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Uma interpretação do funcionamento do Sistema de Metas de Inflação no Brasil 1999-2006 a partir das evidências empíricas Resumo O objetivo deste artigo é refutar a interpretação usual acerca do funcionamento do Sistema de Metas de Inflação no Brasil, no qual o principal mecanismo de transmissão da política monetária para os preços seria o nível de demanda agregada. Nesta visão convencional, a taxa de juros é utilizada para manipular o nível de demanda agregada, enquanto que o regime de câmbio flutuante permite que a fixação da taxa de juros independa das condições de financiamento do BP. Entretanto, demonstram-se no presente artigo que: i) o regime cambial brasileiro caracteriza-se por uma elevada intervenção da autoridade monetária; e ii) a inexistência de qualquer efeito aparente do nível de utilização na indústria sobre a inflação no período 1999- 2006. Propõe-se então que o relativo êxito do sistema de metas deveu-se à forte relação entre juros e câmbio por um lado, e entre câmbio e inflação por outro. Nesta re- interpretação do funcionamento do sistema de metas, o principal (e único) mecanismo de transmissão da taxa de juros para a inflação é a taxa de câmbio, sendo a diminuição da demanda apenas um efeito colateral. Abstract

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Uma interpretação do funcionamento do Sistema de Metas de Inflação no Brasil

1999-2006 a partir das evidências empíricas

Resumo

O objetivo deste artigo é refutar a interpretação usual acerca do funcionamento do

Sistema de Metas de Inflação no Brasil, no qual o principal mecanismo de transmissão

da política monetária para os preços seria o nível de demanda agregada. Nesta visão

convencional, a taxa de juros é utilizada para manipular o nível de demanda agregada,

enquanto que o regime de câmbio flutuante permite que a fixação da taxa de juros

independa das condições de financiamento do BP. Entretanto, demonstram-se no

presente artigo que: i) o regime cambial brasileiro caracteriza-se por uma elevada

intervenção da autoridade monetária; e ii) a inexistência de qualquer efeito aparente do

nível de utilização na indústria sobre a inflação no período 1999-2006. Propõe-se então

que o relativo êxito do sistema de metas deveu-se à forte relação entre juros e câmbio

por um lado, e entre câmbio e inflação por outro. Nesta re-interpretação do

funcionamento do sistema de metas, o principal (e único) mecanismo de transmissão da

taxa de juros para a inflação é a taxa de câmbio, sendo a diminuição da demanda apenas

um efeito colateral.

Abstract

This paper’s main purpose is to deny the common interpretation about the functioning

of the Inflation Targeting System in Brazil, in which aggregate demand is supposed to

be the main transmission mechanism from monetary policy to inflation. In this view, the

interest rate is used to manipulate the level of aggregate demand and the floating

exchange rate regime allows that the interest rate be determined independently from the

Balance of Payment constraints. We then show two problems on that interpretation: i)

Brazilian exchange rate regime is characterized by a highly interventionist monetary

authority and ii) that there is no apparent relation between aggregate demand and

inflation in the period 1999-2006. We then propose that the relative success of the

targeting system in Brazil is due to the strong relation among the interest rate and the

exchange rate by one side and among exchange rate and inflation by the other. In this

re-interpretation of the functioning of the targeting system, the main (and only)

mechanism through which the interest rate affects inflation is the exchange rate, being

the impact on aggregate demand only a collateral effect.

Introdução

O objetivo deste artigo é analisar o funcionamento do Sistema de Metas de

Inflação (doravante SMI) implementado no Brasil a partir de 1999, baseado numa

interpretação heterodoxa das relações entre taxa de juros e inflação. Busca-se refutar a

idéia de que o regime cambial brasileiro é flutuante (no sentido que iremos especificar)

e que o principal objetivo da política monetária é afetar a demanda agregada e, por meio

desta, os índices de inflação.

A adoção de um SMI implica em subordinar o manejo da taxa de juros básica da

economia ao atendimento de metas inflacionárias a serem cumpridas num período

determinado. Tal sistema, portanto, supõe que a taxa de juros tem influência

suficientemente grande na inflação que permita atingir as metas estabelecidas.

Podem-se conceber duas mediações para a relação juros-inflação: o mercado

cambial e o nível de demanda agregada. Consequentemente, a análise do funcionamento

do SMI deve contemplar a explicação destes dois canais de transmissão. Para o caso

brasileiro supor-se-á que a taxa de juros determinada pelo Banco Central do Brasil

(doravante BCB) independe do risco de “default” da dívida interna percebida pelos

agentes, ou, pelo menos, que a taxa de juros manteve-se acima do patamar em que os

agentes prefeririam papel moeda aos títulos públicos.

Este artigo está dividido em quatro partes além desta breve introdução. Na

primeira parte tratar-se-á da relação entre taxa de juros e taxa de câmbio. Na segunda,

da relação entre demanda e inflação. O terceiro item busca indícios da relação entre taxa

de câmbio e inflação e, finalmente, na conclusão, busca-se pensar as implicações dos

itens anteriores para a interpretação do funcionamento do sistema de metas

inflacionárias brasileiro.

Taxa de Juros

Hiato do Produto

InflaçãoTaxa de Câmbio1

2 2

3

1 - Relação entre taxa de juros e taxa de Câmbio

O propósito desta seção é refutar a idéia muito repetida no debate brasileiro de

que a taxa de câmbio é flutuante. Primeiramente mostrar-se-á como o regime cambial

brasileiro é administrado pelo governo por meio da variação das reservas e da taxa de

juros. Em segundo lugar explica-se, de maneira esquemática, como a taxa de juros

influencia a taxa de câmbio.

O fato de a taxa de câmbio brasileira ter apresentado fortes flutuações não

implica que não se trate de um regime de câmbio administrado. Este regime caracteriza-

se pela atuação da autoridade monetária (doravante AM) por meio do manejo das taxas

de juros, como pela compra e venda de divisas com o objetivo de atenuar as flutuações

cambiais.

Os dados para o Brasil no período 1999-2006 demonstram que houve i) uma

elevada correlação com alterações na taxa de juros e mudanças na taxa de câmbio, e ii)

uma interferência permanente do BCB comprando e vendendo reservas1.

Gráfico 1 – Variação das Reservas Internacionais

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Reservas Internacionais - Variação Mensal Reservas Internacionais Líquidas AjustadasFonte: BCB. Elaboração Própria

1 A administração via reservas está subestimada, pois não inclui a venda de títulos cambiais nem as operações do Tesouro Nacional.

Gráfico 2 – Taxa de Câmbio e Juros – Valores Nominais

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Taxa de juros - Selic - fixada pelo Copom - (% a.a.) - BCB Taxa de câmbio nominal Real/Dólar

Fonte: BCB, IPEADATA. Elaboração própria

Fica evidenciado pelos gráficos anteriores que o regime cambial brasileiro é

administrado, havendo uma intervenção permanente da AM.

Demonstrar-se-á a maneira pela qual a taxa de juros afeta a taxa de câmbio,

baseados em FREITAS (2006), SERRANO (2006b) e LAVOIE (2000).

A taxa de câmbio é o resultado da interação de muitos agentes que operam no

mercado de câmbio, cujos objetivos e motivações são diferentes. Os agentes são desde o

especulador financeiro até os importadores e exportadores, e também o setor público

(Banco Central e Tesouro Nacional). Para se ter uma idéia da multiplicidade de tipos de

fluxos, basta analisar as contas do Balanço de Pagamentos (BP) numa versão mais

desagregada.

Para a análise aqui proposta dividir-se-ão esses fluxos do BP em apenas dois

grandes grupos: os que são afetados pela taxa de juros de curto prazo e aqueles não

afetados:

Dado o propósito de entender a relação juros-câmbio, centrar-se-á a análise nos

condicionantes de . Para isso, partir-se-á da equação de paridade descoberta que

iguala a rentabilidade esperada de dois ativos denominados em moedas diferentes:

Onde:

i = taxa de juros interna

i*= taxa de juros externa

rp = risco país

e = taxa de câmbio

= taxa de câmbio esperada para o próximo período

Esta equação apenas estabelece a igualdade entre a rentabilidade esperada de

dois ativos denominados em moedas diferentes. Propõe-se tratar a taxa de juros externa

e o risco país como dados. E diferentemente do usual, supor-se-á que a taxa de câmbio

esperada para o próximo período é formada a partir de expectativas adaptativas. As

razões teóricas para se defender tal tipo de expectativa decorre do fato de ser o mercado

de câmbio, como já havia sido assinalado, extremamente complexo - em que atuam

agentes diversos e heterogêneos e influenciado por fatores de difícil previsão (taxas de

crescimento externo e interno, aversão ao risco dos investidores internacionais, política

monetária dos países centrais, política monetária interna para citar alguns).

Consequentemente, a taxa que vigora no mercado e sua trajetória recente são, de fato,

uma informação concreta e importante a ser incorporada pelos agentes na formação de

suas expectativas.

Para tentar captar como são formadas estas expectativas acerca da taxa de

câmbio, utilizar-se-ão as informações do Boletim Focus, que inclui uma pesquisa em

que o BCB pergunta diariamente aos agentes do mercado financeiro qual a taxa de

câmbio esperada para o final do período nos próximos anos. O BCB calcula então a

média dessas opiniões e divulga os dados em seu sítio eletrônico2.

O Gráfico 3 condensa essas informações para o período 2000-2006. Os pontos em

preto representam as taxas de câmbio efetivas nas respectivas datas. Por exemplo, em

2002 a expectativa do câmbio para o final do mesmo ano é dada pela linha amarela, e

para o final de 2003, 2004, 2005 e 2006 pelas linhas azul claro, roxo, marrom e verde

respectivamente.

2 Ver www.bcb.gov.br

Gráfico 3 - Taxa de Câmbio Esperada - Boletim Focus

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Taxa

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2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 Taxa a vistaFonte: BCB-Boletim FOCUS. Elaboração própria.

A análise do Error: Reference source not foundGráfico 3 mostra,

inequivocamente, que a taxa esperada de câmbio é formada a partir da taxa a vista, e

não o contrário3. Tal propriedade se manifesta no gráfico pela tendência ao longo do

tempo das taxas esperadas “seguirem” a taxa a vista, revelando um padrão de

expectativas adaptativas.

O BCB divulga as expectativas em relação ao final de período, o que implica que

o período de previsão vai se encurtando em relação ao final do ano, isto é, ao final do

ano a taxa esperada deve ser, necessariamente, igual à taxa a vista. Entretanto, a

comparação com os anos seguintes supre parcialmente esta deficiência, mostrando que

mesmo taxas de prazos muito maiores “seguem” a taxa a vista.

Propor-se-á a seguinte (dentre outras possíveis) formalização destas expectativas

a partir de SERRANO (2006b):

Onde 0<b<1

3 Para a explicação aprofundada acerca da racionalidade dos agentes financeiros que levam a este comportamento ver KEYNES (1992), capítulo 17.

Segundo a equação , a taxa de câmbio esperada para o período seguinte será

igual à taxa esperada para o período atual mais a incorporação da tendência expressa

pela diferença entre a taxa que vigorou no período anterior e a taxa esperada para o

período atual.

O coeficiente “b” mede o quanto os agentes incorporam a trajetória passada do

câmbio nas suas expectativas. Este coeficiente, por sua vez, pode variar dependendo da

conjuntura. Por exemplo, em episódios em que ocorre uma super-desvalorização ou

valorização, os agentes podem começar a supor que a trajetória não é sustentável,

diminuindo seu coeficiente b. Mesmo assim, quando se analisa o caso brasileiro nota-se

que os momentos de inflexão da trajetória do câmbio coincidiram ou com fatos externos

ao modelo expectacional proposto – como aumento dos juros ou a tomada de

empréstimos com FMI – ou simplesmente coincidiram com mudanças na liquidez

internacional.

De qualquer forma, o ponto central é que, admitida a formação de expectativas

baseadas numa racionalidade adaptativa, a variação da taxa de câmbio à vista não cria

um diferencial de rentabilidade permanente. Consequentemente, cabe à política

monetária, ou mais especificamente, à taxa de juros determinada pela autoridade

monetária, o papel de viabilizar o financiamento do BP no curto prazo.

A implicação desta hipótese para a condução do SMI é radical: a variação da

taxa de câmbio não só não libera a política monetária para perseguir o objetivo

exclusivo da inflação, como torna necessário que se utilize a política monetária caso se

queira impedir a formação de uma trajetória de apreciação ou depreciação cambial.

Apenas formalizando o que foi dito até aqui e assumindo a hipótese de

mobilidade imperfeita de capitais (um diferencial de rentabilidade atrai um fluxo finito

de divisas) tem-se que:

E substituindo em :

Abandonando a hipótese de que existam apenas os fluxos sensíveis às taxas de

juros, deve-se analisar também o comportamento de . Propor-se-á que este será

formado pelo saldo de transações correntes (TC) e por outros fluxos de capitais:

O que se quer destacar é que o saldo de transações correntes, embora dependa da

taxa de câmbio real, demora “n” períodos para reagir às valorizações ou

desvalorizações:

Isto implica dizer que o ajuste pelo lado real da Balança de Pagamentos (BP),

caso ocorra, demora “n” períodos. No caso brasileiro, por exemplo, após a

desvalorização de janeiro de 1999 demorou aproximadamente 2,5 anos para que as

exportações começassem a crescer de forma rápida sendo que a eliminação do déficit de

transações correntes no acumulado dos últimos 12 meses ocorreu apenas em meados de

2003.

O ponto a ser levantado é que dada uma mudança da taxa de câmbio, esta não é

capaz de re-equilibrar os fluxos do BP, nem do ponto de vista dos fluxos financeiros,

nem do ponto de vista dos “fluxos reais”, pois tal ajuste pode demorar anos e nada

garante que ocorra na magnitude necessária para compensar uma eventual fuga de

capitais.

Isso posto, volte-se a atenção para a taxa de juros, que passa a ser o único

elemento capaz de estabilizar o BP no curto prazo, e sua relação com a taxa de câmbio.

Ou seja, substituindo 1.7 em 1.6 e 1.6 e 1.5 em 1.1 temos uma única equação que

descreve o comportamento dos fluxos de divisas, obedecendo à divisão proposta neste

trabalho:

A taxa de juros, definida pelo BC e a variação de reservas passam a ser os únicos

elementos controlados pela AM potencialmente capazes de re-equilibrar o BP no curto

prazo. O Gráfico 4 abaixo mostra como há uma correlação positiva entre um elevado

diferencial de rentabilidade e apreciação cambial. O diferencial de rentabilidade é

obtido ao se descontar da taxa de juros interna o risco país e a taxa de juros norte

americana. Tal diferencial não pode ser visto como a desvalorização esperada dado que,

como se advertiu, existem outros fluxos de divisas e se está trabalhando com a hipótese

de mobilidade imperfeita dos capitais.

Gráfico 4 – Diferencial de Rentabilidade e Taxa de Câmbio Comercial - Real/Dólar

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Spread Taxa de câmbio nominal Real/DólarFonte: BCB, Federal Reserve, IPEADATA, elaboração própria.

Os agentes financeiros lucram ao saber qual será a decisão dos outros agentes. Se

devido a uma mudança externa de liquidez, os agentes acham que o câmbio irá se

desvalorizar, eles tirarão seus recursos e a desvalorização de fato ocorrerá. O problema

brasileiro era que, para o período 1999-2002, não havia nenhum fator objetivo capaz de

conter esta desvalorização, a não ser o diferencial de rentabilidade. Portanto, um

movimento especulativo que levasse a uma tendência de desvalorização cambial e que

não fosse contraposto pelo diferencial de juros, poderia rapidamente deteriorar o cenário

das expectativas.

Os indicadores de endividamento revelavam uma elevada vulnerabilidade externa

para o Brasil no período acima mencionado. Tanto o índice de liquidez quanto o de

solvência, tornavam as reavaliações de portfólio em favor de ativos em dólar constantes.

A coordenação destas reavaliações em consonância com a liquidez internacional,

mesmo que fosse num montante pequeno, geravam impacto no câmbio, já que o país

não podia operar via venda de reservas, pois estas se encontravam em patamar

demasiadamente baixo. A taxa de câmbio agia como mecanismo estabilizador no

curtíssimo prazo, evitando que as oscilações diárias fossem incorporadas às expectativas

de longo prazo. Entretanto, com o passar do tempo, o efeito da desvalorização passada

se extinguia, à medida que as expectativas adaptavam-se ao novo patamar de câmbio

corrente.

O período 1999-2002 tem em comum a alternância entre saldos negativos e

positivos da conta e três episódios de deterioração das condições externas

captados pelo aumento no risco país. A AM agiu comprando e vendendo reservas

mensalmente e também elevando as taxas de juros nos períodos de maior turbulência

cambial4, com exceção da crise de 2002, em que a elevação dos juros ocorreu apenas

após a crise.

O período 2003-2006 apresentou uma dinâmica diametralmente oposta, que

pode ser resumida por dois fatores principais: i) o saldo da conta torna-se

constantemente positivo, e ii) o risco país é declinante em todo o período, atingindo

níveis historicamente baixos. Isto significa um cenário externo duplamente favorável

nas duas contas que estamos analisando. A AM agiu reforçando a tendência de

apreciação cambial por meio da manutenção de um elevado diferencial de rentabilidade.

A taxa de juros é, portanto, uma variável capaz de influenciar a taxa de câmbio

de maneira duradoura, uma vez que a taxa de câmbio esperada segue a taxa de câmbio

spot. Conseqüentemente a taxa de juros pode ser utilizada para interromper, aprofundar

ou até criar trajetórias de apreciação/depreciação cambial (dependendo também do

comportamento de ).

Mas mais importante, ela é o único instrumento capaz de re-equilibrar as contas

do BP no curto prazo, e como a evidência empírica demonstra, foi utilizada para isto no

Brasil, e não poderia ser de outra maneira. Entretanto se gera, aparentemente, um

problema para a operação do SMI, uma vez que a política monetária deveria ter como

4 Sobre a relação entre taxa de juros e volatilidade cambial ver (SICSÚ, 2002).

único objetivo o controle da inflação, mas precisa necessariamente permitir o

financiamento do BP5.

2 - Taxa de Juros, Demanda Agregada e Inflação

O objetivo desta parte é discutir o impacto da taxa de juros na inflação, mediado

pela demanda agregada. A relação juros-demanda agregada não será o foco no presente

trabalho. Supor-se-á que esta relação de fato exista, pois isto em nada altera o

fundamental da crítica aqui proposta. O foco será o efeito da demanda nos preços, pois

o BCB acredita ser este “o canal mais importante” na transmissão da política monetária

(BCB 2000, p94).

Numa análise preliminar buscou-se algum indício da influência do aumento da

demanda ou da diminuição do hiato do produto na aceleração ou desaceleração da

inflação. Para isso utilizou-se a capacidade utilizada na indústria como um indicador

aproximado do hiato do produto e plotou-se um gráfico de dispersão para os dados

brasileiros do período 1999-2006. O resultado, exposto no Gráfico 5, mostrou não haver

nenhum indicio desta relação.

Gráfico 5 – Diagrama de Dispersão – Período 1999-2006

Portanto, ao adicionar este resultado àqueles comentados na primeira parte do

presente artigo, o funcionamento do SMI fica bastante obscurecido. Não só a taxa de

juros não pode ser manejada com o objetivo exclusivo de atingir às metas inflacionárias,

5 Esta característica, associada à idéia do risco endógeno foi utilizada por Bresser e Nakano para defender que o problema da elevada taxa de juros brasileira é que ela teria múltiplos objetivos.

como o suposto principal canal de transmissão da taxa de juros para os preços parece

não ter relevância. Não obstante, é indiscutível o êxito da política monetária no alcande

das metas inflacionárias.

A resolução deste aparente paradoxo, que, aliás, causa muita confusão no debate

sobre política econômica, será feita quando se analisar o efeito do câmbio nos preços.

3 - Taxa de Câmbio e Inflação

As variações da taxa de câmbio brasileira foram amplas, rápidas e persistentes

no período 1999-2006. Nesta seção buscam-se indícios de como estas variações

impactam os índices de preços.

Teoricamente, a transmissão das alterações na taxa de câmbio6 para os índices de

preços pode ser separada em duas etapas: primeiro através dos preços dos bens

comercializáveis e, num segundo momento, no impacto dessa variação na estrutura de

custos dos bens não-comercializáveis.

O processo de abertura da economia brasileira ampliou o alcance do impacto

direto das alterações cambiais, uma vez que aumentou a participação das importações e

exportações no PIB. Mas é importante destacar também o efeito indireto que é fruto da

alteração na concorrência potencial com o setor externo para aquelas mercadorias

produzidas para atender ao mercado interno. Quanto mais homogênea a mercadoria,

maior seria o impacto do câmbio em seu preço, pois ela seria mais facilmente vendida

no mercado internacional. O Gráfico 6 – Câmbio e Comercializáveis evidencia a

correlação positiva no Brasil entre alterações do patamar do câmbio e alterações nos

preços dos bens comercializáveis.

6 Quando nos referirmos a taxa de câmbio estaremos implicitamente nos referindo à taxa real/dólar, por ser esta última moeda considerada o ativo mais líquido do sistema e portanto referência para os demais.

Gráfico 6 – Câmbio e Comercializáveis

Fonte: IPEADATA - BCB, IBGE

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Taxa de câmbio - R$ / US$ - comercial - compra - média - Mensal - R$ IPCA - comercializáveis - var. - Mensal - (% a.m.)

O impacto indireto se dá através do repasse da variação dos preços do grupo

supracitado para os preços dos bens não comercializáveis, que tem seu custo de

produção afetado. Nota-se, pela linha de tendência do Gráfico 7, que o preço dos bens

não-comercializáveis segue também o patamar de câmbio, embora de forma muito mais

amortecida.

Gráfico 7 – IPCA e bens não-comercializáveis

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Taxa de câmbio - R$ / US$ - comercial - compra - média - Mensal - R$ - BCB Boletim/BP - BM12_ERC12IPCA - não comercializáveis - var. - Mensal - (% a.m.) - IBGE/SNIPC - PRECOS12_IPCANCOM1212 por. Méd. Móv. (IPCA - não comercializáveis - var. - Mensal - (% a.m.) - IBGE/SNIPC - PRECOS12_IPCANCOM12)

Ao se adicionar todos os mecanismos de transmissão, vê-se que o impacto do

câmbio nos preços é amplo, mesmo se a corrente de comércio for pequena. Ademais, se

se fizer um exercício análogo ao que foi feito para testar o impacto da demanda

agregada nos preços, mas agora para a taxa de câmbio, encontram-se fortes indícios da

relação Câmbio-inflação (para uma análise econométrica completa ver CARDOSO &

VIEIRA (2005))

Gráfico 8 - Diagrama de Dispersão - Núcleo IPCA Livres vs. Taxa de Câmbio - 1998-07/2005-12

Fonte: IPEAdata - BCB, IBGE

-1

-0,5

0

0,5

1

1,5

2

2,5

1 1,5 2 2,5 3 3,5 4

Taxa de câmbio nominal R$/U$

IPC

A -

Núc

leo

Lívr

es -

Var.

men

sal

Cerca de 30% dos preços que compõem o IPCA – índice utilizado para apurar a

inflação no sistema de metas – são controlados pelo Estado.

Estes são compostos, naturalmente, por mercadorias comercializáveis e não

comercializáveis. Para se ter uma idéia desta distribuição, representam-se abaixo as

principais mercadorias do grupo monitorado.

Gráfico 9 – Participação de diversos itens no Grupo Monitorados – Pesos de 2005

O item combustíveis (inclui gasolina, álcool, diesel e gás de bujão) representa

21% do conjunto dos preços monitorados. Os combustíveis são comercializáveis e têm

seus preços referendados pelo preço internacional do petróleo. Conseqüentemente,

sofrem uma influência direta do câmbio, uma vez que é opção do governo que a

Petrobrás siga o preço internacional de longo prazo.

Os serviços de transporte (inclui ônibus urbano, ônibus intermunicipal, metrô e

avião), embora não comercializáveis, têm os combustíveis como principal fator de

custo. Finalmente temos os serviços públicos (inclui telefonia fixa e móvel, energia

elétrica e água e esgoto), em sua maioria privatizados, e que seriam a porção não

comercializável do grupo monitorados, estando isolados das oscilações cambiais.

Entretanto, há no Brasil um canal de contágio entre o câmbio e estes serviços

públicos, conseqüência de cláusula contratual definida na época de privatização desses

serviços que indexava vários serviços públicos ao Índice Geral de Preços da FGV (IGP),

conferindo à esses serviços, no que tange a forma com que reagem à alterações

cambiais, a característica de mercadorias comercializáveis.

Portanto, uma grande parte do grupo cujos preços são monitorados, que são não

comercializáveis e por isso sofreriam pouca influência das variações da taxa de câmbio,

é “transformada” em bens comercializáveis para efeitos do comportamento de seus

preços. Esta indexação reforça o repasse da variação cambial para os preços,

estendendo-a para uma parte relevante dos serviços públicos.

Gráfico 10 – Preços Monitorados e Tendência em relação ao Patamar de Câmbio

Fonte: IPEADATA - IBGE, BCB

-1

-0,5

0

0,5

1

1,5

2

2,5

3

3,5

4

1999 01 1999 07 2000 01 2000 07 2001 01 2001 07 2002 01 2002 07 2003 01 2003 07 2004 01 2004 07 2005 01 2005 07

Infla

ção

(Var

iaçã

o %

men

sal)

e T

axa

de c

âmbi

o no

min

al R

$/U

$ .

Taxa de câmbio - R$ / US$ - comercial - compra - média - Mensal - R$IPCA - preços monitorados - var. - Mensal - (% a.m.)12 por. Méd. Móv. (IPCA - preços monitorados - var. - Mensal - (% a.m.))

Esta excessiva sensibilidade dos preços monitorados ao câmbio é reconhecida

por diversos economistas e, inclusive, utilizada para defender uma política monetária

mais restritiva, uma vez que não só o complemento dos preços monitorados, os “preços

livres” não devem subir, como também deveriam compensar o efeito negativo dos

preços monitorados.

O que não é enfatizado pela maioria dos economistas7 é a grande influência do

câmbio também nos preços livres. Como evidencia o Gráfico 11, a seguir, os preços

“livres” são visivelmente muito influenciados pela taxa de câmbio e num período

bastante curto.

7 Com exceção, por exemplo, de SERRANO (2006ª) e BRAGA (2005)

Gráfico 11 – Correlação entre taxa de câmbio e Preços Livres – 1995-01/2005-12

Fonte: IPEADATA

0,0

0,5

1,0

1,5

2,0

2,5

3,0

3,5

4,0

1999 01 2000 01 2001 01 2002 01 2003 01 2004 01 2005 01

Infla

ção

(Var

iaçã

o %

men

sal)

e Ta

xa d

e câ

mbi

o no

min

al R

$/U

$ .

Núcleo preços livres - IPCA - (% a.m.)

Taxa de câmbio - R$ / US$ - média - Mensal

4 – Conclusão

Mostrou-se que a taxa de juros interna, ao determinar o diferencial de

rentabilidade em relação à taxa de juros externa, é o único elemento capaz de ajustar o

BP, já que a variação esperada da taxa de câmbio cria um diferencial de rentabilidade

entre ativos internos e externos apenas no curto prazo. Por outro lado, o hiato do

produto não mostrou nenhum indício de impacto nos preços, enquanto que a taxa de

câmbio tem uma forte influência na inflação.

Portanto, no caso brasileiro, parece haver um único mecanismo de transmissão

da política monetária para a taxa de inflação, mecanismo este que é mediado pela taxa

de câmbio. Consequentemente, a explicação do BCB de que o principal mecanismo de

transmissão da taxa de juros para a inflação é o hiato do produto e que a variação do

câmbio deriva do fato desta variável ser flutuante não encontra respaldo nas evidências

empíricas.

Conclui-se que a taxa de juros foi e continua elevada com vistas a causar a maior

apreciação cambial possível, dado os demais fluxos de BP e as condições de liquidez

internacional. Nos momentos de desvalorização, a taxa de juros é elevada ainda mais

para impedir uma maior desvalorização (e como se viu é a única forma de criar um

diferencial de rentabilidade). Nos momentos de retorno da liquidez, a taxa de juros

permanece elevada para valorizar o câmbio e contrabalançar a desvalorização anterior.

Nos momentos em que não foi possível retornar ao patamar anterior ou, ainda, valorizar

ainda mais a taxa de câmbio, a queda dos salários reais foi um importante elemento

amortecedor do repasse da desvalorização cambial para os preços.

A implicação destas constatações para a interpretação do funcionamento do SMI

e de seus custos é radical e o funcionamento do SMI poderia ser representado pelo

diagrama abaixo.

O hiato do produto deixa de ser, portanto, o protagonista e passa a ser um efeito

colateral do SMI, enquanto que a variação da taxa de câmbio deixa de ser o efeito

colateral e passa a ser o único e principal mecanismo do SMI. A taxa de juros

permanece elevada até que a taxa de câmbio atinja um patamar que viabilize o

atendimento da meta inflacionária. Como estas metas foram definidas em níveis baixos,

a taxa de juros deve permanecer elevada e o câmbio valorizado.

Taxa de Juros

Hiato do Produto

InflaçãoTaxa de Câmbio

Efeito Colateral

Sem relação

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BRAGA, Julia. (2005) Índices de Preço, Câmbio e Preços Administrados. IE/UFRJ – (versão preliminar) setembro de 2005.

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