberia uma indagação a
Adorno: se disco e fi lme têm seu fundamento
na técnica de reprodução, e se tanto especta-
dor quanto ouvinte são capazes da apreensão
desconcentrada, por que essa apreensão não
permite ao último vislumbrar a totalidade?
No outro ensaio – “Idéias para a sociologia da
música” ([1959] 1983a) – Adorno nos oferece
algumas pistas para responder a esta questão.
Em suas palavras:
A música, tomada em conjunto, é particular-
mente apropriada para ideologia, pois a au-
sência de conceitos permite que os ouvintes se
sintam como seres de sentimento, que associem
livremente, que pensem o que quiserem. Ela
funciona como realização dos desejos, como
satisfação substitutiva, mas sem que o mecanis-
mo seja evidente, como o é no fi lme (Adorno
[1959] 1983a: 262).
Em outras palavras, o ouvinte descontraí-
do não é capaz de perceber a totalidade por-
que o mecanismo de realização dos desejos não
é evidente. E isso acontece, segundo o autor,
dada a natureza não-conceitual da música que,
a despeito de sua fi gura e sentidos próprios,
contribui para o que chama de ideologia do
inconsciente; e como esfera cultivada da irra-
cionalidade em meio ao mundo racionalizado,
ela acaba por justifi car a perpetração da irracio-
nalidade global (Adorno [1959] 1983a).
É possível perceber que aqui Adorno está
pensando com Max Weber e, seguindo com
ele, ressalta que a categoria da racionalização
é decisiva para a sociologia da música, cor-
roborando a tese weberiana de que a história
da música ocidental é a de uma progressiva
racionalização.11 No entanto, lembra o autor
11. Weber, Max. Os Fundamentos Racionais e Socio-lógicos da Música ([1911] 1995).
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que a racionalização é apenas um de seus as-
pectos sociais, como a racionalidade ela própria
– Aufklärung – é um momento na história da
sociedade, e que no interior do movimento
progressivo de desencantamento do mundo do
qual participou, a música foi também a voz do
que fi cara para trás no caminho dessa racionali-
dade, ou do que dela fora vítima. Diz ainda ser
esta a contradição social que está no centro da
música, e também a tensão da qual a produti-
vidade musical tem-se alimentado na sociedade
moderna. Feita esta crítica a Max Weber, o au-
tor então afi rma que:
Por seu puro material a música é a arte em que os
impulsos pré-racionais e miméticos se afi rmam
irredutivelmente, entrando ao mesmo tempo
em constelação com as tendências ao progressi-
vo domínio da natureza e dos materiais. Daí a
sua transcendência em face da engrenagem co-
tidiana da auto-conservação (...). Se é que efeti-
vamente ela vai além da mera repetição do que
já existe, será por essa razão. Mas é pela mesma
razão, por outro lado, que ela é tão apropriada
à constante reprodução da estupidez. O que faz
dela mais que mera ideologia é também o que
mais facilita a caricatura ideológica. Como cam-
po delimitado e cultivado da irracionalidade em
meio ao mundo racionalizado, ela se transforma
no estritamente negativo, tal como é racional-
mente planejado, produzido e administrado pela
indústria da cultura de massas em nossos dias. Só
por força da racionalidade a música pode ultra-
passá-la (ibidem).
Para Adorno, então, essa irracionalidade da
música socialmente manipulada seria um dos
fenômenos que exprimiriam um nexo social
de maior alcance: o predomínio da produ-
ção. Conceito que para ele não deve ser posto
como absoluto, assim como não deve ser iden-
tifi cado à produção social de bens. Tendo isso
em mente, afi rma ser possível distinguir entre
dois momentos da produção musical: o da au-
tonomia da exigência expressiva e da lógica do
objeto, que diz ser respeitada pelo compositor;
e o das leis de produção de bens para o merca-
do, mesmo que estas possam penetrar nos mo-
mentos estéticos mais sublimes. Diz ainda que
a tensão entre os dois momentos é essencial na
esfera da produção, uma vez que o nexo ima-
nente da motivação musical não corre inteira-
mente fechado, ou seja, ao mesmo tempo em
que a música se desdobra segundo sua própria
lei – que é secretamente social –, também é
movimentada e desviada no interior do campo
das forças sociais.
Daí o autor afi rmar a necessidade da dupla
abordagem que propõe em sua sociologia da
música, fugindo das aproximações externas en-
tre obras do espírito e relações sociais: partindo
de uma análise técnica e fi sionômica que dá
sentido e nome ao momento formal como mo-
mento de signifi cação musical e daí passando
à sociedade, levando assim com que os cons-
tituintes formais da música, sua lógica, falem
em termos sociais. E isso não signifi ca procurar
elos intermediários entre a música ou o autor
de determinada época e a sociedade na qual foi
produzida mas, como apontou Gabriel Cohn
ao introduzir as idéias de Adorno, signifi ca
(...) procurar a marca dessa sociedade na tessitura
das obras mesmas, nos problemas que o compo-
sitor enfrentou para dar conta do material musi-
cal – ou seja, do conjunto de elementos técnicos
e construtivos historicamente constituídos de que
dispunha – e nas soluções encontradas na efetua-
ção da lógica interna – da ‘lei formal’(...) (Cohn
1986: 20).
Mas voltemos ao diálogo com Walter Ben-
jamin. Como transparece nestas palavras de
Cohn em referência a Adorno, os dois autores
partem da comum idéia que o conteúdo espi-
ritual só se realiza nas obras de arte mediante
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categorias técnicas,12 ou seja, pelo agencia-
mento de técnicas de que o artista dispõe para
levar suas aspirações subjetivas a se superar
na objetividade do material e da forma. Mas
se para Benjamin a técnica de reprodução no
cinema constitui um avanço da técnica cine-
matográfi ca, para Adorno ela constitui um re-
trocesso da técnica musical, daí ele chamar a
apercepção descontraída da música ligeira de
“audição regredida”. Como apontam, tanto
o fi lme quanto a música ligeira13 são adequa-
dos à apercepção em estado de descontração.
No entanto, como quer Adorno, só o primei-
ro possibilita a apreensão de uma totalidade
nesse estado, pois só nele o mecanismo in-
consciente de realização dos desejos se torna
evidente. Em outras palavras, a técnica de re-
produção só é tecnicamente conseqüente no
12. É curioso como esta afi rmação, a princípio tão “fi lo-
sófi ca”, “dialética” e “materialista”, é próxima daquela
feita por Marcel Mauss ao apresentar a importância
da noção de habitus que introduz na discussão so-
ciológica: “É preciso ver técnicas e a obra da razão
prática coletiva e individual, lá onde geralmente se vê
apenas a alma e suas faculdades de repetição” ([1950]
2003a: 404).
13. É preciso considerar que, ao longo dos dois textos,
Adorno utiliza diversos adjetivos ao se referir à mú-
sica – séria, ligeira, de massas, de entretenimento e
artística –, que devem ser entendidos não como de-
fi nições taxativas que separe esta daquela música, e
sim como um conjunto de noções que devem ser
entendidas em suas relações e oposições ao longo do
texto. Daí a difi culdade em especifi car como ele en-
tende cada uma delas. Mesmo assim é possível dizer,
num resumo empobrecedor, que nos dois trabalhos
música séria e música ligeira surgem em oposição,
sendo a música séria (grande música) entendida por
ele como a música tradicional da Europa Ocidental, a
música ligeira parece identifi cada à música popular e
em especial ao jazz; a música de entretenimento está
associada ao jazz comercial, sendo ao mesmo tempo
música ligeira e de massas; e por fi m a música artística
seria aquela que, realizando uma música de massas
tecnicamente conseqüente, afasta-se das massas, em
busca de seu próprio destino.
cinema porque o espectador é capaz de, pelos
valores do sentido, acessar os valores do espí-
rito. Como afi rmou Benjamin:
O fi lme serve para exercitar o homem nas novas
percepções e reações exigidas por um aparelho
técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua
vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho
técnico do nosso tempo o objeto das inervações
humanas – é essa a tarefa histórica cuja realiza-
ção dá ao cinema seu verdadeiro sentido (Benja-
min [1936] 1985d: 174).
É exatamente este exercício nas novas percep-
ções e reações exigidas por um aparelho técnico
que Adorno vê faltar na atual música de massas,
fazendo esta tecnicamente inconseqüente:
Como quer que seja no cinema, a atual música
de massas pouco apresenta deste progresso no
desencantamento. Neste tipo de música nada
é mais forte e mais constante que a aparência
externa, e nada é mais ilusório do que a objetivi-
dade (Adorno [1963] 1983b: 188).
Mesmo assim o autor acredita ser possível
uma música de massas tecnicamente conse-
qüente, que chama de música artística, capaz
de fugir à rotina do sempre igual, mesmo que
para isso ela perca as características que a torna
aceita pelas massas; isto é, o momento de sua
produção, orientada com vistas a respeitar a au-
tonomia da exigência expressiva e da lógica do
objeto, procura se esquivar das leis de produção
de bens para o mercado.
Se estendermos o raciocínio de Adorno se-
ria possível dizer que, entre todas as músicas
adequadas a apercepção em estado de descon-
tração, somente na música artística a técnica de
reprodução produz efeitos comparáveis aos que
Benjamin vê no cinema, ou seja, a experiên-
cia do inconsciente auditivo. Mas para que tal
experiência seja possível, para que a inovação
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técnica permita este acesso, é necessária uma
nova atitude, um adestramento da percepção
do homem contemporâneo, sendo capaz de se
colocar em descontração. Assim percebemos
que não é possível uma refl exão sobre a técnica,
por mais autônoma que seja, que não considere
também uma educação do corpo, ou melhor,
que não considere as atitudes exigidas pelo apa-
relho técnico.
Vista desse ângulo, e por mais paradoxal
que possa parecer, essa discussão encontra res-
sonância também nas preocupações de Marcel
Mauss apresentadas em seu “Técnicas do cor-
po” ([1950] 2003), uma vez que toda a refl exão
apresentada ali parte da observação empírica
sobre as variações de atitude que os homens
apresentam, de sociedade em sociedade, no
emprego de suas técnicas. Em busca de tal res-
sonância que iniciamos o terceiro e último mo-
mento deste trabalho.
Com Benjamin e Mauss: corpo, técnica e sociedade
Uma boa maneira de iniciar o diálogo entre
as idéias de Marcel Mauss e Walter Benjamin
talvez seja indagar como o primeiro classifi ca-
ria, de acordo com suas propostas para o es-
tudo d’“As técnicas do corpo” ([1950] 2003a),
aquela atitude apresentada pelo examinador
distraído, vendo aí o produto da aplicação de
uma possível técnica da descontração.
Nessa comunicação feita à Sociedade de Psi-cologia em 1934 e publicada no ano seguinte
pelo Journal de Psychologie, Marcel Mauss ex-
põe aquilo que vê como um novo campo de
estudos a ser explorado: o das técnicas do cor-
po. Após apresentar como entende a noção (ato
tradicional efi caz; série de atos montados no
indivíduo, por sua educação e pela sociedade,
com a fi nalidade de adaptar o corpo ao seu uso,
e que podem ser ordenados num sistema de
montagens simbólicas), Mauss faz uma longa
consideração sobre as maneiras de se classifi car
tais técnicas (por sexo e idade, rendimento e
transmissão; ou ainda pela enumeração biográ-
fi ca, pela distribuição ao longo do curso de vida
do indivíduo), concluindo com considerações
gerais acerca do exposto anteriormente. Vale
lembrar que, neste clássico da antropologia,
mais do que elaborar a teoria geral das técnicas
do corpo que diz ser possível, Mauss apresenta
uma espécie de plano de trabalho aos etnógra-
fos, indicando aquilo que se está por fazer para
que tal teoria possa então ser levada a cabo.
De certa maneira, ao nos debruçarmos sobre
a atividade descontraída, a atitude desconcen-
trada do espectador/ouvinte descrita por Wal-
ter Benjamin,14 procuramos retomar esta velha
pauta de trabalho.
Para que o indivíduo se torne um exami-
nador distraído, se coloque em descontração,
é preciso o adestramento da percepção, a edu-
cação de seus sentidos, em suma, de seu corpo.
Dessa forma, e seguindo os princípios de clas-
sifi cação inicialmente propostos por Mauss, a
técnica da descontração poderia ser abordada
do ponto de vista da natureza de sua educação
e adestramento, da transmissão da forma das
técnicas:
4) transmissão da forma das técnicas. – Último
ponto de vista: o ensino das técnicas sendo
essencial, podemos classifi cá-las em relação à
natureza dessa educação e desse adestramento.
E eis aqui um novo campo de estudos: incon-
táveis detalhes inobservados, e cuja observação
deve ser feita, compõem a educação física de
14. Lembramos que Benjamin, na primeira versão do en-
saio sobre a arte tecnicamente reprodutível ([1936]
1985d), tece considerações sobre a reprodução téc-
nica da música pelos discos, numa analogia à técnica
cinematográfi ca, comentários que estão ausentes na
segunda versão. De qualquer forma, e pelo exposto
anteriormente, já devemos estar autorizados a afi rmar
que espectador e ouvinte apresentam a mesma atitu-
de desconcentrada, seja diante do fi lme ou do disco.
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todas as idades e dos dois sexos (Mauss [1950]
2003a: 411).
Como havia apontado Walter Benjamin, o
cinema cumpre a função de educar os sentidos
para a descontração, já que
O fi lme serve para exercitar o homem nas novas
percepções e reações exigidas por um aparelho
técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua
vida cotidiana (Benjamin [1936] 1985d: 174).
É possível perceber, na enumeração bio-
gráfi ca das técnicas do corpo apresentada por
Mauss, que o ensino técnico dos indivíduos
inicia-se na mais tenra idade e se prolonga até
a idade adulta, tendo seu momento decisivo
na adolescência, sobretudo nos ritos de ini-
ciação. Quanto às técnicas da idade adulta es-
pecifi camente – que nos interessam aqui –, o
autor diz ser possível distinguir entre técnicas
do sono e da vigília e, nesta, entre atividade
e repouso, podendo este último ser ativo ou
passivo, frisando que as técnicas de repouso
ativo dizem respeito não só à estética, mas
também aos jogos do corpo (Mauss [1950]
2003a).
Dito isto, e aceitando que a descontração
característica do examinador distraído de Ben-
jamin é alcançada por meio de um adestra-
mento técnico, de uma educação dos sentidos,
a técnica da descontração poderia ser aborda-
da não só pela forma de sua transmissão, mas
também como uma das técnicas da vigília do
repouso ativo. Dessa maneira, a formulação
paradoxal de um examinador distraído encon-
tra seu princípio de classifi cação na formulação
não menos paradoxal de uma atividade reali-
zada em repouso, repouso ativo. Mas por que
paradoxal?
Como apontou Marcel Mauss ao apresentar
as técnicas da vigília, inicialmente atividade e
repouso encontram-se em oposição:
3) Técnicas da atividade, do movimento. – Por de-
fi nição, o repouso é a ausência de movimentos,
o movimento, a ausência de repouso ([1934]
2003a: 416).
Mesmo iniciando sua argumentação sobre
as técnicas da vigília contrapondo atividade e
repouso, é possível perceber que ele substitui
o primeiro termo por movimento. Tal substi-
tuição, que poderia passar despercebida, reve-
la algo importante na sua argumentação: se o
repouso não é mais ausência de atividade, mas
de movimento, então a ausência de movimen-
to, que é o repouso, não exclui a atividade. Ou
seja, sem tal operação seria impossível conside-
rar toda uma série de atividades que perpassam
os momentos de repouso, da alimentação à
conversação, mas sobretudo as atividades esté-
ticas e os jogos do corpo, sendo os dois últimos
associados mais diretamente ao que Mauss cha-
mou de repouso ativo. Também a apercepção
desconcentrada de um fi lme é uma atividade
realizada em repouso, já que sua fruição esté-
tica só é possível na medida que o espectador
esteja distraído, como defendeu Walter Benja-
min contra os críticos de arte de sua época, in-
capazes de ver na descontração a possibilidade
de uma atitude crítica.
Para exemplifi car uma atividade estética rea-
lizada no repouso ativo, Mauss apresenta a no-
ção de dança do repouso, partindo da divisão
proposta por von Hornbostel e Curt Sachs entre
danças de repouso e danças de ação. Ao mesmo
tempo em que admite esta divisão, aponta que
os autores são vítimas do mesmo erro funda-
mental em que vivia parte da sociologia naquele
tempo, qual seja, acreditarem que as sociedades
se repartiriam em sociedades de descendência
masculina ou descendência uterina, associando
assim danças de ação às primeiras e danças de re-
pouso às outras. Afi rma ainda que Sachs (1933)
classifi cou um pouco melhor tais danças em ex-
trovertidas e introvertidas, dizendo então que
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Estamos em plena psicanálise, provavelmente
bastante fundamentada aqui. Em verdade, o
sociólogo deve ver as coisas de modo mais com-
plexo ([1950] 2003a: 417).
Deixando de lado a polêmica em torno de
sociedades e descendências, é possível indagar:
por que Mauss diz que estamos em plena psi-
canálise? E o que quer dizer quando afi rma que
o sociólogo deve ver as coisas de modo mais
complexo?
Recorremos mais uma vez a Claude Lévi-
Strauss. Como dito anteriormente, na sua
“Introdução à obra de Marcel Mauss” ([1950]
2003), este aponta como uma das caracterís-
ticas fundamentais do modernismo do seu
antecessor, o fato de Mauss ter indicado a
aproximação entre etnologia e psicanálise,
expressa sobretudo no recurso às noções de
categoria inconsciente e de categoria do pen-
samento coletivo, chamando a atenção para
a especifi cidade do uso que faz na análise et-
nológica:
O problema etnológico é portanto, em última
análise, um problema de comunicação; e essa
constatação deve bastar para separar radicalmen-
te esta via seguida por Mauss, identifi cando in-
consciente e coletivo, da de Jung (...). Pois não é
a mesma coisa defi nir o inconsciente como uma
categoria do pensamento coletivo ou distinguí-
lo em setores, conforme o caráter individual ou
coletivo do conteúdo que se lhe atribui (Lévi-
Strauss [1950] 2003: 29).
Assim, ao mesmo tempo em que Mauss se
aproxima da psicanálise recorrendo à noção
de inconsciente, ele se afasta ao associá-la a
pensamento coletivo, e muito provavelmen-
te o faz por acreditar que os atos praticados
pelos indivíduos, mais do que mera expressão
da educação individual, trazem as marcas da
sociedade em que estão inseridos, devendo
assim ser abordados da perspectiva do ho-
mem total.15
Em Benjamin trata-se da mesma operação,
lidando também com um problema de co-
municação: tanto o inconsciente de que fala
é coletivo – inconsciente óptico da sociedade
contemporânea – quanto a atitude desconcen-
trada do examinador distraído não é expressão
apenas do comportamento individual, mas re-
veladora também das condições sociais de uma
época determinada. Desta maneira é possível
perceber a aproximação estabelecida por Wal-
ter Benjamin entre crítica de arte e psicanálise
como similar à que Mauss propôs entre esta e
a etnologia: assim como Benjamin percebe no
cinema, enquanto obra tecnicamente repro-
dutível, uma linguagem capaz de dar acesso
ao inconsciente óptico da sociedade moderna,
Mauss vê nas técnicas do corpo uma lingua-
gem que permite acompanhar a atividade do
inconsciente.
Antes de passarmos às considerações fi nais,
há ainda uma distância entre as idéias de Mauss
e Benjamin que precisa ser superada aqui: pois
se o primeiro trata de uma tecnologia sem ins-
trumentos, o outro está falando de uma tecno-
logia com instrumentos. Esta distância deve ser
percorrida, indicando os caminhos que ligam
os dois pontos.
É o próprio Mauss quem nos oferece o
termo mediador entre estas aparentemente di-
ferentes tecnologias. Pois se ele adverte que é
preciso não incorrer no erro de achar que só
há técnica onde há instrumento, cuidado que
o fez empreender toda a enumeração e descri-
ção daquela infi nidade de técnicas corporais,
isso não signifi ca que dê pouca importância às
técnicas onde há instrumentos. Pelo contrário,
15. Esta noção foi discutida por Mauss dez anos antes,
em outra comunicação feita à mesma Sociedade de Psicologia e publicada no Journal de Psycologie et Pa-thologique: “Relações reais e práticas entre a psicologia
e a sociologia” ([1950] 2003b).
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e deixando de lado o recurso ao cinema para
explicar como o modo de caminhar de suas en-
fermeiras americanas migrou para o corpo das
moças nas ruas de Paris, Mauss chega a cunhar
um termo para designar tal arranjo: a formação
de pares mecânicos com o corpo, alvo de um
estudo dos movimentos mecânicos que, segun-
do ele, já vinha sendo empreendido por Reu-
laux e Farabeuf, demonstrando a relevância do
tema. Mesmo assim, é inconteste a precedên-
cia que dá para as primeiras, já que, nas suas
palavras, “antes das técnicas de instrumentos,
há o conjunto das técnicas do corpo” (Mauss
[1950] 2003a: 407).
Mesmo que Walter Benjamin esteja nos fa-
lando da mais emancipada de todas as técnicas,
a reprodução técnica, e mesmo tendo dito que
a fotografi a só revelou suas verdadeiras poten-
cialidades no momento que o rosto humano
deixou de fi gurar em seu centro, ele não ne-
garia a precedência do corpo, de suas técnicas.
Pelo contrário, pois todas as energias revolucio-
nárias contidas no cinema dissipariam no ar se
antes o espectador não fosse capaz de se colocar
em descontração.
Enquanto um habitus16 – pois é disto que se
trata! – a atitude desconcentrada não é só fru-
to da educação individual do espectador que se
distrai, mas também das condições sociais de
uma época, de uma sociedade cuja técnica é a
mais emancipada jamais vista e que, por isso
mesmo, se confronta com a sociedade na forma
de uma segunda natureza, tão elementar quan-
to a primeira, obrigando ao homem contem-
porâneo o aprendizado das novas percepções e
reações exigidas pelo aparelho técnico de nosso
tempo, tornando-se assim objeto das inervações
humanas. Assim, por mais autônoma que a téc-
nica se apresente, capaz de iludir quanto a sua
16. Vale lembrar que a noção de habitus é aqui entendida
na acepção de Marcel Mauss ([1950] 2003a), não le-
vando em conta os usos ulteriores que teve, como em
Pierre Bourdieu, por exemplo.
essência humana, como se operasse sem a agên-
cia dos homens, no fi m das contas é ao corpo
que ela novamente se dirige, exigindo uma nova
atitude, uma educação dos seus sentidos.
Em suma, e da mesma maneira que Ben-
jamin havia apontado para uma superação
dialética entre a sua posição e a de Adorno na
análise do fi lme sonoro, é possível dizer que o
enfoque na formação de pares mecânicos pode-
ria oferecer a mesma mediação entre a perspec-
tiva sem instrumentos de Mauss e a perspectiva
com instrumentos de Benjamin. E isto porque,
tanto não é possível tratar das técnicas do cor-
po sem fazer referência aos instrumentos, como
é impossível falar da reprodução técnica sem
lembrar do corpo. De qualquer maneira, nos
dois casos trata-se de
(...) ver técnicas e a obra da razão prática coleti-
va e individual, lá onde geralmente se vê apenas
a alma e suas faculdades de repetição (Mauss
[1950] 2003a: 404).
Etnografi a da música, disco e incons-ciente auditivo
Resta-nos agora a difícil tarefa de tentar
responder ao problema posto no início: seria
possível ver a ilusão auditiva produzida pelos
meios técnicos emancipados como parte inte-
grante do fazer musical contemporâneo, e as-
sim trazer os discos para o foco central de uma
etnografi a da música, vendo neles algo mais
que ferramentas para o teste de hipóteses? Tal-
vez mais que propriamente dar uma resposta,
gostaríamos de indicar como esta constelação
inusitada de autores pode ajudar na construção
de uma estratégia refl exiva alternativa para o
enfrentamento da questão.
Como vimos com Anthony Seeger (1992) e
John Blacking (1995), tal compatibilização se-
ria extremamente problemática, já que o efeito
ilusório dos meios técnicos impediria o acesso
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ao fazer musical. Com o perdão da palavra, che-
ga a parecer ingênuo pensar que uma pessoa,
ao se distrair ouvindo um bom disco, acredite
mesmo que aqueles sons reproduzidos pelo seu
equipamento estejam sendo realizados sem a
agência humana. De qualquer maneira, há de
fato uma ilusão operando ali, já que o ouvinte
é confrontado com o produto da atividade hu-
mana, da sua própria atividade, mas de forma
emancipada, isto é, como produto alienado do
trabalho humano, como já diria Karl Marx.
Buscando então superar a difi culdade apon-
tada por Seeger e Blacking, Walter Benjamin
([1936] 1985d; [1955] 1992) nos oferece
como alternativa encarar os meios técnicos
atentando para a diferença entre linguagem do
equipamento de registro e linguagem do corpo
humano. Desta perspectiva o disco, enquanto
obra de arte tecnicamente reprodutível, não só
exige uma nova atitude – a descontração – de
seu ouvinte, como permite acompanhar um es-
paço sonoro que passa a ser preenchido incons-
cientemente – o inconsciente auditivo. Com
isto a ilusão auditiva, a auto-alienação humana
diante de um aparelho técnico emancipado,
torna-se produtiva, já que
Com a representação do homem pelo apare-
lho, a auto-alienação humana encontrou uma
aplicação altamente criadora (Benjamin [1936]
1985d: 180),
pois não só exige do homem contemporâ-
neo uma nova atitude crítica diante das obras
que reproduz, como também, nesta mudança,
revela as condições sociais de sua época. Ou
ainda, para usar os termos dos dois primeiros, a
ilusão auditiva produzida pelos meios técnicos
provoca alterações na concepção, na execução e
na apreciação das músicas que reproduz: mais
que iludir, demonstra uma outra maneira de
fazer e ouvir música utilizada pelos membros
de uma sociedade determinada.
Mas se saímos pelas portas dos fundos da
etnografi a da música para nos arriscar em certas
veredas tortuosas da teoria crítica, faltava ain-
da uma base empírica, se podemos dizer assim,
um lugar de onde se pudesse acompanhar o
adestramento da percepção exigido pela ilusão
auditiva característica da reprodução técnica da
música, e que nos trouxesse de volta aos cami-
nhos da antropologia. E é Marcel Mauss que
oferece pistas indicativas de um tal lugar.
Como procuramos salientar anteriormente,
a aparente contradição entre tecnologia sem
instrumentos em Mauss e tecnologia com ins-
trumentos em Benjamin encontraria sua possí-
vel superação dialética enfocando a formação
de pares mecânicos entre corpo e instrumento,
onde a atitude desconcentrada exigida pelos
meios técnicos emancipados é tomada como
produto de uma técnica da descontração, uma
atividade realizada em repouso, uma técnica do
repouso ativo, fruto de um empreendimento
que é ao mesmo tempo individual e social.
É verdade que o inesperado recurso a
Marcel Mauss não basta para garantir a base
empírica necessária para se levar a cabo uma
etnografi a da música que incorpore o disco,
não apenas como instrumento de trabalho,
mas também como objeto da observação. Tal
garantia só será dada à medida que avançarem
as etnografi as dos usos sociais e da produção
social dos discos, preenchendo aquela lacuna
etnomusicológica que procuramos evidenciar
anteriormente. Acompanhar como a ilusão
auditiva opera criativamente no fazer musical
contemporâneo, alterando a concepção, a exe-
cução e a apreciação da música tecnicamente
reprodutível, talvez seja uma boa maneira de,
quiçá, rastrear algumas daquelas “luas mortas,
ou pálidas, ou obscuras, no fi rmamento da ra-
zão” (Mauss [1950] 2003b: 343).
cadernos de campo • n. 13 • 2005
114 | -
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
resumo Este artigo trata da gênese do cinema
de Jean Rouch (1917-2004), dando foco ao fi lme
Les maîtres fous, de 1954. Com este, Rouch realiza a
transição do fi lme etnográfi co em seus moldes “clás-
sicos” para um questionamento mais sofi sticado so-
bre a linguagem. Ao fi lmar um ritual de possessão
na Costa do Ouro (hoje em dia, Gana), Rouch aca-
ba por promover uma refl exão sobre a relação entre
realidade e imaginário, que diz muito sobre outra
relação, aquela que se dá entre a práxis cinemato-
gráfi ca e a análise antropológica.
palavras-chave Jean Rouch, fi lme etnográ-
fi co, ritual, possessão.
Imagens perigosas: a possessão e a gênese do cinema de Jean Rouch*
* Uma primeira versão deste texto foi apresentado no
28ª encontro anual da ANPOCS (outubro de 2004)
na mesa “Jean Rouch, cinema, antropologia”, realiza-
da como uma homenagem a esse importante antro-
pólogo e cineasta, falecido em fevereiro de 2004, aos
84 anos, num acidente de carro ocorrido no Níger.
RENATO SZTUTMAN
Doutorando em Antropologia Social pela
FFLCH/USP e co-editor da revista Sexta-Feira: antropologia, artes e humanidades.
Artigo aceito para publicação em 03/10/05
abstract Th is article lies on the genesis of Jean
Rouch’s cinema (1917-2004). Its focus is on the fi lm Les maîtres fous, which fi rst appeared in 1954. With
this fi lm, Rouch abandons ethnographic fi lm in
its “classical” fashion towards a more sophisticated
investigation on language. While fi lming a posses-
sion ritual in the Golden Cost (nowadays, Ghana),
Rouch fi nds a refl ection on reality-imaginary rela-
tionship, which seems to be able to tell too much
about the relationship between cinematographic
praxis and anthropological analysis.
keywords Jean Rouch, ethnographic fi lm,
ritual, possession.
Agradeço a Paulo Menezes, coordenador, pelo con-
vite gentil e pela oportunidade que me propiciou de
refl etir, junto a pesquisadores da área de antropologia
visual, sobre a obra de Rouch. Agradeço também a
Sophie Abiven e Stelio Marras, que discutiram comi-
go algumas das questões aqui expostas.
Ao imaginário se chega quando se derrapa.Jean Rouch
Accra, Paris, 1954
Paris. 1954. Sala de projeção do Museu do
Homem. Jean Rouch exibe pela primeira vez o
curta-metragem Les Maîtres Fous, hoje reconhe-
cido como marco na história do fi lme documen-
tário e etnográfi co, o que se deve à utilização de
uma nova linguagem cinematográfi ca para re-
tratar um ritual africano de possessão, realizado
num contexto colonial e urbano. Estão presen-
tes na platéia africanistas como Marcel Griaule,
Luc de Heusch e Germaine Dieterlen, além de
alguns alunos, muitos deles de origem africana.
As luzes se apagam. A cortina vermelha se abre.
A projeção começa.
Na tela, a imagem estática de uma oferenda
de comida. De fundo, a música africana mis-
tura-se a ruídos urbanos. Um texto nos explica
que o fi lme versará sobre um episódio da vida
cadernos de campo n. 13: 115-124, 2005
116 |
dos Hauka, membros de uma certa “seita” reli-
giosa que incorporam “novos deuses”. O texto
adverte ainda que as imagens fortes que segui-
rão foram fi lmadas a pedido dos sacerdotes e
que nenhuma delas é proibida ou secreta, sen-
do assim abertas a todos que estiverem dispos-
tos a assistir ao “jogo violento que nada mais é
senão o refl exo de nossa civilização”.
Um corte abrupto nos leva a uma estação de
trem e, logo depois, ao cenário urbano. Rouch
conta-nos, em voz off (como o fará ao longo de
todo o fi lme), que estamos numa certa cidade
da África Ocidental – Accra, capital da então
Costa do Ouro, colônia britânica, hoje Gana.
Vemos homens trabalhar – são todos migran-
tes que vêm de diferentes partes. Doqueiros,
estivadores, comerciantes, artesãos, faxineiros,
mineiros, entre tantos outros compõem essa
“Babilônia Negra”. A sobreposição de diferen-
tes planos indica a convivência de sons, cores e
religiões. Em um bar, denominado Califórnia,
ouvimos o som do calipso. De um cortejo ioru-
bá passamos a uma manifestação de prostitutas,
destas às irmãzinhas de Jesus que “cantam nas
ruas a sua fé” e, por fi m, a uma fanfarra militar.
Chegamos ao mercado de sal, na periferia
de Accra, onde se encontram os Hauka. Rouch
explica que domingo é o dia em que eles se re-
únem para celebrar os “novos deuses” e, nesse
momento, oferece fl ashes de rostos em transe,
antecipando a matéria do fi lme. São rostos des-
fi gurados que se confundem na escuridão. Na
seqüência seguinte, já é domingo. Logo cedo,
os Hauka deixam a cidade em direção ao sítio,
onde será realizado o ritual. Quem guia todos
é Mountyeba, o “sacerdote” que, como os de-
mais, é um migrante vindo do Níger.
No sítio, o velho casebre é apresentado como
“palácio do governador” e lá encontramos um
altar com o ícone do governador britânico. O
ritual começa então com a apresentação de um
noviço, Gherba, que tem crises intensas em fren-
te à câmera – todos sabem que ele está possuído
por um espírito Hauka. Em seguida, têm início
as confi ssões públicas. Um homem diz que teve
relações sexuais com a esposa do amigo e há dois
meses está impotente. Outro diz que colocou
em dúvida a existência dos espíritos Hauka. Um
apito dá o sinal de ordem e os punidos separam-
se dos demais, fi cando de fora do pátio, vigiado
por sentinelas. Uma galinha é sacrifi cada e seu
sangue é esparramado no altar.
Sobre a estátua do governador, vemos uma
mensagem telegráfi ca e um cartaz do fi lme “A
marca do Zorro”. Já passa das dez da manhã e
um violinista começa a tocar as árias Hauka. O
sacerdote dorme. Alguém traz um cão, que deve-
rá ser sacrifi cado e comido. Rouch explica que o
sentido deste ato está em romper um tabu, o que
os permite mostrar – para os africanos e para os
europeus – que eles são mais fortes que os ou-
tros homens. Todos se põem a marchar em tor-
no do local onde será realizado o sacrifício – eles
portam faixas vermelhas e fuzis de madeira. Seu
comportamento imita a disciplina militar euro-
péia. A dança principia, puxada pelo sacerdote.
A câmera procura acompanhar o movimento
efusivo dos participantes. De repente, a posses-
são começa. Acompanhamos de perto as reações
corporais de um homem. A tremedeira se inicia
pelo pé esquerdo, passa ao direito, invadindo as
mãos, os braços, os ombros e, por fi m, a cabeça.
Esse homem, reconhecido como cabo de guarda,
levanta-se, cumprimenta a todos e pede fogo para
se queimar – ele precisa mostrar que “já não é um
homem, mas um Hauka”, comenta Rouch.
Aos poucos, todo o panteão de ofi ciais mili-
tares desce ao pátio. Vêm o capitão, o condutor
da locomotiva, Madame Locotereau, o tenen-
te, o governador e Madame Salme. A câmera,
fortemente subjetiva, busca acompanhar os
movimentos aparentemente desgovernados dos
personagens em transe, alternando entre planos
de conjunto, que focalizam a dança e a algazarra,
e closes em diferentes expressões faciais, tempe-
radas pela baba branca que escorre das bocas.
cadernos de campo • n. 13 • 2005
: |
De súbito, o tenente aproxima-se da está-
tua do governador e, como num ato sacrifi cial,
quebra sobre ela um ovo de galinha. No plano
seguinte, vamos parar no desfi le do exército
britânico com suas cores gritantes. Rouch ex-
plica que a função simbólica do ovo pode ser
buscada naquelas imagens e, no plano seguin-
te, focaliza as penas amarelas e brancas do ca-
pacete do governador em carne e osso. O que
víamos como imitação agora é realidade: os
militares, de uniforme vermelho, realizam uma
parada em frente à Assembléia de Accra. Há
um público imenso que assiste ao espetáculo e,
lembra-nos Rouch, haverá ali certamente um
Hauka que veio buscar seu modelo.
Um novo corte nos devolve ao ritual. A pos-
sessão continua. O governador convoca uma as-
sembléia para decidir se o cão será comido cru
ou cozido. Decide-se cozinhá-lo. (Enquanto
isso, o noviço chega possuído pelo “secretário
geral”). Morto, o cão é feito em pedaços, e os
homens, inquietos, fartam-se com o seu san-
gue. Pronto o cozido, os melhores pedaços são
disputados. As imagens são de causar náuseas.
Com o cair da noite, o ritual termina a não ser
para o motorista da locomotiva que se põe a
discursar. Momentos depois, todos deixam o
sítio. Por um instante, sob a escuridão, vemos
os vestígios do rito.
Na manhã seguinte, Rouch nos traz de volta
ao mercado de sal, onde reencontramos os per-
sonagens da véspera – todos sorridentes, sem
qualquer aparência de ressaca. Vemos ali uma
nova assembléia, não para decidir a morte de
um cão, mas para jogar cartas. Rouch ajuda-nos
a reconhecer os participantes, valendo-se de fl a-
shes dos rostos desfi gurados da véspera. Madame
Locotereau é, na verdade, um menino efemina-
do que trabalha como vendedor e usa muita
vaselina no cabelo. O cabo de guarda é cami-
nhoneiro. O general é só um soldado. Madame
Salme é Magasia, uma prostituta. O governador,
o condutor de locomotiva e o secretário geral são
operários da Water Rocks, empresa de abasteci-
mento de água. Por ironia, eles trabalham numa
obra localizada em frente ao hospital psiquiá-
trico municipal. Jean Rouch fi xa-se, então, no
sorriso ingênuo de Gherba, o noviço que foi o
secretário geral e agora tem a cabeça raspada.
E, sobre essa imagem, o fi lme fi nda com uma
indagação do próprio diretor: “Provavelmente,
esses africanos conhecem certos remédios que os
permitem não serem anormais, mas justamente
se integrarem ao meio em que vivem. E estes re-
médios ainda nos são desconhecidos”.
As luzes se acendem na sala de projeção do
Museu do Homem. A platéia está atônita depois
de assistir aos apenas vinte e sete minutos do
fi lme. Alguns africanos presentes declaram que
as imagens vistas são uma afronta à sua digni-
dade, que elas apresentam os nativos como sel-
vagens. Marcel Griaule pede, então, que Rouch
destrua o fi lme: aquelas imagens não poderiam
ser veiculadas, visto que eram demasiadamen-
te perigosas. Elas jamais poderiam ser vistas por
não-iniciados, que não partilhassem aquele uni-
verso. Tampouco poderiam ser exibidas a inicia-
dos, que, ao vê-las, entrariam em transe.
Uma história, contada por Rouch, é bas-
tante curiosa para falar do perigo dos espíritos
Hauka e de suas imagens:
Entre a minha equipe estava um jovem chama-
do Tallou que depois viria a atuar em Cocori-co Monsieur Poulet (1975). Ele fi cou chocado:
“Tudo isso é falso. Falso!”. E Gherba disse a
ele: “Tallou, tome cuidado. Você não deveria
dizer isso, pois os Hauka podem se vingar”.
Dito e feito. Três semanas depois, Tallou foi
possuído. Foi um transe selvagem, que causou
muito problema, pois ele foi possuído no meio
de Accra e começou a agredir os seus amigos.
Encontramos-no passando a noite num cemi-
tério fora da cidade, e eu o levei a Mountyeba,
o sacerdote, que disse: “Sim, ele está possuído,
mas é preciso esperar quem sabe um ano para
cadernos de campo • n. 13 • 2005
118 |
que ele seja fi nalmente iniciado”. E disse tam-
bém (mas só para mim): “Você é reponsável,
pois foi você quem o trouxe aqui. O melhor
a fazer é levá-lo de volta à sua aldeia natal”.
O sacerdote me deu um pouco de perfume e
outras coisas mais e me explicou como aquietar
Tallou se ele voltasse a ter uma crise. Então eu
levei Tallou ao meu motorista, Lam, que, aliás,
também atuou em meus fi lmes. Eles voltaram
ao Níger de trem e caminhão, e durante a via-
gem ele foi possuído duas ou três vezes. Lam
teve de o acalmar passando perfume em sua ca-
beça. Isso foi dois anos antes de sua iniciação.
Um dos últimos Hauka foi um general francês
que comandou o exército durante a guerra da
Indochina. Ele se chamava General Marseilles,
pois certas tropas africanas que partiam à Indo-
china paravam em Marselha, França. Tallou foi
possuído por este general, o último dos Hauka
(Rouch, Marshall & Adams, 1978: 1010; mi-
nha tradução).
Durante o debate, Luc De Heusch é o úni-
co a defender o fi lme de Rouch, apontando ali
um documento de grande importância para a
antropologia.
Antecedentes e ecos
Para além do Museu do Homem, Les Maîtres Fous não teve melhor sorte. Foi rechaçado pelas
autoridades coloniais britânicas, que acusaram o
autor de desrespeito ao Exército e à rainha. Ten-
do em vista todas as objeções, Rouch optou por
restringir a circulação do fi lme, exibindo-o ape-
nas em um circuito alternativo de cineclubes.
Com todos esses pesares – e mesmo por
causa deles – Les Maîtres Fous tornou-se um
clássico. Inspirou rapidamente campos artísti-
cos, como o cinema de fi cção e o teatro. Clau-
de Chabrol foi logo procurar Rouch para saber,
afi nal, como ele tinha adquirido tamanha téc-
nica na direção de “atores”. (O cineasta não
havia acreditado que aquilo pudesse ser um ri-
tual). Jean Genet, de sua parte, inspirou-se na
possessão Hauka para escrever Os Negros, peça
em que um grupo de escravos se rebela contra
seus mestres. E Peter Brook usou as imagens
para treinar os atores de Marat/Sade.
De modo curioso, Les Maîtres Fous atraía, so-
bretudo, pelo seu lado dramático. Como fi lme
etnográfi co, no entanto, foi considerado, por
pares como o próprio Griaule, como incomple-to, por ser breve demais e não contextualizar na
medida necessária o ritual apresentado, e perigo-so, por não medir o efeito que aquelas imagens
poderiam ter para a audiência, africana e euro-
péia (Stoller 1994). Que seriam, afi nal, aqueles
homens negros ditos Hauka, que imitavam per-
sonagens coloniais e eram possuídos pelos seus
espíritos? Que pensar de uma cena escatológica
como a do sacrifício do cão, em que se cogitou
a possibilidade de comer a carne crua? Acusa-
va-se o fi lme de Jean Rouch de endossar justa-
mente o que ele pretendia combater, ou seja, o
racismo, a idéia de que a subordinação poderia
ser explicada pelo caráter “selvagem” (portanto,
“inferior”) dos negros, que agiam na tela como
doentes mentais, incapazes de separar a realida-
de vivida da imaginação.
Apesar da recepção receosa por parte dos
antropólogos, Les Maîtres Fous não pode ser
dissociado do processo de pesquisa iniciado por
Rouch em meados dos anos 1940 no que viria a
ser a República do Níger, e nesse ponto recobra
um lugar importante na história da antropologia
e do cinema. Rouch formou-se em engenharia ci-
vil e se tornou supervisor da construção de estra-
das na colônia francesa ali estabelecida. Foi nesse
cenário que conheceu Damouré Zika, que se
tornaria um grande amigo e parceiro. Damouré
trabalhou como técnico de som em fi lmes como
o próprio Les Maîtres Fous, e protagonizou outros
fi lmes como Jaguar (1967) e Petit à Petit (1969).
Também ali Rouch presenciou os primeiros ri-
tuais de possessão, que o conduziram a refl etir
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mais sistematicamente sobre aspectos daquelas
religiões e, assim, reavivar os estudos de etnologia
realizados quando era ainda um aluno de gradu-
ação. Com apoio de Griaule, Rouch passou a se
interessar pela coleta de dados e pela religião dos
Songhay – povo agricultor da savana – antes da
presença islâmica, o que incluía o interesse por
práticas como feitiçaria, sacrifício e possessão.
Rouch acompanhou, durante 1946 e 1947, uma
expedição ao longo do rio Níger e fi lmou, en-
tre outras coisas, uma caçada de hipopótamos.
Como conta Paul Stoller (2005), foi devido a
um tripé quebrado que Rouch teve de passar a
usar a câmera na mão. Por acidente, ele cunhava
um método muito particular de fi lmar. Essa seria
a sua marca desde o primeiro fi lme, Au pays des mages noirs (1947), exibido como complemento
de Stromboli (1949), longa-metragem do diretor
italiano Roberto Rosselini, que contava com a
presença da atriz Ingrid Bergman no elenco.
Em 1947, já incluído no Centre National
de la Recherche Scientifi que (CNRS), Rouch
partia como doutorando ao Níger e ao Mali
para colher histórias sobre os Songhay do pe-
ríodo pré-islâmico. Ele encontrava nos rituais
realizados por esse povo a via de acesso mais
efi caz para a revelação dessa memória coletiva.
Em Les magiciens de Wanzerbé (1948), ele apre-
sentava um retrato da vida social em uma aldeia
songhay famosa pelos seus feiticeiros. Por meio
de um longo plano-seqüência, documentava
um ato por assim dizer exótico para o espec-
tador ocidental: o feiticeiro-dançarino cuspia
um objeto de metal que estaria alojado em seu
estômago. Les Fils de l’eau, longa-metragem
de 1953, reunia imagens, rodadas no Níger e
no Mali, de diferentes momentos rituais, tais
a circuncisão dos meninos songhay, a caça ao
hipopótamo no rio Níger e um rito funerário
dogon. Em 1952, Rouch defendia na Sorbonne
a sua tese de doutorado, A religião e a magia en-tre os Songhay, sob orientação de Marcel Griau-
le. A partir do mesmo ano, iniciava uma nova
pesquisa, já inseparável do cinema e desta vez
não mais entre grupos “tribalizados”, mas sobre
os migrantes que vinham do Níger – sobretudo
Songhay – à Costa do Ouro. Boa parte desses
migrantes integrava as práticas Hauka, que não
eram assim tão inovadoras como se pode pensar.
Incorporava-se aos rituais de possessão tradicio-
nais “novos deuses”, justamente os espíritos de
administradores coloniais. A “seita”, como foi
logo taxada pelo governo colonial francês, teria
emergido por volta de 1927, e seus membros
teriam sido expulsos do Níger por atemorizar as
autoridades públicas, o que evidencia o enorme
impacto – sobretudo político – que tiveram.
Os Hauka revisitados
As imagens dos corpos possuídos por di-
vindades coloniais pareciam sintetizar de
modo notável a experiência de povos como os
Songhay em cidades algo cosmopolitas como
Accra. E, com efeito, elas atuaram na fundação
do cinema de Jean Rouch. Mas, como aten-
tava Griaule, estas eram imagens perigosas e
descontextualizadas (Stoller 1994).
Três anos após o lançamento de Les Maîtres Fous, em 1957, a Costa do Ouro tornava-se in-
dependente. A partir de então, os Hauka que lá
viviam retornavam ao interior do Níger, recu-
perando o estilo de vida aldeão. Seu panteão,
que confi gurava uma espécie de prática “fora da
lei”, era aos poucos assimilado pelos sacerdotes
tradicionais. Intrigado pelas imagens de Rouch,
Paul Stoller, antropólogo norte-americano, vol-
tou aos Songhay do Níger na década de 1980,
portanto no período pós-colonial. Ao contrário
do que previu Rouch, Stoller (1989 e 1995) sus-
tenta que a religião dos Hauka não cessou com o
fi m da colonização, mas transformou-se no tem-
po e acarretou diferentes arranjos políticos. Bas-
ta aqui salientar que, com a independência do
Níger, muitos Hauka tornaram-se membros do
Supremo Conselho Militar, um deles chegando
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a ser eleito como presidente da República. Nota-
se também que, nesse novo período, os Hauka
foram responsáveis pela legitimação de vários
atos de violência política. Segundo Stoller, que
perseguiu as metamorfoses dos Hauka na segun-
da metade do século XX, esses rituais de pos-
sessão não eram simplesmente um modo para
resistir à colonização, mas sobretudo para cons-
tituir uma memória do grupo e, assim, habitar
o tempo atual. E isso só era possível mediante
um trabalho de “inscrição no corpo”. O autor
lembra também que, entre os Songhay, esse tipo
de memória “incorporada” (embodied) contrasta
com dois outros: uma tradição escrita, herdada
do Islã, e uma tradição oral-épica, concentrada
na fi gura dos griots, contadores de histórias e
guardiões da tradição oral.
Em linhas gerais, o argumento de Stoller
reside na idéia de que os rituais de possessão
Hauka imitam o homem branco e sua organi-
zação militar para domesticá-los, controlá-los.
Na esteira de Michael Taussig (1993), Stoller
(1995) pensa o “poder mimético” embutido
nesses atos de incorporação. Povos como os Son-
ghay teriam, assim, nos rituais de possessão uma
espécie de máquina de processamento dos epi-
sódios de contato com a alteridade, que remete
tanto a tempos imemoriais – o tempo do mito
– como a tempos datados – a conquista muçul-
mana, a incorporação de outros grupos étnicos
etc. Podemos concluir, com Stoller e Taussig,
que a possessão entre esses povos é um ato a um
só tempo cognitivo, histórico e político, e isso
signifi ca que esta maneira de habitar no mundo
– de existir – passa necessariamente pelo simbó-
lico ou, para usar um termo bastante frisado por
Rouch, pelo imaginário, pela imaginação.
O fato de que os Hauka incorporavam ele-
mentos coloniais às suas práticas correntes para
poder, enfi m, domesticá-los ou controlá-los se-
gundo seus próprios termos deve explicar, por
exemplo, a permissão dos sacerdotes para fi lmar
o ritual. Rouch lembra, aliás, que Les Maîtres
Fous foi realizado a pedido dos próprios Hauka.
“Minha hipótese é que eles usariam a câmera no
culto da mesma forma que usaram uma arma
de madeira” (Rouch, Marshall & Adams 1978:
1007). O ritual se apropria, assim, de mais um
elemento ocidental, que não é, diga-se de passa-
gem, um elemento qualquer, mas sim dotado de
grande valor a um só tempo simbólico e tecno-
lógico, dado pela capacidade de reproduzir ima-
gens em movimento e veiculá-las a um grande
público. O cinema era, na época em que Rouch
fi lmava em Accra, um dos signos mais fortes da
modernidade: apropriar-se dele era claramente
um modo de exibir controle sobre a situação e,
principalmente, de tornar visível uma situação
que permanecia invisível. Máquina de sonhos,
o cinema poderia materializar, como na posses-
são, aspectos invisíveis do cosmos, criando um
novo contexto de interação. Como sugere
Michael Taussig, que volta a Les Maîtres Fous:
O fi lme toma de empréstimo a prática mágica da
mímese no próprio momento da fi lmagem. O
primitivismo no modernismo permite-se fl orescer.
Nesse mundo colonial onde a câmera encontra-se
com esses possessos por divindades, podemos real-
mente apontar o renascimento ocidental da facul-
dade mimética por meio da maquinaria mimética
da modernidade (1993: 242; minha tradução).
Se as imagens de Les Maîtres Fous eram,
como acusou Griaule, perigosas, isso ocorria
sobretudo porque elas eram capazes de am-
plifi car de maneira descontrolada (e aberta a
diferentes manipulações) os cultos de posses-
são e, por isso mesmo, deveriam ser veiculadas
com cautela. Elas eram poderosas (no sentido
de Taussig) e poderiam ser usadas não apenas
para fi ns racistas, por parte dos colonizadores,
mas também pelos próprios sacerdotes Hauka,
que desejavam cooptar novos adeptos, o que
poderia promover um crescimento desmedido
do movimento e causar grande represália por
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parte da administração colonial. De fato, como
já salientado, Les Maîtres Fous teve circulação
restrita durante a década de 1950, atendo-se a
um público seleto de intelectuais. Quando da
descolonização, no entanto, Rouch pôde voltar
a algumas das aldeias songhay, no Níger, e ali
exibir o fi lme. Nesse novo momento, os espí-
ritos Hauka já estavam em grande parte incor-
porados às práticas tradicionais e ao panteão
de divindades, o que retirava de seus cultos o
caráter propriamente contestatório.
O dinamismo das tradições songhay, nota-
do por Stoller, pode ser confi rmado em um co-
mentário de Rouch a Marshall & Adams (1978)
sobre a incorporação, na fase pós-colonial, de
uma nova classe de divindades. No início dos
anos 1970, quando os espíritos Hauka pare-
ciam ter sido aceitos pela maioria dos sacerdotes
songhay, apareciam os assim chamados espíritos
Sasale, “subversivos”, porém de modo distinto
ao dos Hauka. Espíritos de cantores, prostitu-
tas, playboys etc., os Sasale apoderavam-se dos
corpos de meninas e meninos fazendo-os repro-
duzir gestos eróticos ou obscenos. Essa “nova
religião” – se assim for possível chamar toda
forma incorporação de novas divindades num
panteão cuja marca é justamente essa abertura
ao evento – foi, conta Rouch, revestida de um
signifi cado contestatório e novamente reprimi-
da pelo governo da República do Níger.
Esta nova religião está começando do mesmo
jeito: ele é absolutamente underground, pois o
governo é contra o sexo. Eu comecei um fi lme
sobre isso, mas eles me pediram para não mos-
trá-lo, pois (...) todas as danças falavam sobre
sexo: “Olhem só o meu clitóris”, “Ah, como
são maravilhosos os seus testículos”, e daí por
diante. Era uma coisa de louco. Como vocês
vêem, isso acontece a todo o momento. (…) As
pessoas não conseguem explicar o que elas estão
fazendo, elas só podem mostrar o que elas estão
pensando, e isso signifi ca que durante todos es-
ses anos, dos anos 1920 à independência, elas
estavam pensando no poder militar, adminis-
trativo e burocrático e, agora, elas começaram
a pensar mais no sexo e na morte. Os Hauka
introduziram a idéia de pessoas fora-da-lei, o
sentido exato da palavra (é importante ter mitos
de pessoas fora-da-lei). Mas agora que os Hauka
estão dentro da lei, tomaram o poder, pois eles
são os fi lhos de Dongo, é preciso que tivessem
aparecido os novos fora-da-lei, os Sasale. Mes-
mo na situação política atual, continua funcio-
nando (1978: 1013; minha tradução).
Hoje, as imagens de Rouch, que, como os
espíritos europeus (os Hauka), são parte cons-
titutiva da memória coletiva local, podem ser
exibidas em lugares públicos como o Centro
Cultural do Níger, sem causar maiores descon-
certos. Seu perigo foi, como se vê, domesticado
e, assim, deslocado para outros domínios. Com
efeito, passados cinqüenta anos, podemos vol-
tar a essas imagens e medir seu impacto para a
história do cinema e da antropologia.
Imagens possessas
Se as imagens de Les Maîtres Fous são mesmo
perigosas, isso ocorre sobretudo porque elas pare-
cem estabelecer com a possessão uma associação
por contigüidade. As imagens ambíguas criadas
no ritual Hauka – de colonizados que incorpo-
ram (espíritos de) colonizadores – não apenas
mimetizam elementos ocidentais, como querem
Taussig e Stoller, mas condensam e dão visibilida-
de às contradições vividas na experiência cotidia-
na da época.1 Ora, o fi lme etnográfi co inspira-se,
1. Carlo Severi (2000) vai além da idéia de mímese, presente
em Stoller e Taussig, para pensar fenômenos “híbridos”,
tais os cultos Hauka, como resultado de um processo de
interação ritual e de condensação de imagens. O ponto
não seria apenas imitar os colonizadores, mas sobretudo
inserir o seu universo, sobretudo imagético, dentro de
um contexto ritual já dado; no caso Hauka, a possessão.
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curiosamente, nessa mesma relação perigosa com
o real. Filmar o ritual é, nesse sentido, menos re-
tratá-lo que potencializá-lo, amplifi cá-lo. Eis que
entra em cena o “cine-transe”, expressão cunhada
por Jean Rouch para se referir à fi lmagem de Les Maîtres Fous: é preciso fi lmar como se estivesse
em transe para que o efeito do fi lme aproxime-
se do efeito do ritual (Rouch 1978). De certo
modo, se no ritual os africanos são cavalos de
espíritos ocidentais, na sala de cinema a relação
parece se inverter: tudo se passa como se nós nos
tornássemos os cavalos deles.
A câmera do cineasta que participa ativa-
mente da cena fi lmada possibilita para o pú-
blico ocidental uma experiência análoga à do
ritual africano. Les Maîtres Fous não é apenas
perigoso para eles, mas também para nós, es-
pectadores. Ainda que se trate de contextos
radicalmente diversos, um mesmo tipo de
impacto não pode ser negligenciado. É nessa
mesma direção que Paul Stoller (1994) associa
Les Maîtres Fous, e o cinema em geral criado
por Rouch, às experiências dos surrealistas e,
mais precisamente, ao “teatro da crueldade”
de Antonin Artaud. O espectador é posto em
confronto com dimensões reprimidas – dando
vazão ao inexprimível e ao invisível – e, assim,
o fi lme pode transformar a audiência psicolo-
gicamente e politicamente, promovendo uma
“descolonização do imaginário”.
Como vemos, a missão do cinema confun-
de-se, em Jean Rouch, com a missão do ritual,
no caso, de possessão. É assim que as fi lmagens
da possessão Hauka encontram-se na base de
seu “cinema verdade” – uma verdade que, no
entanto, não diz respeito a um realismo ingê-
nuo e que só pode ser revelada no discurso do
cinema. Como Rouch assume inúmeras vezes,
referindo-se sempre a Dziga Vertov, trata-se não
de uma verdade nua, mas uma verdade fílmica,
uma verdade do cinema. Não de uma verdade
visível, mas uma verdade que deve ser descorti-
nada, inacessível ao olho senão pela mediação
da câmera. A essa verdade se acede, vale ressal-
tar, pelo imaginário, pela imaginação.
Como o ritual, o cinema é uma espécie de
explicitação de uma porção que permanece
oculta e que só pode ser acionada na suspensão
do cotidiano.2 A sala escura, como a posses-
são, permite que nos transportemos para outro
mundo, o que signifi ca voltar e ver este mundo
já com outros olhos. Olhos de um recém-ini-
ciado, tais aqueles que compõem a última se-
qüência de Les Maîtres Fous.
Depois de Les Maîtres Fous
O ritual de possessão Hauka e suas imagens
perigosas podem ser tomados como fundadores do
cinema rouchiano. É deles que emerge a potência
provocadora e desafi adora dos fi lmes seguintes do
realizador. Na segunda metade da década de 1950,
as imagens aterrorizantes de Les Maîtres Fous davam
lugar a outras formas de acessar o mundo por meio
do imaginário e da imaginação, que passavam pela
utilização da fi cção e do psico-drama. O fi lme et-
nográfi co sofria, então, uma reforma decisiva, visto
que as fronteiras entre o fi ccional e o documentário
eram submetidas ao apuro.
Com Moi, un Noir (1958) e Jaguar (1967),
duas “etno-fi ccções”, Rouch fazia os fi lmados en-
cenarem as suas próprias vidas tendo como pal-
co cidades assaltadas pela ocidentalização, como
Abdijan (Costa do Marfi m) e Accra (Gana). Esses
fi lmes tratavam justamente dos sonhos de jovens
africanos migrantes, que “espremidos entre a tra-
dição e a automação, entre o islamismo e o álcool,
não renunciaram às suas crenças nem aos ídolos
modernos do boxe e do cinema” – tal o texto em
off de Jean Rouch para a abertura de Moi, un Noir. Em La Pyramide Humaine (1959) e Chro-nique d’un Été (1960), Rouch lançava mão de
2. Sobre a idéia – que me é bastante simpática – de que
objetivo da comunicação ritual é, sobretudo, tornar
visível, “dar a ver” relações invisíveis, ver Houseman
& Severi (1994).
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“psico-dramas sociais”: reunia pessoas de diversas
origens para discutir entre si e em frente à câmera,
temas como racismo, xenofobia e guerra. A pre-
sença do realizador aí não era jamais transparente
e os fi lmados falavam diretamente para a câme-
ra. Em Pyramide Humaine, por exemplo, Rouch
reunia estudantes brancos e negros que viviam em
Abdijan para discutir com eles o tema das relações
raciais. Ao suscitar novos contextos de interação
entre os jovens, o fi lme acabava por produzir situ-
ações, como o namoro entre um africano e uma
francesa – situação que não era exatamente “pen-
sável” naquela época tingida pelo colonialismo.
Nesses fi lmes, vemos com mais nitidez também o
projeto de uma “antropologia compartilhada” e o
delineamento de um compromisso ético com os
fi lmados. Ou seja, o fi lme etnográfi co tornava-se
um diálogo entre os nativos e o realizador, que
deveria retornar a eles as imagens produzidas.3
Com esses fi lmes, Rouch rompe com a impo-
sição de uma representação realista e com o ideal
de transparência da câmera. Moi, un Noir busca na
fi cção o gênero ideal para se referir à experiência
contraditória da modernidade e do cosmopolitis-
mo vividos pelos migrantes africanos. Lembremos,
contudo, que Les Maîtres Fous já antecipava esses
aspectos, agarrando um tema clássico da antropo-
logia: o ritual. Revelava como um certo grupo de
homens e mulheres conseguia viver a colonização
dentro de seus próprios termos; e estes, vale res-
saltar, passavam pela possessão, pela inscrição no
corpo de uma memória coletiva.
Se Les Maîtres Fous versa sobre a maneira
pela qual o ritual pode trabalhar um impacto
ou trauma causado pela colonização, ele resulta
em imagens não menos impactantes e traumá-
ticas para o espectador ocidental, impressio-
nado com aqueles atos que evocam, no seu
3. Para uma discussão um pouco mais aprofundada so-
bre a porosidade das fronteiras entre o documentário
e a fi cção no cinema de Jean Rouch e a produção, por
conseguinte, de uma “antropologia compartilhada”,
ver Sztutman (2004).
imaginário, a loucura e a selvageria. Les Maîtres Fous foi, na época de seu lançamento, vítima de
um mal-entendido, pois que a desordem que
apresentava era, com efeito, um modo de esta-
belecer uma certa ordem, de conferir sentido a
uma experiência marcada pela sobreposição de
mundos distintos e distantes. Como já havia su-
gerido diversas vezes Claude Lévi-Strauss, que
muitas vezes teorizou o que Rouch mostrou
(mesmo que jamais tenha havido interlocução
entre ambos), comparar as desordens psíqui-
cas, como a concebemos no Ocidente, àquelas
que parecem se apresentar, de maneira análoga,
nas narrativas míticas e nos rituais de diversos
povos ditos primitivos seria apenas possível e
prudente se compreendêssemos que aqueles
elementos de simbolização comumente toma-
dos por nós como patologia – como expressões
do sofrimento individual – podem emergir, em
outros lugares, como terapia – como modos de
conferir sentido ou mesmo inibir o sofrimento
a um só tempo individual e coletivo.4
A incorporação dos Hauka, uma espécie de
materialização das ambigüidades do cosmos e da
sociedade, era a maneira específi ca pela qual os
migrantes do Níger lidavam com o seu cotidiano,
4. Faço referência a textos como “A efi cácia simbólica”
(1976) e “Cosmopolitismo e esquizofrenia” (1986),
nos quais Lévi-Strauss compara, respectivamente, os
rituais xamânicos e a mitologia de dois grupos ame-
ríndios – os Cuna da América Central e os Chinook
da América do Norte – a domínios terapêuticos. Se
a tendência foi comparar o xamã ao esquizofrênico
e identifi car nos motivos míticos elementos relacio-
nados à esquizofrenia – tal o tema da clivagem inte-
rior e das confusões exteriores –, Lévi-Strauss propõe
uma inversão decisiva, comparando o trabalho do
xamanismo e da mitologia ao trabalho do psiquiatra.
O movimento por eles realizado seria, assim, inver-
so ao do delírio esquizofrênico, pois o que neste é
interiorizado subjetivamente pelo doente, torna-se
objetivamente espalhado entre diversos protagonistas
e repartido por diversos aspectos do cosmos. “Os ma-
teriais simbólicos são talvez os mesmos, mas o mito e
o delírio fazem deles usos opostos” (1986: 260).
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invadido pela experiência da ocidentalização. Era
preciso dar aos colonizadores um lugar no panteão
de divindades para que, como as demais divinda-
des, eles pudessem ser domesticados, submetidos
ao jugo dos homens. Era preciso ser possuído por
essas novas divindades, confundir-se com elas,
condensar elementos nativos e estrangeiros, para
que fosse possível voltar ao cotidiano não mais
como sujeito cindido – aterrorizado pela tensão
entre mundos descontínuos – mas como traba-
lhador que, integrado ao movimento caótico da
cidade grande, jamais se esquece do compromisso
sagrado no domingo. Em linhas gerais, a mensa-
gem de Les Maîtres Fous consiste em dizer que para
ser “normal”, ou melhor, para suportar as contra-
dições do vivido e estabelecer um certo grau de
autonomia pessoal, era preciso experimentar uma
certa “loucura” e uma certa “selvageria”, obtidas
nessa entrega à imaginação, nessa interação com
imagens e espíritos, que condensavam elementos
da religião nativa e da situação colonial, criando
novas formas e, através delas, novos sentidos para
habitar o mundo.
Como o totemismo abordado por Lévi-
Strauss (1961), toda essa “selvageria”, que con-
tinua a chocar o olhar do espectador ocidental
(que teme se descobrir selvagem), talvez não este-
ja longe de nós, mas sim em nós. O ponto é que
ela é mobilizada de maneiras bastante opostas na
experiência de cá e na de lá. Com suas imagens
perigosas, que geram opiniões e efeitos adversos
e que os nativos temem extrapolar o domínio
da tela, Rouch pretendia, em Les Maîtres Fous, fazer o “mundo africano” – com seus símbolos,
ritos e mitos – afetar a nossa própria realidade.
O cinema rouchiano constrói-se, tal o argumen-
to deste pequeno ensaio, sob o signo do ritual
de possessão, que lhe oferece, sem abolir o pe-
rigo, um certo modo de mostrar e agir sobre o
mundo, passando pela proposição de um outro
mundo, prenhe de imagens ambíguas, entre a
humanidade e a divindade, entre o tradicional e
o moderno.
Com Rouch, o cinema deixa de ser mera ilu-
são para se converter numa práxis capaz de des-
cortinar uma “verdade muito particular”, jamais
dada na superfície visível das coisas, mas que deve
ser extraída, ou mesmo decretada, sob esforço da
imaginação. Tendo em vista esse notável projeto,
Les Maîtres Fous, inquietante tanto pelo seu tema
quanto pela sua linguagem, permanece eterniza-
do no panteão do cinema e da antropologia.
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
Vandalismo, Sujeira e Poluição Visual, defi -
nições logo levantadas ao se discutir o que seria
esta forma de expressão urbana que é vista por
quase toda a paisagem da cidade de São Paulo:
a pixação, escrita assim mesmo com “x”, con-
forme o uso feito pelos próprios pixadores. Fato
que poderia sinalizar apenas uma suposta igno-
rância das regras gramaticais, visto que a grafi a
correta da palavra seria pichação com “ch”, é
colocado pelos próprios pixadores como uma
maneira de diferenciar a sua prática da defi ni-
ção comum de pichação. Pois o que fazem não
é simplesmente pichar um nome, uma palavra
ou uma frase qualquer em um muro, mas sim
pixar a sua marca desenhada com letras estiliza-
das, contorcidas e com um formato anguloso.
As marcas que “lançam” nos muros, pré-
dios, viadutos e monumentos da cidade são
geralmente nomes de grupos de pixadores. Es-
tes nomes, no entanto, têm pouca importância
quando estão inseridos no contexto mais ge-
ral da pixação. Os pixadores não se importam
muito com o que signifi ca a denominação em-
pregada por determinado grupo, embora esta
siga muitas vezes um certo padrão no repertó-
rio que é utilizado para nomeá-los, tendo nas
idéias de sujeira, marginalidade, transgressão e
loucura, temas a que se referem constantemen-
te. Estes jovens, no entanto, dão grande valor
ao formato impresso às letras, às fi guras que são
desenhadas entre as letras e à estilização adota-
da para se escrever, ou inscrever, aquela pixação
na paisagem urbana. Não se pixa de qualquer
modo ou com qualquer letra, mas com um for-
mato pré-elaborado, com tipos de letras criadas
pelos próprios, demonstrando um padrão esté-
tico peculiar. Além disso, há um diálogo com
o espaço urbano, com o local onde esta marca
será “lançada”: é preciso que ela esteja em local
de grande destaque na cidade. Obter grande
visibilidade é um outro fator que torna uma
pixação ainda mais atraente para os pixadores.
Porém, a idéia de que há uma beleza nesta
escrita urbana, conforme outra denominação
dada às pixações pelos seus próprios autores,
não é compartilhada por grande parte dos ci-
dadãos paulistanos, senão por todos. A pixa-
ção é vista pela população e pelo poder público
como vandalismo, sujeira e poluição visual,
devido, em grande parte, ao desconhecimento
da mensagem que ali é transmitida e ao ato em
si que é considerado um ataque à propriedade
alheia. Por isso, a pixação e os pixadores são
vistos como um dos grandes vilões da cidade.
As marcas que eles deixam pelos muros afora
são constantemente apagadas e alguns chegam
a ser presos ou espancados pela polícia se pegos
em ação. Dessa maneira, eles, além de enfren-
tar o perigo de escalar edifícios e desafi ar a polí-
cia, têm de lidar com a efemeridade do suporte
em que inserem suas pixações, pois a qualquer
momento elas podem ser apagadas. Uma das
formas encontradas para solucionar essa ques-
tão é a troca das “folhinhas”, folhas de papel
em que eles inscrevem as marcas que deixam
na cidade. Os pixadores trocam estas folhinhas
entre si e as colecionam em pastas. Alguns têm
verdadeiros acervos de folhinhas em que fi xam
em um outro suporte suas inscrições tão mal-
vistas e efêmeras na cidade.
Escrita urbana: a pixação paulistana
ALEXANDRE BARBOSA PEREIRA
Mestre e doutorando em Antropologia Social
pela FFLCH/USP e Pesquisador do Núcleo de
Antropologia Urbana {NAU/USP).
cadernos de campo n. 13: 127-130, 2005
Antropólogo formado em Cambridge, Pe-
ter Fry fez sua primeira pesquisa de campo nos
anos 1960 entre os Zezuru da Rodésia do Sul
(atual Zimbábue), ligado à Universidade de
Londres e a sua associada na África, a University College of Rhodesia and Nyasaland. Defendido
seu doutorado, Fry veio para o Brasil em 1970,
onde ajudou a fundar a UNICAMP e se inte-
grou à vida acadêmica local, pesquisando no
país temas relacionados a relações raciais, ho-
mossexualidade e religião. Entre 1989 e 1993,
retornou à África como representante adjunto
da Fundação Ford e, de volta ao Brasil, pas-
sou a integrar o corpo docente da UFRJ, onde
permanece até hoje. Sua produção mais recen-
te concentra-se no campo das discussões sobre
sexualidade e na análise das conseqüências da
utilização de categorias como raça, diversida-
de e outras, correntes no métier antropológico,
nas políticas públicas para a população negra
implementadas nos últimos anos. Textos sobre
este assunto foram reunidos em A persistência da raça,1 livro que nos serviu de mote para a
realização desta entrevista realizada em 24 de
agosto de 2005, em Campinas, que discorre
sobre muitos pontos polêmicos e revela uma
profunda fi delidade do antropólogo a certos
pressupostos de nossa disciplina.
1. FRY, Peter. 2005. A persistência da raça: ensaios an-tropológicos sobre o Brasil e a África Austral. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira.
Entrevista com Peter Fry
DANIELA DO AMARAL ALFONSI
ÍRIS MORAIS ARAÚJO
LÍLIAN SALES
RACHEL RUA BAPTISTA
RAFAELA DE ANDRADE DEIAB
PROF. DR. JÚLIO ASSIS SIMÕES
CC: No início de A persistência da raça, o
senhor recupera sua formação profi ssional e ex-
põe uma tensão entre duas correntes teóricas
presente em seu primeiro trabalho de campo.
Ela seria entre a Escola de Cambridge, onde
estudou, e a de Manchester, presente na Uni-versity College of Rhodesia and Nyasaland, onde
foi pesquisar. O senhor poderia aprofundar as
questões levantadas por essa tensão e explicitar
em que pontos cada uma dessas escolas foram
importantes para sua formação?
PF: A antropologia que eu estudei durante a
graduação era absolutamente clássica. Meu orien-
tador era o Jack Goody e em Cambridge eram
todos africanistas, com exceção do Edmund
Leach. Ele representava nesse departamento o
início do estruturalismo; o restante dos profes-
sores era estrutural-funcionalista. Como ainda
não havia mestrado lá, fui, depois de me for-
mar, trabalhar em Londres. Jack Goody sugeriu
que eu fi zesse uma pesquisa de campo mesmo
sem nenhum treinamento, já que a graduação
era totalmente teórica. Sempre tive muita difi -
culdade de imaginar como seriam na realidade
aqueles conceitos que aprendíamos: linhagem
mínima, linhagem máxima etc.; nunca con-
segui visualizar nada disso. Concorri, então,
a uma bolsa e fui estudar na África, na anti-
ga Rodésia do Sul. Uma das razões pelas quais
concorri a uma vaga naquele departamento é
que Jack Goody disse que ele era muito bom.
cadernos de campo n. 13: 133-146, 2005
134 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
Naquela época, a Universidade de Londres es-
tabeleceu fi liais em vários lugares e um deles
era a Rodésia do Sul: era a derradeira tentativa
de assegurar o poderio branco naquela zona. A
Universidade era muito nova e bem planeja-
da e era o único lugar onde negros, mulatos e
brancos conviviam. O chefe de departamento
era o Clyde Mitchell, antigo colaborador de
Max Gluckman que, na época, era professor
em Manchester. Outra pessoa de muito des-
taque era o Jaap van Velsen, uma fi gura muito
interessante, holandês, membro da Resistência
na Segunda Guerra Mundial, aluno do Glu-
ckman que fez pesquisa em Niassalândia (atu-
al Malavi) entre os tonga. Mitchell e outros
alunos de Gluckman, ao invés de fazerem es-
tudos tradicionais, rurais, começaram a fazer
antropologia urbana, predominantemente nas
cidades de Zâmbia (antiga Rodésia do Norte).
A questão que guiava esse grupo não era tentar
destrinchar a lógica de sociedades tradicionais,
mas ver e analisar a situação urbana nascida e
caracterizada pela imigração da mão-de-obra
rural para as cidades. Na época, havia uma te-
oria muito parecida com as teorias de acultu-
ração daqui do Brasil, cuja idéia principal era
a de que as pessoas sairiam de suas sociedades
tradicionais e se aculturariam no processo de
imigração. O pessoal do Gluckman não ado-
tou essa teoria e isso em grande parte por causa
dos primeiros trabalhos dele na África do Sul.
No ensaio seminal “Análise de uma situação
social na Zululândia moderna”,2 do início da
década de 1940, ele desenvolve o conceito de
situação social. O argumento seria que a inter-
pretação das sociedades passa pela análise de
situações sociais concretas. No que diz respei-
to à mudança sociocultural, criticava-se a no-
2. GLUCKMAN, Max. [1940-1958]. “Análise de
uma situação social na Zululândia moderna”. In
FELDMAN-BIANCO, Bela (org.). Antropologia das sociedades contemporâneas: métodos. São Paulo:
Global, 1987.
ção de “encontro de culturas” (culture contact) para pensar no encontro de agentes em situ-
ações concretas. Evidentemente, eles agiriam
de acordo com suas tradições, mas também
de acordo com as suas avaliações sobre aquela
situação. Então, toda essa antropologia elimi-
nou do vocabulário as idéias de destribaliza-
ção, aculturação etc., e olhava para o indivíduo
como quase um manipulador, estrategista. Às
vezes, eu penso criticamente que esse indiví-
duo era visto como uma espécie de homo uni-
versal, um indivíduo universal e racional. Mas
eu penso isso agora, em retrospecto. Para a
época, era muito importante frisar justamente
esse aspecto racional e moderno para contra-
riar aquela posição que dizia que os africanos
não deveriam votar, não poderiam participar
por serem destituídos da rational choice. Ou
seja, essa perspectiva era adotada também por
razões políticas: a nossa preocupação era resga-
tar os negros africanos da pecha de tradição, de
obscurantismo etc. Assim, quando cheguei à
Rodésia do Sul, entrei em contato com o Jaap
van Velsen que, evidentemente, achou que eu
era um produto típico da classe média prote-
gida britânica que precisava de um banho de
realidade, e acusou o pessoal de Cambrigde de
não abrir os olhos para o que estava acontecen-
do no mundo. Ele me deu para ler o artigo de
Gluckman sobre a Zululândia e um outro tra-
balho do Mitchell chamado “A dança kalela”,3 que trata da relação das várias etnias entre si e a
relação delas com o poder branco nas fábricas e
nas minas de Zâmbia. De fato, o argumento do
Gluckman era que a antropologia tradicional era
demasiadamente formal: ela elegia modelos que
eram desenvolvidos pelos antropólogos, que em
3. MITCHELL, James Clyde. 1956. “Th e kalela dance:
Aspects of social relationships among urban Africans
in Northern Rhodesia”. Manchester: Manchester
University Press (Th e Rhodes-Livingstone Institute
Papers, 27). Disponível em: www.era.anthropology.
ac.uk/Kalela.
|
cadernos de campo • n. 13 • 2005
seguida traziam o seu material de campo apenas
para ilustrá-los. Para Gluckman, o material de
campo deveria ter primazia: sempre voltavam
a Malinowski, porque todos concordavam que
este antropólogo apresentava tantos dados que
era possível inclusive discordar de sua análise.
Então, a justifi cativa disso era que, se o antro-
pólogo apresentasse uma massa de dados e de-
pois a sua interpretação, evidentemente o leitor
teria liberdade de discordar e reinterpretar. Um
outro argumento, mais marxista, era de que
qualquer situação conteria dentro de si todas as
contradições da sociedade como um todo. Para
estudar a sociedade, então, estudam-se as situ-
ações. Mas também acho que tem mais uma
questão da qual eles não falavam, e quem me
alertou para isso foi o Carlos Vogt. Trata-se do
que ele chamou de truque de escrita: começa-se
com uma situação, o que é muito convenien-
te porque normalmente ela tem início, meio e
fi m; é linear. E a grande difi culdade da antro-
pologia, creio eu, é que como tudo se relaciona
a tudo, é muito difícil estabelecer prioridades,
sobretudo saber por onde começar a escrever.
A situação é um truque de escrita, porque ela
dá a oportunidade de apresentar ao leitor algo
que, de fato, é uma narrativa. Eu continuo a
defender esse partido teórico porque ainda
acredito nele. Nessa perspectiva, que tam-
bém é meio goff maneana, o ator é visto com
múltiplos papéis e não há tanta preocupação
com identidade, já que o ator assumiria suas
identidades de acordo com as situações – isso
é muito pós-moderno, avant la lettre, mesmo
que os pós-modernos não reconheçam. Era, as-
sim, uma atitude anti-culturalista, no sentido
de não atribuir nada à cultura reifi cada, mas so-
mente às relações sociais. Isso vinha, evidente-
mente, de uma herança da Antropologia Social Britânica, da idéia de que se olha para o siste-
ma de relações sociais na sua totalidade, e não
apenas para um conjunto de relações qualquer.
Tinha como herança a primazia do concreto,
que talvez seja criticável hoje em dia, mas que
é um bom ponto de partida, pelo menos. Além
disso, a observação participante foi exacerbada
ao extremo pela Escola de Manchester. Não se
tinha que fi car lá vestido de roupas coloniais
e com tenda de etnógrafo tipo Malinowski,
não... Tinha que realmente entrar em campo.
Eles acreditavam nessa possibilidade e insisti-
ram nela: cada vez que eu saía do meu campo
e voltava para a Universidade, recebia olhares
muito desconfi ados. Eu comprei essa idéia to-
talmente; durante dois anos e meio vivi bem
com os meus vizinhos, e isso era incomum, eu
acho. Ou seja, essa tensão entre perspectivas te-
óricas não era muito séria de fato, porque não
se negava a velha antropologia, mas se cobrava
uma maior atenção para o presente, para a mu-
dança e para a não-reifi cação da cultura.
CC: O senhor desenvolveu sua pesquisa no
período de descolonização da África. Em que
medida a observação participante se relaciona-
va a algum tipo de envolvimento político na
luta anti-colonialista?
PF: Eram coisas diferentes. A gente tinha, e
até hoje tem, uma atitude totalmente anti-ra-
cista e anti-raça. Evidentemente, as nossas sim-
patias estavam com o movimento de libertação.
Mas vejam bem: a atitude não era exatamente
de interferência. O Jaap van Velsen me pegou
pelo colarinho, me colocou contra a parede e
disse assim: “Você vai se simpatizar muito com
esses movimentos, mas você não vai fazer parte.
Você não é de lá, você não é negro, você não é
africano, você é um quase proto-intelectual an-
tropólogo. Se você quer infl uenciar a situação
você vai conversar com os seus pares, você vai
escrever para eles e esperar que aquilo que você
escreveu infl uencie desta forma nos resultados
políticos”. Foi um conselho que levei muito a
sério. Mais tarde percebi a ironia da situação:
meses depois eu vi o professor holandês em sua
136 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
sala recebendo uma liderança do movimento
estudantil e ensinando-lhe instruções de como
fazer política universitária. Mais tarde ainda,
fui descobrir que ele fazia parte de um movi-
mento de guerrilha urbana que, depois da in-
dependência unilateral liderada por Ian Smith
na Rodésia do Sul,4 importava granadas, pois
achavam que pequenas intervenções a bomba
seriam o estopim da revolução. Mas ele foi ex-
pulso do país antes da polícia descobrir o seu
papel. Com relação à política, existia o agravan-
te de haver dois partidos nacionalistas negros
que se degladiavam. O perigo para os negros
era tanto entre os negros quanto que entre os
brancos, o que convinha muito ao poder bran-
co, evidentemente, porque os negros se destru-
íam. A minha pesquisa de campo teve que ser
cuidadosamente negociada com as autoridades
governamentais, os velhos chefes, e as novas
lideranças políticas. Era uma situação muito
difícil de negociar porque era bastante inédi-
to um jovem antropólogo branco viver com os
africanos nas suas aldeias. Era necessária a au-
torização do poder público e o Comissário do
Distrito me olhava com bastante desconfi ança,
todo mundo me olhava com desconfi ança. Po-
rém, eu não podia me queixar, ninguém tinha
me convidado, estava lá por minha vontade
apenas. Mas que foi uma situação muito difícil
foi, e muito difícil de fazer pesquisa também.
CC: Como a sua pesquisa se desenvolveu
então?
PF: A proposta original era fazer um es-
tudo sobre migração de mão-de-obra: minha
idéia era passar um ano nesta aldeia e depois
4. Mesmo sem o reconhecimento da Grã-Bretanha, em
1965 Ian Smith tornou-se primeiro ministro da Ro-
désia do Sul, garantindo o poderio branco na região
através de um regime de apartheid, que perdurou até
1980. Somente nessa data que este país foi reconheci-
do como independente.
um ano na cidade, bem na linha da Escola de
Manchester. Mas não consegui as informações
necessárias com os trabalhadores, sobre renda,
por exemplo, porque eles eram muito descon-
fi ados. Ao mesmo tempo, apesar de o Jaap
van Velsen me instruir a não entrar no tema
da religião, este assunto foi fi cando para mim
cada vez mais fascinante. Van Velsen tinha ra-
zão porque, de fato, quase todo mundo queria
estudar religião entre os shona, já que era um
sistema bastante complexo. Além disso, havia
uma fascinação por possessão pelos espíritos,
pois na Inglaterra não existia esse tipo de cren-
ça. Mas, para fazer a pesquisa, contratei um
professor primário como intérprete e guia. Eu
trabalhava em sua aldeia e morava na casa de
sua irmã. Lá pelas tantas, ele começou a de-
senvolver uma série de alergias em relação a
comidas e bebidas. Começou com a cerveja
local, produzida pelas pessoas de lá. Esses en-
contros com cerveja são os mais ideais para a
pesquisa, porque está todo mundo presente
e a conversa fl ui. Então, o que eu mais fazia
era fi car tomando cerveja e ouvindo conver-
sas. Meu intérprete começou a não suportar
sequer seu cheiro. Eu fi cava com algumas pes-
soas tomando uma cerveja e ele fi cava longe de
mim. Depois, ele começou a não poder comer
mais a comida básica de lá, que é uma espécie
de polenta de milho. Ele só podia comer um
outro grão nativo chamado rapoko (painço,
em português), que produz muito pouco e é
muito trabalhoso para moer. Então, começa-
mos uma via-crucis para tentar descobrir as
razões disso tudo, e o que foi revelado é que
ele estaria sendo escolhido pelos espíritos para
ser um médium. Nesse processo, eu fui vendo
que várias pessoas da geração dele, de vinte e
poucos anos, estavam seguindo exatamente o
mesmo caminho. Já tinham saído os primeiros
resultados da pesquisa do grande historiador
Terence Ranger (o livro maravilhoso dele que
se chama Revolt in Southern Rhodesia 1896-7:
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
A Study in African Resistance,5 saiu logo em se-
guida) que é sobre a rebelião dos negros con-
tra os brancos em 1896. Os brancos do Cecil
Rhodes6 chegaram em 1890, e em 1896, apenas
seis anos depois, houve uma revolta coordenada
em vários lugares do país. Ninguém conseguiu
entender tal articulação porque não havia go-
vernos centralizados no norte. Descobriram, no
fi nal, que foram os médiuns que organizaram a
rebelião, porque eles mantinham uma rede de
comunicação que perpassava as fronteiras po-
líticas territoriais. Eu pensei: “É isso que está
acontecendo aqui. Estou vendo o repeteco des-
sa mesma situação”. Ficava cada vez mais claro
que aqueles jovens estavam em um processo de
rejeição da religião cristã; para eles, Jesus Cristo
era apenas um profeta ou um antepassado dos
brancos, não dos negros, e que eles tinham de
voltar para os seus antepassados, e não para os
antepassados dos brancos. Essa idéia estava in-
timamente ligada à mensagem política, uma es-
pécie de nacionalismo cultural. Quando voltei
para a Universidade, disse a Van Velsen: “Isso
está acontecendo na minha frente e não posso
evitar de escrever sobre isso”. Assim, escrevi so-
bre religião em um contexto contemporâneo de
luta política. Depois saiu um segundo livro de
outro antropólogo, David Lan,7 confi rmando
tudo que eu suspeitava: de fato, essa rede de co-
municação entre os médiuns era utilizada para
coordenar a guerrilha que eclodiu no norte do
país depois da minha volta para a Inglaterra.
CC: O senhor fala de sua experiência na
África e como ela infl uenciou, em um primeiro
5. RANGER, Terence O. 1967. Revolt in Southern Rho-desia 1896-7: A Study in African Resistance. London:
Heinemann.
6. Político e empresário, Rhodes é considerado o funda-
dor da Rodésia.
7. LAN, David. 1985. Guns & Rain: Guerrillas & Spi-
rit Mediums in Zimbabwe. Harare: Zimbabwe Pu-
blishing House.
momento, sua percepção das relações raciais no
Brasil. Num segundo momento, mostra como
sua experiência no Brasil o fez repensar sua in-
terpretação sobre as relações raciais na África.
O que a sua formação e atuação nos centros
acadêmicos africanos e brasileiros contribuí-
ram para a sua refl exão sobre questões raciais
no Brasil e na África? Quais seriam, nessa pers-
pectiva, os rendimentos de uma antropologia
comparativa?
PF: Não são apenas experiências em depar-
tamentos, são experiências de vida. Ao chegar
ao Brasil, o que mais me chamou a atenção,
depois da África e da Inglaterra, era a ideolo-
gia de não-racismo; eu nunca tinha encontra-
do um país com esse tipo de ideologia e achei
muito positivo. Também fi quei impressionado
com a homogeneidade cultural, com o fato de
todo mundo, independentemente da aparência
física, falar a mesma língua, comer a mesma
feijoada, beber a mesma caipirinha, crer nos
mesmos espíritos etc. Mesmo as religiões cha-
madas afro-brasileiras não eram de africanos,
nem de negros, eram de todos. Isso está nas
obras de Bastide, mas eu não imaginava. Tanto
é que, quando comecei a estudar a umbanda,
achava que ela ia ser parecida com o que tinha
estudado na África, que ia ser uma espécie de
resistência, e eu vi o contrário, era uma religião
absolutamente integrada ao tecido social brasi-
leiro porque não dizia sobre relações de classe e
muito menos sobre relações de raça. No Brasil,
as crenças básicas são muito parecidas e pes-
quisas de opinião pública revelam isso, inclu-
sive. Elas variam um pouco por classe social,
mas muito pouco por região e muito menos
por cor auto-atribuída. Porém, como digo no
livro, era óbvio que alguma coisa não estava le-
gal: ao mesmo tempo que não havia nenhum
sinal de racismo aberto, quase todos os negros
eram pobres. Eu tinha lido o Gilberto Freyre
do luso-tropicalismo, seus livros que traziam
138 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
essa ideologia para sustentar a manutenção do
poder branco na África, mas não Casa-grande & Senzala. Quando o li, o fi z desconfi ado. Era
a época de discutir a democracia racial como
ideologia e então parecia que, de fato, essa idéia
era um engodo, uma máscara. Era essa a minha
posição. Quando fui para a África pela segunda
vez, em 1989, nove anos depois da indepen-
dência de Zimbábue, a primeira sensação foi de
euforia por estar de volta. Estava muito curioso
e queria rever os meus amigos. Mas, no fundo,
foi uma sensação de profunda tristeza. Uma de
minhas idéias era tentar reescrever a história
daquele lugar nos dez anos após a independên-
cia, mas desisti; era uma história absolutamente
não-contável. Isso me fez repensar muita coisa.
Descobri, por exemplo, que um grande amigo
meu, chamado Nestor, foi morto nas últimas
semanas da guerra civil. Acusado de ter sido
traidor, foi ao tribunal sem defesa e acabou
queimado vivo em um saco de fertilizantes. Per-
cebi que a primeira eleição de Zimbábue não
era uma eleição como se imagina, com eleitores
mais ou menos livres para escolher, porque não
era uma questão de escolha eleitoral, mas sim
de medo: o exército que mais amedrontava ga-
nhou. Mas o mais grave é que o país não tinha
superado as premissas do racismo. Os brancos
que lá fi caram, os meus amigos, às vezes velhos
amigos, viviam achando que estava tudo uma
maravilha: na casa deles havia sempre um, dois,
três, quatro ou cinco africanos, mas era uma es-
pécie de cota, uma coisa forçada, que não tinha
nenhuma espontaneidade. Os únicos lugares
onde as pessoas comiam juntas eram naque-
les almoços tipo business lunch, em que havia
homens de negócios comendo juntos. Mas à
noite ainda havia os restaurantes de branco e
de negro, tudo continuava igual. Quando o
Robert Mugabe8 começou a invocar a “nossa
cultura”, vi todas as premissas e pressupostos
8. Presidente do Zimbábue desde 1980.
explícitos do racismo colonial reelaborados
em um outro contexto, mas com exatamente
a mesma função, de associar a raça à cultura e
usá-la como arma política. Por isso, eu acha-
va que o Zimbábue estava nos grilhões de um
pensamento racializado, o que prejudicaria
tudo. Quando eu desci pela primeira vez em
Maputo, em Moçambique, vi o contrário. Era
o fi nalzinho do período socialista, não havia
nada nas lojas e apenas um restaurante; tudo
estava caindo aos pedaços, era impressionante.
Mas fui muito bem recebido pelos intelectuais
de lá, na posição de funcionário da Fundação
Ford. Convidaram-me para visitar as suas casas
(isso nunca acontecia em Zimbábue), onde, fa-
lando português, comendo bife e batata frita e
tomando vinho, conheci uma elite cosmopolita
que gostava das mesmas coisas de que eu gosto.
E lá, como cá, todo mundo é cientista políti-
co e técnico de futebol, quer dizer, a conversa
é muito gostosa e com as mesmas ironias da-
qui. O Samora Machel9 era absoluta e visceral-
mente anti-tribalista e anti-racista. Os últimos
anos do Império português tinham sido menos
agressivamente racistas do que os anos anterio-
res, então Moçambique viveu um período de
relativo não-racismo. Evidentemente, eu me
lembrei do Brasil, porque tudo combinava: nos
três lugares (Brasil, Zimbábue e Moçambique)
os brancos eram dominantes, a distribuição de
riqueza e da educação era muito parecida, com
exceção que os dois países africanos tinham
uma pequena elite de negros com um grau de
escolaridade muito alto. Mas o que mais me
chamou a atenção em Moçambique é que as
relações entre africanos e europeus e o que eles
chamam de mistos (porque são várias misturas
em Moçambique devido ao fl uxo de pessoas
da Europa e do subcontinente indiano) não
eram caracterizadas pela desconfi ança. Muitos
racistas mais veementes devem ter saído de lá
9. Primeiro presidente de Moçambique, Machel gover-
nou este país entre 1975 e 1986.
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
em 1975, possibilitando uma situação relati-
vamente relaxada, e eu pessoalmente me sen-
ti muito mais à vontade naquele ambiente do
que em Zimbábue. Com isso, comecei a fazer
uma crítica dos pressupostos do colonialismo
britânico que nunca havia feito antes. E pensei:
“Meu Deus, talvez o Gilberto Freyre ao menos
tivesse razão quando reconhecia dois estilos de
colonização” e que certamente a maneira pela
qual se compreende as diferenças não é a mes-
ma em Zimbábue e nesses países (Moçambique
e Brasil). A mudança de perspectiva na análise
foi uma combinação não tanto pelo que eu li,
mas pela experiência pessoal mesmo. Foi uma
experiência comparativa; penso que a melhor
maneira de estranhar qualquer instituição é
ter o conhecimento de outra, de uma socieda-
de em relação a outra, pessoal ou através dos
livros. Certamente foram aquelas experiências
de Zimbábue e Moçambique que me chama-
ram a atenção para essas questões. Foram ex-
periências existenciais, de distanciamento de
viver. Eu ansiava voltar para Moçambique o
tempo todo. E o interessante é que este país
agora cresce 12% ao ano, enquanto Zimbábue
decresce 20% ao dia! Moçambique vai de vento
em popa; com o fi nal do socialismo se liberou
uma energia reprimida muito positiva. E não é
um país de ranço. Tem difi culdades inter-étni-
cas, inter-raciais, claro que tem, todo lugar do
mundo tem, mas não são empecilhos, e penso
que lá as pessoas sabem conviver.
CC: Ainda sobre este assunto, como a sua
experiência como representante adjunto da
Fundação Ford o ajudou a pensar sobre as re-
lações inter-raciais nos países de colonização
inglesa e portuguesa?
PF: A Fundação Ford é americana e bastante
racializada, então a minha experiência naquele
escritório foi fundamental. Eu tinha um com-
panheiro de trabalho, Michael Chege, negro
africano do Quênia, que se tornou um grande
amigo. De vez em quando vinham pessoas da
América do Norte, e eu nunca vou esquecer o
dia que chegou um negro americano que só fa-
lava com o Michael, chamando-o de brother. Eu estava me sentindo cada vez mais incomo-
dado e, evidentemente, o Michael percebeu.
Depois de um tempo ele se virou para o outro
e disse: “Escuta, você está me chamando de
brother. Eu não sou o seu irmão. Se você está
usando este termo metaforicamente, o Peter é
muito mais o meu irmão do que você”. O Mi-
chael também tinha esse ódio da racialização
das relações sociais. Tivemos muitas experiên-
cias, desmascarando e ridicularizando os novos
racismos. Uma vez, em Dar-es-Salaam, na Tan-
zânia, encontramos um médico que morava
em Washington, que começou a me xingar pela
minha responsabilidade como um inglês por
ter destruído as casas arredondadas da sua tribo
e tê-los obrigado a fazer casas quadradas. Eu
disse assim: “Desculpe, não estive lá na época,
e realmente não me sinto responsável por isso”.
Mas Michael foi muito mais além: “Senhor
médico, você mora aonde?”. “Washington”.
“E... qual é o formato da sua casa?”. Enfi m, o
que me chamava a atenção era a nocividade, a
mentira, a hipocrisia dessas posições completa-
mente alucinadas que se produzem quando se
racializa as situações, mesmo as mais próximas.
A própria Fundação Ford foi obsessivamente
dividindo o mundo entre mulheres e homens,
negros e brancos etc., então se começa a não
ver mais nada, só essas categorias. Este não é o
mundo que eu quero para mim. Por isso come-
cei a pensar que a idéia de uma sociedade sem
raça é uma idéia legal, que não é uma idéia ma-
luca, e fi nalmente percebi que o inimigo era o
racismo, e não a democracia racial. Eu gostava
de ser inimigo do racismo, mas não inimigo da
idéia do não-racismo. Passei a argumentar que
a idéia da insignifi cância social da raça produz,
e não mascara apenas, um tipo de relação social
140 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
e certas situações que deveriam ser compreen-
didas. Ou seja, não é uma ideologia, é um mito
no sentido antropológico do termo; é um guia
para a ação social, bem malinowskiano mesmo.
Assim, entrei na contra-corrente dos meus ve-
lhos amigos. Por isso, não consigo assinar em-
baixo de uma reengenharia social que fortalece
aquilo no qual discordo e tenho a mesma ojeri-
za que tenho para com a acusação de bruxaria,
por exemplo. Porque aliás, bruxaria e racismo
são casos muito parecidos.
CC: O senhor trabalha em seu livro com
a idéia de democracia racial a partir de três
formas. A primeira é como falsidade, aquilo
que encoberta uma realidade social. A outra,
mais ligada à antropologia britânica, é como
um modo de justifi car contradições postas por
um grupo social. E a terceira é como utopia,
um ideal a ser alcançado. Gostaríamos que o
senhor relacionasse um pouco mais essas três
idéias.
PF: A segunda forma tem a ver com a ter-
ceira, e é baseada em toda aquela mudança
da antropologia nas décadas de 1960 e 1970,
quando se quebra com o estrutural-funciona-
lismo e com a relação direta que ele faz entre as
relações sociais e as representações (a infra-es-
trutura e super-estrutura dos marxistas, mais ou
menos). Tudo começa a fi car no mesmo plano
analítico quando se percebe as interações entre
representações, ação e prática. Quem ajudou
muito foi Michel Foucault. Eu nunca consigo
vê-lo como arauto do pós-modernismo, sem-
pre o vi como um antropólogo olhando para a
história. A idéia da positividade do discurso era
muito importante; por isso, eu acho que se não
tivesse existido esse discurso da democracia ra-
cial, certas situações seriam impossíveis, como
o futebol, o carnaval etc. Quando meus amigos
sul-africanos vêm aqui, eles não acreditam: eles
acham que foi forjado, porque lá eles têm de
forjar. No entanto, esse mito concorre com ou-
tro – o da inferioridade africana – que produz
a situação de desigualdade e um certo apartheid que se vê sobretudo nos mercados imobiliário
e de trabalho. Acho que esses dois mitos pro-
duzem a situação contraditória em que a gente
vive. Mas é necessário entender os dois; só um
é complicado. A terceira forma de entender a
idéia de democracia racial é a que diz qual é o
caminho pela frente, ou seja, é evidentemente
atacar o segundo mito e enaltecer o primeiro.
Este mito, então, se torna utopia; o outro, por
sua vez, tem de ser demonizado.
CC: No livro, o senhor trabalha com três
conceitos-chaves. O primeiro é o de diversida-
de como conceito nativo, mas importado das
nações anglo-saxãs especialmente via agências
de fomento à pesquisa. O segundo é o de mes-
tiçagem, mistura ou cadinho como categoria
cultural existente no Brasil. O terceiro é o de
sincretismo e híbrido, que seria um conceito
analítico do pesquisador. Cada uma dessas
categorias revela refl exões diferentes, mas que
têm como questão de fundo uma tensão entre
cultura nacional homogênea e cultura nacional
segregada. É possível, então, falar de cultura
nacional em termos analíticos, sem correr o ris-
co de essencializar essa categoria?
PF: Se a gente for ver a constituição das
burguesias nacionais na Europa, elas se cons-
truíram como cosmopolitas, incentivando,
incitando e produzindo diversidade cultural
local. As nações metropolitanas aplicavam
esse conceito de diversidade em suas colônias,
os ingleses mais que os portugueses. Se é con-
frontado o modelo de assimilação contra o de
segregação, de fato, os portugueses eram muito
mais assimilacionistas que os ingleses. Isso não
quer dizer que os portugueses também não fos-
sem segregacionistas, ou não incitassem certa
diversidade. Mas o resultado desses processos
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
é o apartheid por um lado e talvez, por outro,
Moçambique. Essa idéia de diversidade, en-
tão, é produzida emicamente, como também
a idéia de cultura nacional. Existem esses dois
modelos; eles coexistem e produzem situações,
mas penso que, nessa oscilação – e estou sendo
leacheano comigo mesmo –, a predominância
de um sobre o outro tende a produzir o que
chamamos de realidades nacionais. Não se tra-
ta de essencializar, mas o fato é que quando se
sai do Brasil, sabe-se que se sai do Brasil.
CC: Por que se sai de uma cultura homo-
gênea?
PF: Não totalmente homogênea, mas que
tem qualquer coisa que eu sei, e que chamo de
Brasil. Mas como vamos falar disso sem essen-
cializar? Não sei, não sei mesmo. É verdade que
as explicações culturalistas no Brasil são muito
complicadas, afi rma-se que “o Brasil é assim,
assim e assado”. A palavra “é”, em português,
não é o inglês “is”, porque no português ela se
contrapõe ao “está”, o que torna tudo muito
mais estático. Sobre essa questão de híbrido e
sincrético serem analíticos, não sei... São e não
são. Sincretismo é mais usado no campo reli-
gioso, aparece o tempo todo e pressupõe, logi-
camente, a existência de algo puro em algum
momento, o que não se pode acreditar. Então,
a própria noção de sincrético eu acho que é
mais êmica, mais nativa que analítica. Porque
as pessoas falam assim. É uma maneira de ten-
tar descrever, de colocar em palavras aquilo que
as pessoas dizem, mas eu acho que são pala-
vras pobres. Híbrido é também muito pobre,
eu acho, por causa da sua própria etimologia:
aquilo que é híbrido é infértil, não tem futu-
ro. Logo, eu acho que não são conceitos mui-
to úteis, apesar de saber que estão muito em
voga, porque entram na linguagem acadêmica
e dos projetos políticos. O Brasil, na propa-
ganda que se faz lá fora, especialmente nesse
“Ano do Brasil na França”, fala de híbrido, de
um país maluco e pós-moderno; são esses os
termos usados. Eu acho que são idéias nativas
mesmo, que vale a pena entender como elas en-
tram em circulação. Mas no Brasil há os dois:
o elogio da mistura – e isso é muito arraigado
– e também a idéia de autenticidade presente,
por exemplo, no candomblé, onde se produz
cada vez mais África. Por isso se tem, quase le-
achanamente, os gumsa e gumlao oscilando e
interagindo. Para mostrar como essa idéia da
mistura está internalizada nos indivíduos, vou
falar da pesquisa que estamos fazendo em es-
colas do Rio de Janeiro. Ao invés de perguntar
às pessoas a raça/cor tal como o IBGE faz, a
gente formulou assim: “Você sabe que o Brasil
foi povoado pelos ameríndios, pelos europeus
e pelos africanos. Em que proporção você acha
que tem essas três ascendências?” Nenhum alu-
no respondeu evocando apenas uma única as-
cendência. Eu escrevi que sou 100% europeu,
mas ninguém colocou 100% europeu, africano
ou ameríndio. Os que se diziam pardos afi rma-
vam que eram mais ou menos 1/3, 1/3, 1/3.
Ou seja, eles reproduziram a idéia de mistu-
ra, o que, aliás, confi rma a minha prática em
sala de aula. Eu sempre pergunto isso para as
pessoas, e aquelas que têm mais variedade são
as mais orgulhosas, sobretudo as que dizem ter
índio e africano. Elas sorriem de complacên-
cia, enquanto os puramente poloneses sofrem
horrores...
CC: Hoje percebemos uma tendência à rei-
fi cação da idéia de tradição por parte de grupos
políticos e agências fi nanciadoras, tornando-a
um valor. Pede-se aos antropólogos defi nições
de cultura tradicional para a implementação de
políticas públicas. Como o senhor se posiciona
diante dessa situação?
PF: Há um movimento mesmo, nesse sen-
tido. Fica mais claro em alguns lugares do que
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
em outros, como na produção da indianidade
e nos quilombos. Eu fi co estarrecido diante de
tudo isso, porque se fala agora de quilombos
como se fossem lugares completamente dife-
rentes do resto do Brasil. Isso me chama muito
a atenção, porque quando o Carlos Vogt e eu
fi zemos a nossa pesquisa sobre o Cafundó,10 es-
crevemos sobre isso, e é como se não tivéssemos
escrito. Eu lamento que a gente escreva, escre-
va, escreva e o discurso não mude. Fomos para
o Cafundó porque lá tinha um vocabulário de
origem africana; isso é verdade. Fora disso, cul-
turalmente, era absolutamente igual a qualquer
bairro rural pobre paulista, que já foi bastan-
te estudado e sobre o qual muito se escreveu.
Quando fomos atrás dessa língua que nunca
mais achamos, fomos a dezenas de comunida-
des rurais negras onde as pessoas diziam que
tinham essa língua, mas não tinham. Então, o
pressuposto hoje é que quilombo é um lugar
completamente distinto, o que não vi quando
o pesquisei.
CC: Com o argumento forte, também, que
são formados por descendentes de escravos.
Procura-se buscar em documentos essa com-
provação...
PF: Não é mais necessário comprovar nada
em princípio porque o decreto presidencial
4.887, de 20 de novembro de 2003, que rege
a matéria, diz claramente que são os próprios
quilombolas que se defi nem como tal. Não
é necessário demonstrar nada em princípio,
embora antropólogos são chamados para par-
ticipar no processo de titulação das terras. Ao
mesmo tempo começam a existir políticas pú-
blicas para garantir a manutenção e a tradição
dos quilombos. O projeto de Rafael Sanzio
Araújo dos Anjos, chefe do Departamento de
10. Cf. VOGT, Carlos & FRY, Peter. 1996. Cafundó, a África no Brasil: linguagem e sociedade. Campinas/
São Paulo: Ed. Unicamp/Companhia das Letras.
Geografi a da Universidade de Brasília, diz as-
sim: “Nós temos que ter políticas públicas nos
quilombos, evitando que os jovens saiam, por-
que se os jovens saem vão perder a tradição”.
Isso foi exatamente a política do apartheid, que
confi nou as pessoas nas suas tradições. Quer
dizer, para nós, elite, é bom falar inglês, fran-
cês, português; para os outros não. Claro que
isso tem a ver com os nossos tempos: acho que
estamos assistindo a uma situação foucaulteana
mesmo, onde há um discurso sobre diversida-
de sendo produzido e repetido. E há institui-
ções dedicadas à produção desse discurso que
classicamente lembram a idéia da Microfísica do poder,11 sobretudo a Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(SEPPIR). É um pequeno grupo, mas que está
em todos os lugares, nos Municípios, nos Esta-
dos, em todos os Ministérios. Qualquer proje-
tinho tem a mão dessa Secretaria, que produz e
retroalimenta todo esse discurso, que se repete
até nos lugares mais capilares da sociedade. De
repente, a D. Zuleika acorda como uma qui-
lombola. Antes ela não era, de repente ela é,
assim como de repente a fi lha da D. Zuleika
vai ter uma educação específi ca. Não sei como
será, como tampouco não sei o tipo de saúde
específi ca que eles terão...
CC: Mas, ao mesmo tempo, o que faremos,
já que é necessário o laudo antropológico para
garantir o direito dessas populações à terra?
PF: Esse é o grande paradoxo, exatamen-
te. Uma amiga minha, Suzana Viegas, quando
estava escrevendo sua tese de doutorado sobre
os tupinambá, foi responsável pelo laudo de
demarcação das terras desse grupo. Quer di-
zer que ela sabe o processo através do qual esse
grupo indígena se nomeia o mais famoso da
história do Brasil. Ela fez o laudo, pois se ques-
11. FOUCAULT, Michel. 1984. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal.
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
tionava: “Como é que vou deixar esse pessoal
à margem do mundo?” Se eu tivesse que fazer,
faria, mas sei perfeitamente que o meu laudo
contrariaria tudo que estudei. Eu acho que isso
é um problema muito sério, pois os antropólo-
gos são chamados para fazer coisas que vêm a
contrapelo da nossa disciplina. Afi nal, na mi-
nha acepção, a antropologia moderna nasceu
crítica em relação a esse tipo de pensamento,
que demarca e essencializa fronteiras. Por isso,
sempre incentivei, em Campinas e no Rio, que
os alunos aproveitassem o espaço universitário
para dizer o que não é dizível alhures, e as pes-
soas fazem isso bem. Isso é parte da tradição
da disciplina e é muito legal... Nesse sentido,
eu acho que Malinowski é um exemplo. Ele
vivia da crítica das convenções do seu tempo,
questionando a universalidade da família mo-
nogâmica burguesa, por exemplo; isso era uma
bomba para a época. As universidades são na
verdade os únicos lugares de onde é possível fa-
lar... Mas os antropólogos estão numa situação
complicada. Como é que podemos nos recusar
a ajudar um grupo de pessoas, completamen-
te sem terra e sem condições de sobrevivência,
dessa oportunidade assegurar a sua segurança
territorial? Só que esse direito passa por este
caminho... Aí eu me pergunto, por que não
lançar mão do usucapião? Não tem como? O
usucapião se funda num direito que não dis-
crimina raça, nem gênero, e além do mais
produz o título individual, ao contrário dos
quilombos, onde o título é coletivo. Acontece
que os processos de usucapião simplesmente
não andam! A reivindicação de especifi cidade
étnica tem conseqüências muito mais imedia-
tas. Além disso, do ponto de vista da antropo-
logia, é importante reconhecer que as palavras
da própria disciplina entraram defi nitivamente
para o cenário político. A questão da relativi-
dade cultural virou assunto, assim como a idéia
de alteridade, mas não uma alteridade como
constatação analítica, e sim como um valor. Há
uma série de discursos a produzir esses valores
e a incitar práticas em relação a eles. Aliás, eu
estou fascinado por isso, porque o Brasil se vê
como misturado há anos, ensina às criancinhas
que é misturado, e de repente ele não é mais
misturado, é diverso! Essa pedagogia racial está
sendo distribuída nas escolas para as crianças, e
quem está dando as aulas? O Movimento Ne-
gro! Não é mais a sociedade brasileira e toda
a sua complexidade que são apresentadas aos
menininhos, é uma versão. Todo mundo acha
que aquela Lei 10.639, que tornou obrigatória
a inclusão na rede ofi cial de ensino a temática
“História e cultura afro-brasileira” é fantástica,
mas ninguém leu o parecer. Ele é de deixar o
cabelo em pé. O governo continua, cada vez
mais, com programas específi cos para a popu-
lação negra. Há uns meses, escrevi um artigo
sobre a racialização da AIDS e ninguém res-
pondeu. Imagino que isso produzirá situações
muito interessantes de contradição, de confu-
são. Os mais otimistas acham que o Brasil é
tão completamente misturado nesse sentido
ideológico que, no fi m das contas, tudo isso
vai ser apenas uma nuvem passageira. Às vezes
eu penso assim, outras vezes eu penso que não,
porque essa pedagogia racial nas escolas é algo
sério. E quem passou pela África do Sul e viu
tudo aquilo não pode fi car calado! Eles lutaram
não sei quantos anos contra essa divisão de po-
líticas públicas específi cas, e sobretudo em edu-
cação. Que tipo de educação que se pode dar
para um quilombola que é diferente da nossa?
Isso signifi ca algo, e foi o fato de as pessoas não
discutirem estas questões que me levou a juntar
esses ensaios em um livro.
CC: Mas não se trata de políticas públicas
que visam compensar situações passadas de ex-
clusão e segregação?
PF: Se fosse para o governo colocar a esco-
la de Notre Dame no quilombo eu estaria de
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
acordo. Mas não acredito que seja isso, duvido
muito. Porque se houvesse uma política com-
pensatória – que ninguém nunca fez – tinha-
se colocado, no Rio de Janeiro, as Escolas de
Aplicação nas favelas. Quando o Brizola tentou
fazer, durou pouco, os CIEP’s foram extermi-
nados. Dizem que também exterminaram essa
experiência feita pelo governo Marta Suplicy, os
CEU’s. Eu acho essa uma idéia genial. Enfren-
ta-se a desigualdade fazendo, por exemplo, a
melhor escola possível nos lugares mais pobres.
CC: Essas políticas não revelam um Esta-
do liberal que nunca funcionou direito? Afi nal,
educação e saúde seriam direitos de todos...
PF: Seriam para todos e com a mesma qua-
lidade. Porém, quando as pessoas dizem que as
políticas universais nunca funcionaram, a so-
lução que se pensa para esse problema é partir
para as específi cas. Mas ninguém nunca aplicou
uma política universal, todo mundo sabe disso.
Dessa maneira, eu acho interessante como uma
sociedade imaginada como sociedade de classes
se torna, de repente, uma sociedade de diversi-
dade étnica e de gênero... É interessante que se
trata do mesmo debate em relação às questões
de gênero. Eu tive conversas maravilhosas com
o Roger Raupp Rios, que é Juiz Federal no Rio
Grande do Sul e trabalha com legislação para
direitos sexuais. É a mesma discussão porque,
por um lado, há aqueles que querem dividir o
mundo em identidades com legislação especí-
fi ca, e ele está tentando produzir uma legisla-
ção genérica, universal, em que caibam todas
as possibilidades, não reprima nenhuma e não
incite a repressão.
CC: Sobre esse ponto, como o senhor vê as
possibilidades de comparação entre a questão
racial e da sexualidade para compreendê-las no
Brasil?
PF: Olhando para a sexualidade masculina,
percebeu-se que havia uma complexidade não-
visível e comportamentos que, à primeira vista,
são ambíguos. A descoberta disso foi a salvação
do Brasil, pois se não tivesse percebido isso não
se saberia como combater a AIDS. Quando se
olha para a questão racial, a palavra que apa-
rece muito também é “ambiguidade”. Então,
nos dois casos, a percepção de fronteiras não é
muito clara; há essa questão em comum. Mas,
diferentemente, a identidade homossexual que
as organizações construíram é positiva. Por
exemplo, a Parada Gay é positiva e acolhedo-
ra – os resultados das pesquisas mostram que
20% das pessoas que estavam lá se diziam he-
terossexuais –, isto é, o movimento homosse-
xual produziu assim uma identidade positiva e
não-exclusiva. Seu símbolo, o arco-íris, é uma
boa metáfora disso, porque se tem uma ban-
deira geral e debaixo dela há uma multiplici-
dade de possibilidades. Assim, politicamente,
o movimento homossexual consegue colocar
dois milhões de pessoas na rua em São Paulo,
e isso é muito signifi cativo, pois todo mundo
em um mesmo espaço implica em algum tipo
de comunhão. Apesar de ainda ser uma catego-
ria muito estigmatizada, mesmo assim se tem
uma identidade positiva e um movimento que
acolhe qualquer simpatizante. Agora, compa-
rando com o outro lado, qual é a identidade
que está sendo produzida sobre os negros no
Brasil? É sobretudo uma identidade de vítima e
um movimento que procura marcar diferença.
Por isso, é um movimento que não se expande,
não aumenta; não é e nunca foi de massa, ape-
sar de ser politicamente fortíssimo. O Minis-
tério da Reforma Agrária, por exemplo, vai ter
que titular não sei quantos quilombos em um
ano... E cota é uma palavra que surge em 2001,
literalmente. Como explicar que ela, desde en-
tão, se prolifera sozinha, sem precisar nem de
legislação federal?
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
CC: O senhor trabalha com as idéias de
aparência e estética como importantes para
a construção de uma imagem negra positiva,
promovendo uma identidade não racializante.
Em que medida é possível fazer essa discussão
e implementar ações anti-racistas e anti-racia-
lizantes na sociedade civil, fora do âmbito do
Estado, a partir dessas categorias?
PF: Qualquer sociedade é feita a partir de
uma leitura estética; os indivíduos são classifi -
cados assim. Para mim, parecia mais ou menos
óbvio que qualquer ataque contra o racismo
tinha que ser um ataque estético, e eu fi quei
fascinado quando o mercado de bens higiêni-
cos começou a se expandir e se diversifi car para
várias peles, cabelos etc. À medida que fui fa-
lando com os cabeleireiros, descobri que eles
também fi cavam fascinados, e que as pessoas
que se sujeitavam a esse tipo de tratamento
fi cavam felizes. Antes, não havia propaganda
com mulher negra porque não havia produto
para ela. Então, eu comecei a olhar para as pro-
pagandas desses novos produtos de uma forma
distinta, porque achava que era uma maneira
de se notar que algo estava mudando, e que
uma estética antes esquecida tornava-se absolu-
tamente visível. E isso corria a contragosto do
próprio mercado, porque ele pouco se lixa para
essas questões de racismo; se interessa, eviden-
temente, pelo mercado de consumidores. Mas
é o mercado que está efetivamente produzindo
uma nova estética, e digo isso apenas a partir de
uma refl exão muito superfi cial sobre a televisão
mais popular, que é cada vez mais povoada por
pessoas de estéticas diversas. Então, romantica-
mente, eu acho que é por aí que a coisa vai...
O único lugar onde passou a existir cotas e que
não me deixou arrepiado foi quando o governo
do Município do Rio de Janeiro instituiu cotas
para a propaganda pública. Eu achava a idéia
interessante, porque não colocava em evidência
sempre as mesmas pessoas, e isso não ofende
em nada porque obriga o reconhecimento da
diversidade estética. Eu achei muito importan-
te e penso que a publicidade brasileira poderia
ser mais consciente disso. Por isso, quando eu
escrevi esse artigo, não o fi z em tom de denún-
cia de propósito, não porque eu não fi co cho-
cado com o racismo, mas por ser uma maneira
de falar com os produtores de propaganda. A
idéia não foi colocá-los contra a parede, por-
que quando se coloca alguém contra a parede
a tendência é que se fi que ainda mais contra a
parede, o adversário normalmente fi nca o pé.
Isso acontece quando se produz um movimen-
to muito agressivo, e é o que de certa maneira
aconteceu com o Movimento Negro. Na mi-
nha opinião, ele agride ao acusar todo mundo
de racista, pois as pessoas não se vêem como
racistas; mesmo sendo, elas não se vêem assim.
CC: O seu livro termina com uma proposta
de deslocar o debate em relação às políticas de
ação afi rmativa na Universidade de um foco de
raça para o de classe social. Em que medida há
limitações nessas soluções que o senhor propõe
– como a desterritorialização, a criação de um
fundo de custeio para os estudos dos pobres,
a reserva de vagas para estudantes de escolas
públicas – já que são planos que não são dis-
cutidos pelo corpo acadêmico como um todo,
além de trazerem, em graus diversos, difi culda-
des para a implementação?
PF: Eu acho que essa é a parte mais fraca do
livro porque, no fundo, não vejo solução nenhu-
ma a curto prazo. Eu penso que não há outra
maneira de enfrentar essas questões, senão um
choque de educação e, nesse aspecto, o Brasil está
anos-luz atrás de todo o mundo. Seria necessário
mudar o sistema, pois fi nalmente se descobriu
que o sistema educacional ibérico é feito para
excluir. No Brasil, não se sai do Ensino Médio
com um certifi cado sem ser aprovado em todas
as matérias; na Inglaterra, sai-se graduado com as
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
matérias em que se aprovou. Eu não tenho uma
visão muito clara sobre isso, mas sei que faria
como Marta Suplicy fez, eu colocaria as melho-
res escolas e os melhores professores nos lugares
mais pobres no Brasil. Se o programa dos CIEP’s
no Rio de Janeiro tivesse sido mantido de acor-
do com os princípios iniciais, teríamos hoje um
contingente enorme de ex-pobres formados nas
melhores universidades.
CC: Como o senhor avalia o espaço que o
senhor conseguiu, como professor universitá-
rio, para infl uir no debate público em relação a
todos esses temas?
PF: Eu sou absolutamente cético, infeliz-
mente. Já escrevi e falo bastante sobre racializa-
ção e poucos me levam a sério (pelo menos em
público). Então, não sei porque escrevo. Esse
programa para a população negra de combate
a AIDS é muito sério mesmo, e o que me es-
panta é que não há intelectuais negros também
preocupados. Afi nal, eles deveriam fi car receo-
sos da racialização indevida. E por quê? Porque
toda política que leva à divisão entre brancos e
negros no Brasil é apoiada automaticamente. É
uma espécie de leninismo racial. Então, torna-
se necessário fazer um programa de AIDS para
a população negra sabendo perfeitamente que
é uma questão de classe, que não tem nada a
ver com raça. E isso é loucura porque estamos
construindo cegamente aquilo que os outros
países de tradição racializadora gostariam de
desconstruir. Eu não acredito que o Tarso Gen-
ro pensou nisso quando mudou de um dia para
o outro e disse: “Era contra cotas e agora sou a
favor”. Não acredito que ele tenha ponderado
que há uma reafi rmação da categoria raça que
é implícita à política de cotas. Isso é muito es-
pantoso porque ele pertence à esquerda do PT,
que sempre pensou em termos de classe social
e que, de repente, passou a apoiar uma política
compensatória para as “etnias” que, aliás, virou
uma espécie de metáfora para classe. Desse jei-
to, cria-se uma espécie de sofi sma, fala-se que
“os negros são pobres, a maioria dos pobres são
negros; então, nós esquecemos os pobres e fa-
lamos que a AIDS está aumentando entre os
negros, quando teríamos que falar entre os ne-
gros e os brancos pobres”. Exclui-se os brancos
e racializa-se a discussão. O rumo planejado por
essa política parece ser apenas fortalecer as orga-
nizações negras da sociedade civil. Mas antes de
tomar esse rumo, acho que o Brasil tinha que se
discutir como nação e não como um movimen-
to. Fico numa posição absolutamente incômoda
lutando contra os pressupostos da maioria dos
ativistas negros; não gosto de parecer contrário
a essa luta, é muito desagradável. Mas é uma
convicção, e essa é a convicção que funda a an-
tropologia moderna que vem desde Franz Boas,
que dissociou raça de cultura, e pronto.
Se o escritor é um feiticeiro é porque escrever é
um devir, escrever é atravessado por estranhos
devires que não são devires-escritor, mas devi-
res-rato, devires-inseto, devires-lobo etc.
Gilles Deleuze e Félix Guattari
Jeanne Favret-Saada faz parte desse grupo
de autores conhecidos por terem escrito um
livro. Neste caso, ainda que isso fosse intei-
ramente verdadeiro, não se poderia dizer que
trata-se de pouca coisa. Les Mots, la Mort, les Sorts é uma maravilha etnográfi ca e, ao mesmo
tempo, uma das raras obras-primas da história
do pensamento antropológico. Elaborado e es-
crito em uma época (não tão distante assim)
em que a imagem do pensamento dominante
na academia ainda não era construída com os
parâmetros empresariais capitalistas da rentabi-
lidade e da produtividade, o livro levou quase
dez anos para fi car pronto. Período que envol-
veu uma longa e intensa pesquisa de campo,
conduzida entre 1968 e 1971, sua redação e
sua publicação, que só ocorreu em 1977.
Esse tempo – que hoje, certamente, seria
considerado apenas uma demora – faz, entre-
Jeanne Favret-Saada, os afetos, a etnografi a
MARCIO GOLDMAN
Professor Adjunto do PPGAS/MN/UFRJ; pes-
quisador do CNPq e bolsista da FAPERJ; autor
de Razão e Diferença. Afetividade, Racionalidade e Relativismo no Pensamento de Lévy-Bruhl (1994),
Alguma Antropologia (1999) e Como Funciona a Democracia. Uma Teoria Etnográfi ca da Política
(no prelo), além de co-organizador de Antropolo-gia, Voto e Representação Política (1996). Realiza
trabalho de campo sobre política, etnicidade e
religiões afro-brasileiras em Ilhéus, sul da Bahia.
tanto, parte intrínseca e constitutiva do tra-
balho. De fato, Favret-Saada não se cansou de
relatar, em diversas ocasiões, como os primeiros
meses no campo (quase um ano, na verdade)
foram, aparentemente, estéreis. Apenas a auto-
ra parecia se interessar por seu tema, a feitiça-
ria; seus interlocutores reagiam, antes, evitando
o assunto, negando ou denegando sua própria
existência, imputando-o a pessoas tidas como
ignorantes ou remetendo-o a um passado já su-
perado há muito tempo.
Se a pesquisa tivesse, então, durado “apenas”
um ano (quantos de nós dispomos mesmo des-
se prazo atualmente?), Favret-Saada não teria
muito a dizer além do que pode ser obtido pelo
limitado procedimento de investigação que
Malinowski já condenava sob o nome de méto-
do de pergunta e resposta. Ou do que se pode
extrair da consulta de documentos e arquivos –
onde, como lembra Favret-Saada (1981b: 336),
“o ‘povo’ é falado mais do que fala, aparecendo
como o objeto do discurso administrativo, não
como o sujeito de um discurso autônomo” –
produzidos por aqueles mesmos que desprezam
e desejam condenar ao silêncio práticas como a
feitiçaria. De psiquiatras, jornalistas e dos que
cadernos de campo n. 13: 149-153, 2005
150 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
se consideram parte das elites, não se pode es-
perar muita coisa quando o tema em questão
parece desafi ar suas certezas e até mesmo sua
dominação.
O passar do tempo, entretanto, não é ape-
nas o passar do tempo. Esse falso truísmo con-
duziria apenas às banalidades que repetem que,
“com o tempo”, os nativos se acostumam com
a presença dos etnógrafos e passam a se com-
portar mais normalmente e até mesmo a relatar
a eles seus segredos mais íntimos.
Em lugar de supor que o tempo apenas
fornece um meio externo para as relações hu-
manas, é preciso compreender que ele é, ao
contrário e em si mesmo, uma relação. Pois é
apenas com o tempo, e com um tempo não
mensurável pelos parâmetros quantitativos
mais usuais, que os etnógrafos podem ser afeta-dos pelas complexas situações com que se depa-
ram – o que envolve também, é claro, a própria
percepção desses afetos ou desse processo de ser
afetado por aqueles com quem os etnógrafos se
relacionam. Foi apenas quando alguém diag-
nosticou que a etnógrafa fora “pega” (prise) pela
feitiçaria que passou a fazer algum sentido falar
com ela sobre o assunto.
Não se trata, contudo, de imaginar nenhum
crédulo local que, para a felicidade de uma pes-
quisadora que permaneceria distante e incó-
lume em sua objetividade de cientista, tivesse
decidido “acreditar” que ela também fora en-
feitiçada. Na verdade, Favret-Saada tinha seus
sintomas, de repetidos acidentes de automóvel
a um certo tremor das mãos e um brilho di-
ferente no olhar. Sintomas que permitiam le-
vantar a hipótese do enfeitiçamento. Por outro
lado, indagar se ela também “acreditava” na fei-
tiçaria é igualmente um exercício cheio de inu-
tilidade, uma vez que não se trata, justamente,
de crença, mas – como o leitor aprenderá no
texto da autora aqui traduzido em ótima hora
– de afeto. Não de afeto no sentido da emoção
que escapa da razão, mas de afeto no sentido
do resultado de um processo de afetar, aquém
ou além da representação.
Não há nenhuma necessidade de supor,
tampouco, que os afetos de Favret-Saada no
mundo em que passara a viver (e que, por
um tempo, fi ltrava também o mundo com o
qual ela estava mais habituada e que costuma-
mos chamar de “nosso”) fossem idênticos aos
sentidos por aqueles que viviam mais longa e
cotidianamente, não a crença, mas a experi-
ência da feitiçaria. Basta que os etnógrafos se
deixem afetar pelas mesmas forças que afetam
os demais para que um certo tipo de relação
possa se estabelecer, relação que envolve uma
comunicação muito mais complexa que a sim-
ples troca verbal a que alguns imaginam poder
reduzir a prática etnográfi ca. Trata-se em suma,
como escreve a autora (Favret-Saada 1990a:
7-9), de conceder “estatuto epistemológico a
essas situações de comunicação involuntária e
não intencional”, evitando a “desqualifi cação
da palavra indígena” em benefício da “promo-
ção da do etnógrafo”, assim como a armadilha
suprema de imaginar que fazer etnografi a sig-
nifi ca “explorar as trevas com uma fi losofi a das
Luzes” (Favret-Saada 1981b: 344).
Em função de tudo isso, Les Mots, la Mort, les Sorts não pode ser enquadrado em nenhum
dos dois estilos etnográfi cos contemporâneos
mais usuais. Não se trata de apresentar as pes-
soas e suas ações (inclusive o que elas dizem e,
às vezes, até mesmo o que elas supostamente
pensam) como um antigo naturalista descrevia,
sobre um mesmo plano, fauna, fl ora e geografi a.
Mas não se trata, tampouco – após condenar
essa primeira modalidade de descrição como
empirista, ingênua ou autoritária, na medida
em que se arroga o direito de representar o ou-
tro –, de voltar-se para dentro, opondo uma
suposta transparência do sujeito para si mesmo
à opacidade do mundo dos outros. Ao transi-
tar do cientifi cismo para algo como um certo
tipo de autobiografi a, o gênero etnográfi co não
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
parece ter avançado muito: “que um etnógrafo
aceite ser afetado não implica que se identifi -
que com o ponto de vista indígena, nem que
aproveite a experiência de campo para excitar
seu narcisismo” (Favret-Saada 1990a: 7).
Na verdade, conta a autora (Favret-Saada
2004a), os afetos suscitados no campo, “a des-
possessão e a perda de controle de si, a acei-
tação do desejo desconhecido do outro, o
reconhecimento de uma opacidade constitu-
tiva da comunicação humana”, tudo isso que
era “insuportável para os etnólogos”, era “banal
para os psicanalistas”. Por outro lado, bastou
que a autora sustentasse que a feitiçaria – ou
antes, o desenfeitiçamento – constitui uma for-
ma de terapia que nada deve à psicanálise, para
que o cientifi cismo que os analistas sem dúvida
compartilham com os etnólogos impedisse que
a acolhida do trabalho de Favret-Saada fosse
muito longe. De fato, ela sugere que não se tra-
ta, no desenfeitiçamento, nem de uma forma
primitiva de lidar com aquilo que só a ciên-
cia realmente conhece, nem de uma simples
modulação cultural de uma prática universal.
Trata-se, antes, de um dispositivo completo,
destinado a “ajudar algumas pessoas”, dispositi-
vo que funciona tão bem (ou tão mal, segundo
os casos) quanto outro qualquer e que deveria
ser investigado em conjunto com outras “insti-
tuições curativas” – a psicanálise, por exemplo
– no contexto de uma “antropologia das tera-
pias” (Favret-Saada 1989b: 55; 1990a: 3).
É uma certa forma de cientifi cismo, por-
tanto, que explica que tanto etnólogos quanto
analistas – por razões distintas, talvez – te-
nham, ao mesmo tempo, admirado e recusado
Les Mots, la Mort, les Sorts. Como observou
a autora (Favret-Saada 2004a), o livro parece
ter sido objeto do que Benjamin denominava
“incompreensão entusiasta”, uma espécie de
“quadro famoso, pendurado nas paredes dos
departamentos de antropologia, que os estu-
dantes são incitados a admirar sem imitar”.
E, de fato, é quase tão difícil encontrar uma
crítica explícita ao livro quanto um trabalho
que leve efetivamente a sério as potencialida-
des por ele abertas.
Para fazê-lo seria preciso abandonar de vez o
paradigma cientifi cista no qual ainda nos mo-
vemos em benefício de um método “clínico”,
no sentido médico e psicanalítico do termo.
Na primeira opção, as escolhas são limitadas:
ou procedemos indutivamente, generalizando a
partir do maior número possível de casos empí-
ricos, ou dedutivamente, por meio da aplicação
a qualquer caso concreto de alguns princípios
gerais previamente estabelecidos. Favret-Saada,
por outro lado, procede por meio da observação,
exame e constituição de casos cuja singularidade
não elimina o fato de que cada um pode com-
partilhar com outros certos elementos e caracte-
rísticas. Isso faz com que, aos olhos do clínico,
cada caso seja, ao mesmo tempo, uma síndrome
única e parte de síndromes mais gerais, e que
cada um se benefi cie indiretamente das anamne-
ses anteriores e contribua para as futuras.
Não é de admirar, portanto, que o trabalho
de Favret-Saada tenha suscitado algumas rea-
ções estranhas, tanto na mídia (Favret-Saada
1989b: 112) – onde ela chegou a ser batizada
de “a feiticeira do CNRS” (o Centro Nacional de Pesquisa Científi ca) – quanto na academia,
onde um colega chegou a sugerir que o CNRS
deveria cancelar sua bolsa uma vez que, repu-
diando a ciência, ela a teria empregado simples-
mente para aprender a se tornar uma feiticeira
(Favret-Saada 1977a: 287).
Em outras palavras, não são apenas os fan-
tasmas suscitados pela equívoca noção de ob-
servação participante que, como sugere a autora
(Favret-Saada 1990a: 5-6), tendem a funcionar
como obstáculos para o trabalho do etnógrafo.
Ela enumera outros: a similaridade cultural ex-
cessiva do etnógrafo com o grupo estudado; a
concentração da investigação nas elites e/ou nos
arquivos; a hipótese de que tudo se esclarece
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
uma vez remetido ao “social”; a adoção de no-
ções como a de crença ou de ideais como “ob-
jetividade” e “cientifi cidade”. Isso não signifi ca,
é claro, que o antropólogo não possa estudar a
sociedade a que pertence, apenas que isso deve
ser feito com os cuidados e os distanciamentos
necessários; ou que arquivos e elites tenham
de fi car, necessariamente, fora da investigação,
apenas que devem ser colocados em seu devido
lugar; ou que as situações de enunciação, que
não se confundem com simples “contextos”,
não sejam fundamentais para a análise; ou que
as representações nativas, assim como o ideal de
conhecimento do antropólogo, não tenham que
ser respeitados, uma vez que trata-se sempre, na
etnografi a, de uma espécie de alinhamento en-
tre esses programas de verdade (cf. Favret-Saada
1977a: 287, passim).
Se fosse, então, inteiramente verdadeiro
que Jeanne Favret-Saada é autora de um livro, e
se esse livro for Les Mots, la Mort, les Sorts, isso
já seria bastante. Entretanto, e evidentemente,
não é bem assim que as coisas se passam. Na
verdade, os primeiros trabalhos de Favret -
Saada (reapresentados em Favret-Saada 2005)
como antropóloga remontam ao fi nal da dé-
cada de 1950, quando investigou sistemas seg-
mentares árabes e bérberes no norte da África,
em campos relativamente próximos a seu local
de nascimento no sul da Tunísia (em 1934, em
uma família de origem judaica). Após a inde-
pendência da Argélia, Favret-Saada mudou-se
para a França, onde os acontecimentos de maio
de 1968 fi zeram com que decidisse concentrar
sua pesquisa, tendo em vista não deixar o país
em um momento que, como militante política,
considerava fundamental. Dessa decisão, e de
modo algo tortuoso, nasceu a pesquisa sobre
feitiçaria na região do Bocage francês.
Entre as duas temáticas, despontam alguns
pontos de contato – o mais sugestivo sendo,
sem dúvida, uma certa relação de redundân-
cia entre segmentaridade e desenfeitiçamento.
Pois se a primeira é, sabidamente, um modo de
promover modalidades de confl ito (na conhe-
cida forma das oposições e fi ssões segmentares)
e de, ao mesmo tempo, regulá-los (na forma
das fusões segmentares ou dos complexos sis-
temas de vingança e compensação), algo pare-
cido poderia ser dito do enfeitiçamento e de
seu combate. Pois trata-se, aqui também, de
um confl ito ou de uma oposição (entre feiti-
ceiro e enfeitiçado), devidamente sistematizada
e, em geral, resolvida pela intervenção de uma
terceira instância, o desenfeitiçador, que, no
entanto, não aparece como externa e acima das
demais (como ocorreria com uma regulação es-
tatal ou médica de confl itos ou perturbações),
e sim como um aliado e um duplo da vítima
contra seu inimigo. Nesse sentido, a violência
e as formas de, ao mesmo tempo desencadeá-la
e regulá-la, aparecem como tema que de certo
modo atravessa não apenas essas duas fases do
trabalho da autora bem como aquela que a es-
tas se segue.
Do fi nal da década de 1980 ao início da de
1990, foi em torno da feitiçaria e de suas implica-
ções (como modalidade de violência, como par-
te de práticas terapêuticas, como locus de afetos,
como questão para a etnografi a e a antropolo-
gia…) que se concentrou o trabalho de Favret-
Saada. A partir daí, um novo tema – sem dúvida
relacionado aos anteriores – passou a ocupar sua
atenção, a blasfêmia e o projeto de elaboração
de uma antropologia da blasfêmia. Atenção sus-
citada, em parte, pelas reações ao chamado Caso Rushdie e à exibição do fi lme Amem, de Costa-
Gavras, mas também pelo impacto da constata-
ção de que “religiões que sempre se detestaram”
se uniam “contra a modernidade ‘blasfemadora’”
(Favret-Saada 2004a).
Essa antropologia da blasfêmia, por sua
vez, conduziu Favret-Saada à elaboração de
um trabalho (em colaboração, mais uma vez,
com Josée Contreras, psicanalista que com ela
trabalhou em outras ocasiões, especialmente na
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
edição de parte de suas notas de campo – Fa-
vret-Saada 1981a) acerca das relações entre o
cristianismo e os judeus na Europa nos últimos
dois séculos. Assim como ao que deve ser seu
próximo livro, que examinará como, a partir
de 1880, as apresentações teatrais da Paixão de
Cristo passaram a ser condenadas por diversas
igrejas protestantes, às quais, não obstante, não
apenas não estendiam essa condenação às exibi-
ções cinematográfi cas da mesma Paixão, como
até mesmo as incentivavam.
Não é difícil, pois, perceber que na obra
de Jeanne Favret-Saada agenciam-se, de forma
muito singular, afetos muito diferentes: alguns
ligados à sua história pessoal, outros às suas op-
ções éticas e políticas, outros, ainda, relaciona-
dos com a antropologia como campo de saber,
e assim por diante. Mas uma das originalidades
de seu trabalho talvez resida no fato de que o
principal operador desse agenciamento sejam
os afetos suscitados ou revelados em uma expe-
riência vivida da alteridade, seja no trabalho de
campo, seja por outros meios. O que produz
resultados que, evidentemente, reagem sobre
os próprios afetos agenciados: “há, em mim,
uma espécie de perpétua retroação entre um
modo não partidário de ser em política e um
modo não escolar de fazer a pesquisa” (Favret-
Saada 1984).
Referências bibliográfi cas
Além dos textos acima citados, esta biblio-
grafi a, ainda que incompleta, reúne a maior
parte dos trabalhos de Jeanne Favret-Saada. Seu
último posto acadêmico foi o de diretora de pes-
quisa na École Pratique des Hautes Études, titular
da cadeira de etnologia religiosa da Europa.
1966. “La Segmentarité au Maghreb”. L’Homme, VI:
105-111.
1967. “Le Traditionnalisme par Excès de Modernité”. Ar-chives Européennes de Sociologie, VIII: 71-93.
1968. “Relations de Dépendance et Manipulation de la
Violence en Kabylie”. L’Homme, VIII: 18-44.
1977a. Les Mots, la Mort, les Sorts. Paris: Gallimard.
1977b. “Excusez-Moi, je ne Faisais que Passer”. Les Temps Modernes, 371: 2089-2103.
1981a. Corps pour Corps. Paris: Gallimard (em colabora-
ção com Josée Contreras).
1981b. “Sorcières et Lumières”. In Jeanne Favret-Saada
& Josée Contreras. Corps pour Corps. Paris: Gallimard,
pp. 333-363.
1981c. “Corps pour Corps”. Les Temps Modernes, 416:
1589-1607 (em colaboração com Josée Contreras).
1984. “Jeanne Favret-Saada”. In Idées Contemporaines. Entretiens Le Monde. Paris: La Découverte.
1985. “L’Embrayeur de Violence: Quelques Mécanismes
Th érapeutiques du Désorcèlement” In J. Contreras et alii. Le Moi et l’Autre. Paris, Denoël, pp. 95-148.
1985. “La Th érapie sans le Savoir”. Nouvelle Revue de Psychanalyse, 31.
1989a. “La Genése du ‘Producteur Individuel’”. In Annie
M.D. Lebeuf et alii. Singularités. Textes pour Éric de Dampierre. Paris: Plon, pp. 485-496.
1989b. “Unbewitching as Terapy”. American Ethnologist, 16 (1): 40-56.
1990a. “Etre Aff ecté”. Gradhiva. Revue d’Histoire et d’Archives de l’Anthropologie, 8: 3-9.
1990b. “Ah! La Féline, la Sale Voisine…”. Terrain, 14:
20-31 (em colaboração com Josée Contreras). [http://
terrain.revues.org/document2968.html]
1991a. “Sale Histoire”. Gradhiva. Revue d’Histoire et d’Archives de l’Anthropologie, 10: 3-10.
1991b. “Le Désorcèlement Comme Th érapie”. Ethnologie Française, 2.
1991c. “Rushdie et Compagnie. Préalables à une Anthro-
pologie du Blasphème”. Ethnologie Française, 3.
1994. “Weber, les Émotions et la Religion”. Terrain, 22: 93-
108. [http://terrain.revues.org/document2968.html]
1995. “Liaisons Fatales”. Esprit, 12.
2000. “La-Pensée-Lévi-Strauss”. ProChoix, 13: 13-18.
[http://www.prochoix.org/pdf/levi-strauss.pdf ]
2002. “Amen: une ‘Juste’ Polémique?”. ProChoix, 21.
2004a. “Glissements de Terrains Entretien avec Jeanne
Favret-Saada”. Vacarme, 28. [http://www.vacarme.
eu.org/article449.html]
2004b. Le Christianisme et ses Juifs. 1800-2000. Paris:
Seuil (em colaboração com Josée Contreras).
2005. Algérie, 1962-1964, Essais d’Anthropologie Politi-que. Paris: Éd. Bouchene.
Meu trabalho sobre a feitiçaria no Bocage
francês levou-me a reconsiderar a noção de
afeto, e a pressentir o interesse que haveria em
trabalhá-la: primeiro, para apreender uma di-
mensão central do trabalho de campo (a mo-
dalidade de ser afetado); depois, para fazer uma
antropologia das terapias (tanto “selvagens”
exóticas, como “científi cas” ocidentais); e fi nal-
mente, para repensar a antropologia.
Com efeito, minha experiência de cam-
po com o desenfeitiçamento, e, em seguida,
minha experiência com a terapia analítica le-
varam-me a pôr em questão o tratamento pa-
radoxal do afeto na antropologia: em geral, os
autores ignoram ou negam seu lugar na expe-
riência humana. Quando o reconhecem, ou é
para demonstrar que os afetos são o mero pro-
duto de uma construção cultural, e que não
têm nenhuma consistência fora dessa constru-
ção, como manifesta uma abundante literatura
anglo-saxã; ou é para votar o afeto ao desapa-
recimento, atribuindo-lhe como único destino
possível o de passar para o registro da represen-
tação, como manifesta a etnologia francesa e
também a psicanálise. Trabalho, ao contrário,
com a hipótese de que a efi cácia terapêutica,
quando ela se dá, resulta de um certo trabalho
realizado sobre o afeto não representado.
“Ser afetado”, de Jeanne Favret-Saada*
* FAVRET-SAADA, Jeanne. 1990. “Être Aff ecté”.
In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Archives de l’Anthropologie, 8. pp. 3-9.
PAULA SIQUEIRA
Mestranda em Antropologia Social pelo PPGAS/
MN/UFRJ e pesquisadora de grupos culturais,
política e religião em Nilo Peçanha, no Baixo
Sul da Bahia.
TÂNIA STOLZE LIMA
Professora Doutora de Antropologia pelo
ICHF/UFF.
De um modo mais geral, meu trabalho põe
em causa o fato de que a antropologia acha-se
acantonada no estudo dos aspectos intelectu-
ais da experiência humana, nas produções cul-
turais do “entendimento”, para empregar um
termo da fi losofi a clássica. É – parece-me – ur-
gente, reabilitar a velha “sensibilidade”, visto
que estamos mais bem equipados para abordá-
la do que os fi lósofos do século XVII.
Inicialmente, valem algumas refl exões sobre
o modo como obtive minhas informações de
campo: não pude fazer outra coisa a não ser
aceitar deixar-me afetar pela feitiçaria, e ado-
tei um dispositivo metodológico tal que me
permitisse elaborar um certo saber posterior-
mente. Vou mostrar como esse dispositivo não
era nem observação participante, nem (menos
ainda) empatia.
Quando viajei para o Bocage, em 1968, ha-
via uma abundante literatura etnográfi ca sobre
feitiçaria, composta de dois conjuntos de textos
heterogêneos e que se ignoravam mutuamente:
aquele dos folcloristas europeus (que se tinham
recentemente condecorado com o título vanta-
joso de “etnólogos”, embora não tivessem mu-
dado em nada sua forma de trabalhar), e aquele
dos antropólogos anglo-saxões, sobretudo afri-
canistas e funcionalistas.
Os folcloristas europeus não tinham nenhum
conhecimento direto da feitiçaria rural: seguindo
as prescrições de Van Gennep, eles praticavam
investigações regionais, encontrando-se com as
cadernos de campo n. 13: 155-161, 2005
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
elites locais (o grupo menos bem situado para sa-
ber alguma coisa sobre o assunto) ou enviando-
lhes questionários, interrogando também alguns
camponeses para saber se “ainda se acreditava
nisso”. As respostas recebidas eram tão uniformes
quanto as questões: “aqui, não, mas na aldeia vi-
zinha, são uns atrasados…”. Seguiam-se, ainda,
algumas anedotas céticas ridicularizando os cren-
tes. Para ir direto ao ponto, digamos que os etnó-
logos franceses, desde que se tratasse de feitiçaria,
dispensavam-se tanto de observar como de par-
ticipar (situação que permanece, aliás, a mesma,
ainda em 1990). Os antropólogos anglo-saxões
pretendiam, ao menos, pôr em prática a “obser-
vação participante”. Levei um certo tempo para
deduzir dos seus textos sobre feitiçaria que con-
teúdo empírico podia-se atribuir a essa curiosa
expressão. Em retórica, isso se chama oxímoro:
observar participando, ou participar observando,
é quase tão evidente como tomar um sorvete fer-
vente. No campo, meus colegas pareciam combi-
nar dois gêneros de comportamento: um, ativo,
de trabalho regular com informantes pagos, os
quais eles interrogavam e observavam; o outro,
passivo, de observação de eventos ligados à fei-
tiçaria (disputas, consultas a adivinhos…). Ora,
o primeiro comportamento não pode de forma
alguma ser designado pelo termo “participação”
(o informante, ao contrário, é quem parece “par-
ticipar” do trabalho do etnógrafo); e, quanto ao
segundo, “participar” equivale à tentativa de estar
lá, sendo essa participação o mínimo necessário
para que uma observação seja possível.
Portanto, o que contava, para esses antropó-
logos, não era a participação, mas a observação.
Desta, eles tinham, aliás, uma concepção bas-
tante estreita: sua análise da feitiçaria reduzia-
se àquelas das acusações, porque, diziam eles,
são os únicos “fatos” que um etnógrafo pode
“observar”. Acusar é, para eles, um “compor-
tamento”, é até mesmo o comportamento por
excelência da feitiçaria, já que é o único empiri-
camente verifi cável, todo o resto sendo somen-
te erros e imaginações nativas. (Ressaltemos de
passagem que, para esses autores, falar não é
um comportamento, nem um ato suscetível
de ser observado). Esses antropólogos davam
respostas precisas a uma única questão – quem
acusa quem de o ter enfeitiçado em dada socie-
dade? – mas fi cavam mudos quanto a todas as
outras – como se entra numa crise de feitiçaria?
Como se sai dela? Quais são as idéias, as expe-
riências e as práticas dos enfeitiçados e dos seus
magos? Nem mesmo um autor tão minucioso
quanto Turner permite sabê-lo, e, para se fazer
uma idéia disso, é preciso voltar à leitura de
Evans-Pritchard (1937).
De maneira geral, havia nessa literatura um
perpétuo deslizamento de sentido entre vá-
rios termos que teria sido melhor distinguir: a
“verdade” vinha escorrer sobre o “real”, e este,
sobre o “observável” (aqui, havia uma confu-
são suplementar entre o observável como saber
empiricamente verifi cável, e o observável como
saber independente das declarações nativas),
depois sobre o “fato”, o “ato” ou o “compor-
tamento”. Essa nebulosa de signifi cações tinha
por único traço comum o fato de opor-se a seu
simétrico: o “erro” escorria sobre o “imaginá-
rio”, sobre o “inobservável”, sobre a “crença” e,
por fi m, sobre a “palavra” nativa.
Aliás, não há nada mais incerto que o esta-
tuto da palavra nativa nesses textos: às vezes, ele
é classifi cado entre os comportamentos (acu-
sar) e, às vezes, entre as proposições falsas (in-
vocar a feitiçaria para explicar uma doença). A
atividade de fala – enunciação – é escamoteada,
não restando mais do discurso nativo que seu
resultado, isto é, os enunciados são impropria-
mente tratados como proposições e a atividade
simbólica reduz-se a emitir proposições falsas.
Como se pode ver, todas essas confusões gi-
ram em torno de um ponto comum: a desqua-
lifi cação da palavra nativa, a promoção daquela
do etnógrafo, cuja atividade parece consistir
em fazer um desvio pela África para verifi car
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
que apenas ele detém… não se sabe bem o quê,
um conjunto de noções politéticas, equivalen-
tes para ele à verdade.
Voltemos a minha pesquisa sobre a feitiçaria
no Bocage. Lendo essa literatura anglo-saxã para
ajudar em meu trabalho de campo, fi quei im-
pressionada com uma curiosa obsessão presen-
te em todos os prefácios: os autores (e o grande
Evans-Pritchard não era exceção) negavam regu-
larmente a possibilidade de uma feitiçaria rural
na Europa de hoje. Ora, não somente eu estava
dentro dela, como a feitiçaria era amplamente
verifi cada em várias outras regiões, ao menos
pelos folcloristas europeus. Por que um erro em-
pírico tão evidente, tão grande e tão comparti-
lhado? Sem dúvida, tratava-se de uma tentativa
absurda de realizar novamente a Grande Divisão
entre “eles” e “nós” (“nós” também já acredita-
mos em feiticeiros, mas foi há trezentos anos,
quando “nós” éramos “eles”), e assim proteger
o etnólogo (esse ser a-cultural, cujo cérebro so-
mente conteria proposições verdadeiras) contra
qualquer contaminação pelo seu objeto.
Talvez isso fosse possível na África, mas eu
estava na França. Os camponeses do Bocage
recusaram-se obstinadamente a jogar a Grande
Divisão comigo, sabendo bem onde isso de-
veria terminar: eu fi caria com o melhor lugar
(aquele do saber, da ciência, da verdade, do
real, quiçá algo ainda mais alto), e eles, com o
pior. A Imprensa, a Televisão, a Igreja, a Esco-
la, a Medicina, todas as instâncias nacionais de
controle ideológico os colocavam à margem da
nação sempre que um caso de feitiçaria termi-
nava mal: durante alguns dias, a feitiçaria era
apresentada como o cúmulo do campesinato, e
este como o cúmulo do atraso ou da imbecili-
dade. Assim, as pessoas do Bocage, para proibir
o acesso a uma instituição que lhes prestava ser-
viços tão eminentes, ergueram a sólida barreira
do mutismo, com justifi cações do gênero: “Fei-
tiço, quem não pegou não pode falar disso” ou
“a gente não pode falar disso com eles”.
Pois então, eles falaram disso comigo somen-
te quando pensaram que eu tinha sido “pega”
pela feitiçaria, quer dizer, quando reações que
escapavam ao meu controle lhes mostraram
que estava afetada pelos efeitos reais – freqüen-
temente devastadores – de tais falas e de tais
atos rituais. Assim, alguns pensaram que eu era
uma desenfeitiçadora e dirigiram-se até a mim
para solicitar o ofício; outros pensaram que eu
estava enfeitiçada e conversaram comigo para
me ajudar a sair desse estado. Com exceção
dos notáveis (que falavam voluntariamente de
feitiçaria, mas para desqualifi cá-la), ninguém
jamais teve a idéia de falar disso comigo sim-
plesmente por eu ser etnógrafa.
Eu mesma não sabia bem se ainda era et-
nógrafa. Certamente, nunca acreditei ser uma
proposição verdadeira que um feiticeiro pudesse
me prejudicar fazendo feitiços ou pronuncian-
do encantamentos, mas duvido que os próprios
camponeses tenham algum dia acreditado nis-
so dessa maneira. Na verdade, eles exigiam de
mim que eu experimentasse pessoalmente por
minha própria conta – não por aquela da ci-
ência – os efeitos reais dessa rede particular de
comunicação humana em que consiste a feiti-
çaria. Dito de outra forma: eles queriam que
aceitasse entrar nisso como parceira e que aí
investisse os problemas de minha existência de
então. No começo, não parei de oscilar entre
esses dois obstáculos: se eu “participasse”, o
trabalho de campo se tornaria uma aventura
pessoal, isto é, o contrário de um trabalho; mas
se tentasse “observar”, quer dizer, manter-me à
distância, não acharia nada para “observar”. No
primeiro caso, meu projeto de conhecimento
estava ameaçado, no segundo, arruinado.
Embora, durante a pesquisa de campo, não
soubesse o que estava fazendo, e tampouco o
porquê, surpreendo-me hoje com a clareza das
minhas escolhas metodológicas de então: tudo
se passou como se tivesse tentado fazer da “par-
ticipação” um instrumento de conhecimento.
158 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
Nos encontros com os enfeitiçados e desenfeiti-
çadores, deixei-me afetar, sem procurar pesqui-
sar, nem mesmo compreender e reter. Chegando
em casa, redigia um tipo de crônica desses even-
tos enigmáticos (às vezes aconteciam situações
carregadas de uma tal intensidade que me era
impossível fazer essas notas a posteriori). Esse
diário de campo, que foi durante longo tempo
meu único material, tinha dois objetivos:
– O primeiro era a curto prazo: tentar com-
preender o que queriam de mim, achar uma
resposta a questões urgentes do gênero: “Por
quem X me toma?” (uma enfeitiçada, uma
desenfeitiçadora), “O que Y quer de mim?”
(que eu o desenfeitice…). Eu tinha interesse
em achar uma boa resposta, já que no encon-
tro seguinte, me pediriam para agir. Mas, em
geral, não tinha os meios necessários para isso:
a literatura etnográfi ca sobre feitiçaria, tanto
anglo-saxã quanto francesa, não permitia que
se representasse esse sistema de lugares em que
consiste a feitiçaria. Eu estava justamente expe-
rimentando esse sistema, expondo-me a mim
mesma nele.
– O outro objetivo era a longo prazo: por
mais que vivesse uma aventura pessoal fasci-
nante, em nenhum momento resignei-me a
não compreender. Na época, aliás, não sabia
muito para que ou por que queria poder com-
preender, se para mim, para a antropologia
ou para a consciência européia. Mas eu orga-
nizava meu diário de campo para que servisse
mais tarde a uma operação de conhecimento:
minhas notas eram de uma precisão maníaca
para que eu pudesse, mais tarde, realucinar os
eventos, e então – como eu não estaria mais
“enfeitiçada”, apenas “reenfeitiçada” – compre-
endê-los, eventualmente.
Os leitores de Corps pour Corps terão nota-
do que não há nada neste diário que o asseme-
lhe àqueles de Malinowski ou de Métraux. O
diário de campo era para eles um espaço íntimo
onde podiam enfi m se deixar livres, reencon-
trar-se fora das horas de trabalho, durante as
quais eram obrigados a representar diante dos
nativos. Em suma, um espaço de recreação pes-
soal, no sentido literal do termo. As considera-
ções privadas ou subjetivas estão, ao contrário,
ausentes do meu próprio diário, exceto se tal
evento de minha vida pessoal tivesse sido evo-
cado com meus interlocutores, quer dizer, se
tivesse sido incluído na rede de comunicação
da feitiçaria.
Uma das situações que vivia no campo era
praticamente inenarrável: era tão complexa que
desafi ava a rememoração, e de todos os modos,
afetava-me demais. Trata-se das sessões de de-
senfeitiçamento a que assistia, seja como enfei-
tiçada (minha vida pessoal estava passando pelo
crivo e eu era instada a modifi cá-la), seja como
testemunha dos clientes, mas também da tera-
peuta (eu era constantemente instada a intervir
bruscamente). No começo, tomei muitas notas
depois de chegar em casa, mas era muito mais
para acalmar a angústia de ter-me pessoalmente
engajado. Uma vez que aceitei ocupar o lugar
que me tinha sido designado nas sessões, prati-
camente não tomei mais notas: tudo se passava
muito depressa, deixava-as correr sem pôr-me
questões, e, da primeira sessão até a última, não
tinha compreendido praticamente nada do que
tinha acontecido. Mas registrei discretamente
umas trinta sessões das aproximadamente du-
zentas a que assisti para constituir um material
sobre o qual pudesse trabalhar mais tarde.
A fi m de evitar os mal entendidos, gostaria
de ressaltar o seguinte: aceitar “participar” e ser
afetado não tem nada a ver com uma operação
de conhecimento por empatia, qualquer que
seja o sentido em que se entende esse termo.
Vou considerar as duas acepções principais e
mostrar que nenhuma delas designa o que pra-
tiquei no campo.
Segundo a primeira acepção (indicada na
Encyclopedia of Psychology), sentir empatia con-
sistiria, para uma pessoa, em “vicariously expe-
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
riencing the feelings, perceptions and thoughts of another”1. Por defi nição, esse gênero de empa-
tia supõe, portanto, a distância: é justamente
porque não se está no lugar do outro que se
tenta representar ou imaginar o que seria estar
lá, e quais “sensações, percepções e pensamen-
tos” ter-se-ia então. Ora, eu estava justamente
no lugar do nativo, agitada pelas “sensações,
percepções e pelos pensamentos” de quem ocu-
pa um lugar no sistema da feitiçaria. Se afi rmo
que é preciso aceitar ocupá-lo, em vez de ima-
ginar-se lá, é pela simples razão de que o que ali
se passa é literalmente inimaginável, sobretudo
para um etnógrafo, habituado a trabalhar com
representações: quando se está em um tal lugar,
é-se bombardeado por intensidades específi cas
(chamemo-las de afetos), que geralmente não
são signifi cáveis. Esse lugar e as intensidades
que lhe são ligadas têm então que ser experi-
mentados: é a única maneira de aproximá-los.
Uma segunda acepção de empatia – ein-fühlung, que poderia ser traduzida por co-
munhão afetiva – insiste, ao contrário, na
instantaneidade da comunicação, na fusão com
o outro que se atingiria pela identifi cação com
ele. Essa concepção nada diz sobre o mecanis-
mo da identifi cação, mas insiste em seu resul-
tado, no fato de que ela permite conhecer os
afetos de outrem.
Afi rmo, ao contrário, que ocupar tal lugar
no sistema da feitiçaria não me informa nada
sobre os afetos do outro; ocupar tal lugar afe-
ta-me, quer dizer, mobiliza ou modifi ca meu
próprio estoque de imagens, sem contudo ins-
truir-me sobre aquele dos meus parceiros.
Mas – e insisto sobre esse ponto, pois é aqui
que se torna eventualmente possível o gênero
de conhecimento a que viso –, o próprio fato
de que aceito ocupar esse lugar e ser afetada
por ele abre uma comunicação específi ca com
os nativos: uma comunicação sempre involun-
1. Nota da tradutora: “experimentar, de uma forma indi-reta, as sensações, percepções e pensamentos do outro”.
tária e desprovida de intencionalidade, e que
pode ser verbal ou não.
Quando é verbal, acontece mais ou menos
isto: alguma coisa me impele a falar (digamos,
o afeto não representado), mas não sei o quê, e
tampouco sei por que isso me impele a dizer jus-
tamente aquilo. Por exemplo, digo a um cam-
ponês, em eco a alguma coisa que ele me disse:
“Pois é, eu sonhei que…”, e eu não teria como
explicar esse “pois é”. Ou então meu interlocu-
tor observa, sem fazer qualquer ligação: “Outro
dia, fulano lhe disse que… Hoje, você está com
essas erupções no rosto”. O que se diz aí, impli-
citamente, é a constatação de que fui afetada: no
primeiro caso, eu própria faço essa constatação,
no segundo, é um outro quem a faz.
Quando essa comunicação não é verbal, o
que é então que é comunicado e como? Tra-
ta-se justamente da comunicação imediata que
o termo einfühlung evoca. Apesar disso, o que
me é comunicado é somente a intensidade de
que o outro está afetado (em termos técnicos,
falar-se-ia de um quantum de afeto ou de uma
carga energética). As imagens que, para ele e
somente para ele, são associadas a essa intensi-
dade escapam a esse tipo de comunicação. Da
minha parte, encaixo essa carga energética de
um modo meu, pessoal: tenho, digamos, um
distúrbio provisório de percepção, uma quase
alucinação, ou uma modifi cação das dimensões;
ou ainda, estou submersa num sentimento de
pânico, ou de angústia maciça. Não é neces-
sário (e, aliás, não é freqüente) que esse seja o
caso do meu parceiro: ele pode, por exemplo,
estar completamente inafetado na aparência.
Suponhamos que não lute contra esse esta-
do, que o receba como uma comunicação de
alguma coisa que não saiba o que é. Isso me
impele a falar, mas da forma evocada anterior-
mente (“então, eu sonhei que…”), ou a calar-
me. Nesses momentos, se for capaz de esquecer
que estou em campo, que estou trabalhando, se
for capaz de esquecer que tenho meu estoque
160 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
de questões a fazer… se for capaz de dizer-me
que a comunicação (etnográfi ca ou não, pois
não é mais esse o problema) está precisamen-
te se dando, assim, desse modo insuportável e
incompreensível, então estou direcionada para
uma variedade particular de experiência huma-
na – ser enfeitiçado, por exemplo – porque por
ela estou afetada.
Ora, entre pessoas igualmente afetadas
por estarem ocupando tais lugares, acontecem
coisas às quais jamais é dado a um etnógrafo
assistir, fala-se de coisas que os etnógrafos não
falam, ou então as pessoas se calam, mas trata-
se também de comunicação. Experimentando
as intensidades ligadas a tal lugar, descobre-se,
aliás, que cada um apresenta uma espécie par-
ticular de objetividade: ali só pode acontecer
uma certa ordem de eventos, não se pode ser
afetado senão de um certo modo.
Como se vê, quando um etnógrafo aceita
ser afetado, isso não implica identifi car-se com
o ponto de vista nativo, nem aproveitar-se da
experiência de campo para exercitar seu narci-
sismo. Aceitar ser afetado supõe, todavia, que
se assuma o risco de ver seu projeto de conhe-
cimento se desfazer. Pois se o projeto de conhe-
cimento for onipresente, não acontece nada.
Mas se acontece alguma coisa e se o projeto
de conhecimento não se perde em meio a uma
aventura, então uma etnografi a é possível. Ela
apresenta, creio eu, quatro traços distintivos:
1. Seu ponto de partida é o reconhecimen-
to de que a comunicação etnográfi ca ordinária
– uma comunicação verbal, voluntária e inten-
cional, visando à aprendizagem de um sistema
de representações nativas – constitui uma das
mais pobres variedades da comunicação huma-
na. Ela é especialmente imprópria para forne-
cer informações sobre os aspectos não verbais e
involuntários da experiência humana.
Noto, aliás, que, quando um etnógrafo
lembra-se do que houve de único em sua esta-
da no campo, ele fala sempre de situações em
que não estava em condições de praticar essa
comunicação pobre, pois estava invadido por
uma situação e/ou por seus próprios afetos.
Ora, nas etnografi as, essas situações, apesar de
banais e recorrentes, de comunicação involun-
tária e desprovida de intencionalidade não são
jamais consideradas como aquilo que são: as
“informações” que elas trouxeram ao etnógrafo
aparecem no texto, mas sem nenhuma referên-
cia à intensidade afetiva que as acompanhava
na realidade; e essas “informações” são coloca-
das exatamente no mesmo plano que as outras,
aquelas que são produzidas pela comunicação
voluntária e intencional. Poder-se-ia dizer, in-
clusive, que virar um etnógrafo profi ssional é
tornar-se capaz de maquiar automaticamente
todo episódio de sua experiência de campo em
uma comunicação voluntária e intencional vi-
sando ao aprendizado de um sistema de repre-
sentações nativas.
Eu, ao contrário, escolhi conceder estatuto
epistemológico a essas situações de comunica-
ção involuntária e não intencional: é voltando
sucessivamente a elas que constituo minha et-
nografi a.
2. Segundo traço distintivo dessa etnogra-
fi a: ela supõe que o pesquisador tolere viver em
um tipo de schize. Conforme o momento, ele
faz justiça àquilo que nele é afetado, maleável,
modifi cado pela experiência de campo, ou en-
tão àquilo que nele quer registrar essa experiên-
cia, quer compreendê-la e fazer dela um objeto
de ciência.
3. As operações de conhecimento acham-se
estendidas no tempo e separadas umas das ou-
tras: no momento em que somos mais afetados,
não podemos narrar a experiência; no momento
em que a narramos não podemos compreendê-
la. O tempo da análise virá mais tarde.
4. Os materiais recolhidos são de uma den-
sidade particular, e sua análise conduz inevita-
velmente a fazer com que as certezas científi cas
mais bem estabelecidas sejam quebradas.
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
Consideremos, por exemplo, os rituais de
desenfeitiçamento. Se não tivesse sido assim
afetada, se não tivesse assistido a tantos epi-
sódios informais de feitiçaria, teria dado aos
rituais uma importância central: primeiro,
porque sendo etnógrafa, sou levada a privile-
giar a análise do simbolismo; segundo, porque
os relatos típicos de feitiçaria lhes dão um lugar
essencial. Mas, por ter fi cado tanto tempo en-
tre os enfeitiçados e entre os desenfeitiçadores,
em sessões e fora de sessões, por ter escutado,
além dos discursos de conveniência, uma gran-
de variedade de discursos espontâneos, por ter
experimentado tantos afetos associados a tais
momentos particulares do desenfeitiçamento,
por ter visto fazerem tantas coisas que não eram
do ritual, todas essas experiências fi zeram-me
compreender isso: o ritual é um elemento (o
mais espetacular, mas não o único) graças ao
qual o desenfeitiçador demonstra a existência
de “forças anormais”, as implicações mortais da
crise que seus clientes sofrem e a possibilidade
de vitória. Mas essa vitória (não podemos sobre
esse assunto falar de “efi cácia simbólica”) supõe
que se coloque em prática um dispositivo tera-
pêutico muito complexo antes e muito tempo
depois da efetuação do ritual. Esse dispositivo
pode, é claro, ser descrito e compreendido, mas
somente por quem se permitir dele se aproxi-
mar, quer dizer, por quem tiver corrido o risco
de “participar” ou de ser afetado por ele: em
caso algum ele pode ser “observado”.
Para fi nalizar, uma palavra sobre a ontologia
implícita de nossa disciplina. Em Meurtre dans l’Université Anglaise (L’Âne, nº 21, abril-junho,
1985), Paul Jorion mostra que a antropologia
anglo-saxã pressupõe, entre outras coisas, uma
transparência essencial do sujeito humano a
si mesmo. Ora, minha experiência de campo
– porque ela deu lugar à comunicação não
verbal, não intencional e involuntária, ao sur-
gimento e ao livre jogo de afetos desprovidos
de representação – levou-me a explorar mil as-
pectos de uma opacidade essencial do sujeito
frente a si mesmo. Essa noção é, aliás, velha
como a tragédia, e a ela sustenta também, des-
de há um século, toda a literatura terapêutica.
Pouco importa o nome dado a essa opacidade
(“inconsciente” etc.): o principal, em particular
para uma antropologia das terapias, é poder da-
qui para frente postulá-la e colocá-la no centro
de nossas análises.
Em 1980, no encontro anual da American
Anthropological Association, Victor Witter
Turner, Edward Bruner e Barbara Myerhoff
organizaram um simpósio sobre antropologia
da experiência. Deste simpósio resultaria Th e Anthropology of Experience (1986), com o arti-
go, “Dewey, Dilthey, and Drama: An Essay in
the Anthropology of Experience”, de Turner
(1986).1 Trata-se de um dos seus últimos textos.
Publicado três anos após a morte do seu autor
– e no mesmo ano da publicação de alguns dos
escritos mais conhecidos da antropologia “pós-
moderna”2 –, o subtítulo poderia evocar, para
um leitor desavisado, a imagem de um testamen-
to com os conselhos de um velho antropólogo,
do alto da sua “experiência”, alertando os mais
novos para riscos iminentes. Certamente não é
essa a idéia que Turner tem de experiência.
Se no ensaio de Turner algum conselho
houver, certamente ele não seria da ordem de
“não corram riscos”, ou “evitem perigos”. A eti-
mologia de experiência, ressalta o autor, deriva
do indo-europeu per, com o signifi cado literal,
1. Também em 1980, ao discutir os usos da metáfora
do drama nas ciências sociais, Cliff ord Geertz ([1980]
1983:29) destaca o conceito de experiência como sen-
do uma categoria central para o entendimento da con-
tribuição de Victor Turner ao campo da antropologia.
2. Aqui me refi ro a Writing Culture: Th e Poetics and Poli-tics of Ethnography (Cliff ord e Marcus 1986) e Anthro-pology as Cultural Critique: An Experimental Moment in the Human Sciences (Marcus e Fischer 1986).
Victor Turner e antropologia da experiência
JOHN C. DAWSEY
Professor Livre-Docente do Departamento de
Antropologia da USP e coordenador do Núcleo
de Antropologia da Performance e do Drama
(Napedra/USP).
justamente, de “tentar, aventurar-se, correr ris-
cos”. Experiência e perigo vêm da mesma raiz.
A derivação grega, perao, “passar por”, também
chama a atenção de Turner pelo modo como
evoca a idéia de ritos de passagem.
A idéia de passagem não deixa de ser su-
gestiva. De novo, retomando o início do pará-
grafo anterior, se nesse ensaio algum conselho
houver, é provável que ele seja da espécie que
Benjamin descobriu na atividade do narrador:
uma sugestão de como continuar uma história
(Benjamin 1985b: 200). Porém, não se trata de
testamento. Mais se parece com um manifesto.
Um detalhe: nascido em 1920, Turner não era
tão velho assim quando escreveu este texto.
Num momento de infl exão no campo da
antropologia, três imagens do passado articu-
lam-se ao presente, inscrevendo-se no título de
um ensaio: Dewey, Dilthey e drama. A terceira
imagem não deixa de evocar o jovem Turner
e suas refl exões originárias, saídos do redemoi-
nho dos anos de 1950, quando ele iniciava-se
nas pesquisas de campo.
A fi gura de Dilthey também aparece com
destaque na introdução de From Ritual to Th e-atre: Th e Human Seriousness of Play, na qual
uma premissa se anuncia: a antropologia da
performance é uma parte essencial da antro-
pologia da experiência (Turner 1982b: 13).
Através do processo de performance, o contido
ou suprimido revela-se – Dilthey usa o termo
Ausdruck, de ausdrucken, “espremer”. Citando
cadernos de campo n. 13: 163-176, 2005
164 | .
cadernos de campo • n. 13 • 2005
Dilthey, Turner descreve cinco “momentos”
que constituem a estrutura processual de cada
erlebnis, ou experiência vivida: 1) algo acontece
ao nível da percepção (sendo que a dor ou o
prazer podem ser sentidos de forma mais inten-
sa do que comportamentos repetitivos ou de
rotina); 2) imagens de experiências do passado
são evocadas e delineadas – de forma aguda; 3)
emoções associadas aos eventos do passado são
revividas; 4) o passado articula-se ao presente
numa “relação musical” (conforme a analogia
de Dilthey), tornando possível a descoberta e
construção de signifi cado; e 5) a experiência se
completa através de uma forma de “expressão”.
Performance – termo que deriva do francês an-
tigo parfournir, “completar” ou “realizar intei-
ramente” – refere-se, justamente, ao momento
da expressão. A performance completa uma
experiência (Turner 1982b: 13-14).
A imagem de Dilthey também fulgura em
“Th e anthropology of performance” (Turner
1987b). O próprio Turner apresenta-se nes-
te artigo como um dos precursores da “virada
pós-moderna” na antropologia. O “perigo”, diz
Turner, não vem dos chamados “pós-moder-
nos”, mas das tentativas “clássicas” e recentes
de fazer da antropologia uma das variantes das
ciências naturais, uma ciência do ser huma-
no sem vida, despojada de experiência vivida
– mais um sintoma de uma época em que “o
signifi cado é que não há signifi cado”.3 Daí a
importância de Dilthey. No mundo contem-
porâneo a busca do sentido torna-se cada vez
mais difícil. As afi nidades entre a antropologia
“pós-moderna” e antropologia da experiência
(e da performance) de Turner revelam-se num
“desvio”: a atenção do antropólogo volta-se aos
ruídos e elementos estruturalmente arredios.
Nesta apresentação, levando a sério “a se-
riedade humana da brincadeira” [Th e Human
3. Este comentário, sobre uma época em que “o signi-
fi cado é que não há signifi cado”, aparece em Turner
(1986: 43).
Seriousness of Play] (Turner 1982a), eu gostaria
de “brincar” com o modelo de “drama social”
do autor, explorando uma possível meta-nar-
rativa de Dewey, Dilthey and Drama: An Essay in the Anthropology of Experience. Embora eu
não esteja exatamente contribuindo para ate-
nuar algumas das críticas aos usos da noção
de drama social – que vira, de acordo com
Geertz, “uma fórmula para todas as estações”
(Geertz [1980] 1983: 28) –, intriga-me ver
como o próprio texto de Turner ilumina uma
forma dramática. Alguns ruídos que surgem,
quem sabe, do límen do seu ensaio podem sus-
citar questões em relação à noção de experi-
ência. Haveria em Turner a nostalgia por uma
experiência que se expressa melhor na noção
de erfahrung do que na de erlebnis? Afi nidades
entre a antropologia de Turner e o pensamento
benjaminiano merecem atenção. Assim como
algumas diferenças. Antes de tudo isso, porém,
convido o leitor a um exercício de rememo-
ração do percurso de Turner, que vai, como
veremos, do ritual ao teatro, e do liminar ao
liminoide.
I Ritos e dramas sociais
À primeira vista, o percurso de Turner suge-
re algo como um esquema evolucionista: do ri-
tual ao teatro. No princípio, o ritual. Por outro
lado, questões do pensamento teatral colocam-
se desde o início. Inclusive, a mãe de Turner,
Violet Witter, que era atriz, foi uma das funda-
doras do Teatro Nacional Escocês nos anos de
1920. Em Schism and Continuity in an African Society, Turner supõe que ritos de passagem,
assim como dramas sociais, evocam uma forma
estética que se encontra na tragédia grega (Tur-
ner [1957] 1996). As atenções de Turner para
elementos estruturalmente arredios eviden-
ciam-se desde suas primeiras pesquisas, à luz
das discussões de Max Gluckman sobre “ritos
de rebelião” (Gluckman 1954), de Van Gen-
|
cadernos de campo • n. 13 • 2005
nep sobre “ritos de passagem” ([1908] 1960),
e, certamente, de Violet Witter sobre teatro.
Roland Barthes defi ne teatro como uma ati-
vidade que “calcula o lugar olhado das coisas”
(Barthes 1990: 85). Essa idéia pode ser interes-
sante para se discutir a própria antropologia,
particularmente como ela se manifesta em Vic-
tor Turner. As afi nidades entre procedimentos
etnográfi cos e ritos de passagem são bastante
conhecidas. Ambos envolvem estratégias que
visam produzir efeitos de estranhamento em
relação ao familiar. A partir de deslocamen-
tos do lugar olhado das coisas, conhecimento
é produzido e adquire densidade. A sacada de
Turner foi ver como as próprias sociedades sa-
caneiam-se a si mesmas, brincando com o peri-
go, e suscitando efeitos de paralisia em relação
ao fl uxo da vida cotidiana. Isso através de ritos,
cultos, festas, carnavais, música, dança, teatro,
procissões, rebeliões e outras formas expressi-
vas. Universos sociais e simbólicos se recriam a
partir de elementos do caos.
Nos anos de 1950, vendo como as aldeias
Ndembu ganhavam vida em momentos de cri-
se, Victor Turner elaborou o modelo de drama
social que lhe serviria como instrumento de
análise, inclusive nas formulações posteriores
da antropologia da performance e antropologia
da experiência. Discussões sobre ritos de passa-
gem foram fundamentais para as formulações
de Turner. De acordo com o modelo de Van
Gennep, ritos de passagem envolvem três “mo-
mentos”, ou sub-ritos: 1) de separação, 2) de
transição (“liminares”), e 3) de reagregação. No
modelo de drama social elaborado por Turner,
os três momentos desdobram-se em quatro: 1)
ruptura, 2) crise e intensifi cação da crise, 3)
ação reparadora, e 4) desfecho (que pode levar
à harmonia ou cisão social).
Estruturas sociais – entendidas, sob o sig-
no da antropologia social britânica, como
conjuntos de relações sociais empiricamente
observáveis – estão carregadas de tensões. Em
determinados instantes, tensões afl oram. Ele-
mentos não resolvidos da vida social se mani-
festam. Irrompem substratos mais fundos do
universo social e simbólico. As relações sociais
iluminam-se a partir de fontes de luz subter-
râneas.
Victor Turner produz um desvio metodo-
lógico no campo da antropologia social britâ-
nica. Para se entender uma estrutura, é preciso
suscitar um desvio. Busca-se um lugar de onde
seja possível detectar os elementos não-óbvios
das relações sociais. Estruturas sociais reve-
lam-se com intensidade maior em momentos
extraordinários, que se confi guram como ma-
nifestações de “anti-estrutura”. O antropólogo
procura acompanhar os movimentos surpreen-
dentes da vida social.
Experiências que irrompem em tempos e
espaços liminares podem ser fundantes. Dra-
mas sociais propiciam experiências primárias.4
Fenômenos suprimidos vêm à superfície. Ele-
mentos residuais da história articulam-se ao
presente. Abrem-se possibilidades de comuni-
cação com estratos inferiores, mais fundos e
amplos da vida social. Estruturas decompõem-
se – às vezes, com efeitos lúdicos. O riso faz
estremecer as duras superfícies da vida social.
Fragmentos distantes uns dos outros entram
em relações inesperadas e reveladoras, como
montagens. Figuras grotescas manifestam-se
em meio a experiências carnavalizantes (Turner
1967b: 105-106). No espelho mágico de uma
experiência liminar, a sociedade pode ver-se a
si mesma a partir de múltiplos ângulos, expe-
rimentando, num estado de subjuntividade,
com as formas alteradas do ser.5
No espelho da anti-estrutura, fi guras vis-
tas como estruturalmente poderosas podem
4. Turner discute a noção de “processo primário”, termo
sugerido por Dario Zadra, em seu artigo sobre Hidal-
go e a revolução mexicana (Turner 1974a: 110).
5. A metáfora do “espelho mágico” aparece em vários
escritos de Victor Turner (Turner 1987a: 22).
166 | .
cadernos de campo • n. 13 • 2005
mostrar-se como sendo extremamente frágeis.
Inversamente, personagens estruturalmente
frágeis transformam-se em seres de extraor-
dinário poder (Turner 1969b: 94-130). De
fontes liminares, imagens e criaturas ctônicas
irrompem com poderes de cura para revitalizar
tecidos sociais.6 Entidades ambíguas ou anôma-
las, consideradas como sendo estruturalmente
perigosas, energizam circuitos de comunicação
atrofi ados.7 Abrem-se passagens em sistemas
classifi catórios estáticos. Surgem áreas de con-
tágio. Espaços híbridos. Escândalos lógicos.
Nos momentos de suspensão das relações
cotidianas é possível ter uma percepção mais
funda dos laços que unem as pessoas. Despoja-
das dos sinais diacríticos que as diferenciam e
as contrapõem no tecido social, e sob os efeitos
de choque que acompanham o curto-circuito
desses sinais numa situação de liminaridade,
pessoas podem ver-se frente a frente. Sem me-
diações. Voltam a sentir-se como havendo sido
feitas do mesmo barro do qual o universo so-
cial e simbólico, como se movido pela ação de
alguma oleira oculta, recria-se. A essa experiên-
cia Turner dá o nome de communitas.8
Da experiência no límen, propiciada por
dramas sociais, surgem poderosos símbolos
6. O terceiro momento dos dramas sociais, referente à
reparação de crises, é propício, de acordo com Turner,
para a manifestação de ritos de cura (Turner 1968;
1967a: 359-393).
7. A discussão de Mary Douglas sobre o pangolim em
rituais da cultura lele oferece um exemplo desse fenô-
meno (Douglas [1966] 1976: 202-204).
8. Turner encontra nas discussões de Durkheim sobre
“efervescência social” um exemplo de liminaridade e
communitas (Durkheim [1912] 1989: 456). Com-
munitas, termo inspirado pelas refl exões de Martin
Buber, não deve ser confundido com qualquer prin-
cípio de organização social em comunidade, ou com
formas de solidariedade descritas por Durkheim.
Trata-se de uma experiência que irrompe de modo
espontâneo a partir de momentos de interrupção das
formas de organização social (Turner 1969b: 126-
127).
multivocais.9 Assim se articulam diferenças. Os
fi os que tecem as redes de signifi cado unifi cam-
se em tramas carregadas de tensões.
II Do liminar ao liminoide
A publicação de From Ritual to Th eatre: Th e Human Seriousness of Play, em 1982, marca
uma infl exão no pensamento de Victor Turner.
Aqui se encontram as suas primeiras formula-
ções sobre uma antropologia da performance,
um campo de estudos que surge nas interfaces
da antropologia e do teatro nos anos de 1970,
a partir do encontro e colaboração entre Vic-
tor Turner e Richard Schechner. Uma de suas
afi rmações é particularmente reveladora. Até
aqui as ciências sociais praticamente só têm se
preocupado com questões de estrutura e de-
sempenho de papéis, diz Turner. A sua própria
abordagem, ele prossegue, procura focar os
momentos de interrupção de papéis (Turner
1982c: 46).
Esta questão é retomada em “Th e Anthro-
pology of Performance”, onde Turner aponta
as diferenças entre a abordagem de Erving Go-
ff man e a sua.10 Ao passo que Goff man apre-
senta-se como um observador do teatro da vida
cotidiana, Turner se interessa particularmente
pelos momentos de suspensão de papéis, ou
seja, pelo meta-teatro da vida social.11
Em “Liminal to liminoid, in Play, Flow,
Ritual: An Essay in Comparative Symbology”,
Turner procura comparar sistemas simbólicos
de culturas que se desenvolveram antes e depois
9. Dois artigos de Turner discutem a polifonia dos sím-
bolos e o modo como eles surgem ou são elaborados
em meio aos dramas sociais (Turner 1974a: 98-155;
1974c: 60-97).
10. De Goff man, ver, especialmente, Th e Presentation of Self in Everyday Life (1959).
11. Turner diz: “se a vida cotidiana pode ser consideradea
como uma espécie de teatro, o drama social pode ser
visto como meta-teatro...” (Turner 1987b: 76; minha
tradução).
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
da revolução industrial (Turner 1982c:30). A
palavra liminoid, inventada por Turner, apre-
senta a terminação oid, derivada do grego eidos que designa “forma” e sinaliza “semelhança”.
Liminoid, portanto, é semelhante sem ser idên-
tico ao liminar.
As idéias sobre gêneros liminoides de ação
simbólica haviam sido anunciadas, embora não
elaboradas, no prefácio de Dramas, Fields and Metaphors: Symbolic Action in Human Society, in-
dicando a direção de suas pesquisas posteriores:
Eu gostaria de sugerir a idéia de que aquilo que
temos tratado como sendo os gêneros “sérios”
de ação simbólica – ritual, mito, tragédia, e
comédia (no seu “nascimento”) – estão pro-
fundamente implicados em visões repetitivas
do processo social, ao passo que os gêneros que
fl oresceram desde a Revolução Industrial (as ar-
tes e ciências modernas), embora menos sérios
aos olhos da população em geral (ciência pura,
entretenimento, interesses da elite), têm apre-
sentado um potencial maior para transformar
os modos como as pessoas se relacionam entre
elas e o conteúdo de suas relações. Sua infl uên-
cia tem sido mais insidiosa. Tendo-se em vista o
fato de se manifestarem em espaços exteriores às
arenas centrais da produção industrial, e de se
constituírem analogamente como “liminoides”
em relação aos processos e fenômenos limina-
res de sociedades tribais e agrárias, a sua própria
exterioridade as libera da atividade funcional
em relação ao pensamento e comportamento
dos membros da sociedade. Constituem para os
seus agentes e audiências uma atividade optativa
– a ausência de obrigações ou constrangimentos
advindos de normas externas lhes confere uma
qualidade prazerosa que favorece a sua absorção
nas consciências individuais. Desta forma, o pra-
zer transforma-se em assunto sério no contexto
de mudanças inovadoras (Turner 1974b:16; mi-
nha tradução).
Nas culturas pré-industriais, esferas de ati-
vidade ritual não se separam do trabalho: ritu-
al é trabalho. E trabalho não se desvincula da
vida lúdica da coletividade. Nessas sociedades,
particularmente, a brincadeira constitui um
dos componentes centrais dos processos de re-
vitalização de estruturas existentes. O espelho
mágico dos rituais propicia uma poderosa ex-
periência coletiva.
Sociedades industrializadas produzem o que
poderíamos chamar de um descentramento e
fragmentação da atividade de recriação de uni-
versos simbólicos. Esferas do trabalho ganham
autonomia. Como instância complementar ao
trabalho, surge a esfera do lazer – que não dei-
xa de se constituir como um setor do mercado.
Processos liminares de produção simbólica per-
dem poder na medida em que, simultaneamen-
te, geram e cedem espaço a múltiplos gêneros de
entretenimento. As formas de expressão simbó-
lica se dispersam, num movimento de diáspo-
ra, acompanhando a fragmentação das relações
sociais. O espelho mágico dos rituais se parte.
Em lugar de um espelhão mágico, poderíamos
dizer, surge uma multiplicidade de fragmentos
e estilhaços de espelhos, com efeitos caleidos-
cópicos, produzindo uma imensa variedade de
cambiantes, irrequietas e luminosas imagens.12
As diferenças e semelhanças sinalizadas por
Turner em sua análise exploratória dos fenô-
menos liminares e liminoides são resumidas a
seguir:
1) Fenômenos liminares tendem a predo-
minar em sociedades tribais ou agrárias, ca-
racterizando-se por princípios que Durkheim
chamou de “solidariedade mecânica”. Fenôme-
nos liminoides ganham destaque em socieda-
des de “solidariedade orgânica”, em meio aos
desdobramentos da Revolução Industrial.
12. Cf. nota 5, para uma referência do uso da metáfora
do “espelho mágico” em Turner. A metáfora do esti-
lhaçamento de um “espelhão mágico” é inferida de
suas discussões.
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
2) Fenômenos liminares tendem a emergir
de uma experiência coletiva, associando-se a
ritmos cíclicos, biológicos e sócio-estruturais,
ou com crises que ocorrem nesses processos.
Fenômenos liminoides geralmente apresen-
tam-se como produtos individuais, embora os
seus efeitos freqüentemente sejam coletivos ou
de “massa”.
3) Fenômenos liminares integram-se cen-
tralmente ao processo social total, constituindo
o pólo negativo, subjuntivo e anti-estrutural
de um todo que se constitui de modo dialé-
tico. Fenômenos liminoides desenvolvem-se às
margens dos processos centrais da economia
e política. Trata-se de manifestações plurais,
fragmentárias, e experimentais que ocorrem
nas interfaces e interstícios do conjunto de ins-
tituições centrais.
4) Fenômenos liminares tendem a apre-
sentar características semelhantes às que se
encontram nas discussões de Durkheim sobre
“representações coletivas”. Trata-se da produção
de símbolos que evocam signifi cados intelectu-
ais e emotivos comuns a todos os membros do
grupo. Embora se manifestem freqüentemen-
te como a antítese das representações coletivas
“profanas”, não deixam de compartilhar das
suas feições coletivas. Fenômenos liminoides
tendem a apresentar características mais idios-
sincráticas, associando-se a indivíduos e gru-
pos específi cos que freqüentemente competem
num mercado do lazer, ou de bens simbólicos.
Nesse caso, as dimensões “pessoais e psicológi-
cas” dos símbolos têm preponderância sobre as
dimensões “objetivas e sociais”.
5) Fenômenos liminares, mesmo quando
produzem efeitos de inversão, tendem a re-
vitalizar estruturas sociais e contribuir para o
bom funcionamento dos sistemas, reduzindo
ruídos e tensões. Fenômenos liminoides, por
outro lado, freqüentemente surgem como ma-
nifestações de crítica social que, em determina-
das condições, podem suscitar transformações
com desdobramentos revolucionários (Turner
1982c: 53-55).
III O drama de “Dewey, Dilthey, and Drama...”
Agora, passemos ao ensaio que serve como
pré-texto desta apresentação. Invocando o es-
pírito liminoide que, de acordo com Turner,
caracteriza boa parte da atividade intelectual
no mundo contemporâneo, como também a
“seriedade humana da brincadeira” (que talvez
a caracterize um pouco menos) – sou tentado,
como já falei no início desta apresentação, a
brincar com o modelo de drama social do au-
tor, aplicando-o ao próprio “Dewey, Dilthey,
and Drama: An Essay in the Anthropology
of Experience”. O artigo, de fato, apresenta
elementos de um drama, que podem ser pen-
sados em termos dos momentos de “ruptura”,
“crise e intensifi cação da crise”, “ação repara-
dora” e “desfecho”. No drama do artigo – e
aqui é preciso atenção – a própria metáfora
do drama social de Turner aparece como mo-
mento importante de “reparação” da crise,
junto às contribuições de Dilthey e Dewey. O
elemento de “ruptura” pode ser identifi cado
com a Revolução Industrial. E a “crise e in-
tensifi cação da crise” com as difi culdades en-
contradas para ressignifi car o mundo. Trata-se
de uma “crise de ação simbólica”. O indivíduo
carrega a responsabilidade de dar sentido ao
seu universo. Os gêneros expressivos foram
desmembrados e perderam poder no mundo
contemporâneo. Foram colocados às mar-
gens dos processos sociais centrais. As noções
de drama social e liminaridade (e suas fontes
de poder) são importantes para se buscar um
desfecho “feliz”. Este vem com uma discussão
sobre a experiência de communitas suscitada
pelo teatro!
Tomando os quatros momentos do “dra-
ma social” como elementos meta-narrativos
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
(codifi cados “a”, “b”, “c”, e “d”), as seqüências
do ensaio de Turner podem ser analisadas da
seguinte forma:
[C1] AÇÃO REPARADORA: DEWEY. Inicia-se com uma discussão de Dewey, autor
estratégico por sua ênfase na articulação das
tradições do passado ao presente (o tempo do
“agora”). Tradição não precisa (nem deve?) virar
sacrifício. Assim como a tradição, a expressão
artística não se desvincula do cotidiano. Trata-
se de uma “celebração da experiência cotidiana
(ordinary experience)”. Dewey aparece, no con-
texto do ensaio, como um dos atores centrais
que contribuem para uma “ação reparadora” da
“crise” de fundo, ainda a ser delineada. Porém,
Turner irá propor algumas reformulações em
relação à sua noção de experiência.
[C2] AÇÃO REPARADORA: DILTHEY. A primeira reformulação vem de Dilthey, que
propicia uma distinção fundamental entre
“mera experiência” e “uma experiência”. Aqui
se introduz a noção de erlebnis, experiência
vivida. A etimologia de experiência remete à
noção de “perigo”, etc. Os elementos do mode-
lo de experiência discutidos na introdução de
From Ritual to Th eatre aparecem, embora não
de modo esquemático. Dilthey surge como
uma poderosa fi gura ancestral, tal como as
que irrompem durante ritos de cura entre os
Ndembu.13
[B] CRISE E INTENSIFICAÇÃO DA CRISE: DIFICULDADE LIMINOIDE DE SIGNIFICAR O MUNDO. Surgem as pri-
13. Como já foi visto, Dilthey é uma fi gura recorrente
nos artigos de Turner. Na introdução de From Ritu-al to Th eatre: Th e Human Seriousness of Play, Turner
imagina a frase “O Professor Dilthey aprovaria” como
um selo fi nal de aprovação das tentativas de gerar-
se uma antropologia e um teatro da experiência (Cf.
Turner 1982b: 18).
meiras referências ao que se poderia ver, nos
termos do modelo de “drama social”, como “a
crise e intensifi cação da crise”. Turner discute
as difi culdades de se recriar universos sociais e
simbólicos no mundo contemporâneo, onde
indivíduos se vêem sozinhos e abandonados
diante da responsabilidade de darem sentido
às suas vidas. Trata-se de uma “crise de ação
simbólica”. Como essa discussão segue à apre-
sentação da noção de erlebnis, seria possível
perguntar se Turner não estaria se vendo diante
dos limites dessa idéia de experiência.
[C3] AÇÃO REPARADORA: A METÁ-FORA DO “DRAMA SOCIAL” DE TUR-NER. Turner parece sinalizar algo nessa direção:
a unidade de experiência de Dilthey privilegia
questões de cultura e psicologia. Talvez a men-
ção à psicologia seja crucial. Em “Liminal to
liminoid...” Turner observa que símbolos limi-
noides tendem a ser de natureza “pessoal e psi-
cológica” em vez de “objetiva e social”. Até que
ponto erlebnis se restringe à experiência vivida
do indivíduo? O artigo de Roger D. Abrahams,
que segue ao de Turner em Th e Anthropology of Experience, é bastante explícito nesse senti-
do (Abrahams 1986: 45-72). Abrahams suge-
re cautela nos usos da noção de “experiência”,
produzindo um distanciamento refl exivo em
relação ao entusiasmo demonstrado por ela ao
longo da história cultural dos Estados Unidos.
De qualquer forma, num movimento que re-
vela o caráter propositivo de seu ensaio, Turner
procura demonstrar a relevância de sua noção
de “drama social” para questões de “experiên-
cia”. Dramas sociais podem propiciar formas
de acesso a substratos do universo social e sim-
bólico. Ritos que surgem como expressões de
“ação reparadora” (terceiro momento do drama
social), assim como ritos que inauguram mo-
mentos de “ruptura” (primeiro), criam o “pal-
co” para que estruturas de experiência únicas
(erlebnis) possam ocorrer. Isso devido às fontes
170 | .
cadernos de campo • n. 13 • 2005
de poder (e perigo) que se associam ao límen.
Enfi m, a própria noção de “drama social”, em
conjunto com as idéias de Dilthey e Dewey,
apresenta-se, na organização do artigo, como
elemento crucial para a “reparação da crise”.
[A] RUPTURA: REVOLUÇÃO INDUS-TRIAL; e [B] CRISE E INTENSIFICAÇÃO DA CRISE: DIFICULDADE LIMINOIDE DE SIGNIFICAR O MUNDO. Turner ob-
serva: “os rápidos avanços na escala e comple-
xidade da sociedade, particularmente após a
industrialização, fi zeram passar essa confi gu-
ração liminar unifi cada pelo prisma da divisão
do trabalho (...) reduzindo cada um dos seus
domínios sensoriais a um conjunto de gêneros
de entretenimento que fl orescem no tempo de
lazer da sociedade, não mais no lugar central de
controle” (Turner 1986: 42). Sinaliza-se nesse
trecho, com a menção à industrialização, aquilo
que pode ser entendido como o primeiro mo-
mento do “drama social”: a “ruptura”. A seguir,
o autor evoca processos associados ao que pode-
mos interpretar como a “crise e intensifi cação da
crise”, referindo-se aos “gêneros especializados
amputados” que surgem do “desmembramen-
to” (sparagmos) das formas de ação simbólica.
Mas Turner também sugere perspectivas para
um desfecho “feliz”: em meio à fragmentação
dos gêneros, há sinais de uma busca para recu-
perar dimensões suprimidas da experiência do
“numinoso”, característica do “ritual arcaico”.
[C1] e [C3]. AÇÃO REPARADORA: DEWEY E DRAMA SOCIAL. A seguir, Tur-
ner retoma a discussão de Dewey – de que “a
forma estética do teatro é inerente à própria
vida sociocultural”. Mas, interpreta Dewey à
luz da noção de “drama social”. A natureza te-
rapêutica e refl exiva do teatro tem suas fontes
na liminaridade. Trata-se de uma unifi cação de
posições (as de Turner e Dewey, inicialmente
distintas) para a “ação reparadora”.
[D] DESFECHO: COMMUNITAS. En-
fi m, o desfecho. As idéias de Dewey, comple-
mentadas por investigações na neurobiologia,
contribuem para mostrar que o teatro e outros
gêneros de performance podem suscitar experi-
ências de communitas. “Um senso de harmonia
com o universo se evidencia e o planeta inteiro é
sentido como uma communitas” (Turner 1986:
43). Pouco antes de chegar a esse momento cli-
mático, Turner comenta que o ritual e as artes
performativas derivam do cerne (“coração”)
liminar do drama social – até mesmo, como
acontece freqüentemente em “culturas decli-
nantes”, em que “o signifi cado é de que não há
signifi cado”. Completou-se um percurso. Da
“celebração da experiência cotidiana (ordinary experience)” de Dewey chegou-se, em compa-
nhia do próprio Dewey, à experiência extraor-
dinária que interrompe o cotidiano, dando-lhe
sentido. E, sob a inspiração de Dilthey, o gran-
de espírito protetor ancestral, foi-se da “mera
experiência” a “uma experiência”.
Enfi m, esse exercício de interpretação da
meta-narrativa “dramática” do texto de Turner
sugere um forma:
Frase inicial Título Dewey, Dilthey, e drama C1 Ação reparadora DeweyC2 Ação reparadora DiltheyB Crise... Difi culdade liminoide...C3 Ação reparadora Drama (Turner)A Ruptura Revolução industrialB Crise... Difi culdade liminoideC1 e C3 Ação reparadora Dewey e drama (Turner)
D Desfecho Communitas(Dewey, Dilthey e drama)
Esta codifi cação poderá evocar “as partes de
uma peça musical – que são repetidas, variadas,
combinadas, e retomadas”.14 A analogia é pro-
pícia. Conforme o modelo de experiência de
14. Agradeço ao meu orientando, André-Kees de Moraes
Schouten, mestrando do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social da USP, por esta observação.
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
Dilthey, citado no início desta apresentação, a
descoberta e construção do signifi cado tornam-
se possíveis na medida em que o passado arti-
cula-se ao presente numa “relação musical”. Na
frase inicial do título irrompem três imagens
do passado: Dewey, Dilthey, e... o jovem Tur-
ner (que elaborou o modelo do drama social).
Estas, poderíamos sugerir, articulam-se a um
presente que é vivido como uma “crise”: a di-
fi culdade liminoide de ressignifi car o mundo.15
No caso de Dewey e Dilthey, particularmente,
trata-se de vozes “ancestrais” oriundas de subs-
tratos mais próximos aos de onde ocorrem os
abalos originários da “ruptura”, a Revolução
Industrial. No desfecho, ressoam novamente
Dewey, Dilthey e drama – agora em voz unís-
sona. Até mesmo alguns ruídos evocativos da
“crise” retornam neste fi nal. Vamos a eles.
IV Ruídos
Um “fi nal feliz”: podemos ter experiências
de communitas no teatro. Porém, o desfecho
do artigo – como revela a frase de Turner sobre
“culturas declinantes” – não elimina os ruídos.
Seria surpreendente para o próprio Turner, par-
ticularmente, se os eliminasse: desfechos harmo-
nizantes (ou até unissonantes) tendem a oferecer
apenas soluções parciais e provisórias. Mesmo
sem recorrer a Bertolt Brecht, Antonin Artaud,
Nelson Rodrigues, José Celso Martinez Corrêa
ou outras expressões do teatro contemporâneo,
há no próprio texto de Turner – imagino no seu
límen, em meio a inúmeras “sugestões de como
continuar a história” – razões para estranhar-se o
desfecho. Se há nos escritos de Turner uma espé-
cie de nostalgia por experiências de communitas,
15. Observa-se que o ensaio foi publicado, como vimos
anteriormente, no mesmo ano em que ganha força,
no campo da antropologia, a percepção de uma “crise
das representações” – através da publicação de dois
dos textos mais conhecidos da antropologia “pós-mo-
derna”. Cf. nota no. 2.
também lá se encontram bons indícios de caute-
la em relação às suas manifestações. Ressalta-se
nesse autor, além da busca por communitas, a
sua atenção aos ruídos. Um lembrete: aquilo que
interessa a Turner é o que ele chama de “com-
munitas espontânea”, e não as manifestações su-
perfi ciais, discutidas no capítulo quatro de Th e Ritual Process, como “communitas ideológica” e
“communitas normativa” (Turner 1969a: 131-
165).
Hoje temos acesso a experiências liminoides,
cujas origens remetem às dimensões do liminar,
diz Turner. Até que ponto é possível num mun-
do pós-revolução industrial o acesso direto a ex-
periências liminares não está claro. No fi nal de
“Liminal to liminoid...” Turner parece buscar
na noção de fl ow (fl uxo) de Csikszentmihalyi
– noção que se refere ao envolvimento total da
pessoa naquilo que ela faz – algo parecido com a
communitas (Csikszentmihalyi 1990). O desfe-
cho daquele artigo – em contraste com “Dewey,
Dilthey and drama...” – é anti-climático: com-
munitas é algo que se manifesta entre indivídu-
os, enquanto fl ow acontece no indivíduo. Flow
pertence ao domínio da estrutura.
Duas questões se oferecem:
1. A nostalgia de Turner pela experiência
liminar que os rituais em sociedades de soli-
dariedade mecânica podem proporcionar teria
a ver com uma percepção aguda, embora não
explicitada, dos limites da noção de erlebnis, experiência vivida? Creio que a tentativa de ar-
ticular a noção de dramas sociais à discussão
sobre erlebnis sugere que sim.
2. Rondando esse ensaio – no seu límen,
quem sabe – não haveria outra categoria de
experiência discutida por Dilthey – erfahrung?
Não seria esta categoria mais apropriada do
que a de erlebnis para iluminar a nostalgia de
Turner por uma experiência coletiva, vivida em
comum, passada de geração em geração, e ca-
paz de recriar um universo social e simbólico
pleno de signifi cado?
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
V Benjaminianas
As afi nidades entre as visões de Victor Tur-
ner a respeito de fenômenos e processos limina-
res, e a de Benjamin sobre erfahrung chamam
atenção. Ambas evocam a idéia de passagem.
“Lembremos aqui”, diz Gagnebin, “que a pa-
lavra Erfahrung vem do radical fahr – usado
ainda no antigo alemão no seu sentido literal
de percorrer, de atravessar uma região durante
uma viagem” (Gagnebin 1994: 66).
Experiência, no sentido de erfahrung, for-
ma-se através da associação de dois saberes: da
pessoa que vem de longe, vista como quem
tem muito que contar; e da pessoa que passou
a vida “sem sair do seu país e que conhece suas
histórias e tradições”. Benjamin escreve:
Se quisermos concretizar esses dois grupos
através dos seus representantes arcaicos, po-
demos dizer que um é exemplifi cado pelo
camponês sedentário, e outro pelo marinhei-
ro comerciante. (...) A extensão real do reino
narrativo, em todo o seu alcance histórico, só
pode ser compreendido se levarmos em conta
a interpenetração desses dois tipos arcaicos. O
sistema corporativo medieval contribuiu espe-
cialmente para essa interpenetração. O mestre
sedentário e os aprendizes migrantes traba-
lhavam juntos na mesma ofi cina; cada mestre
tinha sido um aprendiz ambulante antes de
se fi xar em sua pátria ou no estrangeiro. (...)
No sistema corporativo associava-se o saber
das terras distantes, trazidos para casa pelos
migrantes, com o saber do passado, recolhido
pelo trabalhador sedentário (Benjamin 1985b:
198-199).
A interpenetração desses dois saberes – tal
como acontece nos ritos de passagem – requer
a transformação do estranho em familiar, e, ao
mesmo tempo, um movimento inverso capaz
de provocar, em relação ao familiar, um efei-
to de estranhamento. No relato benjaminiano,
tanto a fi gura do sedentário como a do estran-
geiro produzem estranhamento: uma, no caso
do estrangeiro, suscitando distância espacial, e
outra, no caso do sedentário, distância tempo-
ral. Através do saber recolhido pelo sedentário,
o passado faz estremecer o presente.
Um detalhe chama atenção: a relação entre
o mestre sedentário e os aprendizes migrantes
se constitui numa ofi cina de trabalho. Num
ambiente como esse, ao mesmo tempo em que
elementos extraordinários iluminam o cotidia-
no, este não deixa de provocar os seus próprios
efeitos de interrupção – sobre as teias do ex-
traordinário. Esse detalhe, parece-me, pode ser
signifi cativo, iluminando algumas das margens
do pensamento de Turner.
Mas, antes de lidar com essas ou outras
margens, deve-se ressaltar uma segunda afi -
nidade entre as visões dos dois autores: a dis-
cussão de Turner sobre o enfraquecimento
da experiência de liminaridade no mundo
contemporâneo ressoa nas análises benjami-
nianas sobre o declínio da grande tradição
narrativa, e debilitação de uma experiência
coletiva, comunicável, e tecida na passagem
das gerações (erfahrung). Sabedoria, diz Ben-
jamin, se expressa num conselho a respeito de
como continuar uma história. Na medida em
que as pessoas já não passam pelas mesmas
experiências, ou, se passando, não conseguem
articular o presente ao que foi transmitido de
geração em geração – como no caso dos sol-
dados que voltavam mudos da guerra –, a ca-
pacidade de dar conselhos entra em declínio.
Resta-lhes a sua experiência vivida, erlebnis – e, diante da fragmentação da experiência
coletiva, a perplexidade em relação ao sentido
de suas vidas.
Há, ainda, uma terceira afi nidade. Ao depa-
rar-se com as novas formas narrativas do cine-
ma, da fotografi a, etc., Benjamin encontra, em
sua dimensão mais profunda, algo que evoca
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
a grande tradição narrativa: o seu “não-acaba-
mento essencial” (Gagnebin 1985:12). Trata-
se da abertura dessa tradição para as múltiplas
e espantosas possibilidades interpretativas.
Como exemplo de narrativa tradicional, Ben-
jamin apresenta a história de Psammenites,
contada por Heródoto. E diz:
Heródoto não explica nada. Seu relato é dos
mais secos. Por isso essa história do antigo
Egito ainda é capaz, depois de milênios, de
suscitar espanto e refl exão. Ela se assemelha
a essas sementes de trigo que durante milha-
res de anos fi caram fechadas hermeticamente
nas câmaras das pirâmides e que conservam
até hoje suas forças germinativas (Benjamin
1985b: 204).
De modo semelhante, nos substratos mais
fundos do entretenimento e dos novos gêneros
de ação simbólica, Turner descobre as fontes do
poder liminar. As formas expressivas que ger-
minaram após a Revolução Industrial também
propiciam manifestações do caos criativo, ca-
pazes de surpreender, com efeitos de estranha-
mento, as confi gurações do real, energizando
e dando movência aos elementos do universo
social e simbólico. Embora estejam às margens
de processos centrais de reprodução da vida
social, estas expressões liminoides apresentam
um potencial ainda maior do que as formas ar-
caicas para promover a transformação das rela-
ções humanas.
VI. Margens das margens
Antes de abandonar esta apresentação, ar-
risco algumas questões:
1. O que dizer do ruído – a frase sobre “cul-
turas declinantes” em que “o signifi cado é de
que não há signifi cado” – provocado por Tur-
ner no momento em que o seu ensaio chega a
um “fi nal feliz”? Ressalta-se que o ruído ime-
diatamente precede algumas de suas afi rma-
ções mais entusiasmadas sobre communitas.16
Como interpretá-lo? Haveria aqui uma hesita-
ção, e, quem sabe, um indício da cautela de
Turner diante de manifestações de communi-
tas, particularmente em meio à fragmentação
das relações sociais e ao estilhaçamento do es-
pelho mágico do ritual?17
2. Considerando-se que a experiência de
communitas tende a irromper às margens da
sociedade, o ruído produzido no texto de Tur-
ner seria proveniente de um duplo desloca-
mento – às margens das margens?18
16. “Um senso de harmonia com o universo se evidencia
e o planeta inteiro é sentido como uma communitas”
(Turner 1986: 43).
17. Tendo-se em vista o movimento de expansão do uni-
verso liminoide e seus efeitos de descentramento nas
esferas de ação simbólica – evocativos, quem sabe, de
uma espécie de revolução copernicana sob a égide do
mercado –, haveria nas expressões de nostalgia por
liminaridade e communitas uma reação centrípeta,
ou, ainda, uma tentação ptolomaica? Até que ponto
a nostalgia pelo liminar manifesta processos de for-
mação, num mercado do lazer, de centros de poder
simbólico para controle e uso do “caos criativo” que
se associa aos gêneros liminoides de expressão?
Em meio ao estilhaçamento, ressalta-se a perplexida-
de dos indivíduos. Mas, haveria como reviver as con-
dições do teatro antigo? O que implicaria “transferir
o peso da responsabilidade de atribuição de signifi -
cado do indivíduo para o grupo” (Turner 1986: 37)?
Como reconstituir a coesão do universo simbólico em
meio à proliferação das possibilidades interpretativas?
E, nessas circunstâncias, como reviver experiências de
communitas – sem que elas virem experiências coleti-
vas em que “o signifi cado é a falta de signifi cado”? En-
fi m, uma questão de fundo: a constituição de centros
gravitacionais num universo liminoide, e seus efeitos
de atração sobre as margens.
18. O que irrompe às margens das margens? Turner
compara uma experiência, no sentido que lhe é dado
por Dilthey, a “uma pedra num jardim de areia Zen”
(Turner 1986: 35). Quando pedras viram areia na ór-
bita de uma reação centrípeta – em meio ao possível
ofuscamento da visão – talvez seja preciso um duplo
deslocamento do lugar olhado das coisas. Isso, para
174 | .
cadernos de campo • n. 13 • 2005
3. Se a experiência liminar caracteriza-se
pelo efeito de estranhamento que se produz
em relação ao cotidiano, este ruído pode sina-
lizar um estranhamento às avessas, provocado
em relação ao extraordinário?19 Isso, a partir
de um cotidiano estranhado? Não haveria aqui
uma afi nidade com ruídos produzidos em de-
terminadas ofi cinas de trabalho, tais como as
dos mestres sedentários e aprendizes migrantes
discutidas por Benjamin, conforme vimos an-
teriormente?
4. Nas ofi cinas medievais, Benjamin se de-
para com a abertura da grande tradição narrati-
va para as múltiplas e espantosas possibilidades
interpretativas. Se o modelo de drama social de
Victor Turner, assim como o modelo de ritos
de passagem de Van Gennep, nos leva a pen-
sar em termos de uma oposição dialética entre
dois momentos, o cotidiano e o extraordinário,
o caso dessas ofi cinas não apresentaria um de-
safi o metodológico, levando-nos a falar de um
cotidiano extraordinário ou extraordinário co-
tidiano, que se confi gura num quase susto ou
espanto diário? E de um espanto que se aloja
numa tradição? Walter Benjamin escreve: “A
tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado
de exceção’ é a regra” (Benjamin 1985c: 226).
Ao tentar distinguir a sua abordagem da de
Erving Goff man, Turner evoca, como vimos,
uma distinção entre teatro e meta-teatro. Ao
passo que Goff man toma interesse pelo teatro
da vida cotidiana, Turner procura focar os mo-
mentos de interrupção, os instantes extraor-
dinários, ou seja, o teatro desse teatro. Turner
descobrir elementos que se distinguem ou escapam
inclusive da periferia carnavalizante do movimento
ordenador – e para que o extraordinário não vire
mera experiência.
19. Às margens das margens, abrem-se perspectivas num
universo liminoide para que se possa detectar os efei-
tos de estranhamento que se produzem em relação
não apenas ao cotidiano, mas ao extraordinário tam-
bém.
observa o meta-teatro da vida social.20 Mas, as
ofi cinas descritas por Benjamin podem suge-
rir a necessidade de se juntar Goff man e Tur-
ner para tratar de um meta-teatro cotidiano.
Afi nal, espelhos mágicos também têm as suas
ofi cinas. E viram estilhaços. Nas irrupções do
extraordinário também se encontra a experiên-
cia do ordinário.
Enfi m, de Dewey a Turner e de volta.
E uma pergunta de rodapé (virando texto):
seriam determinadas manifestações liminoi-
des – com destaque aos ruídos que ocorrem às
“margens das margens” dos processos centrais
– mais fi éis, “em sua dimensão mais profun-
da”, ao legado da experiência liminar do que
certas tentativas de reviver uma experiência de
communitas em meio ao esfacelamento das re-
lações?21 Num mundo como esse, onde a ex-
periência da fragmentação torna-se cotidiana,
os efeitos de estranhamento e a percepção do
inacabamento das coisas ganham densidade.
Passagens
Depois de haver brincado com “Dewey, Dilthey, and Drama...”, sou tentado também a
brincar com esta apresentação – que está pres-
tes a desmanchar. Nesse caso, porém, intriga-
me ver como ela ilumina uma espécie de “rito
20. Cf. nota 11.
21. Estou parafraseando a frase de Jeanne Marie Gagne-
bin, que, numa análise do ensaio benjaminiano sobre
“a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”,
escreve: “Essas tendências ‘progressistas’ da arte mo-
derna, que reconstroem um universo incerto a partir
de uma tradição esfacelada, são, em sua dimensão
mais profunda, mais fi éis ao legado da grande tradi-
ção narrativa que as tentativas previamente conde-
nadas de recriar o calor de uma experiência coletiva
(‘Erfahrung’) a partir das experiências vividas isoladas
(‘Erlebnisse’)”. Ela completa: “Essa dimensão, que
me parece fundamental na obra de Benjamin, é a
da abertura” (Gagnebin 1985: 12; Benjamin 1985a:
165-196).
|
cadernos de campo • n. 13 • 2005
de passagem” – aquém do drama. Tomando os
três momentos dos “ritos de passagem” como
elementos meta-narrativos (codifi cados “a”,
“b”, e “c”), as seqüências da apresentação po-
dem ser analisadas da seguinte forma:
[A] RITOS DE SEPARAÇÃO. PREPA-RANDO O LEITOR PARA O CONTATO COM UMA TRADUÇÃO. Após uma breve in-
trodução, cujo intuito é de preparar o leitor para
uma passagem, inicia-se num lugar relativamen-
te familiar: os escritos de Victor Turner a respeito
de ritos e dramas sociais. Aos poucos, como num
“rito de separação”, adentra-se em territórios me-
nos conhecidos, apresentando ao leitor alguns
dos estudos de Turner sobre a Antropologia da
Performance e Antropologia da Experiência – lu-
gar perigoso onde se localiza boa parte da obra
não traduzida de Turner. Assim se prepara o lei-
tor para o contato com uma tradução.
[B1] RITOS DE TRANSIÇÃO. BRIN-CANDO COM UMA META-NARRATIVA DO TEXTO TRADUZIDO. A seguir, como
quem se encontra num “rito de transição”, brin-
ca-se com o estranho, nele suscitando – um efei-
to de estranhamento. A brincadeira consiste em
explorar o límen do texto traduzido de Turner. O
próprio Turner (nosso “espírito ancestral”) apre-
senta-se como um guia confi ável, mostrando-nos
como voltar ao lugar familiar de onde havíamos
saído: os seus escritos sobre ritos e dramas sociais,
e experiências de liminaridade e communitas.
[B2] RITOS DE TRANSIÇÃO. BRIN-CANDO ÀS MARGENS DAS MARGENS. Porém, não voltamos ao lugar familiar. A ex-
periência de liminaridade ganha densidade.
Não apenas permanecemos em meio às discus-
sões do texto de Turner sobre a Antropologia
da Experiência, mas, na companhia de Wal-
ter Benjamin (pessoa relativamente estranha
à antropologia), exploramos os seus ruídos e
margens.22 Quer dizer, vamos às margens das
margens. Uma ressalva: esta lição aprendemos
com o próprio Turner. O límen pode ser um
lugar privilegiado para se observar um fenôme-
no, tal como um texto.
Enfi m, esta apresentação revela características
de um “rito de passagem”. Falta-lhe, porém, o
“rito de reagregação” [C]. Trata-se de uma pas-
sagem para um estado – de passagem. No fi nal,
multiplicam-se as manifestações de um gênero de
discurso característico de “ritos de transição”: as
perguntas sem respostas – boas para fazer pensar.
Traduções, como a que vem a seguir, são
passagens. Requerem a transformação do es-
tranho em familiar ao mesmo tempo em que
provocam no familiar um efeito de estranha-
mento. Desenvolvem-se no límen. Este termo,
como Turner gostava de lembrar, vem do latim
antigo, que evoca o lugar de “surrar” e “debu-
lhar”. A idéia de extrair grãos ou sementes é su-
gestiva. No límen se encontram sementes que
conservam as suas forças germinativas – tais
como as dos relatos de Heródoto.
A imagem de uma ofi cina, que vimos discu-
tindo nesta apresentação, também é interessan-
te. Na ofi cina do tradutor interpenetram-se dois
saberes, e duas línguas – uma que vem de longe,
e outra supostamente sedentária. Ambas brin-
cam com o perigo. Na entrada da ofi cina vem
escrito: “tentar, aventurar-se, correr riscos”.
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De todos os estudos e ciências humanas, a
antropologia é a que está mais profundamen-
te enraizada na experiência social e subjeti-
va do investigador. Nela, toda avaliação tem
como referência o sujeito, toda observação
é fi nalmente apreendida “na batida do pul-
so”. Evidentemente, muitas coisas podem ser
mensuradas, consideradas, contadas e subme-
tidas à análise estatística. Porém, todos os atos
humanos estão impregnados de signifi cado, e
signifi cado é difícil de ser mensurado, embora
possa ser compreendido, mesmo que apenas
de modo fugaz e ambíguo. O signifi cado sur-
ge quando tentamos associar o que a cultura e
a língua cristalizaram a partir do passado com
o que sentimos, desejamos e pensamos em re-
lação ao instante presente da vida. Em outras
palavras, retomamos as conclusões que nossos
ancestrais estabeleceram como modos culturais
Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em Antropologia da Experiência (primeira parte), de Victor Turner*
* TURNER, Victor. 1986. “Dewey, Dilthey, and Dra-
ma: An Essay in the Anthropology of Experience” In
Turner, Victor W. & Bruner, Edward M. (eds.) Th e Anthropology of Experience. Urbana and Chicago,
University of Illinois Press, pp. 33-44.
** Agradeço a Evelise Paulis, a André-Kees de Moraes
Schouten e a Danilo Paiva Ramos pela colaboração
na tradução.
HERBERT RODRIGUES
Mestrando em Antropologia Social pelo PPGAS/
FFLCH-USP e membro do Núcleo de Antropo-
logia da Performance e do Drama (NAPEDRA/
USP).**
JOHN C. DAWSEY
Professor Livre-Docente do Departamento de
Antropologia da FFLCH-USP e coordenador
do Núcleo de Antropologia da Performance e
do Drama (NAPEDRA/USP).
que classifi camos hoje, dentro da tradição oci-
dental, como “religiosos”, “morais”, “políticos”,
“estéticos”, “proverbiais”, “aforísticos”, de “sen-
so comum” etc., para ver como e em que medi-
da essas conclusões iluminam ou se relacionam
com as nossas questões, difi culdades, proble-
mas, ou alegrias individuais do presente. Cada
movimento de fricção entre as madeiras duras
e brandas da tradição e do presente é poten-
cialmente dramático. Em caso de venerarmos
ditos ancestrais, talvez seja preciso – conclui-
mos com pesar – desfazer-nos das alegrias do
presente ou abandonar a exploração sensível do
que percebemos como desenvolvimentos sem
precedentes do entendimento humano mútuo
e das formas relacionais.
Conseqüentemente, teremos o auto-sacrifí-
cio por um ideal, se tivermos fé na autoridade
de uma cultura herdada do passado. Mas se a
tragédia aprova essa postura, os novos cami-
nhos de orientação para a modernidade podem
rejeitar o resultado do auto-sacrifício e sugerir
alternativas que podem parecer problemáticas,
pelo menos para um público geral ainda não
saído do confortável berço da tradição. Uma
experiência desse tipo é da própria natureza do
drama – tanto do drama social, onde os confl i-
cadernos de campo n. 13: 177-185, 2005
178 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
tos são trabalhados na ação social, quanto do
drama de palco, onde eles se espelham numa
multiplicidade de enredos hipotéticos, símbo-
los, e enquadramentos estéticos experimentais.
Entretanto, é possível que não haja nenhum
confronto absoluto entre o passado e o presen-
te, o passado coletivo e o presente pessoal e exis-
tencial. Todo antropólogo sabe que qualquer
campo sociocultural coerente contém muitos
princípios contraditórios, todos consagrados
pela tradição. No teatro japonês, por exemplo,
as versões Bunraku e Kabuki de Chushingura,
a famosa fábula dos quarenta e nove Rōnin,
mostram a tensão entre duas lealdades igual-
mente axiomáticas, mas confl itantes – uma
para com o senhor feudal e outra para com a
ordem imperial. A obediência a ambos poderia
signifi car a morte aos detentores da vingança.
A subordinação da lealdade feudal à lei do es-
tado poderia ter sido uma perda humilhante
de identidade social formada sob os princípios
samurai de honra e de vergonha. Mas, algo
subversivo e oculto ocorre no drama de palco.
A burocracia Tokugawa, com sua extensa des-
personalização das relações, está sendo silen-
ciosamente respondida por gestos marcantes e
complexos do teatro que reafi rmam as paixões
contra as legalizações – aquelas grandes paixões
que Samuel Coleridge, referindo-se aos heróis
trágicos shakespearianos, declarou serem “ateus
que acreditavam em nenhum futuro”. No en-
tanto, as paixões estão sob controle e chegam a
uma honrosa consumação através de um ema-
ranhado de meios tortuosos – e de modos que
poderiam ter chocado Aldous Huxley, com seu
dito de que “maus meios não produzem bons
fi ns”. Isso, se ele não fosse um homem com ca-
pacidade para a ironia e consciente das ambi-
güidades éticas.
Passemos agora para a visão de John Dewey
sobre a experiência, da qual parcialmente com-
partilho, mas que – devo parcialmente con-
cluir – precisa ser superada em relação a um
importante aspecto. Dewey (1934) sustentou
que as obras de arte, incluindo obras teatrais,
são “celebrações, reconhecidas como tais, da
experiência cotidiana” (ordinary experience). Ele estava, evidentemente, rejeitando a tendên-
cia nas sociedades capitalistas de colocar a arte
num pedestal, separada da vida humana, mas
comercialmente valiosa dentro de normas es-
tabelecidas por especialistas esotéricos. Dewey
disse: “Até mesmo uma experiência simples, se
for uma experiência autêntica, é mais adequada
para dar uma pista à natureza intrínseca da ex-
periência estética do que um objeto já colocado
à parte de qualquer outro modo de experiên-
cia” (citado em McDermott 1981: 526). Tudo
isso e mais a esse respeito encontra-se no seu
grande livro Art as Experience, publicado quan-
do Dewey tinha setenta e cinco anos de idade.
Em meu livro From Ritual to Th eatre (1982:
17-18), ensaiei uma etimologia da palavra in-
glesa “experiência”, derivando-a da base indo-
européia *per-, “tentar, aventurar-se, arriscar”
– podemos ver como seu duplo, “drama”, do
grego dran, “fazer”, espelha culturalmente o
“perigo” etimologicamente implicado na pala-
vra “experiência”. O cognato germânico de per relaciona experiência com “passagem”, “medo”
e “transporte”, porque p torna-se f na Lei de
Grimm. O grego peraō relaciona experiência a
“passar através”, com implicações em ritos de
passagem. Em grego e latim, experiência asso-
cia-se a perigo, pirata e ex-per-imento.
Há aqui uma dicotomia que Wilhelm Dil-
they (1979 [1914]: 210) imediatamente cap-
tou na sua distinção entre mera “experiência” e
“uma experiência”. A mera experiência é, sim-
plesmente, a passiva resignação e aceitação dos
eventos. “Uma experiência”, como uma pedra
num jardim de areia Zen, destaca-se da uni-
formidade da passagem das horas e dos anos e
forma aquilo que Dilthey chamou de uma “es-
trutura da experiência”. Em outras palavras, ela
não tem um início ou um fi m arbitrários, recor-
, : |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
tados do fl uxo da temporalidade cronológica,
mas tem o que Dewey chamou de “uma ini-
ciação e uma consumação”. Ao longo da vida,
cada um de nós já teve certas “experiências”
que foram formativas e transformativas, isto é,
seqüências distinguíveis de eventos externos e
de reações internas a eles tais como iniciações
em novos modos de vida (o primeiro dia na es-
cola, o primeiro emprego, entrada no exército,
cerimônia de casamento), aventuras amorosas,
o envolvimento naquilo que Emile Durkheim
chamou de “efervescência social” (uma campa-
nha política, uma declaração de guerra, uma
causa célèbre tais como o caso Dreyfus, o Water-
gate, a crise dos reféns iranianos ou a Revolução
Russa). Algumas dessas experiências formativas
são altamente pessoais, outras são partilhadas
com grupos aos quais pertencemos por nasci-
mento ou escolha. Dilthey via tais experiências
como tendo uma estrutura temporal ou proces-
sual – elas são “processadas” através de estágios
distinguíveis. Além disso, elas envolveram em
suas estruturações, a cada momento e fase, não
simplesmente uma estruturação do pensamen-to, mas a totalidade do repertório vital humano
que inclui pensamento, vontade, desejo e sen-
timento, sutil e variavelmente interpenetrante
em muitos níveis. Uma navalha cognitiva de
Occam, reduzindo tudo a abstrações frias e
“sem sangue” (isso se pudermos visualizar uma
navalha nesses termos), simplesmente não faria
nenhum sentido humano nesse caso.
Essas experiências que interrompem o com-
portamento rotinizado e repetitivo – do qual
elas irrompem –, iniciam-se com choques de
dor ou prazer. Tais choques são evocativos:
eles invocam precedentes e semelhanças de um
passado consciente ou inconsciente – porque
o incomum tem suas tradições, assim como
o comum. Então, as emoções de experiências
passadas dão cor às imagens e esboços revividos
pelo choque no presente. Em seguida ocorre
uma necessidade ansiosa de encontrar signifi -
cado naquilo que se apresentou de modo des-
concertante, seja através da dor ou do prazer, e
que converteu a mera experiência em uma ex-
periência. Tudo isso acontece quando tentamos
juntar passado e presente.
É estruturalmente irrelevante se o passado
é “real” ou “mítico”, “moral” ou “amoral”. A
questão é se diretrizes signifi cativas emergem
do encontro existencial na subjetividade, da-
quilo que derivamos de estruturas ou unida-
des de experiência prévias numa relação vital
com a nova experiência. Isso é uma questão
de signifi cado, não meramente de valor, como
Dilthey entendia esses termos. Para ele, o va-
lor pertencia essencialmente a uma experiência
num presente consciente, em seu prazer afe-
tivo ou no fracasso deste. Mas os valores não
estão signifi cativamente conectados, eles nos
bombardeiam como amontoados aleatórios de
discórdias e harmonias. Cada valor nos ocupa
totalmente enquanto prevalece. No entanto,
para Dilthey, os valores não têm “uma relação
musical um com o outro”. É somente quando
relacionamos a preocupante experiência atual
com os resultados cumulativos de experiências
passadas – se não semelhantes, pelo menos re-
levantes e de potência correspondente – que
emerge o tipo de estrutura relacional chamada
“signifi cado”.
Aqui, o cognitivo se auto-afi rma heroica-
mente, pois na maioria das experiências, a emo-
ção e o desejo têm preeminência no início, em
pulsos que repudiam todo o passado. Quando
uma guerra é declarada; quando encontramos o
mais desejável amor; quando fugimos do perigo
físico; ou recusamos nos submeter a uma tare-
fa necessária, mas desagradável –, estamos sob
o poder do valor. É a heróica combinação de
vontade e de pensamento que se opõe ao valor
por meio do poder integrativo do signifi cado
relacional. Talvez o valor poderá se transformar
em signifi cado, mas terá de ser, primeiramente,
peneirado de maneira responsável. Na maioria
180 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
das sociedades pré-industriais, essa busca árdua
pelo signifi cado foi poderosamente reforçada
pelos valores culturais coletivos que ofereciam
às nossas faculdades cognitivas algum suporte
ancestral, o peso de um passado, senão ético,
pelo menos legitimado consensualmente. Nos
dias de hoje, infelizmente, a cultura insiste que
devemos assumir o fardo pós-renascentista de
elaborar cada signifi cado por nós mesmos, um
de cada vez, sem ajuda dos outros, a menos que
escolhamos um sistema tecido por outro indi-
víduo cuja legitimidade coletiva não é maior
que a nossa. Essa é, possivelmente, uma dife-
rença importante entre o teatro de hoje e os
primeiros tipos de teatro, na medida em que
o teatro se oferece como espelho cultural do
processo de busca de signifi cado num nível
público e generalizado. As primeiras formas de
teatro transferiram o peso da responsabilidade
de atribuição de signifi cado do indivíduo para
o grupo, embora o sofrimento trágico então te-
nha resultado do terror físico do indivíduo, ou
pelo menos da relutância extrema face ao dever
social cujo cumprimento poderia signifi car tor-
mento físico ou mental e até a morte.
Na visão de Dilthey, a experiência incita a
expressão, ou a comunicação, com os outros.
Somos seres sociais e queremos dizer o que
aprendemos com a experiência. As artes depen-
dem desse ímpeto para confessar e declamar.
Os signifi cados obtidos às duras penas devem
ser ditos, pintados, dançados, dramatizados,
enfi m, colocados em circulação. Aqui o ímpe-
to do pavão para exibir-se não se distingue da
necessidade ritualizada de se comunicar. O eu
e o não-eu, o ego e o não-ego, a auto-afi rmação
e o altruísmo, encontram-se e se fundem em
comunicações signifi cativas.
Subjacente a todas as artes, Dewey viu uma
conexão intrínseca entre a experiência, seja
ela natural ou social, e a forma estética. Ele
escreveu: “há na natureza, mesmo que abaixo
do nível da vida, algo além do mero fl uxo e
da mudança. A forma se apresenta sempre que
um equilíbrio estável, embora em movimento,
seja alcançado” (citado em McDermott 1981:
536). Ele argumenta que, mesmo no nível pré-
humano biológico, a vida de qualquer organis-
mo é enriquecida pelo estado de disparidade
e resistência por qual passou com sucesso. A
oposição e o confl ito são superados e, de fato,
transformados “em aspectos diferenciados de
uma vida potencializada e mais signifi cativa”.
Entre os humanos, o
ritmo da perda de integração com o meio am-
biente e a recuperação da união, não apenas
persiste, mas torna-se consciente com ele; suas
condições são materiais a partir das quais ele ela-
bora propósitos. A emoção é o sinal consciente
de uma ruptura, atual ou iminente. O desejo de
restauração da união converte a mera emoção
em interesse por objetos como condição de re-
alizar a harmonia. Com a realização, o material
de refl exão é incorporado aos objetos como o
seu signifi cado. Considerando-se que o artista
tem um cuidado peculiar com a fase de experi-
ência em que a união é alcançada, ele não evita
os momentos de resistência e de tensão. Ele an-
tes os cultiva, não por razões intrínsecas, mas
por causa de suas potencialidades, trazendo para
a consciência viva uma experiência que é total e
una. Em contraste com a pessoa cujo propósito
é estético, o cientista está interessado em proble-
mas, em situações em que a tensão entre a maté-
ria da observação e do pensamento é marcante.
Claro, ele se interessa por sua resolução. Mas
não se acomoda; passa para um outro proble-
ma fazendo uso de uma solução anteriormente
obtida como quem busca um ponto de partida
para novas investigações….
A diferença entre o esteta e o intelectual é,
portanto, um dos lugares onde a ênfase recai
no ritmo constante que marca a interação das
criaturas vivas com o seu ambiente. A questão
fundamental de ambas as ênfases na experiência
, : |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
é a mesma, como é também a sua forma geral.
A idéia esquisita de que um artista não pensa e
de que um cientista não faz outra coisa senão
pensar é o resultado da conversão de uma dife-
rença de andamento e de ênfase numa diferença
de tipo. O pensador tem seu momento estético
quando suas idéias deixam de ser meras idéias e
transformam-se em signifi cados corporifi cados,
em objetos. O artista tem seus problemas e pensa
enquanto trabalha. Mas seu pensamento é mais
imediatamente incorporado no objeto. Por con-
ta do distanciamento comparativo de seu fi m, o
cientista opera com símbolos, palavras e signos
matemáticos. O artista realiza seu pensamento
nos próprios meios qualitativos com quais ele
trabalha, e os termos situam-se tão próximos ao
objeto que ele está produzindo que se fundem
diretamente neste.…
Considerando-se que o mundo real, o mundo
onde vivemos, é uma combinação de movi-
mento e culminação, de rupturas e reuniões, a
experiência de uma criatura viva é capaz de ter uma qualidade estética. O ser vivo perde e re-es-
tabelece, de modo recorrente, o equilíbrio com
o ambiente. O momento de passagem do distúrbio para a harmonia é o mais intenso na vida. Num
mundo acabado, não seria possível distinguir
entre o sono e a vigília. Num mundo totalmen-
te perturbado, não seria possível sequer lutar
com as condições. Num mundo feito de acor-
do com os padrões daquele que conhecemos, os
momentos de realização pontuam a experiência
em intervalos rítmicos (citado em McDermott
1981: 536-537, grifos meus).
A estética, então, refere-se àquelas fases que,
numa dada estrutura ou unidade processual de
experiência, ou constituem uma realização que
atinge as profundezas do ser (como Dewey co-
loca) de quem tem uma experiência, ou consti-
tuem os obstáculos e falhas que necessariamente
fazem parte da alegre luta para alcançar a con-
sumação, além do prazer e do equilíbrio – onde
se encontra a verdadeira alegria e felicidade da
realização. Há também presente no trabalho de
Dewey o sentido de que o “tempo de consuma-
ção é também do recomeço” – qualquer tenta-
tiva de prolongar o prazer de consumação para
além de seu termo natural implica um tipo de
retirada do mundo e, portanto, uma diminui-
ção e perda de vitalidade.
A unidade de experiência de Dilthey enfati-
za a cultura e a psicologia, pois ele viu a busca
pelo signifi cado e sua expressão na performan-
ce como manifestações das fases de luta e con-
sumação. Em Dewey, o processo de experiência
tendia mais para o biológico. No entanto, am-
bos enfatizaram que a estética tem sua gênese
na experiência humana sensível e não procede
de um domínio ideal, ou de um reino platôni-
co de arquétipos superiores às atividades hu-
manas vulgares que, supostamente, ele deveria
avaliar e organizar. Para os dois fi lósofos, as ar-
tes, incluindo todos os gêneros de teatro, têm
suas origens nas cenas e objetos da experiência
humana, e não poderiam ser consideradas à
parte deles. O belo é a fl or consumada da bus-
ca desordenada de signifi cado pelos homens e
mulheres que vivem na complexidade plena
de sua mútua atração e repulsão na guerra, no
culto, no sexo, na produção econômica e no
mercado.
Como alguns sabem, tenho concentrado
meu trabalho num tipo específi co de unida-
de de experiência, a qual chamo de “drama
social”. Trata-se, em seus desdobramentos, de
uma forma proto-estética. Em muitas situa-
ções de pesquisa de campo em culturas nota-
velmente diferentes, na minha experiência de
vida em sociedades ocidentais, e em numerosos
documentos históricos, podemos claramente
discernir o movimento de uma comunidade
através do tempo como tomando uma forma
à qual difi cilmente podemos negar o epíteto
“dramático”. Uma pessoa ou sub-grupo quebra
uma regra, deliberadamente ou por compulsão
182 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
interior, num contexto público. Os confl itos
entre os indivíduos, setores e facções seguem
à ruptura original, revelando embates ocultos
de caráter, interesses e ambições. Estes resultam
numa crise de unidade e continuidade do gru-
po, a menos que sejam rapidamente bloqueados
por uma ação pública reparadora, consensual-
mente empreendida por líderes, guardiões, ou
membros mais velhos do grupo social. A ação
reparadora é freqüentemente ritualizada e pode
ser empreendida em nome da lei ou da religião.
Os processos judiciais acentuam a razão e a
evidência; os processos religiosos enfatizam as
questões éticas, as maldições ocultas que ope-
ram através de bruxarias, ou a ira dos ancestrais
contra as quebras de tabu ou a impiedade dos
vivos em relação aos mortos. Se um drama so-
cial percorrer seu curso completo, o resultado
(ou “consumação”, como Dewey diria) pode se
manifestar através ou da restauração da paz e
“normalidade” entre os participantes ou do re-
conhecimento social de uma ruptura ou cisão
irremediável.
Claro, esse modelo, como todos os mode-
los, está sujeito a muitas manipulações. Por
exemplo, a ação reparadora pode falhar, e nesse
caso haverá um retorno à fase da crise. Se a lei
e/ou os valores religiosos perderem sua efi cácia,
um faccionalismo contínuo e endêmico pode-
rá contaminar a vida pública por longos perí-
odos. Ou o fracasso de uma ação reparadora
numa comunidade local poderá levar a apelos
a instâncias superiores situadas em níveis mais
inclusivos de organização social – da aldeia ao
distrito à província à nação. Ou o ancien régi-me pode ser rejeitado in toto, dando início à
revolução. Nesse caso, o grupo poderá ser radi-
calmente reestruturado, incluindo sua maqui-
naria reparadora.
A cultura evidentemente afeta tais aspec-
tos, como o estilo e o andamento do drama
social. Algumas culturas procuram retardar as
defl agrações de crise aberta elaborando regras
sofi sticadas de etiqueta. Outras admitem o
uso de violência organizada na crise ou como
ação reparadora, como se pode verifi car em
exemplos tais como o holmgang dos islandeses
(combate individual na ilha), a luta com varas
dos Nuba do Sudão, e as recíprocas expedições
dos caçadores de cabeças dos povos da colina
Ilongot em Luzon. Georg Simmel, Lewis Co-
ser, Max Gluckman e outros indicaram como
o confl ito – desde que colocado sob controle,
evitando-se o massacre e a guerra – pode inclu-
sive realçar a “consciência de pertencimento” a
um grupo. O confl ito força os antagonistas a
diagnosticarem as suas causas e, assim fazen-
do, a se tornarem plenamente conscientes dos
princípios que os unem para além e acima das
questões que os cindiram temporariamente.
Como insistiu Durkheim, a lei precisa do cri-
me e a religião precisa do pecado para se torna-
rem sistemas plenamente dinâmicos, porque,
sem “o fazer”, sem a fricção social que acende a
consciência e a auto-consciência, a vida social
seria passiva e até inerte.
Essas considerações, acredito, levaram Bar-
bara Myerhoff (1979) a distinguir “cerimônias
defi nitórias” de “dramas sociais”, que ela con-
cebeu como um tipo de “auto-biografi a” co-
letiva, um meio pelo qual um grupo cria sua
identidade ao contar para si uma história sobre
si mesmo, um processo ao longo do qual ganha
vida a “sua Identidade Determinada e Defi ni-
da” (para citar William Blake). Aqui, no sen-
tido diltheyniano, o signifi cado é engendrado
pela articulação de problemas presentes a um
rico passado étnico, que então é infundido nos
“feitos e provações” (frase de Dewey) da comu-
nidade local. Alguns dramas sociais podem ser
mais “defi nitórios” do que outros, isso é certo,
mas muitos dramas sociais contêm, mesmo que
apenas implicitamente, meios de refl exividade
pública em seus processos reparadores. Ao ati-
vá-los, os grupos avaliam a sua situação atual: a
natureza e a força de seus laços sociais, o poder
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
de seus símbolos, a efi cácia de seus controles
morais e legais, a sacralidade de suas tradições
religiosas, e assim por diante.
O ponto que eu gostaria de ressaltar aqui é
que o mundo do teatro, como nós o conhece-
mos tanto na Ásia como no Ocidente, e a imen-
sa variedade de sub-gêneros teatrais, derivam
não da imitação, consciente ou inconsciente,
da forma processual do drama social completo
ou saciado – ruptura, crise, reparação, reinte-
gração, ou cisão (embora o modelo de tragédia
de Aristóteles se assemelhe a esse movimento
seqüencial), mas especifi camente da terceira
fase, reparação, e, especialmente, da reparação
como processo ritual. Os rituais reparadores
incluem adivinhações a respeito das causas es-
condidas de infortúnios, confl itos e doenças
(todos estes, em sociedades tribais, estando
intimamente interconectados e diagnosticados
como sendo gerados por ações de espíritos in-
visíveis, deidades, bruxos e feiticeiros), rituais
curativos (que podem freqüentemente envol-
ver episódios de possessão de espíritos, transe
xamânico, mediunidade, e estados de transe
entre os pacientes que são os participantes de
um ritual), e os ritos iniciatórios relacionados
aos “rituais de afl ição”. Além disso, muitos dos
ritos que chamamos de “cerimônias de crise da
vida”, particularmente os de puberdade, casa-
mento e morte, indicam, eles mesmos, uma es-
pécie de ruptura na ordem costumeira da vida
grupal, depois da qual muitos relacionamen-
tos entre os membros do grupo devem mudar
drasticamente, envolvendo muita competição
e confl itos potenciais, e até mesmo reais (por
direitos de herança e sucessão, por mulheres,
pelos dotes da noiva, lealdade ao clã ou à linha-
gem, entre outras coisas). Os rituais de crise da
vida (assim, aliás, como os rituais sazonais) po-
dem ser chamados de “profi láticos”, enquanto
rituais de afl ição são “terapêuticos”.
Todos esses processos rituais de “terceira-
fase” ou “primeira-fase” (no caso de crise da
vida) contêm uma fase liminar, que fornece um
estágio1 (uso esse termo advertidamente) para
estruturas únicas de experiências (o Erlebnis de
Dilthey) em meios isolados da vida mundana
e caracterizados pela presença de idéias ambí-
guas, imagens monstruosas, símbolos sagrados,
provações, humilhações, instruções paradoxais
e esotéricas, a emergência de tipos simbólicos
representados por palhaços e mascarados, in-
versões de gêneros, anonimatos e muitos ou-
tros fenômenos e processos que tenho descrito
em outros textos como “liminares”. O limen,
ou limiar2 – um termo emprestado da segun-
da das três fases dos ritos de passagem de van
Gennep – é uma terra-de-ninguém entre3 o
passado estrutural e o futuro estrutural, tal
como antecipado pelo controle normativo da
sociedade sobre o desenvolvimento biológico.
Isso é ritualizado de muitas formas, mas fre-
qüentemente os símbolos que expressam uma
identidade ambígua são encontrados numa va-
riedade expressiva de culturas: fi guras andrógi-
nas e teriomórfi cas,4 combinações monstruosas
de elementos retirados da cultura e da nature-
za, com alguns símbolos tais como cavernas,
representando nascimento e morte, útero e tú-
mulo. Às vezes, falo sobre a fase liminar como
algo que predomina no modo subjuntivo da
cultura, o modo do “talvez”, do “pode ser”, do
“como se”, hipótese, fantasia, conjectura, dese-
jo – dependendo de qual elemento da trindade
de cognição, afeto e vontade está situacional-
mente dominante. A vida cotidiana acontece
no modo indicativo, em meio à expectativa
da operação invariante de causa e efeito, do
senso comum e racionalidade. A liminaridade
pode talvez ser descrita como um caos frutí-
fero, um armazém de possibilidades, não uma
1. Turner usa o termo stage, que também quer dizer
“palco” (N. da R.).
2. Turner usa o termo threshold (N. da R.).
3. Turner usa a expressão betwixt and between (N. da R.).
4. Turner usa o termo theriomorphic (N. da R.).
184 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
montagem aleatória, mas uma busca por novas
formas e estruturas, um processo de gestação,
uma irrupção fetal de modos apropriados de
existência pós-liminar.
O teatro é uma dessas muitas herdeiras do
grande sistema multifacetado que chamamos
de “ritual tribal”, que abrange idéias e imagens
do cosmos e do caos, interdigitando palhaços
e suas folias com deuses e suas solenidades, e
fazendo uso de todos os códigos sensoriais para
produzir sinfonias para além da música: o en-
trelaçamento da dança, de diferentes tipos de
linguagens corporais, canções, cânticos, formas
arquitetônicas (templos e anfi teatros), incensos,
oferendas, banquetes ritualizados, pinturas, ta-
tuagens, circuncisões, escarifi cações, e marca-
ções corporais de muitos tipos, a aplicação de
loções e a ingestão de poções, a encenação de
tramas míticos e heróicos retirados de tradições
orais – e muito mais. Os rápidos avanços na
escala e complexidade da sociedade, particular-
mente após a industrialização, fi zeram passar
essa confi guração liminar unifi cada pelo pris-
ma da divisão do trabalho, com suas especia-
lizações e profi ssionalizações, reduzindo cada
um dos seus domínios sensoriais a um conjun-
to de gêneros de entretenimento que fl orescem
no tempo de lazer da sociedade, não mais no
lugar central de controle. Apesar do fato de que
o pronunciado caráter sobrenatural do ritual
arcaico tem sido grandemente reduzido, há si-
nais, no presente, entre gêneros especializados
amputados, de uma busca para recuperar algo
da experiência do numinoso, que se perdeu em
seu sparagmos, ou desmembramento.
Claramente, como Dewey argumentou, a
forma estética do teatro é inerente à própria
vida sociocultural, mas o caráter refl exivo e te-
rapêutico do teatro, cujas origens remontam à
fase reparadora do drama social, precisa recor-
rer às fontes do poder freqüentemente inibidas
na vida do modo indicativo da sociedade. A
criação de um espaço liminar separado, qua-
se-sagrado, permite uma busca de tais fontes.
Uma fonte desse excessivo meta-poder é certa-
mente o próprio corpo liberado e disciplinado,
com seus múltiplos recursos não explorados
de prazer, dor e expressão. Uma outra fonte
encontra-se em nossos processos inconscien-
tes, tais como os que ocorrem em estados de
transe. Trata-se de fenômenos semelhantes aos
que freqüentemente encontrei na África, onde
senhoras idosas, magras e mal-nutridas, entre
um cochilo ou outro, dançam, cantam e reali-
zam atividades rituais durante dois ou três dias
e noites sem parar. Penso que um aumento no
nível de estímulo social, a despeito de como é
produzido, pode liberar fontes de energia nos
participantes individuais. O recente trabalho
sobre a neurobiologia do cérebro (ver d’Aquili,
Laughlin & McManus 1979), mostra, entre
outras coisas, como as “técnicas de conduzir o
ritual (incluindo condução sônica, por exem-
plo, com instrumentos de percussão) facilitam
o domínio do hemisfério direito, resultando
em experiências atemporais, não-verbais, e ges-talt, diferenciadas e únicas quando comparadas
com as manifestações da funcionalidade do he-
misfério esquerdo ou a alternação dos hemisfé-
rios” (Lex 1979: 146).
Meu argumento tem sido que a antropolo-
gia da experiência encontra, em certas formas
recorrentes de experiência social – entre elas,
os dramas sociais –, fontes de forma estética,
incluindo o drama de palco. Mas o ritual e sua
progênie, com destaque às artes performati-
vas, derivam do coração subjuntivo, liminar,
refl exivo e exploratório do drama social, onde
as estruturas de experiência grupal (Erlebnis) são copiadas, desmembradas, rememoradas,
remodeladas, e, de viva voz ou não, tornadas
signifi cativas – mesmo quando, como acon-
tece freqüentemente em culturas declinantes,
“o signifi cado é de que não há signifi cado”. O
verdadeiro teatro é a experiência da “vitalidade
intensifi cada”, para citar Dewey novamente.
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
“Em seu auge, signifi ca a completa interpene-
tração do eu e do mundo de eventos e objetos”
(citado em McDermott 1981: 540). Quando
isso acontece numa performance, o que pode
ser produzido é o que d’Aquili e Laughlin cha-
mam de um “fugaz estado de êxtase e sentido
de união (com duração freqüente de somente
alguns segundos) [que] pode ser descrito como
um arrepio – nada mais que isso – que desce
pelas costas até um certo ponto” (d’Aquili et al. 1979: 177). Um senso de harmonia com
o universo se evidencia e o planeta inteiro é
sentido como uma communitas. Esse arrepio,
contudo, deve ser conquistado, para tornar-se
uma “consumação”. Isso, após lidar com um
emaranhado de confl itos e desarmonias. É o
tea tro que melhor exemplifi ca o dito de Th o-
mas Hardy: “se há um caminho para o melhor,
ele exige um olhar de frente para o pior”. As
transformações rituais ou teatrais não ocorre-
riam de outra forma.
Referências bibliográfi cas
D’AQUILI, E. G., LAUGHLIN, JR., Charles D., and
McMANUS, John. (eds.). 1979. Th e Spectrum of Ri-tual. New York, Columbia University Press.
DEWEY, John. 1934. Art as Experience. New York, Min-
ton, Balch & Co.
DILTHEY, Wilhelm. [1914]. Selected Writings. Ed. H.
P. Rickman. Cambridge, Cambridge University Press,
1976.
LEX, Barbara. 1979. “Th e Neurobiology of Ritual Tran-
ce”. In D’AQUILI, E. G., LAUGHLIN, JR., Charles
D., and McMANUS, John. (eds.). Th e Spectrum of Ritual. New York, Columbia University Press.
McDERMOTT, J. J. (ed.). 1981. Th e Philosophy of John Dewey. New York, Putnam’s.
MYERHOFF, Barbara. 1979. Number Our Days. New
York, Dutton.
TURNER, Victor. 1982. From Ritual to Th eatre. New
York, Performing Arts Journal Press.
Por que fazer a resenha da segunda edição
em língua inglesa de um texto publicado pela
primeira vez em 1983? De alguma forma a res-
posta está contida na própria pergunta, pois já
se passaram mais de 20 anos e este livro seminal
de Johannes Fabian ainda não foi publicado em
português! Não que ele não circule nos meios
acadêmicos nacionais, mas se mantém restrito
a um público necessariamente bilíngüe, quem
sabe para que o poder de sua crítica não ameace
formações não consolidadas.
A barreira do idioma é também um meca-
nismo de controle de poder, como o próprio Fa-
bian nos apresentou em Language and Colonial Power, de 1986, estudando o Shaba Swahili e
administração colonial belga no Zaire. Enfi m,
tratam-se de livros sobre mecanismos de poder
e como são exercidos, mesmo que de forma im-
perceptível e, portanto, ameaçadores.
Johannes Fabian, nascido em 1937, foi pro-
fessor do Departamento de Antropologia Cul-
tural da Universidade de Amsterdã. Obteve seu
título de Doutor na Universidade de Chicago,
no fi nal da década de 1960, com etnografi a sobre
o movimento carismático Jamaa em Katanga.
Desde então publicou mais de doze livros, dos
quais dois são coletâneas de ensaios. Suas pesqui-
sas abrangem movimentos religiosos, linguagem,
trabalho e cultura popular, além de propor ques-
tões epistemológicas e acerca da construção da
antropologia.
FABIAN, Johannes. [1983]. The Time and the Other: how anthropology makes its object. 2. ed. New York: Columbia University Press, 2002; 205pp.
RONALDO LOBÃO
Mestre em antropologia pelo PPGACP/UFF e
doutorando no PPGAS/UnB.
Resenha aceita para publicação em 27/07/05
A perspectiva crítica é talvez a maior marca
deste brilhante antropólogo e pode ser perce-
bida na frase fi nal de seu livro Time and the Work of Anthropology: critical essays, de 1991:
“Quem somos nós para ‘ajudá-los’? Precisamos
da crítica (exposição das mentiras do imperia-
lismo, das maquinações do capitalismo, das
idéias equivocadas do cientifi cismo, e de todo
o resto) para ajudar a nós mesmos. O detalhe é,
decerto, que ‘nós mesmos’ tanto pode ser eles
como nós” (: 264).1
Em Th e Time and Th e Other, Fabian desen-
volve um poderoso argumento para mostrar
que a construção do Outro, o objeto da Antro-
pologia, foi realizada à custa da manipulação
da temporalidade, ou seja, tanto pelas formas
como o Tempo é percebido nas diversas socie-
dades humanas, quanto em suas implicações
recíprocas. Para Fabian, o principal mecanismo
para o estranhamento antropológico não foi o
afastamento espacial, e sim o temporal. Para
exemplifi car as propostas de Fabian, podemos
dizer que a transformação do familiar em exóti-
co, ou do exótico em familiar, dá-se em termos
de manipulação, por parte dos antropólogos
em relação ao seu objeto, das percepções acerca
do tempo.
Para Fabian, ao Outro foi negada uma pers-
pectiva temporal coetânea, ou seja, há o Tempo
1. As traduções são minhas.
cadernos de campo n. 13: 189-192, 2005
190 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
do sujeito que é distinto do Tempo de seu
objeto, só que o Tempo do Outro é um Não
Tempo! Como esta operação é feita? Acompa-
nhemos os argumentos de Fabian.
No prefácio Fabian apresenta o Tempo, as-
sim como o dinheiro e a linguagem, como um
condutor de signifi cados, uma forma pela qual
se defi nem as relações entre o Eu e o Outro. E,
sob as condições do modo de produção capita-
lista, o tempo pode construir relações de poder
e desigualdade. Assim, se é verdadeiro que o
Tempo pertence à economia política das rela-
ções entre indivíduos, o Antropólogo constrói
seu objeto através de uma “política do tempo”,
que deve ser vista como uma construção dialé-
tica do Outro.
Para Fabian, o conhecimento produzi-
do pelos antropólogos possui uma contradi-
ção fundamental: de um lado a Antropologia
está baseada em uma pesquisa de campo, que
consiste em uma prolongada interação com
o Outro. Mas a construção do conhecimento
utiliza-se de um discurso sobre o Outro fun-
dado em uma distância temporal e espacial. A
presença empírica do Outro se transforma em
uma ausência teórica, para a qual as equações,
“being here, being there” de Cliff ord Geertz, ou
“olhar, ouvir e escrever” de Roberto Cardoso
de Oliveira, não dão conta, pois em ambas é o
Tempo contido nos afastamentos que está me-
diando o surgimento do Outro.
Fabian mostra que na matriz da sociedade
ocidental, capitalista, o tempo vem sendo ma-
nipulado em consonância com a dinâmica das
relações de poder. Na tradição judaico-cristã o
Tempo foi concebido como um meio para a
História Sagrada. O Tempo Sagrado é linear,
em oposição ao tempo pagão, representado por
um eterno retorno. A secularização do Tempo
realizada na tradição judaico-cristã colocou
em questão a universalização da história, que
nascera como a história de um povo eleito.
Para Fabian, a noção de Universal teve duas
conotações: a primeira, de totalidade, ou seja,
o mundo todo, todo o tempo; a segunda, de
generalidade, quer dizer, o que é aplicável em
um grande número de casos.
Da história, passamos à Evolução, ou à
Naturalização do Tempo. Fabian afi rma que o
resultado da secularização do Tempo produziu
dois elementos importantes para os aconte-
cimentos do século XIX. O primeiro é que o
Tempo passou a ser considerado imanente, ou
seja, coextensivo ao mundo, e o segundo é que
as relações entre os componentes do mundo
– natural e sócio-cultural – tornaram passíveis
de serem compreendidos através de relações
temporais. A nova dimensão quantitativa que
o Tempo geológico produziu, permitiu que o
Evolucionismo fosse pensado. A mudança no
tempo estava completa, tanto em termo de sua
qualidade – do sagrado ao profano – como em
quantidade, do fi nito ao infi nito. Entretanto,
o processo complementar que os Antropólogos
do século XIX desenvolveram, para Fabian, foi
a espacialização do tempo, ou seja, na constru-
ção do Outro, a diferença foi encarada como
distância.
Desde então, os Antropólogos têm abordado
três dimensões do Tempo. A primeira delas Fa-
bian chama de Tempo Físico, que corresponde
a um parâmetro ou vetor na descrição de pro-
cessos sócio-culturais. A segunda diz respeito
ao tempo plotado em escalas (calendários, diria
eu), que se desdobra em duas abordagens: um
Tempo Mundano e um Tempo Tipológico. O
primeiro aglutina períodos de tempo em gran-
de escala, aos quais não se deseja qualifi car deta-
lhadamente, como a designação Idade de Ouro.
A segunda cobre períodos de tempo não tão
extensos, e que possuem entre si características
comuns e opostas, como, por exemplo, tradi-
ção versus modernidade, campesinato versus ur-
bano, sociedades com escrita versus sociedades
sem escrita. A terceira abordagem corresponde
ao Tempo Intersubjetivo. Para Fabian, quer o
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
antropólogo use uma abordagem sincrônica,
quer use um enfoque diacrônico, ambas estão
baseadas em uma dada cronologia, impensável
sem a dimensão do Tempo.
Uma das premissas de um Tempo Inter-
subjetivo é o fato de que os participantes do
“encontro” devem estar em uma mesma tempo-
ralidade, ou seja, serem coetâneos. Entretanto,
Fabian denuncia que a característica da escrita
etnográfi ca é exatamente oposta: há “uma ten-
dência persistente e sistemática em colocar os
referentes da antropologia em um Tempo dis-
tinto do presente daquele que está produzindo
o discurso antropológico” (: 31), ou seja, negar
ao Outro o direito de ser coetâneo, ou coevo.
Com isso não se está produzindo uma si-
tuação anacrônica, reveladora de um evolucio-
nismo ultrapassado. Para Fabian, na verdade, o
que se produz é uma situação em que o Outro
é revelado pelos antropólogos como sendo aló-
crono, ou seja, não está em temporalidade al-
guma. O exemplo marcante para a exclusão da
temporalidade na antropologia é o pensamento
de Lévi-Strauss, para quem o Outro que “não
está presente no mundo; ele habita uma ma-
triz que permite que ele, não só coloque, mas
marque todo e qualquer traço cultural em uma
rede lógica” (: 55).
No quarto capítulo Fabian analisa o pro-
cesso acadêmico, ainda vigente, de pesquisa de
campo, notadamente em seu constrangimento
temporal. As alternativas existentes, o aprendi-
zado da língua previamente – quando o caso –,
o estudo de pequenas comunidades através de
mapas, quadros de parentesco, censos diversos,
todos tem como objetivo fazer com que o pes-
quisador de campo “ganhe” tempo, não “perca”
tempo, cumpra seu “prazo”. Fabian afi rma que
existem três pressupostos subjacentes a estas
prescrições que merecem ser explicitados: co-
loca o aprendizado da língua nativa como uma
“ferramenta” para extração de informações,
adota uma perspectiva “visualista”, ou seja, que
“ver” uma cultura é equivalente a entendê-la, e
por fi m, é o tempo do antropólogo que dita as
relações de produção do conhecimento.
As conclusões de Fabian são claras: “como
relações entre os povos e sociedades que estu-
dam e aqueles que são estudados as relações
entre a antropologia e seu objeto é inevitavel-
mente política: a produção do conhecimento
ocorre em um fórum público de relações in-
ternas aos grupos, entre as classes e interna-
cionais” (: 143). Em sua busca por território,
o ocidente utilizou o Tempo para acomodar a
História unilinear: “progresso, desenvolvimen-
to, modernidade (e suas imagens contrárias:
estagnação, subdesenvolvimento, tradição)”.
Para Fabian, a geopolítica do ocidente tem seus
fundamentos em uma cronopolítica.
Trazer o Tempo para o centro das relações
de poder coloca uma ferramenta de análise que
supera em muito as discussões acerca do pa-
pel da antropologia e da dominação colonial.
O “presente etnográfi co” de etnografi as famo-
sas, mesmo aquelas que tiveram a sensibilida-
de de perceber diferenças entre os sentidos das
temporalidades particulares, como Os Nuer de Evans-Pritchard, congelam os grupos no
tempo. O povo nuer, observado na década de
1930, permaneceu o mesmo ao longo da trilo-
gia de seu etnógrafo, até seu último livro, Nuer Religion, publicado na década de 1950.
Enfi m, a crítica de Fabian coloca para os
antropólogos um desafi o: como superar em
nossas práticas acadêmicas e/ou profi ssionais
os limites de uma temporalidade linear, ca-
racterística de nosso modelo de cientifi cidade,
quando em contato com outras construções
sociais que não estão fundadas no mesmo mo-
delo? Neste livro, a resposta de Fabian é que
devemos reconhecer que nossas teorias sobre a
sociedade do Outro são “nossas práxis – as for-
mas pelas quais produzimos e reproduzimos o
conhecimento acerca do Outro em função de
nossa sociedade” (: 165).
192 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
E tal ensinamento é fundamental para que
se inicie um novo processo de compreensão so-
bre o modelo de reconhecimento de políticas
públicas nacionais voltadas para nossos Outros:
índios, quilombolas e populações tradicionais.
Os confl itos recentes de Roraima, acerca da
Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, sugerem
que a análise das temporalidades em jogo pode
fornecer uma pista para uma compreensão mais
acurada acerca dos interesses em disputa, e das
possibilidades de sua administração.
O livro de Fabian é, antes de tudo, uma re-
velação sobre nós mesmos. E, como tudo que
traz à tona o que está no fundo de nossas práti-
cas e nossas crenças incomoda, instiga, provoca
reações inesperadas. Talvez este seja o motivo de
seu ocultamento: o potencial questionador que
contém sobre nós mesmos e nossas certezas.
O espiritismo kardecista sem dúvida alguma
possui um espaço privilegiado dentro do pan-
teão de crenças existentes no Brasil. Tal espaço
foi galgado e construído ao longo do século XX
a partir de uma série de fenômenos que podem
ser resgatados e melhor compreendidos a partir
da fi gura do médium mais popular da história
do espiritismo brasileiro, Francisco Cândido
Xavier – Chico Xavier.
Percebo que a produção antropológica bra-
sileira ainda carece de estudos que se destinem
a discutir o espiritismo dentro dos códigos de
nossa disciplina. Pelo que conheço, a própria
discussão sobre a vida e a obra de Chico Xa-
vier parece ter se tornado condição sine qua non para desvelarmos uma discussão maior sobre o
espiritismo brasileiro.
Lançado recentemente, O grande mediador – Chico Xavier e a cultura brasileira, de Bernar-
do Lewgoy, de certa maneira precipita e insere
o olhar antropológico para dentro deste debate
que se demonstra cada vez mais atual e recor-
rente. A partir da análise da trajetória (mítica)
de Chico Xavier, o autor procura compreender
de que maneira o espiritismo brasileiro se cons-
tituiu da forma que o é, diferentemente, em
alguns aspectos, do espiritismo francês, berço
desta doutrina, e como a fi gura de Chico Xavier
pode ser compreendida como catalisadora de
uma retórica sincrética entre elementos nota-
velmente espíritas e notavelmente católicos. Tal
fenômeno contribuiu para o desenvolvimento
LEWGOY, Bernardo. 2004. O grande mediador: Chico Xavier e a cultura brasileira. Bauru: EDUSC; 135 pp.
MARCELO TADVALD
Mestre em Antropologia Social pela UFRGS.
Resenha aceita para publicação em 22/09/05
do espiritismo brasileiro e do espiritismo à bra-sileira.
Chico Xavier, falecido em 2002, é a princi-
pal referência do espiritismo no Brasil. Percebe-
mos que a trajetória religiosa deste médium se
confunde com a própria trajetória da doutrina
no Brasil durante o século XX (Chico Xavier
nasceu em 1910 e publicou seu primeiro livro
– Parnaso de Além-Túmulo – em 1932). Ber-
nardo Lewgoy nos sugere que a compreensão
da fi gura de Chico Xavier deve ser apreendi-
da em dois níveis distintos: um que se refere à
obra mediúnica do autor e outro que se refere
à hagiografi a do santo existente em torno da
fi gura do médium. Em todo caso, este estudo
demonstra que, quaisquer que sejam as leituras
realizadas em torno do médium, estas nos apre-
sentam uma personagem cercada de uma aura
de sacralidade que faz sentido para o imaginá-
rio religioso brasileiro, fato que contribuiu de-
cisivamente para a criação e consolidação deste
espiritismo tupiniquim.
A obra está dividida em cinco capítulos. O
primeiro capítulo se propõe realizar um breve
esboço biográfi co de Chico Xavier. Nesta par-
te, tomamos conhecimento do início de uma
trajetória mítica marcada pelo sofrimento e
pela provação, aspectos que iriam acompa-
nhar a fi gura de Chico Xavier durante toda sua
vida. De infância pobre e triste, Chico Xavier
começa desde cedo a tomar conhecimento de
sua “missão maior”, destinada a si nesta vida,
cadernos de campo n. 13: 193-196, 2005
194 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
através de encontros com o espírito de sua mãe.
Posteriormente, se encontraria com um dos es-
píritos mais presentes e “parceiro” durante seu
trabalho espiritual – Emmanuel. Aqui, o autor
procurou demonstrar como tais acontecimen-
tos da vida de Chico Xavier, encontrados em
suas diferentes biografi as existentes, possuem
elementos que podem ser tomados como co-
muns em histórias de santidade, ou seja, que
contribuíram para a constituição de uma ima-
gem de santidade para Chico Xavier.
O segundo capítulo, não por acaso o mais
extenso, reconstitui o contexto social, religio-
so, político e histórico da obra literária do mé-
dium ao longo do tempo e a articula à própria
constituição do “mito” Chico Xavier. O estudo
apresenta de que maneira o papel familiar e re-
ligioso das mães estará presente ao longo das
manifestações públicas do médium, chamando
a atenção para o fato de que tal aspecto esteve
inserido na vida de Chico Xavier de maneira
muito peculiar.
Para Lewgoy, a matrifocalidade da obra de
Chico Xavier resume, em parte, a aproximação
da doutrina espírita com o catolicismo popu-
lar, em um tempo em que a própria Igreja ata-
cava a doutrina. Isto nos permite pensar de que
maneira existira uma valorização da mulher
dentro do espiritismo brasileiro desde então.
Tal discussão pode contribuir para nosso en-
tendimento acerca dos motivos que expliquem
o fato de quase 60% dos espíritas brasileiros se-
rem mulheres, de acordo com o censo de 2000.
Como deixa claro esta obra, a aproximação
do espiritismo brasileiro com o catolicismo se
constitui como um dos fatos que diferem em
essência este espiritismo do europeu preconi-
zado por Allan Kardec, também mais secular e
racionalista.
Durante o Estado Novo ocorre uma reapro-
ximação do governo para com a Igreja Católica.
O grande mediador nos demonstra que o escritor
Chico Xavier entra em cena exatamente durante
este período. Ao ampliar o leque de trocas com o
catolicismo popular, revitalizado, Chico amplia
as possibilidades de difusão da doutrina espírita
entre as camadas populares, através de “um espi-
ritismo de vocação nacional e conciliador” (: 44).
Ficamos com a impressão, lendo este estudo, de
que graças ao trabalho de Chico Xavier, o espiri-
tismo no Brasil consegue se solidifi car e se inte-
grar a realidade urbano-industrial consolidada a
partir dos anos 1930.
Diferentemente do espiritismo francês de
Allan Kardec, o espiritismo brasileiro de Chico
Xavier se constitui a partir de uma estrutura
dissertativa que privilegia os pequenos relatos
espirituais em primeira pessoa, fato que para
Lewgoy pode ser explicado a partir da infl uên-
cia de uma moralidade católica e da literatura
de folhetim.
Para Lewgoy, a fi gura de Chico Xavier, que
se encontra em certo sentido consubstanciada
nas categorias de santidade e “caxias”, apontava
sempre para um ideal conservador aproxima-
do a um ethos militar de disciplina. O estudo
em questão propõe tal ethos ser parte inerente
do Estado Novo. Se Chico Xavier não fosse,
na conduta de sua vida pessoal, um verdadeiro
“caxias”, seria possível construir uma doutrina
espírita à brasileira sob tais características? É
bastante interessante o fato trazido pelo estu-
do de que, o tempo inteiro, a tensão entre os
“desígnios espíritas” e a vida pessoal de Chico
Xavier estarão presentes, assim como uma lin-
guagem burocrática e administrativa – “caxias”
– que fazia apologia à categorias da estirpe de
“serviço”, “trabalho”, “obra”, “mediunato”, etc.
Para o autor, “essa concepção cívica e orgânica
de cidadania afi na-se com a hegemônica matriz
autoritária do pensamento social brasileiro na
década de 1930” (: 68). A obra de Chico Xa-
vier está inserida perfeitamente em seu tempo.
Por exemplo, é curioso descobrirmos, lendo
O grande mediador, porque possuímos, desde
então, centros espíritas constituídos como se
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
fossem repartições do governo, com uma lógi-
ca administrativa e burocrática de atendimen-
to aos seus seguidores. De fato, se realizarmos
uma visita a algum centro espírita brasileiro,
podemos verifi car tal aspecto sem muitas sur-
presas.
A proposta do terceiro capítulo se resume
em resgatar certos elementos que constroem e
aproximam a fi gura de Chico Xavier a de um
“santo”. Tal imagem se consagra a partir dos
anos 1950, devido muito à ética de humildade
e caridade que perpassa a fi gura do médium.
Como demonstra esse estudo, sua biografi a de
entrega, de caridade e humildade, apropriadas
como são pelo imaginário religioso do brasi-
leiro e de suas relações sociais, adquiriu um
aporte indelével de santidade à fi gura de Chico,
ainda que este tenha recusado, durante toda a
sua vida, o epíteto de santo.
Uma vez o quarto capítulo versar sobre a
importância da obra escrita de Chico Xavier
para o Brasil, podemos verifi car a importân-
cia desta obra não somente no que se referiu
à disseminação da doutrina espírita no Brasil,
como também a sua importância política, dada
a unifi cação das federações espíritas então exis-
tentes (Pacto Áureo, em 1949) em torno da-
quela federação (FEB) que editava suas obras.
Se tal aspecto fortaleceu a representatividade
e a ampliação da doutrina em nível nacional,
em consonância a isso, a obra de Chico Xavier,
ao formar um conjunto próprio de referência e
ao possuir um mecanismo de divulgação bem
estruturado, contribuiu para consolidar um es-
piritismo brasileiro autônomo com relação ao
espiritismo francês. Tal proposta, apresentada
no livro de Lewgoy, nos parece coadunar certas
representações existentes dentre a comunidade
espírita brasileira que lhe agregam um certo
sentido de identidade específi co e bem funda-
mentado.
Ainda que o autor não discuta diretamente
tal questão, O grande mediador resgata alguns
elementos que nos permitem vislumbrar tais
categorias, pois demonstra como a obra de
Chico Xavier conseguiu constituir uma doutri-
na que clamava pelo pertencimento social sem
exageros ou radicalismos, agregando valores
católicos e somando a tudo isso símbolos de
prestígio e de diferenciação para seus seguido-
res, como o estudo, a erudição, a ciência e a va-lorização da leitura. Mesmo as camadas menos
favorecidas da sociedade encontravam valores
simbólicos importantes que também possibili-
tavam sua aproximação com a doutrina.
No quinto e último capítulo é traçada uma
análise histórica e contextual do espiritismo no
Brasil, relacionada à fi gura de Chico Xavier ao
longo do tempo. Aqui descobrimos como o es-
piritismo enfrentou problemas de legitimação
no Brasil durante toda a República Velha, en-
contrando forte oposição entre segmentos da
Igreja Católica e do próprio Estado. Porém, ao
combinar nacionalismo e profetismo e sofrer a
infl uência da matriz autoritária do pensamento
social existente nos anos 1930, a doutrina con-
seguiria encontrar paulatinamente seu espaço,
graças, em parte, ao trabalho de Chico Xavier.
Seria a partir dos anos 1950 que o espiritis-
mo encontraria seu momento maior de afi rma-
ção. Lendo O grande mediador, descobrimos
que, não por acaso, será neste período em que
haverá a maior oposição católica contra o es-
piritismo e que à fi gura de Chico Xavier será
agregada de fato uma imagem de santidade.
Para o autor, “nos anos 50 e 60, o espiritismo
buscou mostrar-se mais cristão do que os de-
mais cristãos, mais religioso e popular do que
os ‘falsos religiosos de batina’ que o perseguiam,
e, fi nalmente, mais branco, racional, europeu e
identitário que as demais religiões mediúnicas”
(: 115). Descobrimos também que durante os
anos de 1970-80, a fi gura de Chico Xavier se
resignara a de um homem de bem dentro do
regime militar, reforçando sua imagem de san-
to, laico, ecumênico e caridoso.
196 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
Ao concluir o estudo, Lewgoy reforça o fato
de que não há como desvincular uma análise
do espiritismo de uma análise dos diferentes
momentos sociais porque passaram as forças
armadas no Brasil, ao longo do século XX. Tal
perspectiva faz menção aos momentos históri-
cos da vida política brasileira em que o papel
das forças armadas se fez mais evidente; mo-
mentos estes em que o espiritismo conquistou
espaços importantes dentro da vida religiosa
brasileira. O sucesso desta doutrina pareceu es-
tar relacionado à abertura republicana realiza-
da em 1891 às diferentes crenças religiosas. De
fato, produto de seu tempo, o espiritismo sou-
be se incluir nas diferentes ordenações sociais
porque passou a sociedade brasileira ao longo
do século XX.
A sensação que podemos ter ao terminar
a leitura é a de que tal estudo nos parece co-
locar em xeque o limite entre o “escritor es-
piritual” e o “escritor encarnado”. Fato é que
Chico Xavier viria publicar 412 livros até a
sua morte, em julho de 2002, não por acaso
sendo considerado um dos autores mais profí-
cuos na história da língua portuguesa. E, se de
fato o “espiritismo se encontra na ordem do
dia”, nada melhor do que poder contar com
um estudo antropológico sobre aquele que
possivelmente deu a “cara” que o espiritismo
brasileiro possui hoje.
OS CIRCUITOS DO NAUInforme das atividades desenvolvidas pelo Núcleo de Antropologia Urbana da USP
O Núcleo de Antropologia Urbana, NAU,
formado em 1988 no Departamento de An-
tropologia da USP, é um grupo de pesquisa e
discussões teórico-metodológicas sobre ques-
tões relativas às sociedades urbano-industriais
contemporâneas. O Núcleo integra pesquisa-
dores nos níveis de doutorado, mestrado e gra-
duação (iniciação científi ca), que se distribuem
em quatro linhas temáticas: Práticas culturais e
sociabilidade no contexto urbano, Formas de
religiosidade, Métodos em antropologia urba-
na e Antropologia das sociedades complexas.
A maioria dos estudos realizados pelos inte-
grantes do NAU é localizada na cidade de São
Paulo, mas há trabalhos que foram ou estão
sendo desenvolvidos em cidades como Floria-
nópolis (SC), Belém (PA), Curitiba e Londrina
(PR), Natal (RN), São Carlos (SP) e Campo
Grande (MT) e outras.
Os pesquisadores reúnem-se regularmente
no Departamento de Antropologia da USP
para exposição e discussão de projetos, das es-
tratégias metodológicas escolhidas, de textos
teóricos e resultados do trabalho de campo de
seus participantes (conforme a dinâmica das
diferentes pesquisas em andamento).
Nos últimos anos, o NAU se subdivi-
diu em três grupos temáticos: NAU Jovem,
NAU Estudos da Comunidade Surda e Cul-tura Brasileira. O primeiro reúne alunos de
gradua ção em Ciências Sociais e mestrado em
Antropologia e Sociologia que têm como tema
de estudo grupos de jovens da cidade de São
Paulo. Desde 2001, seus integrantes se encon-
tram para compartilhar dados sobre o traba-
lho etnográfi co, trocar experiências de campo
e discutir questões teóricas e metodológicas
transversais e comuns a todas as pesquisas.
Fruto deste trabalho foi a coletânea de artigos
intitulada Jovens na Metrópole: uma análise antropológica dos circuitos de lazer, encontro e sociabilidade (no prelo), organizada pelo coor-
denador do Núcleo e orientador dos trabalhos,
Prof. Dr. José Guilherme Cantor Magnani e
por Bruna Mantese.
Os pesquisadores do subgrupo NAU Estu-
dos da Comunidade Surda têm como temáticas
centrais de estudo a sociabilidade e a dinâmica
cultural das comunidades surdas na cidade de
São Paulo. Além de discutir as experiências et-
nográfi cas de cada pesquisador, o grupo estuda
o tema da surdez a partir de diferentes áreas,
como a Antropologia, a Lingüística e a História
Oral. Com uma equipe multidisciplinar, com-
posta por antropólogos, lingüistas e historia-
dores, o NAU Estudos da Comunidade Surda
integra, junto com o Departamento de Lingü-
ística da USP o grupo “Estudos da Língua e
Cultura Surdas em São Paulo”.
1. Uma introdução a essas discussões pode ser encon-
trada no recente artigo “Os circuitos dos jovens
urbanos”, de José Guilherme Magnani, publicado
na revista Tempo Social, vol 17, n 02, novembro de
2005.
cadernos de campo n. 13: 199-202, 2005
200 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
O grupo de Cultura Brasileira reúne alunos
do Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva e conta
também com a orientação da Profa. Dra. Rita
Amaral. Ambos desenvolvem o projeto “Do Afro
ao Brasileiro: Religiões Afro-Brasileiras e Cultura
Nacional: uma Abordagem em Hipermídia”, que
conjuga uma larga pesquisa de campo em cinco
estados do país e a experiência metodológica de
representação etnográfi ca em novas mídias. As
investigações desse grupo buscam compreender
as relações entre as práticas de grupos locais e a
cultura nacional e podem ser lidas, entre outros,
no artigo “Foi Conta pra Todo Canto – Músi-
ca popular e cultura religiosa afro-brasileira” de
ambos os pesquisadores, e nos volumes 1 e 2
da Coleção Memória Afro-brasileira, organizada
pelo Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva, além
de outros trabalhos como “Saints noirs, saints de
noirs: couleur et dévotion dans le catholicisme
afro-brésilien”, também de Vagner Gonçalves da
Silva, publicado na França, na coletânea organi-
zada por Christiane Falgayrettes-Leveau: Brésil, L’héritage africain.
Nos circuitos acadêmicos o NAU promove,
também, desde 2002, o seminário A Graduação em Campo – seminários de Antropologia Urba-na das Ciências Sociais. O objetivo do evento é
propiciar um espaço de apresentação e debate
(até então praticamente inexistente na gradua-
ção em Ciências Sociais na USP) de pesquisas
realizadas por alunos de graduação nas discipli-
nas voltadas ao estudo das sociedades comple-
xas. Em 2005 o evento teve sua quarta edição,
consolidando-se como espaço relevante para o
estímulo e aperfeiçoamento da pesquisa acadê-
mica entre os graduandos.
O NAU dialoga ao mesmo tempo com ou-
tros grupos de estudos e pesquisa, como o “Mo-
delos terapêuticos, políticas de saúde, práticas
corporais e a investigação antropológica”, lidera-
do por Luíz Henrique de Toledo, “Antropologia
do Estado e da Guerra”, liderado por Piero de
Camargo Leirner, ambos da Universidade Fede-
ral de São Carlos, o grupo “Dádiva, Estado e
Relações de Mercado”, liderado por Ciméa Bar-
bato Bevilaqua e Christine de Alencar Chaves,
da Universidade Federal do Paraná, o “Núcleo
de Arte, Ritual e Performance” coordenado en-
tre outros por Sandra Jacqueline Stoll da mesma
universidade e o grupo “Cultura, Identidade e
Representações Sociais”, coordenado por Elisete
Schwade da Universidade Federal do Rio Gran-
de do Norte.
Outra importante atuação do Núcleo, e que
o caracteriza desde sua formação, é a prestação
de consultorias para projetos culturais realiza-
dos fora do campo estritamente acadêmico. Um
exemplo recente foi a participação de nove pes-
quisadores do NAU (professores e alunos) no
evento Expedição São Paulo 450 anos, ocorrido
entre os dias 11 e 18 de janeiro de 2004. Re-
sultado de uma parceria entre a Secretaria Mu-
nicipal de Cultura, o Grupo “O Estado de São
Paulo” e o Instituto Florestan Fernandes, con-
tou com o patrocínio da Petrobras e foi parte
das comemorações dos 450 anos de São Paulo,
em janeiro de 2004. A Expedição tinha como
objetivo maior consolidar a implantação do
Museu da Cidade de São Paulo, projeto aprova-
do em decreto municipal desde 1993 e engave-
tado por diversas gestões. O objetivo da viagem
foi conhecer São Paulo por dentro, recolhendo
e documentando, durante o percurso, impres-
sões, entrevistas, atividades artísticas, políticas,
sociais, formas de trabalho, lazer, moradia e so-
ciabilidade que embasariam o acervo daquele
Museu. A expedição, dividida em duas equipes
compostas por especialistas em antropologia,
museologia, arqueologia, arquitetura e urba-
nismo, história, etnomusicologia, geografi a, so-
ciologia, artes, ciências ambientais, educação
e medicina, percorreu diversos bairros de São
Paulo nos sentidos Sul-Norte e Leste-Oeste a
partir de um roteiro previamente estabelecido.
O NAU colaborou neste projeto durante
todo o ano de 2004 e início de 2005 por meio
|
cadernos de campo • n. 13 • 2005
da consultoria e coordenação de José Guilher-
me Cantor Magnani e pela assistência de alguns
alunos integrantes do Núcleo, com o Projeto de Implantação do Museu da Cidade de São Paulo. Alguns resultados deste trabalho foram
a produção do livro Expedição São Paulo 450 anos – uma viagem por dentro da metrópole (São
Paulo, Secretaria Municipal de Cultura/IFF/
Petrobras, 2004), do documentário de mesmo
nome em DVD sobre a expedição, além de
um CD-Rom e da Exposição “Expedição São
Paulo 450 anos”, realizada na Galeria Olido, de
dezembro de 2004 a janeiro de 2005.
Ainda na área de consultorias a projetos
museológicos, o NAU participou, na pessoa
do Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva con-
tribuindo com suas pesquisas e dados de seu
projeto em parceria com a Profa. Dra. Rita
Amaral, de consultorias para a implantação e
consolidação do Museu Afro Brasil, inaugu-
rado no fi nal de 2004 em São Paulo. Desse
trabalho também resultou o texto “Devoção
católica, culto indígena” e a pesquisa sobre o
módulo Arthur Bispo do Rosário, presente no
catálogo da exposição “Brasileiro, Brasileiros”
no Museu Afro-Brasl em 2004. Na pessoa de
Rita Amaral o NAU prestou consultoria ao
projeto de implementação do Museu da Igreja
Presbiteriana de Pinheiros, em 2004.
Desde 2003 o NAU pôde, através de um es-
paço virtual, expandir seus circuitos e contatos
através da criação do seu website: www.n-a-u.org.
Idealizado e produzido pela Profa. Dra. Rita Ama-
ral,2 o site hoje disponibiliza gratuitamente artigos
de autoria dos integrantes do Núcleo, inclusive
alguns artigos produzidos a partir de trabalhos de
alunos de graduação apresentados em edições dos
seminários Graduação em Campo, além de links de interesse para os temas de pesquisa, divulgação
2. Rita Amaral contribui, também, para a divulgação de
trabalhos realizados na área de Antropologia urbana
editando a revista eletrônica “Os Urbanitas, Revista
Digital de Antropologia Urbana”.
de eventos, contatos dos pesquisadores, lança-
mento de livros e outros temas relacionados com
a Antropologia Urbana. Através deste website, o
NAU vem estabelecendo um amplo diálogo via
Internet com pesquisadores de todo o país e tam-
bém estrangeiros, que demonstram ávido interes-
se na troca de conhecimentos. O NAU, por meio
de seu espaço virtual, vem realizando na prática,
e em grande escala (o site recebeu 100.000 aces-
sos únicos em 2 anos) a proposta de difundir e
ampliar conhecimentos e de estabelecer parcerias
com a comunidade acadêmica nacional e inter-
nacional. Diariamente o Núcleo recebe e-mails de alunos, professores e pesquisadores solicitando
informações, dados, enviando notícias etc. Em
2004, o website do NAU foi indicado e incluído
pelo Portal UOL como um dos cinco melhores
na categoria Antropologia. O NAU tem assesso-
rado também a imprensa em geral em matérias
sobre a vida nas cidades, eventos e grupos urba-
nos e sempre que possível as matérias publicadas
são disponibilizadas aos internautas no ícone clippings do NAU.
Também com instituições de ensino priva-
do o NAU tem estabelecido diálogo por inter-
médio, atualmente, das pesquisadoras docentes
Profa. Dra. Denise Pirani, da Pontifícia Univer-
sidade Católica de Minas Gerais e Profa. Lilian
De Lucca Torres, da Fundação Armando Álva-
res Penteado e das Faculdades Integradas Alcân-
tara Machado. A Profa. Rosa Maria M. López
intermedeia o diálogo do NAU com a Univer-
sidade Federal de São Paulo, abordando temas
antropológicos relativos a questões de saúde em
São Paulo. Já a Profa. Dra. Fraya Frehse tem se
envolvido, como docente da Escola de Sociolo-
gia e Política e até o início deste ano, da Escola
da Cidade, em pesquisas sobre áreas defi nidas
de São Paulo visando a formulação de políticas
públicas para tais localidades. Em particular na
Escola de Sociologia e Política coordenou, en-
tre abril e novembro de 2005, uma investigação
etnográfi ca com alunos de graduação e de pós-
202 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
graduação para a elaboração de um diagnóstico
situacional sobre o berço histórico do bairro da
Mooca, popularmente conhecido hoje em dia
como “Mooca Baixa”. Retomando, com nova
roupagem, a antiga tradição de estudos urbanos
da Escola, a pesquisa desembocou na constru-
ção de uma metodologia para a formulação de
diagnósticos para outras regiões da cidade, sen-
do que os resultados etnográfi cos do empreendi-
mento vêm sendo trabalhados pelos alunos em
artigos que comporão uma coletânea que Fraya
está organizando atualmente.
Este conjunto de pesquisadores formados,
pós-graduandos e graduandos (ver www.n-a-u.org/
pesquisadores.html) tem constituído uma inesti-
mável massa crítica e vem fazendo do NAU um
espaço acadêmico vivo, democrático e empenha-
do não somente em produzir conhecimento em
nível de excelência, mas também em torná-lo
acessível à comunidade acadêmica e à sociedade.
www.n-a-u.org
Núcleo de Antropologia Urbana da USP
Prof. Dr. José Guilherme Cantor Magnani
- Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva
Rita Amaral (NAU/USP); Luis Henrique Toledo (UFSCar);
Piero de Camargo Leirner (UFSCar); Ciméa Barbato Bevilaqua (UFPR);
Sandra Jacqueline Stoll (UFPR); Elisete Schwade (UFRN).
Lilian De Lucca Torres (FAAP-FIAM); Denise Pirani (PUC-MG);
Rosa Maria M. López (UNIFESP); Fraya Frehe (FESP).
Alexandre Barbosa Pereira; Eufrázia Cristina Menezes Santos;
Janine Helfst Leicht Collaço; Silvana de Souza Nascimento
Antonio Gracias Vieira; Bruna Mantese; Carolina de Camargo Abreu;
Carol Roxo; César Augusto de Assis Silva; Daniela do Amaral Alfonsi;
Fernanda Silva Noronha; Márcio José Macedo; Paulo Malvasi;
Rachel Rua Baptista; Th omás Meira; Natacha Leal
Ana Luiza Mendes Borges; Angélica de Almeida Durante Pacheco;
Camila Iwasaki; Clara de Assunção Azevedo; Henrique Generese;
Renata de Toledo Rodovalho.
Objetivo e política editorial
1. Cadernos de Campo – revista dos alunos de pós-graduação em antropologia social da USP é
uma publicação anual dedicada a divulgar tra-
balhos que versem sobre temas, resultados de
pesquisas e modelos teórico-metodológicos de
interesse para o debate antropológico contem-
porâneo e que possam contribuir no desenvolvi-
mento de pesquisas em nível de pós-graduação,
no país e no exterior. As contribuições podem ser
apresentadas nos seguintes formatos: artigos e
ensaios, traduções, resenhas, entrevistas e pro-duções visuais.
2. A pertinência para publicação das con-
tribuições será avaliada pela comissão editorial
– quanto à adequação ao perfi l e à linha editorial
da revista – e por pareceristas ad hoc – no que
toca ao conteúdo e à qualidade dos trabalhos. Os
nomes dos pareceristas permanecerão em sigilo,
omitindo-se também os nomes dos autores pe-
rante os primeiros.
3. A comissão editorial entende que a remes-
sa espontânea de qualquer colaboração implica
automaticamente a cessão integral dos direitos
autorais a Cadernos de Campo. Publicados os
trabalhos, a revista reserva-se esses direitos, mes-
mo os de tradução, permitindo entretanto a sua
posterior reprodução, desde que citada a devida
fonte.
4. Conceitos e opiniões expressos nos traba-
lhos publicados são de responsabilidade exclusiva
dos autores, não refl etindo obrigatoriamente a
opinião da comissão editorial.
Instruções para colaboradores
Critérios para apresentação de colaborações
5. De preferência redigidos em português,
Cadernos de Campo publicará eventualmente tra-
balhos em língua estrangeira (espanhol, francês
e inglês).
6. Os trabalhos devem ser apresentados em
duas vias impressas, acompanhadas de uma có-
pia em mídia eletrônica (de preferência e-mail
ou CD, conforme o caso). Os textos devem estar
digitados em página A4, fonte Times New Ro-
man, corpo 12, espaçamento 1,5 cm, com mar-
gens esquerda/direita 2,5 cm, cabeçalho/rodapé
3 cm, em processador de texto compatível com
MSWord. As notas devem ser numeradas com al-
garismos arábicos, em ordem crescente e listadas
ao pé da página. Quadros, mapas, tabelas, ima-
gens etc., devem ser enviados em arquivo separa-
do, com indicações claras, ao longo do texto, dos
locais em que devem ser incluídos. No caso das
fotografi as, devem estar digitalizadas com resolu-
ção acima de 300 dpi e formato TIFF.
a) Artigos e ensaios inéditos. Devem indi-
car título (em português e inglês), nome(s) do(s)
autor(es), titulação, afi liação acadêmica, endere-
ço para correspondência e e-mail; devem também
apresentar um resumo com no máximo 15 linhas
e um elenco de palavras-chave que identifi que seu
conteúdo (em português e inglês). Limite máxi-
mo de 30 páginas, incluídas as referências.
b) Traduções de trabalhos relevantes e indis-
poníveis em língua portuguesa. Devem apresentar
título, nome(s) do(s) autor(es) e do(s) tradutor(es),
indicando deste(s) último(s) titulação, afi liação
204 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
acadêmica, endereço para correspondência e e-
mail. Devem ainda ser acompanhadas de cópia do
original utilizado na tradução, bem como autori-
zação – do editor ou do autor – para publicação.
c) Resenhas de livros, coletâneas, disserta-
ções, teses, fi lmes, documentários, discos etc.
Devem indicar a referência bibliográfi ca do tra-
balho resenhado, nome(s) do(s) seu(s) autor(es),
acompanhado(s) de titulação, afi liação acadêmi-
ca, endereço para correspondência e e-mail. Não
devem ultrapassar 6 páginas.
d) Entrevistas. Devem apresentar o(s) nome(s)
do(s) entrevistado(s) e entrevistador(es), indican-
do, deste(s) último(s), titulação, afi liação acadê-
mica, endereço para correspondência e e-mail.
Devem trazer também uma apresentação de, no
máximo, 1 página. Solicitamos também o envio
da autorização do(s) entrevistado(s), concordando
com a publicação do trabalho. As entrevistas não
devem exceder 30 páginas.
e) Produções visuais – ensaios fotográfi cos,
ilustrações, desenhos, caricaturas etc. – devem
trazer título e nome(s) do(s) autor(es), indicando
titulação, afi liação acadêmica, endereço para cor-
respondência e e-mail. Apresentação e legendas
são opcionais, não podendo a primeira ultrapas-
sar 1 página. Os trabalhos não devem exceder 8
imagens, acompanhadas da indicação do autor e
do ano. Quando necessárias, solicitamos também
as devidas autorizações de uso da imagem.
7. Menções a autores ou citações presentes no
corpo do texto devem adequar-se aos respectivos
modelos: (Geertz 1957) e (Geertz 1957: 235).
Títulos do mesmo autor com o mesmo ano de
publicação devem ser identifi cados com uma letra
após a data: (Lévi-Strauss 1962a) e (Lévi-Strauss
1962b). Recomenda-se o uso da data original de
publicação da obra.
8. As referências bibliográfi cas devem vir ao fi -
nal do trabalho, listadas em ordem alfabética, obe-
decendo aos seguintes padrões exemplifi cados:
a) Livros: LÉVI-STRAUSS, Claude. 1962a. La pensée
sauvage. Paris: Plon.
___. [1962]b. O totemismo hoje, tradução de
M. B. Corrie. São Paulo: Abril Cultural, coleção
Os Pensadores, n. 50, 1980.
___. [1964] O cru e o cozido (mitológicas 1), tradução de B. Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac
& Naify, 2004.
b) Artigos em periódicos:
GEERTZ, Cliff ord. 1957. “Ethos, world view
and the analysis of sacred symbols”. Th e Antioch review, 17 (4): 234-267.
c) Trabalhos em coletâneas:
GEERTZ, Cliff ord. 1966. “Th e impact of the
concept of culture on the concept of man”. In J. Platt (org.), New view of the nature of man. Chi-
cago: University of Chicago Press, pp. 93-118.
d) Teses ou dissertações acadêmicas:DAWSEY, John Cowart. 1999. De que riem
os bóias-frias? Walter Benjamin e o teatro épico de Brecht em carrocerias de caminhões. Tese de livre-
docência. São Paulo: FFLCH-USP, datilo.
9. As contribuições devem ser enviadas para:
Comissão editorial Cadernos de CampoDepartamento de Antropologia/FFLCH/USP
Av. Professor Luciano Gualberto, 315
São Paulo, SP
CEP: 05508-900
e-mail: [email protected]
Para adquirir os números de Cadernos de Campo,
escreva para [email protected]
Nº 12 (2004)
ARTIGOS
Nova sociedade emergente: consumidores de pro-
dutos ou produção discursiva?
Diana Nogueira de Oliveira Lima
Os peregrinos ecléticos cristãos
Gláucia Buratto Rodrigues de Mello
Rompendo tabus: a subjetividade erótica no traba-
lho de campo
Luiz Fernando Rojo
Construindo narrativas orais: interações sociais no
trabalho de campo
Marilda A. Menezes, Lídia M. Arnaud Aires, Maria
R. de Souza
O altar no laboratório: a ciência e o sagrado no pro-
jeto genoma humano
Guilherme José da Silva e Sá
Processo criativo e apreciação estética no grafi smo
Wauja
Aristóteles Barcelos Neto
ARTES DA VIDA
Dádivas da oleira navegante: ensaio fotográfi co so-
bre a cerâmica Wauja
Aristóteles Barcelos Neto
TRADUÇÃO
Apresentação: Cliff ord Geetz e o “selvagem cere-
bral”: do mandala ao círculo hermenêutico
John C. Dawsey
O Selvagem Cerebral: sobre a obra de Claude Lévi-
Strauss, de Cliff ord Geertz
Tradução de Antonio Maurício Dias da Costa
Números anteriores
Nº 11 (2003)
ARTIGOS
Considerações sobre a diplomacia num encontro
etnográfi co
Cristina Patriota de Moura
Amazônia em movimento: “redes” e percursos entre
os índios Ye’kuana, Roraima
Elaine Moreira Lauriola
Analogismo: a natureza do social
Gilton Mendes dos Santos
Uma faxina na identidade de imigrantes brasileiras
Soraya Fleischer
A propósito dos 500 anos do Brasil: Saudações a
Oxalá e ao Senhor do Bonfi m no sertão de Minas
Gerais
Rubens Alves da Silva
Catolicismo, massa e revival: Padre Marcelo Rossi e
o modelo kitsch
Sílvia Regina Alves Fernandes
ARTES DA VIDA
Entre arabescos e mesquitas
Francirosy Campos Barbosa Ferreira
ENTREVISTA
Entrevista com Mariza Corrêa
Carolina Abreu, Francirosy Ferreira, Francisco Paes,
Janine Collaço, Ronaldo Trindade e Ugo Maia
TRADUÇÃO
Apresentação: Roger Bastide e questões de mudança
cultural
Fernanda Arêas Peixoto
206 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
Sociologia das Mutações Religiosas, de Roger Bastide
Tradução de Rita de Cássia Amaral
RESENHAS
Ecologia Humana, de Daniel E. Brown e Edward
Kormondy
Ana Beatriz Miraglia e Joana Cabral de Oliveira
Art and Agency: an Anthropological Th eory, de Alfred
Gell
Aristóteles Barcelos Neto
Nº 10 (2002)
ARTIGOS
Narrativas e o modo de apreendê-las: a experiência
entre os caxinauás
Eliane Camargo
O Nome “Índio”: patronímico étnico como supor-
te simbólico de memória e emergência indígena no
Médio Jequitinhonha – Minas Gerais
Izabel Missagia de Mattos
Etnias de fronteira e questão nacional: o caso dos
“regressados” em Angola
Luena Nascimento Nunes Pereira
Atores/Autores: histórias de vida e produção acadê-
mica dos escritores da homossexualidade no Brasil
José Ronaldo Trindade
Um grande atrator: toré e articulação (inter)étnica
entre os Tumbalalá do sertão baiano
Ugo Maia Andrade
ARTES DA VIDA
Fotos de Luiz de Castro Faria
ENTREVISTA
Entrevista com Luiz de Castro Faria
Ana Paula Mendes de Miranda e Melvina Afra
Mendes de Araújo
TRADUÇÃO
Apresentação: Sylvia Caiuby Novaes
Estruturas elementares de reciprocidade: uma nota
comparativa sobre o pensamento sócio-político nas
Guianas, Brasil Central e Noroeste Amazônico, de
Joanna Overing
Tradução de Renato Sztutman
RESENHAS
Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos, de Loïc Wacquant
Antônio Rafael
O Mundo das calçadas: por uma política democrática de espaços públicos, de Eduardo Yázigi
Fraya Frehse
COMUNICAÇÕES E INFORMES
Informe sobre teses e dissertações defendidas no
Departamento de Antropologia da USP: janeiro de
2001 a dezembro de 2001
Nº 9 (2000)
ARTIGOS
Noções sociais de infância e desenvolvimento in-
fantil
Clarice Cohn
Elipses temporais e o inesperado na pesquisa etno-
gráfi ca sobre crise e medo na cidade de Porto Ale-
gre
Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert
A natureza da fartura
Flávia Maria Galizoni
As práticas e os cuidados relativos à saúde entre os
Karipuna do Uaçá
Laercio Fidelis Dias
Militância na cabeça, direitos humanos no coração e
os pés no sistema: o lugar social do advogado popular
Laura D. von Mandach
Aprendendo novas formas de representação polí-
tica: as inter-relações entre cursos de formação de
professores Waiãpi e o Conselho APINA
Silvia L. da S. Macedo Tinoco
ARTES DA VIDA
Artefatos dos povos indígenas do Oiapoque, Amapá
Miguel Pacheco Chaves
ENTREVISTA
Entrevista com Lux Vidal
Alecsandro J. P. Ratts, Fraya Frehse, Janine H. L.
Collaço e Melvina A. M. de Araújo
|
cadernos de campo • n. 13 • 2005
TRADUÇÃO
Apresentação: Marshall Sahlins ou por uma antro-
pologia estrutural e histórica
Lilia Moritz Schwarcz
Antropologia e história em Marshall Sahlins: “In-
trodução” e “Conclusão” de Historical Metaphors and Mythical Realities, de Marshall Sahlins
Tradução de Fraya Frehse
RESENHAS
A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no nordeste indígena, de João Pacheco de
Oliveira (org.)
Melvina Afra Mendes de Araújo
Oktoberfest: turismo, festa e cultura na estação do chopp,
de Maria Bernadete Ramos Flores
Sidney Antonio da Silva
COMUNICAÇÕES E INFORMES
Informe sobre teses e dissertações defendidas no
Departamento de Antropologia da USP: setembro
de 1999 a outubro de 2000
Nº 8 (1999)
ARTIGOS
A irmandade em redefi nição: tensões entre tradição
e coletivização num grupo camponês
Alessandra Schmitt
Soltando o Leão: observações sobre as práticas de
fi scalização do Imposto de Renda
Ana Paula Mendes de Miranda
Almofala dos Tremembé: a confi guração de um ter-
ritório indígena
Alecsandro J. P. Ratts
De festas, viagens e xamãs: refl exões primeiras sobre
os encontros entre Waiãpi setentrionais meridionais
na fronteira Amapá-Guiana Francesa
Renato Sztutman
Os peões de gado e a representação dos animais no
Pantanal da Nhecolândia
Álvaro Banducci Júnior
ENTREVISTA
Entrevista com Alba Zaluar
Alessandra El Far, Ana Paula Mendes de Miranda,
Edgar Teodoro da Cunha, Fraya Frehse, Melvina
Mendes de Araújo e Ronaldo R. M. de Almeida
TRADUÇÃO
Apresentação: A casa Kabyle na perspectiva estrutu-
ralista de Pierre Bourdieu
Paula Montero
A casa kabyle ou o mundo às avessas, de Pierre
Bourdieu
Tradução de Claude G. Papavero
RESENHAS
Tremembé, Torém, Etnicidade e Campo Indigenis-
ta, de Gerson Augusto Oliveira Júnior
Luena Nascimento Nunes Pereira
Antropologia urbana. Cultura e sociedade no Brasil
e em Portugal, de Gilberto Velho (org.)
Alessandra El Far
COMUNICAÇÕES E INFORMES
Direito, política e meio ambiente: diálogos entre a
Antropologia e a Ciência Política no NUFEP/UFF
Roberto Kant de Lima
Informe sobre teses e dissertações defendidas no
Departamento de Antropologia da USP: outubro
de 1998 a agosto de 1999
Nº 7 (1998)
ARTIGOS
Imposto de Renda e contribuintes de camadas mé-
dias: notas sobre a sonegação
Ciméa Bevilaqua
O Antropólogo no campo da justiça, o investigador
e a testemunha ocular
Joana Domingues Vargas
A formação de um grupo de imortais nos primeiros
anos da República
Alessandra El Far
Trocas, facções e partidos: um estudo da vida políti-
ca em Araruama-RJ
Ana Cláudia Coutinho Viegas
208 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
Antropólogos vão ao cinema: observações sobre a
constituição do fi lme como campo
Rose Satiko Gitirana Hikiji
Cidadania e práticas sociais: as disputas entre em-
pregadas e empregadores domésticos pela mediação
do sindicato
ENTREVISTA
Entrevista com Ruth Cardoso
Alessandra El Far, Carlos Machado Dias Jr., Edgar
Teodoro da Cunha, Fraya Frehse e Ronaldo R. M.
de Almeida
DEBATE
A responsabilidade ética e social do antropólogo
Dominique Gallois, Mariana K. L. Ferreira e Vag-
ner Gonçalves da Silva
TRADUÇÃO
Os dilemas do antropólogo entre “estar lá” e “estar
aqui”: primeiro e último capítulo de Works and li-ves: the anthropologist as author, de Cliff ord Geertz
Tradução de Fraya Frehse
RESENHAS
Diário no sentido estrito do termo, de Bronislaw Ma-
linowski
Vagner Gonçalves da Silva
Woman in the fi eld: anthropological experiences, de
Peggy Golde (ed.)
Heloisa Buarque de Almeida
A heresia dos índios: catolicismo e rebelião no Brasil colonial, de Ronaldo Vainfas
Marcos Pereira Rufi no
COMUNICAÇÕES E INFORMES
Extrativismo mineral por e para comunidades indí-
genas da Amazônia: a experiência do garimpo entre
os Waiãpi do Amapá e os Kaiapó do sul do Pará
Terence Turner
Informe sobre teses e dissertações defendidas no
Departamento de Antropologia da USP: setembro
de 1997 a setembro de 1998
Nº 5-6 (1995-1996)
ARTIGOS
Do velho ao antigo: etnografi a do surgimento de
um patrimônio
Bernardo Lewgoy
Classifi cações êmicas da natureza: a etnobiologia no
Brasil e a socialização das espécies naturais
Eduardo Carrara
Poder criativo e domesticação produtiva na estética
piaroa e kaxinwá
Elsje Maria Lagrou
Metáforas convencionais & atribuição de crenças
Paulo A. G. Sousa
A metáfora do olhar em Janela indiscreta, de Alfred
Hitchcock
José de Souza Martins
Quando o Metro era um palácio: salas de cinema e
modernização em São Paulo
Heloísa Buarque de Almeida
Entre largo e praça, matriz e catedral: a Sé nos car-
tões-postais paulistanos
Fraya Frehse
Representações depreciativas e espaços: notas sobre
um estudo de caso
Maria das Graças Furtado
Da raça à identidade: da disputa por paradigmas na
ciência do outro
Andreas Hofbauer
ENTREVISTA
Falando de Antropologia
Entrevista com Roberto Cardoso de Oliveira
Luís Donizete Benzi Grupioni e Maria Denise Fa-
jardo Grupioni
TRADUÇÃO
Édipo e Jó na África Ocidental, de Meyer Fortes
Tradução de Samuel Titan Jr.
RESENHAS
Em busca da China Moderna, de Jonathan Spence
Marcos Lanna
|
cadernos de campo • n. 13 • 2005
Under the rainbow. Nature and supernature among the Panare Indians, de Jean-Paul Dumont
Renato Sztutman
A trama das imagens, de Paulo Menezes
Rose Satiko Gitirana Hikiji
A vez e a voz do popular: movimentos populares e participação política no Brasil pós 70, de Ana Maria
Doimo
Carolina Moreira Marques
COMUNICAÇÕES E INFORMES
Imagens e o olhar das Ciências Sociais: a trajetória
do GRAVI
Edgar Teodoro da Cunha
Informe sobre teses e dissertações defendidas no De-
partamento de Antropologia da USP: 1995 a 1997
Nº 4 (1994)
ARTIGOS
Katukina, Yawanawa e Marubo: desencontros míti-
cos e encontros históricos
Edilene Coff aci de Lima
Antropólogos e seus Sortilégios: uma releitura do “Es-
boço de uma teoria da magia” de Mauss e Hubert
Emerson Alessandro Giumbelli
O Pluralismo Médico Wayana-Aparai: a intersecção
entre a tradição local e a global
Paula Morgado
Homo Solitarius: notas sobre a gênese da solidão
moderna
Celso Castro
Máscaras Iluministas: os usos retóricos do selvagem
Samuel Titan Jr.
A Reforma da Cultura Popular e suas Implicações
para a Construção do Sujeito Moderno
Fabíola Rohden
ENTREVISTA
Entrevista com Darcy Ribeiro
Luís Donizete Benzi Grupioni e Maria Denise Fa-
jardo Pereira
TRADUÇÕES
Apresentação: Introdução ao “Signifi cado Etnológi-
co das Doutrinas Esotéricas”, de Franz Boas
Margarida Maria Moura
Signifi cado Etnológico das Doutrinas Esotéricas
Franz Boas
Tradução de Margarida Maria Moura
Apresentação: Introdução a “A ‘Doença’ E Suas
‘Causas’”, de Andras Zempléni
Paula Morgado
A “Doença” e suas “Causas”, de Andras Zempléni
Tradução de Solange Unti Cunha Pinto
RESENHAS
No encalço da luta cidadã
Privado porém público: o terceiro setor na América La-tina, de Rubem César Fernandes
Marcos Pereira Rufi no
As redes e o cotidiano em Laboratory LifeLaboratory Life: Th e construction of scientifi c facts, de
Bruno Latour & Steve Woogar
Luís Eduardo Lacerda de Abreu
Os Bororo e a Igreja Católica: paradoxos da identi-
dade vistos em um caleidoscópio
Jogo de espelhos: imagens da representação de si através dos outros, de Sylvia Caiuby Novaes
Ana Lúcia Marques Camargo Ferraz
COMUNICAÇÕES E INFORMES
O grupo MARI: educação e respeito à diversidade
brasileira
André Luiz da Silva
Informe sobre teses e dissertações defendidas no De-
partamento de Antropologia da USP: 1991 a 1994
Nº 3 (1993)
ARTIGOS
A “Aquarela do Brasil”: refl exões preliminares sobre
a construção nacional do samba e da capoeira
Letícia Vidor de Souza Reis
Por que xingam os torcedores de futebol?
Luiz Henrique de Toledo
210 |
cadernos de campo • n. 13 • 2005
Quando 1 + 1 = 2: práticas matemáticas no Parque
Indígena do Xingu
Mariana Kawall Leal Ferreira
As mulheres negras do Oriashé: música e negritude
no contexto urbano
Luciana Ferreira Moura Mendonça
Para não ver cara nem coração: um estudo sobre o
serviço telefônico Disque-Amizade
Lilian de Lucca Torres
Bakhtin, Ginzburg e a cultura popular
Karina Kuschnir
Durkheim: uma análise dos fundamentos simbó-
licos da vida social e dos fundamentos sociais do
simbolismo
Heloísa Pontes
TRADUÇÃO
Apresentação: Introdução: a questão colonial revi-
sitada
Paula Montero
A noção de situação colonial, de Georges Balandier
Tradução de Nicolás Nyimi Campanário
ENTREVISTA
Entrevista com George Marcus
Heloísa Buarque de Almeida, Lídia Marcelino Re-
bouças e Vagner Gonçalves da Silva
RESENHAS
O espetáculo das raças
O espetáculo das raças, de Lilia Moritz Schwarcz
Alessandra El Far
Estrangeiros no Brasil
Estrangeiros no Brasil, de Fernanda Peixoto Massi
Ana Paula Cavalcanti Simioni
As ilusões do multiculturalismo
Questão de raça, de Cornel West
Omar Ribeiro Th omaz
COMUNICAÇÕES E INFORMES
Carnaval: o potlatch da sociedade complexa no Brasil
Angelo José Perosa
Até que nem tão Esotérico assim: o NAU e suas ca-
minhadas pelas formas de lazer e práticas esotéricas
da grande cidade
Flávia Prado Moi e Renato Sztutman
Nº 2 (1992)
ARTIGOS
Entre penas e cores: cultura material e identidade
bororo
Luís Donizete Benzi Grupioni
“Vídeo nas aldeias”: a experiência Waiãpi
Dominique T. Gallois e Vicent Carelli
Da exclusão à participação: o movimento social dos
trabalhadores atingidos por barragens
Lidia Marcelino Rebouças
Tribos urbanas: metáfora ou categoria?
José Guilherme Cantor Magnani
Dilemas da modernidade no mundo contemporâneo
Paula Montero
Ficção científi ca: um mito moderno
Piero de Camargo Leirner
Lógica e racionalidade em Lévi-Strauss
Felipe Soeiro Chaimovich
A antropologia e a “refl exão inacabada” em Merleau-
Ponty
Alberto Alonso Muñoz
A força e a fraqueza do argumento anti-liberal demo-
crata: a crítica à Primeira República em Oliveira Vian-
na, Sérgio Buarque de Holanda e Vitor Nunes Leal
Fernando Luiz Abrucio
A origem do Homo Sapiens Sapiens: uma questão
ainda não esclarecida
Diogo Meyer
Indigenismo sanitário? Instituições, discursos e po-
líticas indígenas no Brasil contemporâneo
István Van Deursen Varga
TRADUÇÃO
O sagrado selvagem, de Roger Bastide
Tradução de Rita de Cássia Amaral
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cadernos de campo • n. 13 • 2005
ENTREVISTA
Entrevista com Claude Lévi-Strauss
Edmundo Magaña
RESENHAS
As estratégias textuais de Cliff ord Geertz
El antropologo como autor, de Cliff ord Geertz
Fernanda Massi
Rock brasileiro: retratos de uma tribo urbana
Retratos de uma tribo urbana, de Almerinda Sales
Guerreiro
Heloísa Buarque de Almeida
A morte é uma festa
A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX, de João José Reis
Íris Kantor
Índios no Brasil: os caminhos do futuro
Índios no Brasil, de Luís Donizete Benzi Grupioni
Edmundo Antônio Peggion
COMUNICAÇÕES E INFORMES
Estes quinhentos e outros tantos
Marcos Pereira Rufi no
Relações sujeito-objeto na pesquisa antropológica:
seminário temático e exposição fotográfi ca
Maria Denise Fajardo Pereira
Índios no Brasil: alteridade, diversidade e diálogo
cultural
Lilia Katri Moritz Schwarcz
Nº 1 (1991)
ARTIGOS
As tatuagens e a criminalidade feminina
Marina Albuquerque Mendes da Silva
Loucas, agitadas, doentes ou perigosas: representa-
ção e cotidiano das internas do Hospital de Juqueri
Cristina Pozzi Redko
Duas mulheres negras: histórias de religiosidade po-
pular e resistência
Neusa Maria Mendes de Guesmão
Ana Lúcia E. P. Valente
Ex-escrava proprietária de escrava: um caso de Seví-
cia na Bahia do século XIX
Jocélio Teles dos Santos
A crítica antropológica pós-moderna e a construção
textual da etnografi a religiosa afro-brasileira
Vagner Gonçalves da Silva
A etnopoesia de Hubert Fichte
Plácido Alcântara
TRADUÇÃO
Da cosmologia à história: resistência, adaptação e
consciência social entre os Kayapó, de Terence Turner
Tradução de David Soares
ENTREVISTA
Novas propostas para a pós-graduação: a academia
deve estar mais perto da sociedade
Entrevista com Eunice Ribeiro Durham
Luís Donizete Benzi Grupioni e Omar Ribeiro
Th omaz
RESENHAS
M. M. para não íntimos
Margaret Mead: uma vida de controvérsia, de Phyllis
Grosskurth
Luís Donizete Benzi Grupioni
Os escritos de uma “conquista”: a educação escolar
indígena
OPAN: a consquista da escrita, de Loretta Emiri e
Ruth Monserrat (org.)
Marina Kahn
Mutirão: utopia e necessidade, de Jeanne Bisilliat-
Gardet (org.)
Zulmara Salvador
COMUNICAÇÕES E INFORMES
A nova LDB e os índios: a rendição dos caras-pálidas
Luís Donizete Benzi Grupioni
Declaração Universal dos Direitos Coletivos dos Povos
Clara Massip
MARI: Grupo de estudos de educação indígena
Tribunal permanente dos povos
Lux Vidal