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O papel do trabalho no pensamento antigo e moderno Jadir Antunes A base de toda divisão do trabalho desenvolvida e mediada pelo intercâmbio de mercadorias é a separação entre a cidade e o campo. Pode-se dizer que toda a história econômica da sociedade resume-se no movimento dessa antítese(Karl Marx: O Capital - Livro I). O trabalho na Grécia Antiga Segundo Vernant (1989, p. 10), os gregos nunca associaram a origem da riqueza ao trabalho, ou seja, a uma atividade exclusivamente humana que exige certo dispêndio de energias físicas e intelectuais. Para os gregos, segundo ele, era do esforço da terra (physis) que vinham os frutos que alimentavam a mesa da cidade, e não do esforço e do trabalho dos camponeses. Na concepção dos gregos, a terra era uma espécie de divindade que abastecia a casa segundo uma vontade que lhe era própria, e a abundância de riqueza produzida pela terra dependia sempre do bom ou mau humor dos deuses da fertilidade e da fartura. Por isso, os gregos, diz Vernant, não concebiam o trabalho agrícola como um ofício de homens especializados que requer certo saber técnico capaz de aperfeiçoar as potências da terra e, assim, produzir mais riquezas num menor tempo e com menos esforço humano. Segundo Vernant (1989, p.13), o trabalho para o camponês grego era concebido como uma forma de vida moral, como uma forma de experiência religiosa e de comunhão com os deuses da terra. Por isso, antes de desenvolver uma técnica agrícola voltada para o aperfeiçoamento de seu trabalho, o camponês grego preferia levantar altares e oferecer sacrifícios e orações a esses deuses, na esperança de que eles lhe trouxessem uma colheita abundante. Como diz Vernant (1989, p. 17), “a cultura da terra não passa, ela própria, de um culto que institui o mais justo dos comércios com os deuses”. Por isso, qualquer tentativa de se ampliar os poderes da terra através de um Professor dos Cursos de Graduação e Pós-graduação (mestrado) em filosofia da (UNIOESTE) Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

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Page 1: artigo Jadir Antunes discipina de TCH 2012.pdf

O papel do trabalho no pensamento antigo e moderno

Jadir Antunes

“A base de toda divisão do trabalho desenvolvida e mediada pelo

intercâmbio de mercadorias é a separação entre a cidade e o campo.

Pode-se dizer que toda a história econômica da sociedade resume-se no

movimento dessa antítese” (Karl Marx: O Capital - Livro I).

O trabalho na Grécia Antiga

Segundo Vernant (1989, p. 10), os gregos nunca associaram a origem da riqueza

ao trabalho, ou seja, a uma atividade exclusivamente humana que exige certo

dispêndio de energias físicas e intelectuais. Para os gregos, segundo ele, era do esforço

da terra (physis) que vinham os frutos que alimentavam a mesa da cidade, e não do

esforço e do trabalho dos camponeses. Na concepção dos gregos, a terra era uma

espécie de divindade que abastecia a casa segundo uma vontade que lhe era própria, e

a abundância de riqueza produzida pela terra dependia sempre do bom ou mau

humor dos deuses da fertilidade e da fartura. Por isso, os gregos, diz Vernant, não

concebiam o trabalho agrícola como um ofício de homens especializados que requer

certo saber técnico capaz de aperfeiçoar as potências da terra e, assim, produzir mais

riquezas num menor tempo e com menos esforço humano.

Segundo Vernant (1989, p.13), o trabalho para o camponês grego era concebido

como uma forma de vida moral, como uma forma de experiência religiosa e de

comunhão com os deuses da terra. Por isso, antes de desenvolver uma técnica agrícola

voltada para o aperfeiçoamento de seu trabalho, o camponês grego preferia levantar

altares e oferecer sacrifícios e orações a esses deuses, na esperança de que eles lhe

trouxessem uma colheita abundante. Como diz Vernant (1989, p. 17), “a cultura da

terra não passa, ela própria, de um culto que institui o mais justo dos comércios com os

deuses”. Por isso, qualquer tentativa de se ampliar os poderes da terra através de um

Professor dos Cursos de Graduação e Pós-graduação (mestrado) em filosofia da (UNIOESTE) Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

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artifício humano, de um artifício técnico, era considerada pelo camponês como um

sacrilégio e ofensa aos deuses que, irados, poderiam se vingar mandando pestes e secas

na próxima safra.

As artes da fabricação do vinho e do plantio de trigo podem nos dar um bom

exemplo de como se formavam as concepções do camponês grego sobre a origem da

riqueza. Sabemos que na fabricação do vinho e no cultivo do trigo nem todo tempo de

trabalho é tempo de trabalho humano. O tempo em que a uva permanece fermentando

e em que o trigo germina e se desenvolve pela ação da natureza, é um tempo de

trabalho que pertence exclusivamente à Natureza. Na concepção do camponês grego

um bom vinho e uma boa colheita de trigo eram muito mais o resultado desse trabalho

da Natureza do que do seu próprio trabalho. Assim, ao camponês antigo cabia a tarefa

de obedecer à vontade divina da physis e de adequar-se a ela sem resistência.

Desse modo, enquanto a terra trabalhava e produzia a riqueza, os camponeses

dedicavam seu tempo livre em rituais religiosos improdutivos e a escutar a voz dos

deuses e da natureza. Submetida, assim, aos desígnios da Natureza, a arte rural era

uma arte contemplativa que se submetia à regularidade dos movimentos da Natureza.

Por isso, segundo a concepção do camponês grego, no campo o maior ou menor

esforço humano sofria sempre a interferência dos humores dos deuses que regiam a

abundância de riqueza.

Dessa concepção mística surgia a idéia de que a justiça era uma atribuição

divina que tratava bem a todos que tratassem a terra com os cuidados merecidos por

um deus. A terra dava ao homem do campo tantos bens quantas fossem as orações e os

sacrifícios oferecidos aos deuses. Por esse caráter místico e religioso, como diz Vernant

(1989, p. 17) citando o pseudo-Aristóteles, de todas as ocupações a agricultura detinha

o primeiro lugar na ordem da justiça grega antiga. Por esse motivo, influenciados pelas

crenças religiosas rurais, os gregos antigos não desenvolveram a técnica e a ciência no

sentido moderno.

A técnica antiga

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A técnica rural dos antigos não era propriamente uma técnica no sentido

moderno da palavra, pois ela não visava obter aumentos quantitativos da riqueza. O

mundo antigo grego não se interessou em racionalizar e sistematizar o trabalho por

vários motivos. O primeiro deles relaciona-se com o tamanho da propriedade rural.

Segundo Garlan (1984, p. 74), ainda que no período clássico já surgissem

grandes propriedades rurais – propriedades com no máximo 30 ha de terra – os gregos

em sua época clássica eram, em sua maioria, proprietários de pequenas unidades

familiares rurais (os oikos) com uma extensão de terras aproximada de 3 a 5 ha. Esses

pequenos camponeses exerciam o trabalho na terra auxiliados por cerca de 3 escravos

em média. Durante o tempo livre, esses camponeses se dedicavam às atividades

públicas na cidade – como a participação nos comícios, nos tribunais e nas mais

diversas magistraturas – ou ainda aos cultos religiosos da família no interior do

próprio oikos.

Além da pequena propriedade auto-suficiente de caráter patriarcal, no campo

predominava ainda o trabalho escravo em sua forma doméstica, onde o escravo era

concebido mais como parte da família do que como trabalhador e instrumento de

produção. O oikétès (o escravo doméstico) era um escravo rural que estava unido ao

senhor por uma relação de pertencimento familiar. Por este aspecto patriarcal da

escravidão, entre senhor e escravo reinava uma relação de fidelidade e um forte

espírito de solidariedade. Como parte da família, os escravos partilhavam de suas

alegrias e de suas tristezas, assim como, ao lado do senhor e sob sua supervisão,

trabalhavam a terra, fabricavam instrumentos e cuidavam do gado (Garlan, 1984, p.

48). Nessas mesmas propriedades trabalhavam ainda na residência do senhor, um

pequeno número de escravos responsáveis pela realização dos diferentes serviços

domésticos, sendo o principal deles o da tecelagem, ao lado da esposa do cidadão

camponês. Por isso, mais do que educar o escravo como trabalhador para desenvolver

suas habilidades produtivas, a família educava o escravo para ser um animal

doméstico obediente e fiel a ela.

Na cidade, em seu período clássico, já existia certa divisão social e artesanal do

trabalho e uma classe trabalhadora numerosa dividida entre escravos e artesãos

estrangeiros. O escravo (doulos) era um escravo-mercadoria capturado em expedições e

guerras contra o Mediterrâneo. Na época clássica, diz Garlan (1984, p. 32), doulos era a

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palavra mais popular para se referir à escravidão. Semanticamente, doulos se opõe

implícita ou explicitamente a éleuthéros (o homem livre), e mais ainda a polités (o

cidadão). Doulos, por isso, aparecia sempre ligado a uma relação de dominação e

possessão. No sentido mais estreito do termo, doulos significava o escravo perfeito

desprovido de toda liberdade. Num sentido mais amplo, doulos significava qualquer

tipo de submissão a uma força estrangeira. Doulos podia ainda significar sujeição

política, servidão moral e subordinação.

O escravo de tipo ateniense, o doulos, era, antes de tudo, um objeto de

propriedade de um senhor (um despotès) e transmissível a outro senhor, seja cidadão

(polités) ou estrangeiro residente (métèques), como gado ou bem móvel, independente

de sua vontade. O doulos era desprovido de qualquer personalidade jurídica,

existindo, por isso, como coisa ou objeto de trabalho ou de troca (Garlan, 1984, p. 4).

Segundo Garlan (1984, p. 69), pode-se afirmar com alguma precisão que na Atenas

clássica havia cerca de 21 mil atenienses cidadãos, 10 mil metécos e 400 mil escravos.

O caráter mercadoria da escravidão urbana não foi mais favorável para o

desenvolvimento da técnica do que o caráter doméstico da escravidão rural. O caráter

extorsivo e violento do trabalho escravo impediu qualquer progresso técnico no

interior do sistema artesanal antigo. Apesar do saber técnico do escravo-mercadoria ser

agora um saber mais eficiente que o saber do escravo doméstico, ele permaneceu sendo

um saber eminentemente prático e empírico voltado apenas para o aperfeiçoamento do

produto e não do trabalho.

Por saber técnico, supomos certo saber especializado que se acumula ao longo

de várias experiências, como um saber que é produto da observação e destinado ao

aperfeiçoamento do trabalho e ao aumento de sua eficiência e produtividade. A

produtividade do trabalho é aumentada quando o trabalhador consegue produzir com

o mesmo esforço e com o mesmo tempo de trabalho uma quantidade maior de riqueza.

Para isso, é fundamental que ele desenvolva a técnica. Os gregos nunca viram na

eficiência do trabalho uma maneira de tornar o trabalhador mais produtivo e eficiente

quantitativamente, mas apenas o de tornar o produto do trabalho mais útil e perfeito

para o uso humano. Como diz Glotz (1949, p. 18), números eram o que menos

preocupavam os gregos. “A estatística... era totalmente desconhecida tanto dos

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estudiosos como das próprias cidades... Na história antiga não há – ou há tão pouca –

verdade quantitativa”.

Nas cidades eram encontradas pequenas oficinas artesanais, geralmente de

propriedade de um homem livre estrangeiro, onde se fabricavam diferentes produtos,

tais como vasos de barro, arreios e montarias para animais, vestimentas, móveis,

instrumentos musicais e instrumentos de guerra. Assim, certa divisão e especialização

do trabalho já era encontrada no sistema manufatureiro da cidade. Segundo Garlan

(1984, p. 77), o trabalho escravo jogava um papel essencial nessas pequenas oficinas.

Segundo ele, eram raros os artesãos que não dispunham de certo número de

trabalhadores como escravos. Os escravos mercadoria tinham ainda um papel central

na execução de diferentes trabalhos improdutivos como no comércio, nos bancos e nos

trabalhos públicos.

O escravo-artesão, diferente do camponês e do escravo rural, era um

trabalhador que já dominava um ofício e estava integrado a uma divisão técnica e

social do trabalho. No trabalho artesanal já se empregavam técnicas artificiais capazes

de elevar a produtividade do trabalho humano, ou seja, se empregavam certas técnicas

capazes de produzir mais riquezas com um menor esforço e num menor tempo de

trabalho. No trabalho artesanal, a riqueza se multiplicava de acordo com as técnicas

empregadas em cada ofício. Nele, uma maior ou menor expansão da riqueza já era

mais fruto do esforço e artifício humanos e menos da vontade dos deuses. Apesar de

certo progresso quantitativo da riqueza com o trabalho especializado em comparação

com o não-especializado, a finalidade da especialização não era o aumento quantitativo

da riqueza, mas sim, sua perfeição qualitativa (Glotz, 1949, pp. 198-205).

Segundo Vernant, os artesãos nunca empregaram a técnica em seus diferentes

ofícios para dominar as forças da natureza e as submeterem à vontade humana. A

técnica era empregada apenas com o sentido de aperfeiçoar o produto do trabalho e

nunca o trabalho do produtor. Segundo ele, apesar de certo desenvolvimento técnico e

científico em relação ao campo, os ofícios da cidade em sua época clássica continuavam

submetidos ao misticismo religioso do campo. Por isso, a mesma concepção de que a

abundância de riqueza era mais fruto do trabalho da natureza do que do homem

continuava predominando também no interior da cidade.

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Nesta concepção mística, o trabalho do artesão, como o do camponês, nunca era

visto como a fonte original da riqueza, ao lado da Natureza, mas apenas como seu

meio. O artesão era considerado pela cultura grega como um mero instrumento da

riqueza e nunca como seu verdadeiro sujeito e criador. Como diz Vernant ( 1989, p. 31),

“os artesãos só desempenham o papel de intermediários: são os instrumentos através

dos quais se realiza um valor de uso num objeto”. Na concepção da cidade, os artesãos-

livres, apesar de não serem escravos e propriedades de outro homem, apesar de

exercerem seu trabalho como homens livres dentro de sua própria oficina, eram

concebidos como ferramentas ou instrumentos de trabalho, semelhantes aos animais

de tração e ao arado do camponês.

Muito abaixo dos artesãos-livres estavam, ainda, os artesãos-escravos da

cidade, considerados um instrumento animado de produção e pertencendo jurídica e

economicamente a outro homem como sua propriedade. O proprietário de escravos

tinha um poder absoluto, de vida ou morte, sobre seu escravo. Sobre o escravo não

recaía o direito público, o direito que regulava as relações políticas entre os homens

livres da cidade, mas sim, o direito doméstico, o direito rural, onde seu senhor o

governava despoticamente. O escravo, por isso, como diz Glotz (1949, p. 177), não

tinha personalidade jurídica e muito menos política.

Não sendo uma pessoa, o escravo não dispunha de seu próprio corpo, que

pertencia a outro. Sendo ele próprio uma propriedade, jamais poderia, como escravo,

ser proprietário. Segundo uma bem conhecida tese filosófica de Aristóteles, os escravos

se diferenciavam dos animais de tração apenas pelo fato de que falavam. Assim, ao

lado das crenças religiosas rurais, o preconceito com o trabalho escravo contribuiu para

impedir todo desenvolvimento técnico e científico no mundo antigo. Em lugar do

desenvolvimento da ciência e da técnica no sentido moderno, os gregos preferiram

dirigir suas energias intelectuais para o desenvolvimento da filosofia, da arte e da

especulação abstrata sobre o mundo. Entre eles, a principal técnica ou instrumento de

produção era o trabalho escravo. Como diz Glotz (1949, p. 185): “o escravo é um

instrumento animado; uma equipe de escravos é uma máquina que tem homens por

peças”.

Segundo as concepções filosóficas da cidade, o elemento fundamental da

riqueza não era, como temos visto, o trabalho do artesão, mas sim a demanda do

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usuário. O artesão em sua oficina não produzia seu produto com a finalidade de ele

mesmo consumi-lo, como ocorria no campo onde predominava a auto-suficiência e a

unidade entre trabalho agrícola e artesanal. Ele o produzia para outro na forma

mercadoria. E o produzia segundo as necessidades e a encomenda do usuário. Por isso,

segundo a concepção grega, o fundamento da riqueza era o usuário, que determinava

suas propriedades e seu uso, e não o trabalho do artesão, que a produzia, mas não a

consumia nem desfrutava de suas propriedades.

Os gregos chamavam essa atividade do artesão de produção ou fabricação

(poiésis) e a do usuário de ação (práxis). As ferramentas de trabalho apenas produzem,

mas não agem. O homem produz algo, quando este algo é uma coisa tangível, sensível

e objetiva que pode separar-se dele como coisa. O homem age quando sua ação se

encerra nela mesma e quando esta ação não se separa dele próprio. A arte da ação não

pode ser objetivada, ao contrário da arte da produção, pois seu produto é geralmente

um discurso. As artes da fabricação são artes como a do sapateiro, do oleiro e do

pedreiro. As artes da ação, ou artes contemplativas, são as artes da política, da

dramaturgia, da música e da filosofia. Enquanto as artes da fabricação são uma

ocupação exclusiva de escravos e artesãos, as artes da ação são uma ocupação dos

proprietários de terras – os únicos homens ociosos e verdadeiramente livres da cidade.

Um exemplo dessa relação entre ação e produção pode ser encontrado em A

República, de Platão, onde um tocador de flautas encomenda uma flauta ao artesão.

Platão acreditava haver três artes diferentes na cidade: a do uso, a da fabricação e a da

imitação. Esta última era a arte sofística da mera cópia ou imitação que não possuía

nenhum conhecimento válido para a cidade. A do uso era a arte do usuário e a da

fabricação era a arte do fabricante. Segundo ele, a arte do flautista era superior à do

artesão por ser uma arte voltada para a ação. A arte do fabricante era inferior

exatamente porque na concepção filosófica de Platão, o fabricante fabricou a flauta em

vista do uso do flautista, em vista de uma ação e de uma finalidade que estavam

separadas dele próprio como produtor, e a finalidade e a ação são metafisicamente

superiores à arte da produção (Cf. A República 601b a 602b).

Segundo a concepção de Platão, o fabricante de flautas era um mero servo ou

instrumento das necessidades do flautista. Para ele, a atividade do flautista, a sua ação,

era também superior à atividade do fabricante de flautas, vista como uma atividade

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meramente mecânica e instrumental. Ao executar sua música o flautista produzia um

produto superior à própria flauta, produzia um discurso, sua música, destinado à

satisfação das necessidades superiores da cidade, as necessidades de ordem espiritual.

A arte do usuário governava, assim, a arte do fabricante.

Ainda que durante o governo de Péricles os artesãos livres – certa porção de

atenienses de nascimento que haviam perdido suas terras para os grandes

proprietários rurais – participassem ativamente da política e dos comícios da cidade,

sua participação era condenada pela massa majoritária dos camponeses. Apesar de sua

importância econômica para a cidade, esses artesãos deveriam ser excluídos da política

porque sua atividade era uma mera fabricação, porque era uma atividade ainda presa

aos desígnios da natureza e submetida à vontade e arbítrio dos deuses. Os artesãos

deveriam ser excluídos da comunidade política e viver como meros servos e

instrumentos de suas necessidades superiores, porque sua ação era mera submissão e

servidão. A comunidade política deveria ser exercida, por isso, exclusivamente por

homens de ação, por homens livres e emancipados da arte de produzir suas próprias

necessidades.

Aristóteles e o trabalho

O preconceito popular antigo em relação ao trabalho prático e à arte da

produção está mais bem claro e explicado na Metafísica de Aristóteles. Nessa obra,

Aristóteles divide o conhecimento humano em duas categorias: em conhecimento

prático fundado na experiência, e conhecimento científico, filosófico ou teorético

fundado na especulação abstrata.

Para Aristóteles, todos os animais recebem da natureza a faculdade de conhecer

pelos sentidos. Aos homens, porém, a natureza deu a faculdade de conhecer pelo

raciocínio. O artesão fabricante era concebido por Aristóteles como uma espécie

superior de animal, porque além de conhecer pelos sentidos possuía a faculdade da

memória. A faculdade da memória produzia assim, a experiência, um conhecimento

mais elevado que o conhecimento animal, adquirido pelo hábito e pela repetição.

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Ainda que todo conhecimento humano tenha a experiência e os sentidos como

ponto de partida, não são eles o fundamento do conhecimento verdadeiro do mundo e

das coisas, segundo Aristóteles, porque a experiência fornece apenas um conhecimento

prático, utilitário e particular. O conhecimento prático-empírico tem ainda o defeito de

não conhecer as causas daquilo que produz. Para Aristóteles, o verdadeiro

conhecimento humano é o conhecimento filosófico, que conhece as causas não

aparentes, empíricas ou sensíveis do mundo e das coisas.

O conhecimento prático do artesão, segundo Aritóteles, por ser um

conhecimento meramente individual, tem ainda o defeito de não poder ser ensinado,

ao contrário do conhecimento científico ou filosófico que por sua natureza universal

pode ser ensinado e comunicado aos homens da cidade. Evidentemente, o

conhecimento prático do operário grego era transmitido de geração em geração dentro

de cada família e de cada ofício. Mas para Aristóteles, e para a cultura grega em geral,

o operário, geralmente um escravo ou um estrangeiro livre, não formava parte do

gênero humano, pertencendo mais propriamente ao gênero dos bárbaros e

incivilizados do mediterrâneo.

Assim, apesar de sua evidente utilidade para a vida humana, o conhecimento

técnico do operário era visto por Aristóteles como um conhecimento inferior e sem

valor de verdade para a cidade. Acima deste conhecimento prático adquirido pela

experiência e pelo hábito estava o conhecimento científico ou teorético. O

conhecimento científico ou teorético se caracterizava, segundo Aristóteles, pelo fato de

não ser um conhecimento em vista de uma utilidade prática e de ser um conhecimento

pelo conhecimento. O conhecimento científico e teorético, assim como o conhecimento

filosófico, seria um verdadeiro conhecimento por não ter a utilidade como fim. Por

esses motivos, Aristóteles e a cultura grega condenaram o desenvolvimento da técnica

e da mecânica na cidade e consideraram como legítimo apenas o conhecimento

especulativo e contemplativo do mundo: o conhecimento filosófico. Movidos por esse

preconceito, o mundo antigo não desenvolveu uma ciência e uma tecnologia no sentido

moderno, ou seja, um discurso racional sobre a técnica.

Por conceber o trabalho do artesão como mera produção, “os diretores de obras,

qualquer que seja o trabalho de que se trate, têm mais direito a nosso respeito que os

simples operários”, dizia Aristóteles (1992, p. 6). Os operários não mereciam o respeito

Page 10: artigo Jadir Antunes discipina de TCH 2012.pdf

da cidade, porque “se parecem com esses seres inanimados que trabalham, porém sem

consciência de sua ação” (Aristóteles, 1992, p. 6). O preconceito de Aristóteles com o

trabalho operário se explica pelo seu preconceito com a democracia. Segundo Glotz

(1949, p. 153), as assembléias do povo ateniense na época de Péricles eram assembléias

tomadas de sapateiros, carpinteiros, ferreiros, cultivadores, revendedores e outros

artífices livres da cidade. Artífices esses que geralmente não possuíam escravos como

sua propriedade e viviam apenas de seu próprio trabalho.

Os gregos, até sua época clássica, devotavam um verdadeiro desprezo pelas

formas materiais da riqueza produzida na cidade. Para eles, os amantes da riqueza

material poderiam ser comparados a bárbaros e animais sem alma, sem logos, e sem

razão. Por esse motivo, nunca se interessaram pelo desenvolvimento das habilidades

manuais e artesanais e pelo desenvolvimento de uma ciência e de uma técnica voltadas

para o aperfeiçoamento do trabalhador para o trabalho. Seu interesse no trabalho se

dirigia sempre para o aperfeiçoamento do produto e não para o do produtor.

Os economistas e a riqueza capitalista

Esse desprezo e essa crítica às formas materiais da riqueza foram mantidos

desde a antiguidade até o final da Idade Média. Foi somente com o surgimento da

modernidade capitalista – e da Economia Política clássica como ciência – que o

trabalho foi elevado à condição de atividade digna do homem.

Os primeiros economistas da história moderna a refletir sobre a natureza da

riqueza capitalista foram os chamados mercantilistas – entre 1450 e 1750 –, também

chamados de metalistas. Para eles, a nova riqueza trazida pela modernidade se

identificava imediatamente com o dinheiro. Com essa concepção, a forma metálica da

riqueza – o ouro – era a forma suprema e meta de toda nação moderna. Segundo a

concepção metalista, os reinos modernos deveriam dedicar seus esforços econômicos,

então, ao processo de acumular dinheiro. O caminho para atingir tal objetivo era o

mercado internacional e a obtenção de saldos positivos cada vez maiores na balança

comercial do Estado. Ampliar a riqueza da nação se identificava, desse modo, com o

entesouramento estatal.

Page 11: artigo Jadir Antunes discipina de TCH 2012.pdf

A primeira reação a essa concepção metalista de riqueza surgiu com a chamada

fisiocracia – entre 1750 e 1780. Para esta concepção, a riqueza de uma nação deveria ser

medida pela dimensão do volume de trabalho investido na produção agrícola.

Segundo a fisiocracia, o trabalho era o fundamento da riqueza. Porém, não seria

qualquer trabalho humano que criaria a verdadeira riqueza nacional, mas sim, apenas

o trabalho agrícola. Para a fisiocracia, as outras formas de trabalho, como a

manufatureira e a artesanal, em franca expansão no século XVIII na Europa, não

agregavam nenhum valor novo à riqueza já produzida pelo trabalho agrícola, mas

apenas a transformavam em novas utilidades.

Para a fisiocracia, as formas de trabalho desenvolvidas na cidade eram

improdutivas quando comparadas com o trabalho do campo. Para ela, o artesão e o

manufatureiro da cidade apenas modificavam a forma natural do trabalho já

produzido no campo. O sapateiro, por exemplo, não agregava nenhum valor novo em

trabalho ao fabricar sapatos para a sociedade. Ele apenas dava nova forma à matéria

natural do couro produzido no campo, transformando-o em uma nova utilidade.

François Quesnay (1983, p. 257), um importante fisiocrata francês, dividia a

sociedade em três grandes classes sociais: a classe produtiva, a classe dos proprietários

e a classe estéril. A classe produtiva era a classe dos trabalhadores agrícolas, a dos

proprietários era a dos proprietários fundiários especialmente, e a classe estéril era a

classe composta por todos os cidadãos ocupados em ofícios diferentes do ofício da

agricultura e que viviam à custa deste ofício.

Apesar de avançarem suas concepções sobre o fundamento da riqueza e do

valor para além da concepção metalista dos mercantilistas, e mesmo para além da

concepção grega, os fisiocratas permaneceram ainda presos ao passado e à observação

empírica dos fatos. A multiplicação da riqueza surgida da terra e da Natureza pelo

trabalho empregado parecia testemunhar fielmente que os ofícios da cidade apenas

modificavam as formas primárias de riqueza produzidas pela Natureza, sem

acrescentar-lhes nenhum valor novo. Para os fisiocratas, apenas a renda do trabalhador

agrícola vinha diretamente do trabalho humano com a terra. A riqueza excedente, na

forma de renda fundiária, era concebida como uma espécie de dádiva da Natureza e,

por isso, não possuía nenhuma relação com o trabalho, devendo pertencer

naturalmente ao proprietário da terra.

Page 12: artigo Jadir Antunes discipina de TCH 2012.pdf

Antes ainda dos fisiocratas, John Locke já havia colocado em destaque o papel

do trabalho na criação da riqueza e na formação do seu valor em oposição ao papel da

terra. Segundo ele, “é, na realidade, o trabalho que provoca a diferença de valor em

tudo quanto existe” (Locke, 1978, p. 50). Locke também reconhecia o papel da técnica e

do melhoramento artificial da terra na produção de riqueza em abundância para a

sociedade. Uma terra abandonada e inculta, segundo ele, produz muito menos riqueza

do que uma terra bem cultivada e trabalhada. O aperfeiçoamento do trabalho e da terra

permitiria à sociedade, desse modo, produzir mais riquezas com uma menor extensão

de terra.

Enquanto uma terra inculta possuía pouco valor para a sociedade, uma terra

bem cultivada tinha um valor mais elevado. Como dizia Locke (1978, p. 51), “é o

trabalho, portanto, que atribui a maior parte de valor à terra, sem o qual dificilmente

valeria alguma coisa”. Como podemos ver, Locke está muito distante da mística

camponesa grega e da divinização dos poderes naturais da terra, pois para ele é ao

trabalho “que devemos a maior parte de todos os produtos úteis da terra” (Locke, 1978,

p. 51).

Adam Smith e os paradoxos da riqueza capitalista

Apesar da originalidade de Locke e dos fisiocratas, foi com Adam Smith (1983)

que os paradoxos da riqueza e do valor da modernidade capitalista começaram a se

tornar mais claros para o pensamento.

Smith é geralmente considerado o verdadeiro fundador da Economia Política

clássica. Foi ele quem, pela primeira vez, conseguiu demonstrar cientificamente que a

sociedade moderna não estava jogada ao acaso ou à vontade divina. Como a Natureza

e suas leis já descobertas pelos físicos, a economia estava regida por um conjunto de

leis econômicas que tinham por fundamento o capital: a força dinâmica que dominava

a nova ordem moderna.

Na questão do valor, Smith prosseguiu pensando como os fisiocratas, para

quem o trabalho era o fundamento natural da riqueza. Ele, porém, ultrapassou a

concepção naturalista e limitada da fisiocracia, para quem apenas o trabalho específico

Page 13: artigo Jadir Antunes discipina de TCH 2012.pdf

do campo criaria riqueza. Para Smith, a riqueza é produto de todo e qualquer trabalho,

independentemente de suas formas naturais e específicas. Com Smith, o trabalho

enquanto tal passou, desse modo, a ser considerado o verdadeiro fundamento da

riqueza e do valor. Toda nação moderna deveria, por isso, estimular não apenas a

atividade agrícola, mas deveria estimular, também, o desenvolvimento do capital e do

trabalho manufatureiro da cidade – as principais forças produtivas da sociedade

moderna.

Segundo Smith, a riqueza não poderia ser identificada com o dinheiro. Para ele,

o fundamento da riqueza era o trabalho, podendo ser medida através dele. Smith

observou que a palavra valor possuía um duplo significado. Às vezes designando a

utilidade do produto e outras vezes designando seu valor de troca. Ao primeiro

sentido Smith chamou de valor de uso, e ao segundo chamou de valor de troca. A fim

de investigar esse paradoxo, Smith se propôs, então, a investigar os princípios que

regulam a troca entre diferentes mercadorias e os princípios que regulam a distribuição

da riqueza dentro da sociedade.

A força da concepção de Smith reside no fato de ele pensar a sociedade

capitalista como uma totalidade. Segundo ele, a sociedade inteira poderia ser dividida

em três diferentes classes de cidadãos: os trabalhadores, os capitalistas e os

proprietários de terra. Todas as restantes camadas da sociedade viveriam como

camadas ou classes subsidiárias ou derivadas dessas classes fundamentais. Por isso,

essas três classes poderiam, segundo essa concepção, ser consideradas igualmente

como membros da sociedade. Todas elas poderiam, legitimamente, reivindicar o

direito de cidadania, pois todas, cada uma com seu fator de produção específico,

participariam igualmente da produção da riqueza nacional.

Com essa concepção revolucionária, Smith pôs definitivamente por terra todas

as concepções místicas e cosmológicas sobre os fundamentos da riqueza e da

cidadania. A classe trabalhadora foi finalmente concebida como uma classe legítima e

virtuosa, pois é do seu trabalho e do seu esforço que surge a riqueza da sociedade –

ainda que ela tenha que dividir esta riqueza com os capitalistas e os proprietários de

terra.

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Smith nunca fez a apologia do capitalista individual e de seu suposto caráter

mágico e empreendedor. Muito pelo contrário. Smith não deixou de dizer que os

capitalistas sempre conspiram contra a sociedade, em qualquer tempo e lugar, e que

seus interesses sempre se opõem aos interesses da sociedade. Também nunca deixou

de criticar a classe dos proprietários fundiários, para ele uma classe parasitária que

gostava de colher onde nunca havia plantado.

Smith também não deixou de mostrar os efeitos devastadores do trabalho

assalariado na cidade sobre a moral e a saúde do trabalhador. Smith mostrou que em

oposição às formas assalariadas de trabalho da cidade, e que em oposição à divisão

manufatureira e ao caráter especializado e rotineiro do trabalho, o trabalhador do

campo era mais feliz e menos alienado.

Smith mostrou, ainda, que nem todas as formas de trabalho da sociedade

devem ser consideradas úteis para o progresso da riqueza. Ao contrário do mundo

antigo que desprezava o trabalho urbano, Smith glorificava o trabalho produtivo e

criador de riqueza em oposição ao trabalho improdutivo das camadas parasitárias e

hedonistas da sociedade – as mesmas camadas elogiadas pelo mundo antigo dedicadas

à contemplação e ao desperdício ocioso da riqueza.

Para Smith, como mais tarde para Ricardo, estas camadas – compostas por

velhos resíduos da Idade Média como o clero católico –, são camadas inteiramente

dispensáveis para o progresso material da sociedade. A crítica de Smith a estas

camadas parasitárias se assemelha muito com a crítica de Platão aos sofistas. Para

Platão, os sofistas eram meros imitadores que em nada contribuíam para o

desenvolvimento das virtudes morais da cidade. Para Smith, os sofistas modernos são

aqueles que em nada contribuem com o desenvolvimento da riqueza material, vivendo

do ócio e da apologia vulgar ao sistema capitalista.

David Ricardo e a luta de classes entre capital e renda da terra

Segundo David Ricardo (1996), a concepção de Adam Smith sobre o valor

possuía um paradoxo insuportável. Segundo seu ponto de vista, Smith operava com

uma dúplice e contraditória concepção de trabalho como fundamento do valor. Em

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primeiro lugar, Smith acreditava que a riqueza nacional deveria ser medida pela

capacidade de comandar trabalho. Em segundo lugar, Smith acreditava que essa

riqueza deveria ser medida pela quantidade de trabalho total empregado em sua

produção. Ricardo, procurando superar os paradoxos de Smith, avançou, então, para

uma concepção de valor baseada nesta última, na noção de trabalho enquanto certo

quantum de energias gastas na produção, considerando a primeira uma concepção

falsa e errônea.

Como podemos perceber, a concepção de Ricardo sobre os fundamentos da

riqueza está bastante afastada da concepção mística do mundo antigo, para quem o

trabalho era visto como uma atividade sagrada e uma comunhão religiosa entre os

homens e os deuses da terra. Para o mundo antigo seria racional e mecânico demais

conceber o trabalho como simples dispêndio de energia humana. Mas os gregos não

conheceram a maquinaria e a ciência mecânica moderna, como Ricardo, filho delas e da

revolução industrial.

Ricardo desenvolveu sua teoria do valor a partir da crítica aos paradoxos de

Smith. Segundo ele, a verdadeira teoria do valor seria aquela que considerasse que o

valor de uma determinada mercadoria seria maior ou menor dependendo da maior ou

menor quantidade de trabalho necessário para sua produção. Smith acreditava que o

trabalho era o regulador das trocas e do valor da riqueza apenas nos estágios menos

desenvolvidos da sociedade – como o estágio primitivo. Segundo ele, na sociedade

moderna as trocas seriam reguladas pelo dinheiro. Ricardo, porém, avançou bastante

em relação a Smith quando defendera a tese de que mesmo nas sociedades dominadas

pelo capital o valor de uma mercadoria seria sempre determinado pela quantidade

total de trabalho necessário para sua produção.

Com essa concepção, Smith ainda caía no erro da fisiocracia ao associar a

origem da renda da terra à propriedade da terra e não ao trabalho. Para ele, a renda da

terra seria paga ao proprietário da terra pelo fato da terra ser considerada um fator de

produção, ao lado do trabalho e do capital. Desse modo, para Smith, a renda da terra

seria uma adição ao preço da mercadoria – ao lado do salário e do lucro.

Para Ricardo, porém, na sociedade moderna só havia dois fatores de produção:

o capital e o trabalho. Ao primeiro caberia o lucro e ao segundo o salário. A renda da

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terra, segundo ele, seria uma renda subtraída do lucro do capitalista. Coerente com sua

teoria do valor, para Ricardo, salário, lucro e renda da terra eram diferentes partes de

um mesmo valor total contido no valor da mercadoria. Por isso, segundo ele, a renda

da terra era paga ao proprietário fundiário mediante uma dedução feita sobre o valor

integral do valor da mercadoria – especialmente uma dedução feita sobre o lucro do

capitalista.

Com a concepção de que a renda da terra era uma dedução sobre o lucro do

capitalista e não uma dádiva da Natureza, Ricardo estava denunciando para toda a

sociedade capitalista o quanto a classe dos proprietários fundiários não estava

interessada no progresso das forças produtivas do país. Ricardo estava mostrando que

a classe dos proprietários de terras era uma classe que deveria ser destruída política e

economicamente e que o excedente social deveria ser apropriado inteiro e

exclusivamente pela classe capitalista. Tanto para Ricardo quanto para Smith, a classe

capitalista era, ao lado da classe trabalhadora, a única classe interessada no progresso

das forças produtivas e na elevação da produtividade do trabalho social.

Devido ao seu apurado senso científico e honradez intelectual, Ricardo não

deixou de mostrar os efeitos negativos do emprego de maquinaria em larga escala na

sociedade. Segundo ele, muitas vezes, ou quase sempre, ao poupar trabalho, ela não

traz nenhuma compensação ao conjunto da classe trabalhadora, que é desempregada

por ela. Ou seja, ainda que Ricardo possa ser visto pelos críticos da técnica e da

mecânica moderna como um economista cegado pelo iluminismo científico, ele próprio

fez questão de mostrar as contradições da maquinaria e da mecânica.

Ricardo é normalmente acusado pelos seus críticos de ser um fanático da

acumulação. Esta é uma acusação da qual Ricardo nunca precisaria se defender. De

fato, a teoria de Ricardo não está, de modo algum, preocupada em estudar as

condições de possibilidade de um consumo mais feliz e prazeroso pela sociedade –

como no mundo antigo e na Idade Média. Ricardo não foi um teórico do prazer e do

consumo. Ricardo foi um homem moderno, como Smith, e estava preocupado em

explicar a totalidade do sistema capitalista a partir de um princípio: o de que a riqueza

só poderia ser ampliada e existir em abundância para toda a sociedade com a

destruição política da classe parasitária dos proprietários fundiários, que nenhum

papel exerce na produção da riqueza, mas que consome grande parte dela. De acordo

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com ele, somente com a destruição política e econômica dos proprietários fundiários;

somente com a destruição política e econômica das instituições arcaicas da Idade

Média; somente com a destruição dos privilégios estamentais da nobreza fundiária e

do clero católico; somente com a destruição dessas classes improdutivas seria possível

haver riqueza em abundância para toda a sociedade.

Essa abundância não viria da distribuição da riqueza apropriada pela nobreza

fundiária entre a massa da sociedade, muito menos entre a classe trabalhadora. Ricardo

advogava a necessidade dessa massa excedente de riqueza ser apropriada inteira e

exclusivamente pela classe capitalista. Mas essa massa não deveria ser dirigida, de

modo algum, ao consumo ocioso e improdutivo da classe capitalista, a um consumo

que nada criaria de novo, mas que apenas destruiria improdutivamente a riqueza já

produzida.

Segundo Ricardo, essa massa excedente de riqueza deveria ser convertida em

capital: na aquisição de novos meios de produção e no emprego de novos operários

para ampliar ainda mais a produção disponível ao consumo da sociedade. Ricardo, por

isso, não estava preocupado com a satisfação individual de cada cidadão capitalista,

não estava preocupado em medir o grau de satisfação das classes da sociedade, se elas

estavam mais ou menos felizes dentro desta sociedade.

Ricardo, como Smith, ao mostrar que só o trabalho cria valor e riqueza no

sentido capitalista e que a nobreza fundiária era uma classe parasitária, elevou a classe

trabalhadora ao mais alto posto capaz de ser ocupado por uma classe dominada dentro

de uma sociedade dividida em classes. Não foi sem motivos que Ricardo deu origem a

movimentos socialistas inspirados em suas concepções – os chamados ricardianos de

esquerda.

Com Ricardo, a classe trabalhadora recebeu toda a dignidade que poderia

receber de um intelectual das classes dominantes. Com ele, a riqueza foi finalmente

posta como produto do trabalho humano. Ainda que a Natureza seja a mãe da riqueza,

como já concebia Willian Petty, o trabalho foi concebido como seu verdadeiro pai. E

esta paternidade foi obra do gênio abstrato e racional de Ricardo, que conseguiu se

desprender das concepções místicas sobre os fundamentos da riqueza e demonstrar

matemática e cientificamente que só o trabalho poderia gerar valor. Ainda que a

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riqueza em sua forma natural tenha uma dupla paternidade – a Natureza como mãe e

o trabalho como pai – é o trabalho da classe trabalhadora – seja ela urbana ou rural – o

único e verdadeiro pai do valor no sentido econômico e capitalista do termo.

Ricardo condenou, como já havia condenado Smith, todas as formas

parasitárias e hedonistas de vida – que em nome da defesa de valores morais

supostamente mais elevados que os valores do trabalho e da riqueza material

escondiam o interesse particular de viver sem trabalhar e a custa de trabalho alheio.

Ricardo dessacralizou a realidade humana. Com sua matemática e seu senso

prático e científico, Ricardo desvendou todos os insolúveis mistérios da metafísica e da

ontologia antiga e medieval sobre o trabalho e a ordem humana ocidental. Com ele, a

classe trabalhadora – com seu trabalho mecânico no interior da fábrica, com seu

sofrimento e sua luta para manter-se viva diariamente na irracional competição do

mercado de trabalho – foi posta enfim no mais alto grau da escala humana de valores.

Com Ricardo, a história pôde ser reescrita e reinventada. Com ele, a história humana

pôde finalmente perder seu caráter místico e nebuloso e ser entendida como

verdadeiramente humana e racional.

Diante da matemática e do racionalismo científico de Ricardo, a filosofia antiga,

apesar de sua grandiosidade e beleza literária, aparece como simples apêndice e

desdobramento da velha mitologia de origem rural. A divinização da Natureza nunca

passou de uma crença mística camponesa, segundo Ricardo, e foi, por isso,

inteiramente superada pelo seu senso científico.

O valor de uso do produto como base dos preconceitos antigos

Os gregos nunca valorizaram o processo de trabalho, mas apenas o produto

dele, porque fundavam seu modo de vida no valor de uso. Por isso, para eles não

importava aumentar a quantidade de riqueza produzida pelo trabalho e sim, apenas

aumentar a qualidade do produto fabricado. Já para o mundo moderno, onde impera o

valor de troca do produto, importa a quantidade de trabalho e não a qualidade do

produto.

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O mundo antigo e a Idade Média eram sistemas geocêntricos. Neles, a terra

(physis ou natura) era o centro ao redor do qual todas as coisas giravam. Nestes

sistemas, era a terra o verdadeiro sujeito do universo e da cidade – da moral, da

política, da religião e da produção – e o homem era apenas seu servo e instrumento. No

mundo agrário pré-capitalista, o homem era um servo dos desígnios da physis. A terra

era um objeto sagrado que não poderia, de modo algum, sem violar as leis divinas que

regiam o universo, ser tocada e modificada segundo a vontade humana.

O mundo moderno rompeu com essa concepção e colocou no centro do

universo o homem e suas instituições: a ciência, a técnica, a mecânica, a maquinaria, o

trabalho, a indústria, o comércio, o dinheiro e o capital. O mundo moderno operou, por

isso, uma verdadeira revolução na história humana, revolução que ficou conhecida na

história do pensamento como revolução copernicana, porque com ela o homem

apareceu como o verdadeiro sujeito do conhecimento e da política, e a terra apareceu

como um mero instrumento de sua vontade e de seus desígnios.

No mundo rural da era pré-capitalista, o homem devia adequar suas

instituições, seu modo de vida e seu pensamento à natureza. Nele, o homem estava

irremediavelmente mergulhado numa natureza e num cosmos que não conhecia e que

jamais poderia modificar. Neste mundo, a mente humana era dominada pela

mitologia, pela religião e pela filosofia. Já no mundo moderno, a natureza deverá

adequar-se ao modo de vida do homem e às suas instituições. Nesse mundo, a

natureza e o cosmos aparecem como objetos externos que podem ser modificados pelo

trabalho e pelo pensamento.

No romantismo agrário pré-capitalista tudo devia adequar-se à ordem superior

da natureza. No mundo moderno, tudo deverá adequar-se à mecânica, à ciência e ao

capital. Neste mundo desencantado pela ciência e pela matemática, o romantismo da

mitologia, da poesia, da religião e da filosofia será visto como mero resquício do

passado rural da humanidade.

O mundo antigo, fundamentado sobre a pequena propriedade, o trabalho rural,

a escravidão e o valor de uso da riqueza, antes de desenvolver a ciência e a técnica no

sentido moderno, desenvolveu e aperfeiçoou as virtudes morais do homem através da

arte e da filosofia. O mundo moderno, pelo contrário, fundado sobre a grande

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propriedade fundiária e industrial, sobre a cidade, o trabalho livre e o valor de troca da

riqueza, investiu suas energias intelectuais exclusivamente no aperfeiçoamento das

forças produtivas do trabalho e da riqueza material. No mundo antigo, por isso, um

boi era sempre considerado em sua figura natural de boi, que se alimenta e se

desenvolve por conta das forças contidas no interior da própria natureza. No mundo

moderno, porém, um boi é visto como um produto artificial que se alimenta e se

desenvolve por conta do trabalho do trabalhador e da técnica e da ciência humana nele

investidas.

Em vez de desenvolver o aperfeiçoamento da riqueza e suas qualidades úteis

para o homem como no mundo antigo, o mundo moderno capitalista aperfeiçoou

apenas as habilidades mecânicas e produtivas do trabalhador para o trabalho. Por isso,

em vez de submeter-se aos desígnios da Natureza, o mundo moderno tem

desenvolvido a ciência e a técnica para dominá-la e explorá-la.

Apesar destes paradoxos, porém, acreditamos que o mundo moderno foi muito

além do mundo antigo por conceber o trabalhador como membro digno da sociedade e

da cidadania e como sujeito criador da riqueza – ainda que ao lado da Natureza. Se

com Ricardo, o proletariado foi elevado ao patamar de sujeito da riqueza no sentido

moderno, foi com Marx que o proletariado foi elevado à condição de sujeito de ação no

sentido antigo do termo. Essa elevação do proletariado à condição de homem de ação

não foi, contudo, obra apenas do gênio revolucionário de Marx. Essa elevação foi

resultado do desenvolvimento do próprio sistema capitalista.

As cidades modernas com suas vilas operárias e as grandes fábricas com seu

sistema articulado de máquinas criaram uma classe trabalhadora universal

desconhecida para o mundo antigo. Ao contrário da relativa autossuficiência do

artesanato grego, a indústria capitalista é naturalmente dependente da existência de

outras grandes indústrias ao seu redor. Ao contrário dos artesãos das cidades-estado

gregas que viviam separados pela divisão artesanal do trabalho e pelas diferenças

religiosas e nacionais, o proletariado moderno trabalha em torno de uma única e

mesma grande indústria mundial formando, desse modo, uma única e mesma classe

social.

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Ao contrário do artesão e do escravo antigo, que eram vistos como meros

instrumentos de trabalho e sem personalidade política na cidade, a classe trabalhadora

moderna foi convertida em sujeito pelo capitalismo, possuindo, por isso, sua própria

imprensa, seus próprios intelectuais e seus próprios partidos políticos.

Por esses motivos, a classe trabalhadora pode agora atuar politicamente, como

atuavam os aristocratas fundiários antigos, como homens de ação, como homens livres

e portadores de um saber e de um discurso político orientados para uma arte superior

à arte da mera produção: à arte da revolução e da criação de um novo mundo.

Bibliografia citada

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GARLAN, Yvon. Les esclaves en Grèce ancienne. Paris : Éditions La découverte, 1984.

GLOTZ, Glotz. História econômica da Grécia. Lisboa : Edições Cosmos, 1949.

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Tradução de E. Jacy Monteiro. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

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QUESNAY, François. Análise do quadro econômico. Coleção Os economistas. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

RICARDO, David. Princípios de Economia Política e Tributação. Tradução de Paulo Henrique Sandroni. Coleção Os Economistas. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

SMITH, Adam. A riqueza das nações. Volume I. Tradução de Luiz João Baraúna. Coleção Os economistas. São Paulo: Abril Cultural, 1983.