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11 Eng Sanit Ambient | v.19 n.1 | jan/mar 2014 | 11-22 RESUMO O presente trabalho apresenta resultados de estudos analítico-experimentais visando à verificação das condições de estanqueidade de bacias de contenção de tanques de armazenamento de combustíveis de um terminal portuário situado no Nordeste brasileiro. Com esse objetivo, foi efetuado estudo de caso com foco na avaliação da vulnerabilidade ambiental de duas áreas de estocagem distintas, para as quais foi realizada uma simulação transiente do avanço da frente de contaminação em um cenário hipotético de grande derramamento acidental de combustível em um terreno não saturado. Para o desenvolvimento dos estudos, procedeu-se à realização de uma extensa campanha de investigações geotécnicas de campo e de laboratório e à realização de simulações numéricas de fluxo multi fásico, com o emprego do método dos elementos finitos. Palavras-chave: solo não saturado; simulação numérica; fluxo multifásico; hidrocarboneto. 1 Doutorando em Recursos Hídricos pela Universidade Federal do Ceará (UFC) – Fortaleza (CE), Brasil. Engenheiro da Petrobras Transporte S.A. – Fortaleza (CE), Brasil. 2 Doutor em Métodos Computacionais Aplicados à Engenharia pela Drexel University – Filadélfia (PA), Estados Unidos da América. Professor Adjunto da UFC – Fortaleza (CE), Brasil. Endereço para correspondência: Vitor Aderaldo Demétrio de Souza – Petrobras Transporte S.A – Avenida Santos Dumont, 2.122, sala 805 – 60150-161 – Fortaleza (CE), Brasil – E-mail: [email protected] Recebido: 29/03/10 – Aceito: 03/09/13 – Reg. ABES: 5310 Artigo Técnico Análise de fluxo multifásico em solo não saturado para verificação da vulnerabilidade ambiental de bacias de contenção de tanques de armazenamento de combustível Multiphase flow analysis in unsaturated soils for evaluation of environmental vulnerability of diversion ponds around oil storage tank areas Vitor Aderaldo Demétrio de Souza 1 , Marco Aurélio Holanda de Castro 2 ABSTRACT This work presents results of analytical and experimental studies concerning the evaluation of permeability conditions of spill diversion ponds around fuel storage tanks located in a Brazilian northeast industrial plant. For this purpose, a case study was carried out in order to assess the environmental vulnerability of two distinct storage areas, by means of transient numerical simulations of contaminant advance in unsaturated soil after a hypothetical accident with hydrocarbon spill. For the development of the study, extensive geotechnical field and laboratory investigations were carried out, and numerical multiphase flow simulations were accomplished with the use of the finite element method. Keywords: unsaturated soil; numerical simulation; multiphase flow; hydrocarbon. INTRODUÇÃO O estudo das condições de estanqueidade de bacias de contenção de tanques em áreas de armazenamento de combustíveis tem recebido grande impulso no Brasil nos últimos anos, em virtude de restrições normativas e de novas exigências de legislação. Nesse contexto, a avaliação de uma possível contaminação do sub- solo e do aquífero decorrente de um vazamento de hidrocarbonetos em cenário acidental passou a constituir importante foco de atenção de leis ambientais brasileiras. Em âmbito nacional, a Lei n o 9.966 (Lei do Óleo, de 28 de abril de 2000) estabelece que portos organizados, terminais, plataformas e equi- pamentos de apoio deverão dispor de estudo técnico para a definição das características das instalações e dos meios destinados ao recebi- mento e tratamento de resíduos e ao combate da poluição. Quanto às exigências normativas vigentes, a NBR 17505-2, de 2006, estabelece que a área interna de bacias de contenção para tanques estacionários de líquidos inflamáveis deve ter condutividade hidráu- lica máxima de 10 -6 cm.s -1 , referenciada à água. Em casos em que as

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  • 11Eng Sanit Ambient | v.19 n.1 | jan/mar 2014 | 11-22

    ResumoO presente trabalho apresenta resultados de estudos analítico-experimentais

    visando à verificação das condições de estanqueidade de bacias de contenção de

    tanques de armazenamento de combustíveis de um terminal portuário situado

    no Nordeste brasileiro. Com esse objetivo, foi efetuado estudo de caso com foco

    na avaliação da vulnerabilidade ambiental de duas áreas de estocagem distintas,

    para as quais foi realizada uma simulação transiente do avanço da frente de

    contaminação em um cenário hipotético de grande derramamento acidental

    de combustível em um terreno não saturado. Para o desenvolvimento dos

    estudos, procedeu-se à realização de uma extensa campanha de investigações

    geotécnicas de campo e de laboratório e à realização de simulações numéricas

    de fluxo multifásico, com o emprego do método dos elementos finitos.

    Palavras-chave: solo não saturado; simulação numérica; fluxo multifásico;

    hidrocarboneto.

    1Doutorando em Recursos Hídricos pela Universidade Federal do Ceará (UFC) – Fortaleza (CE), Brasil. Engenheiro da Petrobras Transporte S.A. – Fortaleza (CE), Brasil.2Doutor em Métodos Computacionais Aplicados à Engenharia pela Drexel University – Filadélfia (PA), Estados Unidos da América. Professor Adjunto da UFC – Fortaleza (CE), Brasil.Endereço para correspondência: Vitor Aderaldo Demétrio de Souza – Petrobras Transporte S.A – Avenida Santos Dumont, 2.122, sala 805 – 60150-161 – Fortaleza (CE), Brasil – E-mail: [email protected] Recebido: 29/03/10 – Aceito: 03/09/13 – Reg. ABES: 5310

    Artigo Técnico

    Análise de fluxo multifásico em solo não saturado para verificação da vulnerabilidade

    ambiental de bacias de contenção de tanques de armazenamento de combustível

    Multiphase flow analysis in unsaturated soils for evaluation of environmental vulnerability of diversion ponds around oil storage tank areas

    Vitor Aderaldo Demétrio de souza1, marco Aurélio Holanda de Castro2

    AbstRACtThis work presents results of analytical and experimental studies

    concerning the evaluation of permeability conditions of spill diversion

    ponds around fuel storage tanks located in a Brazilian northeast

    industrial plant. For this purpose, a case study was carried out in order

    to assess the environmental vulnerability of two distinct storage areas,

    by means of transient numerical simulations of contaminant advance

    in unsaturated soil after a hypothetical accident with hydrocarbon

    spill. For the development of the study, extensive geotechnical

    field and laboratory investigations were carried out, and numerical

    multiphase flow simulations were accomplished with the use of the

    finite element method.

    Keywords: unsaturated soil; numerical simulation; multiphase flow;

    hydrocarbon.

    InTroduçãoO estudo das condições de estanqueidade de bacias de contenção de tanques em áreas de armazenamento de combustíveis tem recebido grande impulso no Brasil nos últimos anos, em virtude de restrições normativas e de novas exigências de legislação.

    Nesse contexto, a avaliação de uma possível contaminação do sub-solo e do aquífero decorrente de um vazamento de hidrocarbonetos em cenário acidental passou a constituir importante foco de atenção de leis ambientais brasileiras.

    Em âmbito nacional, a Lei no 9.966 (Lei do Óleo, de 28 de abril de 2000) estabelece que portos organizados, terminais, plataformas e equi-pamentos de apoio deverão dispor de estudo técnico para a definição das características das instalações e dos meios destinados ao recebi-mento e tratamento de resíduos e ao combate da poluição.

    Quanto às exigências normativas vigentes, a NBR 17505-2, de 2006, estabelece que a área interna de bacias de contenção para tanques estacionários de líquidos inflamáveis deve ter condutividade hidráu-lica máxima de 10-6 cm.s-1, referenciada à água. Em casos em que as

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    Souza, V.A.D. & Castro, M.A.H.

    bacias de contenção tenham canaletas em concreto armado, com área de escoamento mínima de 900 cm² (em torno dos tanques e demais pontos passíveis de vazamentos e direcionando, preferencialmente, os vazamentos para um sistema de drenagem), é admitida uma conduti-vidade de 10-4 cm.s-1, também relativa à água.

    Como métodos de impermeabilização admissíveis, a NBR 17505-2 recomenda, nos casos em que as condições locais sejam desfavoráveis, o revestimento dos diques com terra, aço, concreto ou alvenaria sólida.

    Contudo, é conhecido o fato de que a efi ciência das bacias de contenção não deve ser avaliada exclusivamente por critérios de con-dutividade em relação à água. Essa efi ciência deve considerar, entre outras, as características dos produtos armazenados, a condutivi-dade do material com relação ao produto armazenado, a profundi-dade do lençol freático e as distâncias das bacias de contenção dos pontos de exposição, tais como rios, lagos, estuários e áreas de pro-teção (CORSEUIL et al., 2006).

    Internacionalmente, tal enfoque já consta em diversas legislações ambientais, e.g. U.S. Environmental Protection Agency (EPA, 2002) e California Codes (2003). A primeira referência, da Agência de Proteção Ambiental Americana, constitui a principal regulamentação relativa ao tema nos Estados Unidos (CORSEUIL et al., 2006). Em seu Registro Federal 40, CFR 112, Oil Pollution Prevention (2002), a U.S. EPA esta-belece que as bacias de contenção, diques e bermas sejam “sufi ciente-mente impermeáveis” aos compostos armazenados nos tanques, sem especifi car uma condutividade hidráulica máxima.

    Nessa perspectiva, a U.S. EPA não simplesmente fi xa um parâme-tro hidráulico, mas exige que o material das bacias de contenção deva estar apto a conter derramamentos até que o poluente seja removido da bacia de contenção, considerando a especifi cidade local. Desse modo, um mesmo solo pode ser considerado “impermeável” a um determi-nado produto, ao mesmo tempo em que pode ser inadequado à con-tenção de outro combustível de propriedades diferentes (e.g., um fl uido de menor viscosidade).

    No Brasil, o Decreto Estadual (BA) no 11.235, de 2008, Art. 68, já incorpora essa última vertente ao preconizar que “toda a área de esto-cagem de produtos tóxicos, infl amáveis ou corrosivos deverá ser pro-vida de dique de contenção devidamente impermeabilizado”, sem fazer menção a valores admissíveis.

    Tal abordagem requer a elaboração de investigações geotécnicas de campo e laboratório e estudos técnicos pormenorizados com vista a uma adequada caracterização do sítio a analisar.

    Este trabalho tem como objetivo a apresentação de resultados obtidos em estudo de caso relativo à estanqueidade de bacias de con-tenção de tanques de armazenamento de combustíveis em operação e a avaliação de aspectos relevantes à inferência da vulnerabilidade ambiental do subsolo e do aquífero local em caso de grande derrame acidental de combustíveis. As simulações aqui apresentadas têm viés

    essencialmente prático e se restringiram à análise de fl uxo multifásico em solo não saturado — não sendo abordados, no presente trabalho, aspectos associados ao transporte de contaminantes no meio poroso.

    MeTodoloGIAA abordagem do problema adotada neste trabalho segue a tendência dos estudos mais recentes relacionados ao tema no Brasil (CORSEUIL et al., 2006; MACHADO, 2008), nos quais é estabelecido um tempo de resposta factível para o tratamento da ocorrência e estimada a profundidade de penetração do contaminante no solo. Uma bacia de contenção poderia ser, nessa ótica, considerada como sufi cientemente impermeável caso os eventuais impactos ambientais sejam compatíveis com o plano de contingência e as características locais.

    Neste estudo, optou-se por não adotar limites de profundidade de contaminação pré-determinados, de modo que se permita que a deci-são sobre a necessidade de se intervir em uma área específi ca fi que a critério do analista (desde que essa decisão esteja provida de ferramen-tas de análise e de dados experimentais consistentes). Conforme suge-rido por EPA (2002), ao proprietário ou operador de terminal deveria ser deixada a fl exibilidade de decidir sobre o método a ser adotado na prevenção contra um eventual derramamento de óleo, devendo ser considerado sufi ciente qualquer método que satisfaça essa fi nalidade.

    Aspectos teóricosCom vista à realização dos estudos, foi empregado o soft ware MOFAT (KATYAL et al., 1991, publicado pela U.S. EPA) para a análise de fl uxo multifásico em meios porosos, desenvolvido com base no método dos elementos fi nitos. Com o uso dessa ferramenta, procedeu-se à análise do regime de fl uxo em solos não saturados a partir do escalonamento da função de condutividade hidráulica e da curva característica de suc-ção dos solos (determinadas para o par água/ar), transformando-as em curvas multifásicas.

    No caso em análise, a curva característica e a função de conduti-vidade do solo são modifi cadas em função de suas tensões superfi ciais e interfacial, considerando-se os poros preenchidos com mais de uma fase líquida – o hidrocarboneto ou NAPL (Non Aqueous Phase Liquid). O modelo empregado utiliza as Equações 1 a 3:

    (1)

    (2)

    (3)

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    Modelagem de fluxo multifásico em solo não saturado

    nas quais,φ: porosidade – adimensional [-];SW, SO, SA: saturação das fases água, óleo e ar, respectivamente [-];t: tempo [T];KW, KO, KA: tensor de condutividade para as fases água, óleo e ar, res-pectivamente [L/T];hW, hO, hA: altura de água equivalente à carga de pressão da fase p – água (w), óleo (o) ou ar (a) –, dada por hP = PP / g ρw [L];PP: pressão relativa à fase p [M/LT

    2];g: aceleração da gravidade [L/T2];ρW, ρO, ρA: densidade das fases água, óleo e ar, respectivamente [M/LT2];RW, RO, RA: razão de transferência de massa por unidade de volume nas fases água, óleo e ar [M/L3];uZ: vetor unitário gravitacional, no qual z é a elevação – adotando-se sentido positivo para cima [-].

    As relações de condutividade entre fases, saturações e pressões são descritas por meio da extensão para três fases do modelo de Van Genuchten, do qual derivam as cargas de pressão capilar defi nidas nas Equações 4 a 6:

    hAW = hA - hW [L] (4)

    hOW = hO - hW [L] (5)

    hAO = hA - hO [L] (6)

    Antes da entrada de óleo em um determinado ponto da massa de solo, o domínio é constituído por um sistema bifásico (ar e água) repre-sentado pela formulação de Van Genuchten (1980), conforme Equação 7:

    (7)

    na qual, SW é a saturação de água efetiva, defi nida pela Equação 8:

    (8)

    SM é a saturação de água residual;α [L-1] e n [-] são parâmetros de Van Genuchten para o meio poroso, sendo [-].

    Após a entrada do óleo no meio poroso, o sistema passa a ser des-crito com base nas Equações 9 e 10:

    (9)

    (10)

    na qual,SW: saturação aparente de água [-];ST : saturação total líquida efetiva [-];βAO: fator de escala estimado pela razão entre as tensões superfi ciais da água e do óleo [-];βOW: fator de escala estimado pela razão entre a tensão superfi cial da água e a tensão interfacial água-óleo [-];

    A saturação aparente da água, SW, é expressa pela Equação 11:

    (11)

    na qual,SOT é a saturação efetiva de óleo no meio poroso [-], estimada pela equação de Land:

    , se ; ou

    , se , com e (12)

    SWmin: mínima saturação efetiva de água [-], desde a entrada do NAPL

    no meio;SRO

    max: máxima saturação efetiva residual de óleo [-], expressa por SO/(1-SM).Os valores de saturação de água e óleo são determinados com base nas Equações 13 e 14:

    (13)

    (14)

    Os valores de condutividade [L/T] das três fases são dados pelas Equações 15 a 17:

    KWij = kRW . KSWij (15)

    KOij = kRO . KSWij/ηRO (16)

    KAij = kRA . KSWij/ηRA (17)

    na qual,KRW, KRO, KRA: condutividade relativa das fases água, óleo e ar [-];

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    ηRO, ηRA: razão entre as viscosidades do óleo e do ar com relação à água, respectivamente [-];KSWij: tensor de condutividade saturada da água [L/T];

    As expressões de condutividade relativa entre fases são apresenta-das pelas Equações 18 a 20:

    (18)

    (19)

    (20)

    O soft ware empregado nas análises aplica o método de Galerkin para a solução numérica das equações diferenciais supracitadas com o uso de elementos fi nitos quadrangulares.

    Um aspecto importante a ser mencionado diz respeito aos erros que podem ser cometidos na avaliação do avanço da frente de conta-minação com o emprego da condutividade hidráulica do hidrocarbo-neto determinada a partir de relações entre densidade e viscosidade (formulação de Nutting), defi nidas pela Equação 21:

    (21)

    na qual,K: condutividade hidráulica saturada do fl uido [L/T];k: permeabilidade intrínseca do meio poroso [L2];ρ: densidade do fl uido [M/L3];g: aceleração da gravidade [M/T2];η: viscosidade dinâmica [M/LT].

    Com base na formulação acima, a condutividade hidráulica saturada do solo ao produto armazenado poderia ser obtida a par-tir das propriedades dos fluidos de interesse, normalmente a água (w) e o produto (p):

    (22)

    De acordo com Machado (2008), essa relação conduz a resulta-dos satisfatórios para meios granulares e inertes (e.g., areias), já que a permeabilidade intrínseca, nesses casos, pode ser de fato considerada uma propriedade exclusiva do meio poroso.

    Todavia, para solos argilosos são frequentemente observadas diferenças significativas entre valores de condutividade medidos e calculados (KP determinado a partir de KW). Tais erros estariam

    associados a inúmeros fatores, tais como alterações na permeabi-lidade intrínseca do solo (pelo efeito de forças de atração elétrica entre o produto e a partícula argilosa, entre outros), interações físico-químicas e a diferença de polaridade entre a água e os líqui-dos orgânicos (representada pelos valores da constante dielétrica dos fluidos em análise).

    De um modo geral, os valores de KP calculados para o hidrocarbo-neto a partir de KW tendem a ser inferiores aos medidos em laboratório, embora apresentem grande dispersão de resultados, inclusive exibindo valores superiores aos determinados experimentalmente.

    Por outro lado, quando estimados a partir de valores de con-dutividade medidos por intermédio de outro hidrocarboneto, de constante dielétrica similar, os valores calculados de KP ten-dem a se aproximar dos valores determinados em laboratório (MACHADO, 2008).

    Características da área

    Para a realização das análises, foram selecionadas duas áreas de arma-zenamento de combustíveis de um mesmo terminal, mas com caracte-rísticas geotécnicas bastante distintas: Área 1, local de armazenamento de óleo diesel, com solo de fundação silto-argiloso, e nível freático (NA) situado em profundidade de cerca de 5 m; Área 2, local de armazena-mento de óleo combustível, com solo superfi cial argilo-siltoso e NA situado a cerca de 2 m de profundidade.

    Ambas as áreas estão em operação há vários anos e contêm tanques de combustíveis cercados de diques de contenção com solo compac-tado (com altura de 3 m, aproximadamente). A superfície do terreno natural (TN) no interior das bacias encontra-se não impermeabilizada e não revestida (Figura 1).

    Dados experimentaisAs áreas selecionadas para este estudo receberam investigações geo-técnicas de campo e de laboratório realizadas pelo Laboratório de Geotecnia Ambiental da Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia (MACHADO, 2008). As investigações abrangeram sonda-gens a trado, poços de inspeção, ensaios de permeabilidade de campo (Guelph), caracterização, permeabilidade de laboratório (água e die-sel) e determinação de curvas características de sucção. Um resumo dos resultados obtidos, representativos dos solos das bacias do termi-nal em estudo, é apresentado a seguir.

    As Tabelas 1 e 2 exibem os resultados dos ensaios de per-meabilidade de campo e laboratório realizados em amostras do solo predominante nas áreas em estudo. Nessas tabelas, pode ser observado que os valores de condutividade hidráulica de campo e de laboratório para a água se mostraram relativamente próximos e que a condutividade ao óleo diesel excedeu, nos solos analisa-dos, a referenciada à água, com KÓLEO/KW oscilando entre 4 e 668,

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    Modelagem de fluxo multifásico em solo não saturado

    aproximadamente. Tais resultados, como era de ser esperado, con-trariam a previsão efetuada a partir da equação de Nutting, na qual o valor de KÓLEO deveria ser inferior ao de KW e equivaler, nesse caso, a cerca de 22% do último.

    Comparando-se os resultados de permeabilidade de laboratório de ambas as áreas (Tabela 2) com o valor de KW preconizado na NBR 17505-2

    (10-6 cm.s-1) para bacias sem sistema de drenagem, observa-se que somente a Área 1 atenderia ao referido critério. Nessa ótica, a simples aplicação do disposto na referência normativa citada exigiria a execução de obras de impermeabilização em somente uma das áreas em estudo (na Área 2).

    Uma compilação de 108 resultados de laboratório atualmente dis-poníveis para diversas áreas de armazenamento em operação exibiu

    NA

    Tanque

    Dique de solo compactado

    Bacia de contenção

    TN

    Figura 1 – Desenho esquemático das bacias de contenção avaliadas.

    tabela 1 – Condutividade hidráulica medida em campo para os solos das áreas 1 e 2.

    Área 1 - Argila siltosa Área 2 - Areia silto-argilosa

    0,40

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    valores medidos superiores aos calculados com base na equação Nutting em 71% dos casos, com valor médio de KM/KC (razão entre as permeabilidades medida e calculada) igual a 231,6, aproximada-mente, com 76% dos valores inferiores a 100 e cerca de 84% inferiores a 200 (Figuras 2 e 3). Tais resultados provieram de ensaios de condu-tividade hidráulica realizados em solos de diversas áreas (permeados com diferentes produtos), em campanhas de investigação realizadas pelas Universidades Federais de Santa Catarina (UFSC) e da Bahia (UFBA), conforme descrito em Corseuil et al. (2006) e Machado (2008). Uma análise detalhada acerca de fatores intervenientes nos valores de condutividade de solos com referência a hidrocarbonetos foi realizada por Oliveira (2001).

    Na Figura 4, são apresentadas as curvas características de sucção à água representativas das Áreas 1 e 2.

    Parâmetros da análise e condições de contornoPara a realização da simulação numérica do vazamento acidental de grande volume de combustível no interior das bacias de contenção, foram adotados os parâmetros relacionados na Tabela 3, empregando-se a mesma simbologia constante nas equações anteriormente apresentadas.

    Para cada área analisada, foram empregados dois valores diferen-tes de condutividade do solo ao hidrocarboneto:1. Valor de KP calculado a partir de KW;2. Valor de KP medido ou corrigido com base em resultados de ensaios

    de permeabilidade do solo ao óleo diesel.

    Neste último caso — face às diferenças frequentemente obser-vadas entre condutividades de solos medidas em laboratório, com hidrocarbonetos, e as estimadas a partir da permeabilidade

    tabela 2 – Condutividades determinadas em laboratório para os solos das Áreas 1 e 2.

    Área 1 - Argila siltosa Área 2 - Areia silto-argilosa

    Água Óleo diesel Água Óleo diesel

    3,65E-07 6,67E-05 1,93E-06 7,25E-06

    3,88E-07 1,28E-04 5,56E-06 9,40E-05

    – 3,91E-05 3,43E-06 8,33E-05

    – 2,97E-04 1,81E-05 –

    4,50E-08 4,00E-06 9,93E-07 –

    1,10E-08 7,35E-06 – –

    – 4,67E-06 – –

    – 1,33E-05 – –

    Valores médios (cm.s-1)

    2,02E-07 7,00E-05 6,01E-06 6,15E-05

    intrínseca —, o valor de KP calculado foi multiplicado por um fator de correção representativo da divergência observada entre a permea-bilidade medida com óleo diesel e a estimada a partir de KW para o hidrocarboneto em estudo (Tabela 4). A introdução do referido fator de correção baseia-se na observação de que os valores calcu-lados de KP tendem a se aproximar dos valores determinados em laboratório quando estimados a partir de valores de condutividade medidos para outro hidrocarboneto, de constante dielétrica simi-lar (MACHADO, 2008).

    Como condição de contorno associada ao problema, foi ado-tada carga de pressão de óleo constante e igual a 3 m no trecho central de malha de elementos finitos (Figura 5), por um período de até 3 dias de infiltração (a depender do avanço da frente de contaminação).

    O referido período de três dias foi adotado com base em refe-rências de literatura (New Hampshire Code Of Administrative Rules, 2005, e AMORIM JÚNIOR, 2007), na qual esse intervalo foi ado-tado como critério de verificação de conformidade das condições de estanqueidade de bacias de tanques. Nesse enfoque, admite-se que a remoção de todo o contaminante acumulado sobre o terreno no interior da bacia de contenção deverá ser efetuada em até três dias, sendo consideradas aceitáveis as áreas em que a infiltração tenha pouco avanço nesse período.

    Para a sucção matricial inicial na massa de solo, foi admitida uma variação linear da carga total com a profundidade, hw = zws - z. Nessa formulação, zws é a elevação na qual há sucção nula (nível freático) e hw é a carga total na elevação z. Foi também admitida ausência de quais-quer poluentes orgânicos no subsolo das bacias de contenção antes da ocorrência do acidente simulado.

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    Modelagem de fluxo multifásico em solo não saturado

    y=0,0194 x0,4996

    R2=0,2821

    kc = k

    M

    kc (cm.s-1)

    k M (c

    m.s

    -1)

    1E-09

    1E-03

    1E-05

    1E-07

    1E-09

    1E-08 1E-07 1E-06 1E-05 1E-04 1E-03 1E-02

    Figura 2 – Valores de condutividade medidos em laboratório (Km

    ) versus condutividade calculada a partir da permeabilidade intrínseca (Kc), para

    diferentes hidrocarbonetos.

    Figura 3 – Histograma dos resultados da razão KM

    /KC para diferentes

    hidrocarbonetos.

    0 800200

    100

    90

    80

    70

    60

    50

    40

    30

    20

    10

    01600

    KM

    /KC

    Oco

    rrên

    cias

    2400 3200 4000

    resulTAdosOs resultados obtidos nas análises efetuadas para as Áreas 1 e 2, con-siderando-se a ocorrência de grande derramamento acidental de com-bustível nas bacias de contenção avaliadas, encontram-se apresentados nas Figuras 6 a 10.

    As Figuras 6 a 8 exibem o avanço da frente de contaminação após hipotético acidente com vazamento de óleo diesel na Área 1.

    Na Figura 6, é apresentada a previsão de contaminação do sub-solo, decorridos três dias após o derramamento, considerando-se um valor de KP inferido a partir de KW. Nessa fi gura, pode ser observada uma profundidade de contaminação bastante reduzida, condição esta que prescindiria de obras de impermeabilização no local e ratifi caria o critério estabelecido na NBR 17505-2. Tal ausência de necessidade de obras de impermeabilização seria justifi cada por ser factível e viável a remoção do solo contaminado nessas condições, permitindo uma

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    Souza, V.A.D. & Castro, M.A.H.

    tabela 3 – Parâmetros de análise.

    Área 1 Área 2

    KSW

    : 2,0x10-7 cm.s-1 φ: 0,396 KSW

    : 6,0x10-6 cm.s-1 φ: 0,360

    SM: 0,09 S

    ROmax : 0,20 SM: 0,04 SRO

    max : 0,20

    α: 0,10 m-1 n: 1,17 α: 0,39 m-1 n: 1,26

    βAO

    : 3,040 βOW

    : 1,490 βAO

    : 3,040 βOW

    : 1,490

    ηRO

    : 3,75 ρRO

    : 0,832 ηRO

    : 620 ρRO

    : 1,024

    tabela 4 – Valores de KP adotados nas análises.

    LocalCondutividade ao produto K

    P (cm.s-1)

    Calculada a partir de KW

    Corrigida

    Área 1 (óleo diesel) 4,5x10-8 7,0x10-5

    Área 2 (óleo comb.) 1,0x10-8 4,6x10-7

    0

    100

    200

    300

    400

    500

    600

    700

    18% 22% 26% 30% 34% 38% 42%

    Sucç

    ão (k

    Pa)

    Umidade Volumétrica (%)

    Área 1

    Área 2

    Figura 4 – Curva característica de sucção obtida para os solos das Áreas 1 e 2.

  • 19Eng Sanit Ambient | v.19 n.1 | jan/mar 2014 | 11-22

    Modelagem de fluxo multifásico em solo não saturado

    Figura 5 – Malha de elementos finitos usada nas simulações.

    Ho = 3 m

    10,00 10,00 10,00

    5,0

    0

    Sem escala

    0

    0

    0,060

    0,055

    0,050

    0,045

    0,040

    0,035

    0,030

    0,025

    0,020

    0,015

    0,010

    0,005

    2

    4

    5

    PR

    OF.

    (m)

    Co

    nce

    ntr

    ação

    Distância (m)

    10 15 20 25 30

    Figura 6 – Saturação de óleo na Área 1 após três dias de infiltração (KP calculado).

    rápida reabilitação da área em estudo mesmo depois de um acidente com derrame de combustível.

    As Figuras 7 e 8, contudo, contrariam tal assertiva ao exibir os resultados obtidos com KP corrigido. Em tais gráficos, podem ser observados avanços significativos e intoleráveis da frente de contaminação em períodos de tempo relativamente curtos (12 e 18 horas, respectivamente).

    As Figuras 9 e 10 apresentam os resultados obtidos para a Área 2, considerando-se KP calculado e corrigido, respectivamente. Ambos os gráficos mostram um mesmo padrão de comportamento, com avanços pouco importantes da frente de contaminação. Esse com-portamento, como era de ser esperado, torna a Área 2 ambiental-mente adequada para conter um grande vazamento de óleo com-bustível por um período de até três dias.

    PROF.: Profundidade

  • 20 Eng Sanit Ambient | v.19 n.1 | jan/mar 2014 | 11-22

    Souza, V.A.D. & Castro, M.A.H.

    0

    0

    0,054

    0,050

    0,046

    0,042

    0,038

    0,034

    0,030

    0,026

    0,022

    0,018

    0,014

    0,010

    0,006

    0,002

    2

    4

    5

    PR

    OF.

    (m)

    Co

    nce

    ntr

    ação

    Distância (m)

    10 15 20 25 30

    Figura 7 – Saturação de óleo na Área 1 após 12 horas de infiltração (KP corrigido).

    PROF.: Profundidade

    0

    0

    0,050

    0,046

    0,042

    0,038

    0,034

    0,030

    0,026

    0,022

    0,018

    0,014

    0,010

    0,006

    0,002

    2

    4

    5

    PR

    OF.

    (m)

    Co

    nce

    ntr

    ação

    Distância (m)

    10 15 20 25 30

    Figura 8 – Saturação de óleo na Área 1 após 18 horas de infiltração (KP corrigido).

    PROF.: Profundidade

  • 21Eng Sanit Ambient | v.19 n.1 | jan/mar 2014 | 11-22

    Modelagem de fluxo multifásico em solo não saturado

    0

    0

    0,250

    0,230

    0,210

    0,190

    0,170

    0,150

    0,130

    0,110

    0,090

    0,070

    0,050

    0,030

    0,010

    2

    4

    5

    PR

    OF.

    (m)

    Co

    nce

    ntr

    ação

    Distância (m)

    10 15 20 25 30

    Figura 9 – Saturação de óleo na Área 2 após três dias de infiltração (KP calculado).

    PROF.: Profundidade

    0

    0

    0,250

    0,230

    0,210

    0,190

    0,170

    0,150

    0,130

    0,110

    0,090

    0,070

    0,050

    0,030

    0,010

    2

    4

    5

    PR

    OF.

    (m)

    Co

    nce

    ntr

    ação

    Distância (m)

    10 15 20 25 30

    Figura 10 – Saturação de óleo na Área 2 após três dias de infiltração (KP corrigido).

    PROF.: Profundidade

  • 22 Eng Sanit Ambient | v.19 n.1 | jan/mar 2014 | 11-22

    Souza, V.A.D. & Castro, M.A.H.

    AMORIM JÚNIOR, C.J. (2007). Avaliação dos Critérios de Impermeabilização de Bacias de Contenção da Norma ABNT NBR 17505-2/2006 para Terminais de Armazenamento de Petróleo e Derivados. 127 p. Dissertação (Mestrado em Engenharia Ambiental) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

    CALIFÓRNIA (EUA). (2006). California Codes. Statutes of Chapter 6.7 – Health & Safety Code – Underground Storage of Hazardous Substances. EUA, 44 p.

    CORSEUIL, H.X.; MELEGARI, S.P.; OLIVEIRA, J.C.; COELHO, J.I.E. (2006). Avaliação da eficiência das bacias de contenção e do risco ambiental associado aos possíveis derramamentos de petróleo e derivados. Relatório Técnico, 115 p.

    KATYAL, A.K.; KALUARACHCHI, J.J.; PARKER, C. (1991). MOFAT: A Two-dimensional Finite Element Program for Multiphase Flow and Multicomponent Transport. Center for Environmental and Hazardous Materials Studies, Virginia Polytechnic Institute and State University (EUA), 122 p.

    MACHADO, S.L. (2008). Estudos geotécnicos e de Viabilidade para Adequação de Bacias de Contenção de Tanques em Terminais do Nordeste. Relatório Técnico, 292 p.

    NEW HAMPSHIRE (EUA). (2005). Code of Administrative Rules. Chapter Env-Wm1400 – Petroleum Storage Facilities. Division of Waste Management, EUA, 33 p.

    OLIVEIRA, J.C.S. (2001). Contaminação de Sedimentos Argilosos por Combustíveis Automotivos: Problemas de Avaliação da Permeabilidade. 127 p. Tese (Doutorado em Geologia) – Instituto de Geociências, Universidade Federal da Bahia, Salvador.

    U.S. EPA. (2002). Oil Pollution Prevention and Response. Non-Transportation-Related Onshore and Offshore Facilities; Final Rule. 40 CFR Part 112, EUA, 112 p.

    VAN GENUCHTEN, M.Th. (1980). A Closed form equation for predicting the hydraulic conductivity of unsaturated soils. Soil Science Society of America Journal, v. 44, n. 5, p. 892-898.

    referêncIAs

    A exemplo do observado na simulação anterior, os resultados obtidos para a Área 2 também contrariam o critério constante na NBR 17505-2. Nesse caso, ao desconsiderar as propriedades do fluido estocado, a referência normativa erroneamente aponta a necessi-dade de intervenção na área.

    conclusões• Háumacarênciadereferênciasnormativasnacionaisadequadasa

    uma análise consistente das condições de estanqueidade de bacias de contenção não revestidas de tanques de armazenamento de hidrocarbonetos evidenciada pela obsolescência da NBR 17505-2 nesse quesito.

    • Paraodesenvolvimentodeumaabordagemracionaldoproblema,verifica-se a necessidade de se adotar critérios de verificação de estanqueidade que considerem as características e especificidades locais, tais como as propriedades de solo, o produto armazenado e as diferenças no comportamento de solos finos em contato com água e com hidrocarbonetos.

    • Naausênciaderecursosetemposderespostaconfiáveisaemer-gências, localmente determinados para cada área operacional, é

    prudente o uso de períodos de tempo de resposta relativamente conservadores, tais como o adotado neste trabalho (três dias) com base em referências bibliográficas. As simulações numéricas efe-tuadas para a Área 1 com o emprego de valores de condutividade ao óleo exibiram profundidades de infiltração inadmissíveis em intervalo de tempo consideravelmente inferior a três dias.

    • Emquepeseaexistênciadedocumentaçãonormativainterna-cional em que são arbitradas profundidades limites para o avanço da frente de contaminação, é do entendimento dos autores que a profundidade tolerável de solo contaminado deva ser determi-nada individualmente para cada local, levando em consideração as características e a estratigrafia do terreno, a profundidade do NA, a presença de cursos d’água, as condições de escavação e remoção de solo contaminado, a disponibilidade de locais para destinação de resíduos, entre outros.

    • AaplicaçãodiretadaregulamentaçãonormativaemvigornoBrasillevaria, para as áreas estudadas neste trabalho, a uma inversão na avaliação das necessidades de intervenção, ao induzir a uma decisão errônea de não intervir em uma área ambientalmente vulnerável, e de acusar a necessidade de impermeabilização de uma outra área pouco susceptível à infiltração do hidrocarboneto armazenado.