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JOÃO HENRIQUE DA SILVA SÖREN KIERKEGAARD: UM PENSADOR À ESCUTA DE SI MESMO

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Trabalho apresentado ao evento acadêmico filosófico na USP 2009.

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Page 1: Artigo - Soren Kierkegaard Um Pensador a Escuta de Si Mesmo

JOÃO HENRIQUE DA SILVA

SÖREN KIERKEGAARD: UM PENSADOR À ESCUTA DE SI MESMO

FACULDADE CATÓLICA DE POUSO ALEGREPOUSO ALEGRE

Page 2: Artigo - Soren Kierkegaard Um Pensador a Escuta de Si Mesmo

2010JOÃO HENRIQUE DA SILVA

SÖREN KIERKEGAARD: UM PENSADOR À ESCUTA DE SI MESMO

Artigo apresentado ao XIII Encontro Nacional de Pesquisa na Graduação em Filosofia da USP. Orientador: Professor Doutorando Padre Adriano São João.

POUSO ALEGRE

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2010 SÖREN KIERKEGAARD: UM PENSADOR À ESCUTA DE SI

MESMO

Viver é defrontar-se com o mundo. Atualmente, o confronto existe enquanto uma

multidão dita o que deve ser feito no mundo. A voz do eu do indivíduo é obscurecida e subestimada

pela massa. A massa é a voz que ecoa e manipula a vida dos demais. Não há mais a realização

enquanto pessoa, mas realização enquanto ser integrado nas relações sociais. O eu se torna nós,

porém um nós que se manifesta como uma pessoa que esquece o valor da integralidade, da

individualidade, da autonomia e da liberdade. Sören Kierkegaard vislumbrou uma sociedade

massificada caracterizada por uma relação social consumista e ideológica. Já no século XIX previu

a catástrofe de viver em uma sociedade em que o ser humano esquece de si mesmo e torna-se

“marionete” de um sistema. A partir dessa constatação, o presente artigo procura apresentar Sören

Kierkegaard como um pensador que escutou a sua interioridade e procurou realizar a sua missão

confrontando-se com uma realidade exterior que determinava os rumos da vida de qualquer e todo

indivíduo. Mas afinal quem foi Kierkegaard? Como viveu a sua vida? Como se relacionou com o

mundo? Qual foi sua missão? Foi um escritor estético ou religioso?

1. Vida

Sören Kierkegaard é um homem que pensa a vida e a própria vida, questiona-a e sente os

desejos e os sofrimentos no recôndito da sua alma. Falar dele não foi, não é e nunca será fácil. O seu

pensamento tem sido interpretado de diversas formas1, por causa do seu estilo de escrever: escreve

refletindo e reflete escrevendo. Porém, é possível perceber o tema que rege todo o seu pensamento:

a sua existência, “a sua personalidade concreta” (Jolivet, 1957, p. 3). Ele falou de si mesmo como

de “um espião que, a serviço de Deus, descobre o crime da cristandade: o crime de chamar-se

cristão sem sê-lo”. Por isso, antes de tratar sobre a sua existência (missão), é necessário conhecer a

sua vida.

Tudo o que experimentou e viveu, levou-o a uma auto-reflexão sobre si mesmo, uma

busca apaixonada por aquilo que ele acredita ser o homem: alguém que não se deixa dissolver na

1 Segundo os estudos elaborados por Jolivet, Farago, Gouvêa e Charles Le Blanc sobre Kierkegaard, não existe, na verdade, uma única leitura do pensamento de Sören. Ninguém consegue esgotar o seu pensamento. Infelizmente, no Brasil, há poucas traduções de sua obra e poucos estudiosos, com exceção de: Ricardo Quadros Gouvêa, Márcio G. de Paula, Álvaro L. M. Valls, Juvenal S. Filho, Alexandre Carrasco, Franklin Leopoldo e Silva e Jonas Roos.

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massa, mas que no devir concreto, no instante em que vive, decide a sua existência. As obras de

Kierkegaard correspondem, portanto, “à tentativa de traduzir nas palavras rebeldes a experiência

indizível que ele teve, e dá testemunho do fato de que a ordem do sentido sempre ultrapassa a ordem

do discurso” (Farago, 2006, p. 17).

Kierkegaard não foi um homem do seu tempo, mas não deixou de escutar o tempo e a

história. Foi um cristão com “exageros”, sem tibieza no coração. Não foi a toa que conseguiu chegar

apenas aos quarenta e dois anos. Infelizmente, a sua influência não foi grande durante sua vida. Suas

idéias eram por demais diferentes das principais de sua época para serem acolhidas e utilizadas pela

sociedade. Mas no século XX, os escritos kierkegaardianos tiveram uma aceitação incomum. De

acordo com Gouvêa (2006, p. 19-20), Kierkegaard constitui “uma das figuras mais importantes e

fascinantes na história das idéias e um pensador-chave no desenvolvimento da teologia e da filosofia

do século XX”. O mesmo se pode dizer em relação ao século XXI.

Sören Aabye Kierkegaard nasceu aos 5 de maio de 1813, em Copenhague (Dinamarca).

Sua família é de origem humilde. Seus pais, Michael Pedersen Kierkegaard (1756-1838) e Anne

Soerensdatter Lund (1768-1834), são naturais da Jutlândia Ocidental (Norte da Dinamarca).

O pai de Kierkegaard era pastor de ovelhas. Casou-se duas vezes: primeiro, com a Kirstine

Royen, que faleceu em março de 1796, e depois, em abril de 1797, com Anne S. Lund, empregada

da família. Juntos tiveram sete filhos2, dentre os quais S. Kierkegaard.

Kierkegaard recebeu uma educação rigorosa, marcada pela ortodoxia e pela moral

luterana. Ele mesmo relembra os momentos de tristeza e melancolia que viveu na infância.

(Kierkegaard, 1971, p. 19).

Não conhecia jamais a alegria de ser criança. Os suplícios horríveis que suportei perturbaram esta paz em que deve consistir a infância, quando se pode pela aplicação, etc. dar alegria a seu pai. Minha inquietação interior fazia com que sempre, sempre me sentisse fora de mim (...). (Kierkegaard, 1971, p. 19).

O rigor da sua formação se expressava inclusive no modo formal de se vestir, causando

nele profundo desconforto. A angústia de uma infância mal vivida somou-se também a fragilidade

física, compensada, porém, pela inteligência brilhante. (Kierkegaard, 1971, p.19 – 20).

Os seus estudos humanísticos se deram na Escola Borgerdyd (1821-1830), que significa

“A Escola da Virtude Cívica”. Nessa instituição, Kierkegaard desenvolveu a sua perspicácia e

natureza provocativas. (Gouvêa, 2006, p. 35-36). Após a conclusão dos estudos, inscreveu-se, em

2 Os filhos do casal chamavam-se: Maren Kirstine (1797-1822), Nicoline Kristine (1799-1832), Petrea Severine (1801-1834), Peter Christian (1805-1888), Soren Michael (1807-1819), Niels Andreas (1809-1833), e S. Kierkegaard (1813-1955). Com exceção de Peter, todos os irmãos de Kierkegaard morreram muito cedo. Enquanto Peter vai se dedicar à vida eclesiástica, Kierkegaard abraça a literária.

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1830, no curso de teologia da Universidade de Copenhague, interessando-se mais pela literatura e

filosofia, especialmente a de Hegel, do que pela própria teologia.

Em 1833, iniciou a obra Diário de um Sedutor que futuramente vai se tornar um livro

muito importante para a compreensão do seu pensamento (Gouvêa, 2006, p. 38). Um ano depois,

morreu a sua mãe, provocando nele “um inexorável desmoronamento de sua fé” (Gouvêa, 2006, p.

39) e passando a viver de forma contrária à educação recebida, entregando-se até aos prazeres da

literatura, da música, da ópera, do teatro (Gouvêa, 2006, p. 40). Com o passar dos anos, o

sofrimento, a angústia e a inquietação em sua alma tornaram-se mais dilacerantes. (Kierkegaard,

1971, p. 19).

Esse estilo boêmio de vida terminou aos 19 de maio de 1838, quando Kierkegaard teve

uma forte experiência espiritual, reconhecida por ele como um “grande terremoto” que contribuiu

para se reconciliar com Deus e com seu pai, que nunca aceitou o estilo de vida que Kierkegaard

abraçou. Em 1838, depois de três meses da conversão de Kierkegaard, o seu pai veio a falecer.

O velho melancólico que foi seu pai exerceu forte influência na vida de Kierkegaard. Nas

suas obras pessoais de 1838, Soren interpreta o famoso episódio que denomina de “tremor da terra”

e que produz terrível perturbação na alma do jovem Kierkegaard. “Uma falta devia pesar sobre a

família inteira, um castigo de Deus planava sobre ela”. Esse castigo tem a ver com os pecados do

seu pai. O pai pecara pelo menos duas vezes: em excesso de sofrimento, em atividade como pastor

de ovelhas, ele havia blasfemado contra Deus; e o pai desposara apressadamente a mãe de

Kierkegard, antiga doméstica da casa, e tiveram um filho antes de nove meses do falecimento da

precedente. A longevidade do pai não era uma bênção, mas uma maldição, que se mostrara nas

catástrofes que se abatiam sobre a família: problemas econômicos, perda da sua segunda mulher,

morte dos cinco filhos. Assim, essa terrível experiência paterna contribuiu para que Kierkegaard

questionasse as verdades do “cristianismo” (Gouvêa, 2006, p. 42):

Desde o começo, eu devo tudo a meu pai. Era ele quem, melancólico como era, ao me ver melancólico, suplicava: “Trata de amar verdadeiramente a Jesus Cristo!” (...). E por amor a meu pai, empenhei-me em expor o cristianismo da maneira a mais verdadeira, contrastando assim como todo esse palavrório que (na cristandade) se faz passar por cristianismo (...). (Kierkegaard, 1971, p. 19).

Na verdade, o próprio pai se via como culpado da melancolia do filho, e o filho por

aquela do Pai, e foi isso que os impediu de se abrirem um com o outro (Kierkegaard, 1971, p. 19).

Essa situação levará Soren a desenvolver uma reflexão profunda sobre si mesmo e sobre a

existência humana.

Em 1837, Kierkegaard conheceu Regina Olsen, filha de um conselheiro de Estado. Por

essa jovem Soren vai se apaixonar anos mais tarde (Kierkegaard, 1971, p. 20), chegando inclusive a

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ficarem noivos aos 10 de setembro de 1840. Todavia, o estilo de vida de Kierkegaard o impediu de

levar a frente tal noivado: ele tinha consciência da incapacidade de levar uma vida como os outros,

sentia-se inseguro e dificuldades para se entregar a um relacionamento sério:

“Quanto mais ela se mostrava envolvida e confiante, tanto mais sentia-se ele desamparado,

despreparado. Longe de lhe serenar o tormento, o amor só fizera perturbar a sua consciência

angustiada. Impôs-se o rompimento” (Farago, 2006, p. 52).

Após o cancelamento do noivado, Kierkegaard defendeu sua dissertação de mestrado

sobre O Conceito de Ironia constantemente referido a Sócrates, obtendo o grau de “Magister

Artium”, aos 29 de outubro de 1841. Tal obra é um ataque irônico ao Hegelianismo e ao

Romantismo através de um estudo comparativo da prática da ironia em Sócrates e nos filósofos

românticos. (Gouvêa, 2006, p. 47).

Como adversário da filosofia romântica e de um cristianismo estatal, Kierkegaard “estava

descobrindo sua espetacular vocação, ou seja, ser um missionário para a cristandade, ajudar as

pessoas que se achavam cristãs a chegar a alguma compreensão do que significava o genuíno

cristianismo”. (Gouvêa, 2006, p. 48).

Depois de um curso em Berlim (1840), com Schelling, o pensador dinamarquês se

decepcionou com a filosofia romântica, regressando para Copenhague e fechando-se “numa solidão

estudiosa” (Blanc, 2003, 39). Nesse período, escreveu muitas obras com pseudônimos, tais como:

Ou (1843), Temor e Tremor (1843), A Repetição (1843), Migalhas Filosóficas (1844), Estádios no

Caminho da Vida (1845). Já com a obra Post-Scriptum Não-Científico Concludente (1846),

Kierkegaard deu início a uma nova forma de escrever, não mais fazendo recurso aos pseudônimos.

O desejo de ser escritor religioso tornou-se mais claro em Soren, acompanhado da idéia de que ser

cristão implica em colocar-se numa atitude de oposição à sociedade, a seus valores e à sua

concupiscência3. (Gouvêa, 2006, p. 49-50).

O primeiro confronto de Kierkegaard com o público se deu em 1846, contra um jornal

satírico muito popular e vulgar chamado de O Corsário, jornal este que tinha o costume de criticar a

alta burguesia de Copenhague em defesa de políticas mais liberais. (Blanc, 2003, p. 40). Apesar de

ter sido até então poupado dessas críticas, Kierkegaard sentiu que era uma afronta participar “desse

empreendimento de irrisão, desse esforço de ‘massificação’ do pensamento” (Blanc, 2003, p. 40).

Preferia ser atacado e ridicularizado pelo jornal. Foi o que aconteceu após escrever um artigo sobre

3 Sobre a obra Post-Scriptum, Kierkegaard diz: “Põe o problema: o de torna-se cristão. Depois de se ter apoiado em toda a produção estética pseudónima, tomada como descrição de uma via pela qual é necessário passar para se tornar cristão, a saber, a via em que se regressa do estético para se tornar cristão, esta obra descreve a segunda via, a saber, aquela em que se regressa do Sistema, da especulação, etc., para se tornar cristão”. (Kierkegaard, 2002,p. 55) [grifo do autor].

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o Corsário. Com essa atitude, o jornal deu início a um “ataque incansável e devastador a

Kierkegaard” (Gouvêa, 2006, p. 50), não poupando nem mesmo o seu modo de vestir.

Apesar dessa perseguição dolorosa e prolongada, ela “parece ter confirmado a

Kierkegaard em seu papel de mártir e reforçado sua convicção de que ele deveria sofrer a fim de

expiar os pecados de seu pai e os seus” (Blanc, 2003, p. 41). Durante essas tribulações existenciais,

não deixou de exercer a sua carreira de escritor, produzindo as seguintes obras: Duas Eras- Uma

resenha Literária (1846), Livro sobre Adler (1846), Discursos Construtivos em Variados Estados

de Espírito (1847), Obras do Amor (1847), e Discursos Cristãos (1848), A Doença Mortal (1849),

A Prática do Cristianismo (1850) e demais discursos de caráter cristão. Segundo Gouvêa, “os

últimos anos da vida de Kierkegaard foram repletos de veementes escritos polêmicos contra os

excessos da Igreja do Estado e o fracasso da cristandade em admitir suas grandes falhas como

autoproclamada representante do cristianismo” (2006, p. 52). Um dos representantes dessa Igreja foi

o bispo Mynster, que não vivia seriamente o cristianismo: era mais um funcionário do Estado do

que cristão. Tudo isso levou Soren a criticar à Igreja Estatal através de diversos artigos compilados

numa revista chamada O Momento.

Porém, essa batalha contra a Igreja levou Kierkegaard a se afastar ainda mais da sociedade.

Devido à sua frágil saúde, teve um colapso aos 2 de outubro de 1855. Em seu leito de morte, negou-

se a receber seu irmão, porque era membro da Igreja oficial que ele tanto combateu. Nem sequer

concordou em receber a comunhão das mãos de um membro daquela igreja. Faleceu aos 11 de

novembro do mesmo ano. Ao longo da sua vida, lutou “pela verdade e pelo cristianismo paradoxal:

que não constitui comunidade, que se afasta dos homens para se aproximar da Transcendência”

(Blanc, 2003, p. 46).

Este foi o Indivíduo, que como escritor, trabalhou com energia e rapidez, buscando sempre

a verdade (Kierkegaard, 2002, p. 122). A verdade na sociedade dinamarquesa encontrava-se

manipulada pelo sistema político e social, no que tange à religião, à verdade cristã, manipulada por

uma cristandade que se esqueceu do valor de se tornar um indivíduo e viver de fato como cristão,

não na aparência, mas no relacionamento singular entre o indivíduo e o Absoluto. Desse modo,

nessa batalha contra a massificação e a instrumentalização da fé, Kierkegaard escreveu várias obras

para desfazer a ilusão de que ser cristão significa perder-se na multidão. Partindo de sua própria

vida, Soren foi um “homem-problema-para-si-mesmo” porque procurou partir de suas experiências

e atitudes para escrever e participar da vida pública, para dissipar a ilusão estabelecida. O seu

método e a sua bibliografia procuram instigar o leitor, a massa, a perceber as suas falhas e gestar um

novo indivíduo.

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2. Método e obras

As obras que Kierkegaard escreveu entre 1843 a 1846 são classificadas como

heteronímicas, ou seja, obras escritas por meio de pseudônimos, cuja comunicação se dá de forma

indireta. Quase todas as obras mais famosas de Sören pertencem a esse período. Na verdade, os

pseudônimos foram usados pelo autor para instigar o leitor, para extrair do sujeito a verdade,

semelhante ao método maiêutico socrático. Além desse método, Kierkegaard fez uso da

comunicação direta, presente nas obras escritas de 1843 a 1855. Esta comunicação direta constitui

as obras veronímicas, feitas de “discursos edificantes”.

Para escrever as obras pseudonímicas – comunicação indireta -, Kierkegaard se inspirou

nas Cartas confidenciais sobre a Lucinda, de Scheleiermacher, e no romance filosófico Wilhelm

Meister, de Goethe (Farago, 2006, p. 58). Essas obras do pensador dinamarquês são apresentadas

por meio das máscaras de pseudônimos que permitem que os autores se expressem na primeira

pessoa, com as suas próprias opções existenciais. Conseqüentemente, os pseudônimos possibilitam

mudanças interiores no leitor através de movimentos existenciais que só ele pode executar. Por isso,

Kierkegaard iniciou a sua carreira literária escrevendo obras com pseudônimos. Essas obras são

maiêuticas. O método maiêutico é o método usado por Sócrates. Tem o objetivo de descobrir a

verdade4, descobrir as respostas para os dilemas existenciais da vida humana. A verdade que o ser

humano deve descobrir possui um elemento subjetivo, de apropriação, ou seja, a verdade tem que

ser verdadeira “para mim” (a verdade tem que se tornar viva em mim). (Gouvêa, 2006, p. 238-239).

Os pseudônimos mais importantes que Kierkegaard usou nas obras heteronímicas ou

estéticas são os seguintes5: Alguém que Ainda Vive, Victor Eremita, “A”, Johannes o Sedutor, Juiz

Vilhelm (“B”), O Pastor de Jylland, Johannes de Silentio, Constantin Constantius, O Jovem,

Johannes Climacus, Vigilius Haufniensis, Nicolaus Notabene, A.B.C.D.E.F.Godthaab, Hilarius

Bogbinder, Willian Afham, O Modista, Frater Taciturnus, Quidam, Inter et Inter, Procul, Petrus

Minor, H.H., Anti-Climacus.

Essa comunicação indireta presente especialmente nas primeiras obras de Kierkegaard

quer, na verdade, transmitir uma mensagem excepcional para os dinamarqueses oficialmente

cristãos, a fim de que percebam que eles não são de modo algum cristãos. O objetivo do pensador

dinamarquês é instigá-los, confundi-los e libertá-los de um cristianismo falsário, acomodado, tíbio.

4 Kierkegaard e Sócrates dizem que a verdade é verdade para o sujeito. Somente o sujeito apropria-se a si mesmo a verdade. Todavia, contrapõem-se no momento de explicar a relação do sujeito para com a verdade. Para Soren, o indivíduo é a não-verdade, ao passo que para Sócrates basta o individuo recordar-se da verdade que já estava no seu interior. 5 Para aprofundar mais sobre eles: Cf. GOUVÊA, Ricardo Q. Os Heterônimos de Kierkegaard. In: _____. Paixão pelo Paradoxo: Uma Introdução a Kierkegaard. São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 309 – 315.

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As suas obras estéticas funcionam como espelhos, onde a sociedade dinamarquesa é chamada a se

olhar e a se ver6. (Gouvêa, 2006, p. 241).

Os “autores” das obras estéticas foram criados por Sören como autores-personagens que

inclusive compartilhavam com Kierkegaard muitas das suas convicções. Há, porém, exceção, pois é

possível encontrar em muitas das obras estéticas idéias que não condizem com algumas das

convicções de fé professadas por Kierkegaard. Em outras palavras: os heterônimos7, “outros

nomes” de Kierkegaard, formulam e expressam idéias diferentes em conteúdo (filosofia), em estilo,

em compreensão e nas práticas de vida do pensador dinamarquês. (Gouvêa, 2006, p. 242):

O que foi escrito é, pois meu, mas somente na medida em que me coloco na boca da personalidade poética real, que produz sua concepção de vida tal como se percebe pelas réplicas, pois minha relação com a obra é ainda mais exterior que aquela do poeta que cria personagens e, no entanto, é ele mesmo o autor do prefácio. Sou, com efeito, impessoal ou pessoalmente um assoprador da terceira pessoa, que poeticamente criou autores, os quais são os autores de seus prefácios e mesmo de seus nomes. Não há, pois, nos livros de pseudônimos uma só palavra que seja minha. Não tenho nenhuma opinião a seu respeito a não ser a de um terceiro, nem conhecimento de sua importância senão enquanto leitor, nem a menor relação privada com eles, pois seria impossível ter uma relação com uma mensagem duplamente refletida8. (Kierkegaard, 1971, p. 47).

Neste caso, os heterônimos funcionam como um grupo excêntrico e curioso. São alter-

egos, personae de Kierkegaard. Apresentam pontos de vista, estilos, tons, vocabulários diferentes de

Kierkegaard, existindo até mesmo, entre eles, discordância e contradição. (Gouvêa, 2006, p. 245).

Porém, não se pode esquecer de que a heteronomia constitui um método socrático, cujo principal

objetivo, como já se acenou, é chamar as pessoas para um verdadeiro compromisso com o

cristianismo e com a interioridade9.

Não obstante, como já disse, eu não tenho nada a fazer com o conteúdo da obra. Minha tese era que a subjetividade, a interioridade é a verdade. Era ela a meus olhos o decisivo problema do cristianismo e foi nesse sentido que procurei seguir um esforço semelhante, encontrado nos livros pseudonímicos que, até o ultimo, abstiveram-se honestamente de ensinar e em particular devo tomar em consideração o último [Post-Scriptum] porque ele apareceu após minhas “Migalhas”, lembra os precedentes recriando-os livremente e, através do humor, como zona-limite, define o estágio religioso. (Kierkegaard, 1971, p. 56).

6 A alusão ao espelho encontra-se no epigrama de G. C. Litchtenberg, usado por Kierkegaard em: In Vino Veritas: “Tais obras são espelhos: se é um macaco a olhar, não pode ver-se um apóstolo”. (2005, p. 10). 7 De acordo com Gouvêa, é melhor usar o termo heterônimo porque essa palavra implica numa síntese de personae de elementos ficcionais e autobiográficos. Ou seja, as palavras dos heterônimos não são as palavras de Kierkegaard, mas são faladas por genuínos alter-egos. Os heterônimos são inclusive usados propositalmente para deixar os livros falarem por si mesmos, interpretados por seu próprio valor e não pelo autor. (Gouvêa, 2006, p. 243-245). 8 No final desse trecho, Gouvêa diz que Kierkegaard não teria problema em assumir as suas idéias de modo indiretamente, mas as obras heteronímicas precisam ser interpretadas juntamente com as obras veronímicas, visto que a autoria de Kierkegaard não era um segredo, mas um modo de os leitores se identificarem com os autores dos livros, possibilitando assim uma reflexão interior. (Gouvêa, 2006, p. 249-250). 9 Além dessa intenção, Blanc diz que “a pseudonímia remete claramente a uma questão dolorosa, a da paternidade: segundo a carne (Michael Pedersen, o culpado), segundo o espírito (o bispo Mynster, o comprometido), segundo a condição particular (Soren, o eterno noivo de Regina), segundo a condição pública (Kierkegaard, o autor), etc.”. (2003, p. 112).

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Vale lembrar que Kierkegaard tinha o costume de chamar o método da comunicação

indireta de um processo de “comunicação duplamente refletida”: a primeira reflexão levaria a idéia

a ganhar sua expressão adequada na palavra; a segunda reflexão enfatizaria a relação intrínseca da

comunicação com o comunicador. Isso significa que a comunicação é qualificada pela reflexão,

sendo, portanto, uma comunicação indireta. A insistência de Kierkegaard na “comunicação

duplamente refletida” o levou a abraçar a heteronomia. (Gouvêa, 2006, p. 251). Portanto,

comunicação indireta

implica, não que há muitos significados possíveis e legítimos para um texto, mas sim que o texto pode ser interpretado de muitas formas apesar de seu significado genuíno que sempre está oculto, e o interprete revelará seu próprio coração e será julgado pelo texto conforme torne evidente seu próprio modo de lê-lo. (Gouvêa, 2006, p. 251-252).

Acrescenta-se que a duplicidade corresponde ao método kierkegaardiano de escrever com

uma comunicação direta e indireta, que procura fazer um movimento dialético que provoca no leitor

um processo de transformação do seu eu. Assim, essa duplicidade em Kierkegaard é reafirmada na

obra Pontos de Vista Explicativo da minha obra como escritor (1859): “Este duplo carácter existe

do princípio ao fim (...). Esta duplicidade é consciente, o autor está dela melhor informado do que

ninguém, ela é a condição dialética fundamental de toda a obra e tem como conseqüência uma razão

profunda” (Kierkegaard, 2002, p. 29).

No entanto, como o objetivo do método de Kierkegaard é provocar movimentos

existenciais, alcançar a simplicidade, a comunicação deve tornar-se comunicação direta. Foi isso

que Kierkegaard procurou provar, já que “a verdadeira comunicação indireta é acompanhada da

comunicação direta” (Gouvêa, 2006, p. 252). Mas quando foi que Kierkegaard colocou isso em

prática? O pensador colocou em prática esse pensamento ao escrever a sua chamada “obra

veronímica paralela”, composta de comunicação direta10.

Kierkegaard insistiu que “a comunicação direta estava presente desde o início, pois o livro Dois Discursos Construtivos, de 1843, foram de fato simultâneos com Ou. E para que se estabelecesse definidamente essa comunicação religiosa como contemporânea, cada novo livro heteronímico era acompanhado quase simultaneamente por uma pequena coleção de Discursos Construtivos – até o surgimento do Post-Scriptum Concludente, que fechou a questão sobre o problema da obra toda, ou seja, como tornar-se um cristão. A partir deste momento os discretos indícios de comunicação religiosa direta cessam e aí começa a produção puramente religiosa: Discursos Construtivos em Variados Estados-de-Espírito, Obras do Amor, Discursos Cristãos”. (Gouvêa, 2006, p. 252).

10 Tal comunicação não é totalmente direta, pois, se fosse, seria um conhecimento teórico, ordinário, cientifico e especulativo. Mas é direta na medida em que Kierkegaard se responsabiliza por seus discursos, que são como testemunhos que caem sob a rubrica de comunicação indireta, uma vez que esses escritos têm uma função prática cristã. (Gouvêa, 2006, p. 235-236).

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Toda a genialidade literária de Kierkegaard teve apenas um objetivo: descrever o que é o

cristianismo. Por isso, antes de ser um poeta (o seu estilo de escrever e a estrutura das suas obras

comprovam a sua veia poética), Sören foi um escritor religioso crítico:

Esta pequena obra [Post-Scriptum] se propõe, pois, dizer o que sou verdadeiramente como autor, que fui e sou um autor religioso, que toda minha atividade literária relaciona-se com o cristianismo, com o problema do tornar-se cristão, com objetivos polêmicos diretos e indiretos contra esta formidável ilusão que é a cristandade ou a pretensão que todos os habitantes de um país são, enquanto tais, cristãos. (Kierkegaard, 1971, p. 57).

Kierkegaard foi um crítico veraz do século XIX. Seu poder literário brilhante e criador foi

colocado a serviço da afirmação da singularidade do ser humano. Seu pensamento procura

demonstrar o verdadeiro sentido da vida. Cada ser humano é responsável por buscar a si não na

massa e nas instituições, mas no seu próprio interior, no contato com o transcendente.

Para compreender a fundo os escritos de Kierkegaard, nenhum estudioso deve deixar de

ler a obra: Ponto de Vista explicativo da Minha Obra de Escritor11. Nesta obra, Kierkegaard

procura esclarecer o sentido dos seus escritos e as muitas mudanças de tom, estilo e método

nelas encontradas. É um relatório explicativo de suas obras como autor. (Gouvêa, 2006, p.

305), um testemunho do quanto escrever fazia bem a Kierkegaard.

Só me sinto bem quando me ponho a escrever. Esqueço, então, os desgostos da vida e os sofrimentos. Encontro-me com meu pensamento e me sinto feliz. É suficiente que o interrompa durante alguns dias para que, em seguida, me sinta doente, cheio de moléstias e de achaques, com a cebaça [cabeça] pesada e oprimida. Semelhante ímpeto, tão rico, inesgotável, mantido diariamente durante cinco ou seis anos e que flui com tanta abundância, um ímpeto assim não pode deixar de ser uma vocação divina. Se essa abundancia de pensamentos que ainda se agitam em minha alma devesse ser reprimida, representaria para mim um martírio e um tormento e já não seria mais capaz da nada (...). É duro e deprimente ter que gastar o próprio dinheiro para obter a permissão de trabalhar com maior empenho e esforço que qualquer outro deste país (...). Não elegi a carreira de escritor. Pelo contrário, ela é uma conseqüência de minha individualidade inteira e de minha necessidade mais profunda (...). (Kierkegaard, 1971, p. 43).

Kierkegaard foi um “escritor honesto e um pensador que ofereceu e ainda oferece

importantes contribuições para a compreensão humana de mundo e da vida”. (Gouvêa, 2006, p. 10).

Nas suas obras, procurou ensinar o sentido da fé cristã. A sua carreira literária teve um só objetivo:

esclarecer o “devir cristão”, ou seja, como ser dentro do cristianismo um cristão. Kierkegaard é um

11 KIERKEGAARD, Soren. Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra de Escritor. Lisboa: Edições 70, 2002. Essa obra foi escrita em 1848, mas Soren não quis publicá-la. Ele fez uma versão mais curta chamada de Sobre Minha Obra como Autor (1851) para desfazer a sua decisão de mistificação das suas obras anteriores. A obra Ponto de Vista foi publicada postumamente em 1859. Tinha como objetivo “destrinchar as complexidades de uma literatura vasta e multiforme que foi (e ainda é) muitas vezes mal entendida”. (Gouvêa, 2006, p. 305). Ele quer dissipar a idéia de que num primeiro momento teria sido escritor, pois, ele sempre foi um escritor religioso e tem como objetivo o tornar-se cristão. Fez-se uso da produção estética para evitar um ataque direto as pessoas que não viviam existencialmente o cristianismo. E ele declarava que não publicou o livro porque a Providência Divina o guiou nesta decisão. Cf. BRUN, Jean. Introdução. In: KIERKEGAARD, Soren. Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra de Escritor. Lisboa: Edições 70, 2002.v. 10. p. 11-20.

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escritor impressionante, desconcertante, excepcional e único em seu estilo (Gouvêa, 2006, p. 22).

Apesar do temperamento melancólico, possuía uma mente brilhante, refinada, com um humor

penetrante, que só ele sabia fazer. Ele próprio confessa isso:

Meu mérito literário será sempre o de ter exposto as categorias decisivas do âmbito existencial com uma agudeza dialética e uma originalidade que não se encontram em nenhuma obra literária, ao que eu saiba, pelo menos. Também não me inspirei em obras alheias. Acrescente-se a isso minha arte de expor, sua forma, e realização lógica, mas levará muito tempo antes que alguém encontre lazer suficiente para lê-la e estudá-la seriamente. Nesse sentido, minha produtividade será, quem sabe até quando, desprezada, como o prato delicado que se serve ao camponês. (Kierkegaard, 1971, p. 42).

Usando de sinceridade para consigo, Kierkegaard não deixou de reconhecer que as suas

obras poderiam ser desprezadas por causa do seu estilo irônico e reflexivo de escrever. Porém, a sua

forma de escrever é compensada pelo próprio estilo de vida que levou: “a minha existência é a mais

interessante que escritor algum tenha levado na Dinamarca. Justamente por essa razão, serei lido e

estudado no futuro” (Kierkegaard, 1971, p. 43).

Kierkegaard foi e continua sendo estudado principalmente na Alemanha e na França,

sendo reconhecido como filósofo e teólogo. Mas essa denominação não lhe compete12, porque ele

foi um crítico ferrenho do sentido da filosofia defendido pelos seus contemporâneos. Era uma

filosofia do sistema que esquecia a existência. Kierkegaard também não quis ser associado à

teologia acadêmica, uma vez que foi um crítico da seca e impessoal ortodoxia luterana e das

diferentes escolas liberais iluministas. Nos últimos anos de sua vida, “atacou impudentemente a

Igreja, ridicularizou seus grandes líderes, questionou suas práticas (...), ele declarou que o

cristianismo do Novo Testamento não existia mais! [sem grifo no original] (...)” (Gouvêa, 2006, p.

25).

Na verdade, Sören Kierkegaard é um pensador que por meio dos seus escritos instiga o

leitor a uma reflexão existencial. Os seus escritos são de fundamental importância para compreender

o que é o homem, como ele vive, como deve viver. Kierkegaard é o mestre da interioridade. O “pai”

do existencialismo.

3. Kierkegaard e o existencialismo

12 “Kierkegaard tinha uma aversão por todo tratamento sistemático de temas teológicos ou filosóficos e desdenhava todas as tentativas de formar um ‘sistema’ fechado, completo e auto-contido. Ele foi um filósofo cristão habilidoso, que mesmo assim, nunca chamou a si mesmo de filósofo (ainda que se denominasse dialético), pois criticava alguns dos principais aspectos da tradição filosófica ocidental (...). Ele era um apologista pungente que, apesar disto, certamente rejeitaria esta identificação, pois era muito crítico da teologia natural e dos métodos racionalistas e evidencialistas (...)” (Gouvêa, 2006, p. 21).

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Retratar o existencialismo de Kierkegaard não é tarefa fácil, visto que os temas

fundamentais do seu pensamento têm sido estudados de formas diferentes por parte das novas

correntes existencialistas. Independentemente disso, é possível apresentar os temas fundamentais do

seu existencialismo: o fracasso dos sistemas, o paradoxo e o absurdo, o desespero e a angústia, o

abandono do homo naturalis e o compromisso do homo christianus, o sentido de risco e o drama do

indivíduo, a verdade subjetiva e objetiva. (Jolivet, 1957, p. 31).

Ademais é possível afirmar que “Kierkegaard está incontestavelmente na origem do

movimento existencialista contemporâneo – mas ele é também, de certa maneira, o efeito ou a

conseqüência desse movimento” (Jolivet, 1957, p. 32). Para Jolivet, os pensadores que melhor

compreenderam o alcance do pensamento de Kierkegaard foram: Karl Barth, Martin Heidegger,

Karl Jaspers e Jean-Paul Sartre (1957, p. 32). Sem os estudos desses pensadores, dificilmente

Kierkegaard seria compreendido e aceito pela filosofia e teologia do século XX. Contudo,

Kierkegaard não deve ser compreendido somente a partir desses pensadores: deve-se “perscrutar o

seu pensamento na pureza e formas originais e através daquele aspecto de novidade que deveria

revestir para leitores que se tivessem mantido alheio aos entusiasmos existencialistas da nossa época

[anos 50 e 60]” (Jolivet, 1957, p. 32-33). Neste caso, descrever a origem do existencialismo

kierkegaardiano é abordar um plural discutível. Porém, o existencialismo dele só tem uma origem:

“é a realidade existencial de Sören Aabye Kierkegaard [grifo do autor], a sua personalidade

concreta” (Jolivet, 1957, p. 33). Por mais que tenha sofrido influências históricas, filosóficas e

sociais, a sua reflexão é “precisamente ele próprio (...), mas é ele próprio voluntariamente e

sistematicamente [grifo do autor], a tal ponto que o <<existir como Indivíduo>> e a consciência

reflectida desse existir chegam a ser para ele condição absoluta da filosofia e até a sua única razão

de ser” (Jolivet, 1957, p. 34).

Kierkegaard foi homem-problema para si mesmo. A filosofia para ele “resumia-se em

tomar consciência, por forma cada vez mais penetrante, através de um profundo conhecimento da

sua própria existência, das exigências absolutas de uma existência autêntica” (Jolivet, 1957, p. 37-

38). O seu existencialismo é caracterizado pela negação do racionalismo hegeliano, pela desilusão

causada pelo sistema hegeliano e pelo “devir cristão” 13.

A filosofia existencial em Kierkegaard não é uma teoria da existência, já que ele não

oferece uma filosofia organizada e concluída, mas elementos fragmentários de uma filosofia

existencial e um método de vida. (Jolivet, 1957, p. 61- 64). A sua filosofia está presente no seu

13 A filosofia, de acordo com Kierkegaard, consistia “numa propedêutica da vida cristã ou, melhor, numa vivida consciência de todas as exigências do cristianismo [grifo do autor], isto é, num permanente, progressivo e consciente esforço de acabamento de si mesmo à luz do ideal cristão”. (Jolivet, 1957, p. 44).

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pensamento, na sua experiência, na sua existência. Isso está muito claro na obra Ponto de Vista

Explicativo da minha obra de escritor.

4. Sobre a obra: Ponto de Vista Explicativo da minha obra de escritor

Segundo Jean Brunn (2002, p. 13), essa obra permite a Kierkegaard ser claro consigo

mesmo, refletindo sobre a unidade sua obra, sua gênese, desenvolvimento e finalização de suas

obras. A obra representa um balanço de atividade e depois um programa de ação. Nela, defende que

não quis ser um escritor estético, uma vez que sempre foi um autor religioso que teve como objetivo

o “tornar-se cristão”. A obra estética era um instrumento para instigar e dissipar as ilusões dos

homens, era um processo maiêutico para desfazer a ilusão da cristandade. Para ele, a cristandade

“não é mais do que uma sociedade mundana vivendo na ignorância do temor e do tremor e fazendo

de Deus aquele de quem se espera que terá o bom gosto de não usar nenhum rigor para com as

faltas a que o homem se atribuía boa consciência de ter sucumbido com lucidez e com todo o

conhecimento de causa” (Brunn, 2002, p. 13).

É importante saber que na obra Ponto de Vista, o pensador dinamarquês “propõe-se a dar

aos seus leitores um quadro preciso e coerente da evolução do seu pensamento” (Brunn, 2002, p.

13). Porém, quando Sören concluiu a obra, resolveu não publicá-la. Em 1849, procurou outros

pseudônimos, juntar com outras páginas ou adiar. Pensava por ora que poderia editar com as

seguintes obras: A Doença Mortal, A Escola do Cristianismo e a Neutralidade Armada. Mas não

publicou nem o Ponto de Vista e a Neutralidade Armada porque a providência o guiou nestas

decisões. (Brunn, 2002, p. 15-16).

Em seu Diário, dizia que não poderia publicar a obra pelos seguintes motivos: não poderia

apresentar-se completamente; por ser um penitente; por não conseguir apresentar-se com exatidão; a

necessidade de manter o anonimato por causa da sociedade. (Brunn, 2002, p. 18-20).

Com essa renúncia do Ponto de Vista e nem continuando a obra A Neutralidade Armada

(retrata o modelo do cristão), escreveu outra obra, em 1849, intitulada Sobre a minha obra de

escritor, publicada em 7 de Agosto de 1851. A obra Ponto de Vista aparece em 1859, quando seu

irmão Peter Christian decidiu publicar. (Brunn, 2002, p. 20).

Tal obra está divida em duas seções. A primeira seção divide-se em A e B: a seção A tem

como título Duplo carácter ou duplicidade de toda obra: se o autor é um autor de ordem estética

ou religiosa. Já a seção B possui o seguinte título Explicação: que o autor é e foi um autor

religioso. A segunda seção (A Concepção de toda a obra e que, sob este ponto de vista, o autor é

um autor religioso) divide-se em três capítulos.

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Na Introdução do livro, Kierkegaard diz o que pretende ser como autor, o porquê quis

guardar silenciosamente o seu dever religioso, por mais que o tenham julgado como arrogante e

orgulhoso. Em suas palavras afirma:

Esta pequena obra propõe-se, pois, dizer o que sou verdadeiramente como autor, que fui e sou um autor religioso, que toda a minha obra de escritor se relaciona com o cristianismo, como o problema do tornar-se cristão, com intenções polêmicos directas e indirectas contra a formidável ilusão que é a cristandade, ou a pretensão de que todos os habitantes de um país são, tais quais, cristãos. (Kierkegaard, 2002, p. 24).

Esta obra é destinada a orientar e a certificar quem foi Kierkegaard e o seu objetivo numa

sociedade alienante e hipócrita, demonstrando que as suas obras, em resumo, não se referem a sua

personalidade, mas ao seu método maiêutico que procurava buscar a verdade. Inclusive, a obra não

tem intenção de fazer uma apologia e uma defesa dos ataques recebidos. Mesmo que sofresse

injúrias e calúnias, desejava viver a verdade.

A busca da verdade ocorre pelo método da duplicidade existente, de modo consciente, do

começo ao fim. Assim, o religioso também está presente desde o princípio, pois escrevia as obras

estéticas com objetivo de extrair a verdade. Aí ele diz que o livro Post-Scriptum não é de ordem

estética nem religiosa, mas possui um pseudônimo. Todavia, Kierkegaard coloca-se como editor,

porque é um ponto crítico que trata de tornar-se cristão, retomar e analisar a produção dos

pseudônimos e os dezoito discursos edificantes. (Kierkegaard, 2002, p. 29-32).

Ser um autor religioso, para Kierkegaard, é um dever, mesmo que se satisfaça com as

obras estéticas. Isso se reafirma pela importância que Sören dá aos discursos edificantes, onde

demonstra a consciência do seu objetivo, pois, colocando a serviço da verdade, produz a categoria

do indivíduo que exprime “uma concepção integral de vida e do mundo” (Kierkegaard, 2002, p.

37), que se opõe à categoria de público ou multidão.

Aliás, o pensador de Copenhague faz uma crítica severa à cristandade que não vive de fato

o cristianismo, sendo assim uma imensa ilusão: “Todos, no entanto, até os que negam Deus, são

cristãos, dizem-se cristãos, são reconhecidos como cristãos pelo Estado, são enterrados como

cristãos pela Igreja, são enviados como cristãos para a eternidade” (2002, p. 42).

Daí surge a necessidade da comunicação indireta para dissipar essa ilusão:

Não, uma ilusão nunca é dissipada directamente, só se destrói [sic] radicalmente de uma maneira indirecta. Se todos estão na ilusão, dizendo-se cristãos, e se é necessário trabalhar contra isso, esta noção deve ser dirigida indirectamente, e não por um homem que proclama bem alto que é um cristão extraordinário, mas por um homem que, mais bem informado declara que não é cristão. (Kierkegaard, 2002, p. 43).

Com efeito, um autor religioso que reconhece essa ilusão e com auxílio de Deus deve

observar algumas condutas para ser fiel à sua missão: deve evitar a impaciência; evitar ataque

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direto; entrar em contato com os homens; deve estar seguro se di ou deve permanecer-se sob o olhar

de Deus no temor e no tremor; pronto para produzir sobre o religioso, mas apresentando-o de modo

adequado a sociedade.

Contudo, com o auxílio de Deus e para possibilitar dissipar essa ilusão, é necessário ser

humilhado, pois “há primeiro que humilhar-se perante aquele que queremos ajudar, e compreender

assim ajudar não é dominar, mas servir; que ajudar não é mostrar uma extrema ambição, mas uma

extrema paciência; que ajudar é aceitar provisoriamente estar errado e ser ignorante nas coisas que o

antagonista compreende” (Kierkegaard, 2002, p. 45).

Nessa ajuda há possibilidade de ser um mestre do seu interlocutor, mas ser mestre

não é cortar a direito à força de afirmações, nem dar lições para aprender, etc.; ser mestre é verdadeiramente ser discípulo. O ensino começa quando tu, o mestre, aprendes com o teu discípulo, quanto te colocar naquilo que ele compreendeu, na maneira como o compreendeu, ou, se ignoravas tudo isso, quando simulares prestares-te a exame, deixando o teu interlocutor convencer-se de que sabes a lição: tal é a introdução, e pode então abordar-se um outro assunto. (Kierkegaard, 2002, p. 46-47).

Por isso o autor religioso deve “estrear-se na cristandade como autor estético”

(Kierkegaard, 2002, p. 47) porque quando um cristão finge não ser cristão e supõe que todos os

outros o são, possibilita dissipar a ilusão.

Outra ilusão necessária a ser eliminada é o fato de que a religiosidade e o cristianismo são

coisas às quais se recorre apenas com a idade. Pensa-se isso porque vê a juventude relacionada ao

tempo do estético, ao passo que da maturidade refere-se ao sentimento religioso. Todavia, ser cristão

não é uma decisão adiada para a velhice, uma vez que o cristão pode ser em qualquer fase da vida.

(Kierkegaard, 2002, p. 48-49).

Um pensador cristão, como Kierkegaard, mas que se diz que não é cristão, argumenta que

um autor religioso pode obrigar um homem a tornar-se atento, a se questionar ou refletir sobre os

que se dizem cristãos, mas não dão testemunho de uma abnegação suficiente na causa que

representam.

Os cristãos falsos vivem em categorias puramente estéticas totalmente distintas das

cristãs, desse modo, um autor religioso, pela sua produção estética, é capaz de cativá-lo e de

ganhá-lo com objetivo de dissipar essa falsa aparência. Depois, deve apresentá-lo ao religioso

para que desperte a sua atenção propiciando um julgamento. É uma tensão dialética vivida

pelo autor. (Kierkegaard, 2002, p. 52-53).

Um autor dialético como Sören demonstra que as formas de sua existência devem

estar relacionadas às diversas formas de produção. Para ele, ser escritor é “agir, ter obrigação

de agir e, por conseguinte, ter um modelo pessoal de existência” (2002, p. 57). Um modo que

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rendeu preocupação e angústias a Kierkegaard pela desmoralização e da corrupção da

imprensa e da sociedade.

Na sua atividade, o pensador dinamarquês diz que, no princípio, era um incógnito,

através do autor estético, procurando enganar. O engano vivia-se da seguinte forma na vida de

Kierkegaard:

Eu devia existir e entrincheirar a minha existência num isolamento absoluto; mas precisa, ao mesmo tempo, de ter cuidado em me mostrar a toda a hora do dia, vivendo por assim dizer na rua, na companhia de Pedro e Paulo e nos encontros mais inesperados. Tal era, a arte de enganar o caminho da verdade, o meio para sempre certo de atenuar no mundo a impressão que se dá de si mesmo, a via de renúncia seguida ainda por pessoas completamente diferentes de mim para atrair a atenção, pelos homens que gozam de consideração, pelos “embusteiros expeditos em tirar partido da mensagem , e não em servi-la, e que visam unicamente adquirir reputação; e ainda pelos homens desprezados, pelas “testemunhas da verdade” que enganam ao invés e sempre tiveram como regrar estar à mercê do mundo, ainda que trabalhando dia e noite por nada ser, e sem serem sustentados, entre outras, pela ilusão de que sua obra é o seu emprego ou o seu ganha-pão. Eis o que era necessário fazer, e o que eu fiz, não por safanões, mas todos os dias e incessantemente (...). Não queria alargar aqui o quadro da minha existência pessoal; mas, estou certo, raramente um autor recorreu tanto à astúcia, à intriga, à habilidade para conquistar e glória e reputação no mundo, para o enganar, como eu, com a intenção inversa... de o enganar ao serviço da verdade (...). Se alguma vez Copenhaga formou acerca de alguém uma opinião, atrevo-me a dizer que foi de mim: era um madraço, um ocioso, um vadio, um homem superficial, um bom cérebro, até brilhante, espirituoso, etc., mas completamente desprovido de seriedade. Eu representava a ironia da sociedade, o prazer da vida e o prazer mais refinado, mas sem um pitada de espírito “sério e positivo; em compensação, era extremamente interessante e mordaz. (Kierkegaard, 2002, p. 58-62).

Este engano era necessário para demonstrar que a cristandade é uma ilusão, e que a

categoria do indivíduo é o que possibilita o sentido da vida e, inclusive, a verdade está

manipulada por uma ideologia imposta pela multidão.

Diante desses fatos, Kierkegaard, com uma visão pessimista da sociedade, procurou

transformar a sua vida, pela qual a Providência deu um sinal para que agisse como um crítico

veraz da sociedade. Um sinal era a revolução de 1848, que foi uma crise constitucional, onde

o pensador dinamarquês percebeu o depreciamento da categoria do indivíduo que foi

“apagada” pela sublimação da categoria de multidão. Sobre essa situação, Kierkegaard (2002,

p. 65-67) retrata:

Se a situação não fosse tão grave, se eu tivesse de a encarar como puro esteta, diria que nunca tinha visto nada de mais ridículo, e creio verdadeiramente que necessitaria de viajar muito tempo e até ter sorte para descobrir uma analogia de um cômico tão completo. Viu-se toda a população de uma cidade, e primeiramente a que vai dos ociosos da rua à juventude das escolas e aos aprendizes sapateiros, viram-se todas estas legiões que, nada sendo, constituem hoje a única classe favorecida e privilegiada comportar-se... em massa; viu-se toda a população de uma cidade, associações, corporações, comerciantes, pessoas de qualidade comportar-se... em família (...); tornaram-se : “irônicas”, graças a um jornal que, por sua ironia das coisas e graças a uma redacção de mariolas, monopolizou e deu por sua vez o tom... de ironia. Creio que é impossível imaginar algo de mais ridículo. A ironia pressupõe uma formação intelectual completamente específica muito rara em cada geração

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(...); a ironia tende por excelência a ser privilégio de um só, segundo a acertada formula de Aristóteles (...). Para se fazer uma ideia do perigo, há que ver de perto como até pessoas corajosas, a partir do momento em que se tornaram “multidão”, se transformara em seres diferentes (...). É terrível ver num país pequeno estúpidas tagarelices e fingimentos ameaçarem vir a tornar-se a “opinião pública”. A Dinamarca reduzia-se a Copenhaga, que se transformava numa aldeola de província. Este resultado é muito fácil de atingir, sobretudo graças à imprensa; mas quando o mal está feito, é necessário talvez uma geração para ir contra a corrente.

Um ser que vive numa geração oposta da sociedade em massa, sendo alvo da sua ironia,

foi o próprio Sören que foi mal compreendido e visto como motivo de chacota pela sociedade.

Porém, Kierkegaard reconhecia que, tendo em vista a dialética, era preciso agir decisivamente

contra a desmoralização da sociedade, através da comunicação indireta e direta, mas que a raiz para

enfrentar os problemas se fundamentava num autor religioso.

Um autor religioso que conhece o sucesso e a fama não é o eo ipso um autor religioso. O autor essencialmente religioso é sempre polémico; suporta o peso ou o sofrimento da resistência em que se traduz o que é necessário considerar como mal específico de sua época (...). Mas se o mal reside na multidão e na sua tagarelice, no público e no seu riso imbecil, o escritor religioso deve ainda reconhecer-se nos seus ataques e perseguições. E se tem como alavanca apenas o miraculoso silogismo, quando se lhe pede para justificar a verdade de sua mensagem, responde: a minha prova é a perseguição; a prova de que proclamo a verdade tenho-a nos vossos risos (...). Numa época de chacotas e de fingimentos (...), o autor religioso deve, pela honra de Deus, velar por ser ridicularizado, antes de mais nada. Se o mal vem da massa, o autor religioso contemporâneo deve, pela honra de Deus, velar por ser objecto de perseguição da massa, e vem a este respeito para o primeiro plano (...). Se a multidão é o mal, e o caos aquilo que nos ameaça, então só há uma salvação numa coisa – tornar-se o Indivíduo, e só há pensamento salutar no do Indivíduo. (Kierkegaard, 2002, p. 69-70).

Assim, é como objeto de ironia e de ser mal visto pela sociedade, Kierkegaard, encontra a

sua edificação como um autor religioso, procurando, através do seu método maiêutico, dissipar essa

ilusão em que se vivem os dinamarqueses.

Nessa situação existencial e problemática, Sören diz que foi necessário o auxílio de Deus

para expressar e experimentar a importância de um Deus para dar sentido a sua vida, permanecendo

numa atividade de vigilante, obediente e dócil. É Deus o ápice para encontrar-se consigo mesmo e

entender a relação pessoal primordial em que se estabelece entre o criador e a criatura.

(Kierkegaard, 2002, p. 73-75).

Tive necessidade do auxílio de Deus durante toda a minha actividade literária e constantemente, dia após dia, ano após ano; porque foi Ele o meu confidente; e só nesta confiança é que pude ousar o que ousei, suportar o que suportei, e encontrar aí a minha felicidade: estar, totalmente à letra, só no vasto mundo, só, porque em toda a parte onde estive, aos olhos de todos ou no encontro mais íntimo, sempre estive vestido com o mando do embuste; portanto, estava só, não o teria estado mais na solidão da noite; só, não nas florestas da América, nos seus perigos e terrores, mas naquilo que faz mesmo da mais terrível realidade um sossego apaziguador, só na sociedade das mais cruéis possibilidades; só quase com a linguagem humana contra mim, só nos tormentos que me ensinaram mais de um comentário novo sobre o texto do espinho da carne (...); só nas tensões dialécticas que, sem o auxílio de Deus, conduziriam à demência todo o homem dotado com minha imaginação. (Kierkegaard, 2002, p. 77-78).

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Assim, Deus foi o fogo que aqueceu a vida kierkegaardiana, produzindo uma imaginação

intensa e a publicação de várias obras, pois a religiosidade foi trocada por uma religião estética.

Se tivesse que pronunciar-me com uma palavra sobre a minha época, diria que lhe falta educação religiosa. Banal se fez tornar-se e ser cristãos, e o estético tem incontestavelmente a preponderância: ultrapassando o estado cristão (onde facilmente se situa, voltou-se a um paganismo estético e intelectual mais refinado, temperado com cristianismo); a tarefa a propor à maioria na cristandade é a seguinte: partindo do “poeta” ou da vida de acordo com as suas concepções, partindo da especulação, ou de uma vida consagrada no imaginário (o que é, ao mesmo tempo, impossível) à especulação (em vez de existir), partindo daí, tornar-se cristão. O primeiro movimento oferece a significação total da produção estética na obra total; o segundo é o do Post-Scriptum definitivo que, ordenando ou tirando, para seu proveito, toda a produção estética para bem esclarecer o problema de que trata, o do “tornar-se cristão”, executa o mesmo movimento numa outra esfera”: partindo da especulação, do sistema, etc., tornar-se cristão. Este movimento é: PARA TRÁS, e ainda que tudo seja feito sem “autoridade” (...). (Kierkegaard, 2002, p. 80-81).

A autoridade investida em Kierkegaard, não era de um apóstolo, nem de um educador ou

mestre, mas de ser um condiscípulo. Isso se baseia na sua própria infância que fora caracterizada

pela austeridade, disciplina, obediência, temor e melancolia, mas que propiciou amar o cristianismo

de uma certa maneira, à busca do autêntico cristianismo. (Kierkegaard, 2002, p. 82-83).

Mas antes de exercer uma missão emblemática, Kierkegaard, para consolar-se sobre o

cristianismo e a situação melancólica durante sua adolescência, procurou refúgio na vida estética:

Caminhei assim na vida, iniciado em todos os prazeres possíveis, sem nunca realmente fruir; esforçava-me antes por fazer crer que tinha gozo, no que encontrava um prazer a opor à dor da melancólica; freqüentava todas as espécies de homens possíveis; mas nunca pensei fazer de um deles o meu confidente, como nunca também um deles advertiu que o era; por outras palavras, devia ser e fui um observador; a este título, e como espírito, esta vida permitia-me fazer uma extraordinária colheita de experiências; tive ocasião de ver de muito perto um conjunto de prazeres, de paixões, de disposições, de sentimentos, etc., e exercitei-me em penetrar bem nos corações, na arte de imitar; a minha imaginação e a minha dialéctica tiveram sempre uma matéria suficiente para ordenar e, livre de ocupações, tive bastante tempo para permanecer na ociosidade; durante longos períodos, não fiz outra coisa que exercícios dialécticos temperados de imaginação, treinando o meu espírito como se afina um instrumento; mas, propriamente falando, eu não vivia. Era sacudido, tentado de mil maneiras e em quase todas as mais diversas coisas, infelizmente tanto nos desregramentos, como ainda, ai de mim! no caminho da perdição (...). mas para falar verdade, não vivi, excepto como espírito; não tinha sido homem e, sobretudo, não tinha sido nem criança, nem jovem. (Kierkegaard, 2002, p. 84-85).

Sören Kierkegaard não foi nem criança nem jovem durante o início da sua vida, por viver

como “espírito” durante estes períodos que possibilitaram não ser imediatista, mas reflexão do

princípio ao fim. E inclusive, precisou suportar a dor de não ser como os outros e preocupar-se com

a eternidade, pois a temporalidade não faz parte do espírito. E sendo penitente e obediente, com a

ajuda divina, Sören Kierkegaard tornou-se autor. (Kierkegaard, 2002, p. 85-86). Um autor que se

alicerçou na dialética e que se tornou poeta numa segunda juventude, pois pulou os períodos da

infância e da juventude:

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Tornei-me poeta; mas, com os meus antecedentes religiosos, com o meu carácter expressamente religioso, este mesmo facto foi, simultaneamente, para mim, a ocasião de um despertar religioso, de tal modo que, no sentido mais categórico, acabei por conceber a minha vida na esfera do religioso, na religiosidade, o que não encarara senão com uma possibilidade. (Kierkegaard, 2002, p. 87).

Ele se tornou poeta por causa do seu despertar religioso e da sua consciência dessa

duplicidade. Produzia obras poéticas, enquanto vivia sobre os princípios religiosos para que

acontecesse uma purificação necessária. E a religiosidade em que vivia nele possibilitou tornar-se

um autor religioso porque era preciso ser um espião no mundo:

Sou como espião ao sérico de interesses superiores, os da ideia; nada tenho de nova a proclamar, estou sem autoridade; mesmo sob o manto do disfarce, não vou directamente à obra, vou pela vida indirecta da astúcia; não sou um santo; em suma, sou como espião que, ao informar-se, por função, dos erros, das ilusões e das coisas duvidosas, está ele próprio sob a mais estrita vigilância enquanto exerce a sua. (Kierkegaard, 2002, p.89-90).

Se se dissesse (e eu veria nisso uma observação sagaz): “Nestas condições se a tua maneira de te conceberes como espião é verdadeira, a tua obra inteira é uma espécie de traição de misantropo, um crime de lesa-humanidade”, eu responderia: Ah! Com certeza, o meu crime é, com efeito, o de ter amado cristãmente (...). esforcei-me por exprimir que o mundo se não é mau, é medíocre, que a “exigência do tempo”, é sempre loucura e miséria; que, aos olhos do mundo, a verdade é um ridículo exagero ou uma bizarra superfluidade, que o em deve sofrer. Esforcei-me pro exprimir que a aplicação de espécie à humanidade, sobretudo quando ela designa a mais elevada condição, é um erro digno de paganismo porque a espécie humana não é apenas diferente de uma espécie animal pela superioridade da espécie, mas pelo carácter humano segundo o qual todo o Individuo (não um espírito distinto isolado, mas todo o Indivíduo) é na espécie mais do que espécie, o que diz respeito à relação com Deus (e que é o cristianismo, cuja categoria é exactamente a do Indivíduo, tão escarnecida pela nossa respeitável época cristã), visto que a relação com Deus é muito mais nobre do que a relação com a espécie, ou do que a relação com Deus pela espécie. Eis o que me esforcei por demonstrar; não invectivei nem lancei raios; não ensinei, mas fiz ver que a nossa época também se encontra numa triste confusão a respeito do bem e da verdade, do tempo e dos contemporâneos; esforcei-me por torná-lo evidente com toda a manha e astúcia de que dispunha. Ao opor-me à concepção e à vida em que se ama a condição humana, de uma maneira completamente humana e agradável ao homem, traindo Deus, cometi o crime de amar Deus e esforcei-me, por todos os meios, mas indirectamente, como espião, por tornar patente esta traição (...). Não há nisto nada de meritório e, verdadeiramente, não busco aí um motivo para me consolar acerca minha felicidade. Contudo, regozijo-me como uma criança por ter assim servido, enquanto perante Deus sacrifico toda a minha actividade com mais vergonha e confusão do que uma criança restituindo aos pais aquilo com que a presentearam (...). (Kierkegaard, 2002, p. 90-91).

Com efeito, Kierkegaard sofreu interiormente, pois procurou abalar o mundo,

menosprezar a gloria e a honra do mundo, em vista do Indivíduo, do verdadeiro cristianismo e da

verdadeira Providência. Nessa atividade de escuta a si mesmo, do mundo e de Deus, Sören fez um

balanço da sua perda.

Perco aquilo cuja posse o cristianismo considera como uma perda, todas as formas mundanas do interessante. Perco a vantagem interessante de pregar a sedutora malignidade do prazer, a alegria de viver, a alegre mensagem do gozo mais refinado da vida, a insolência da troça. Perco a vantagem interessante de ser uma interessante possibilidade (...). Perco a vantagem interessante de ser um enigma, se esta defesa do cristianismo levado ao extremo não é a forma de ataque mais astuta. Perco a vantagem interessante, a que se substitui uma outra nada menos que interessante, da

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comunicação indirecta, mostrando que o problema foi e é o de tornar-se cristão. Aos olhos da multidão e do mundo, perdi o meu carácter interessante, ao supor, aliás, que me saio bem por este preço, e não vejo as pessoas furiosas pela audácia com que um homem mostrou uma tal astúcia. (Kierkegaard, 2002, p. 95).

Para o pensador dinamarquês, o objetivo de tornar-se cristão é mais digno do que fazer

parte da multidão. “Não é por reflexão que se torna cristão, mas o tornar-se na reflexão significa que

se tem de rejeitar outra coisa (...). O papel da reflexão é precisamente determinar o ponto de onde se

sai para cristão se tornar” (Kierkegaard, 2002, p. 97).

O movimento de tornar-se cristão vai do interessante para a simplicidade, por meio da

dialética socrática, que irá lutar contra o Sistema e a especulação, mas que parte deles para a

simplicidade de como se tornar cristão. Contudo, é enfrentar o mundo para seguir as vontades

divinas. É se ausentar de uma sociedade especulativa e em massa. (Kierkegaard, 2002, p. 99).

E por fim, na Conclusão do Ponto de Vista Explicativa da Minha Obra de Escritor, o

pensador de Copenhague lembra que o seu martírio, o seu escândalo social, a sua vida, foi vivido

em prol de buscar a verdade, de um verdadeiro cristianismo. Segundo ele, algum leitor poderá dizer

o seguinte sobre a sua vida:

“Contudo, encontrou também no mundo o que procurava: se ninguém mais o foi, ele próprio ‘o Indivíduo’ e nele se torna cada vez mais. Serviu a causa do cristianismo; desde sua infância, a sua vida a isso o levou de estranha maneira. Acabou por isso a obra da reflexão; fez entrar totalmente nesta esfera o cristianismo, o tornar-se cristão. A pureza do seu coração foi querer apenas o Uno; a acusação levantada contra ele pelos seus contemporâneos que ele não quis rebater nem ceder, é o próprio elogio que a posteridade não lhe concede: quis rebater, não cedeu. Mas o seu grandioso empreendimento não o iludiu: enquanto que na sua qualidade de autor dominava, graças à dialéctica, toda a situação com um olhar de conjunto, compreendia, graças ao cristianismo, que tudo isso significava para ele a necessidade de fazer a sua educação cristã. Não podia dedicar a ninguém o edifício dialéctico que construiu e cujas partes separadas são já monumentos; ainda menos o podia atribuir a si próprio; se houvesse de o dedicar a alguém, teria sido a Providência, à qual, não obstante, dia após dia, ano após ano, foi dedicado pelo autor que, para o historiador, morreu de uma doença mortal, mas que, para o poeta, morreu do desejo ardente da eternidade, por não fazer outra coisa senão dar continuamente graças a Deus”. (Kierkegaard, 2002, p. 103-104).

Portanto, Sören Kierkegaard foi um autor que procurou escutar a si mesmo. Sua filosofia é

um método de vida que procura religar o Indivíduo com Deus, que almeja a eternidade e desamarrar

os nós da massa. Ele é o autor que instiga o ser humano a voltar-se para si, para sua interioridade,

para encontrar a sua raiz e dela se abastecer pela graça divina, que irá possibilitar crescer e

desenvolver enquanto ser humano. Kierkegaard é um autor religioso que se desenvolveu como uma

árvore: com sua “raiz” interior, suga as energias da Providência, e relaciona-se com a “terra” massa,

mas com sua atividade incessante cresce, produz vários “galhos”, obras pelas quais os leitores irão

ler suas “folhas”; suas “folhas” caem na “terra” massa procurando dar uma nova orientação de vida,

porém, chega o “lenhador” imprensa, aquele que quer se apropriar do indivíduo para padronizá-lo

na sociedade, junto com o seu “machado” que procura cortar seus “galhos” que são, por sua vez,

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uma afronta a sua atividade ideológica e hipócrita. Contudo, a sua raiz sempre permanece intacta e a

seiva da sua interioridade sempre buscará realizar-se como Indivíduo.

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