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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DOS VALES DO JEQUITINHONHA E MUCURI PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO FACULDADE INTERDISCIPLINAR EM HUMANIDADES MESTRADO PROFISSIONAL INTERDISCIPLINAR EM CIÊNCIAS HUMANAS DIAMANTINA – MG A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO PERSONAGEM AUGUSTO MATRAGA CONSTRUCTION OF IDENTITY OF CHARACTER AUGUSTO MATRAGA Wellington Costa de Oliveira 1 RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar, de maneira interdisciplinar, reflexões acerca da construção da identidade do personagem Augusto Matraga, no conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, da obra Sagarana de João Guimarães Rosa. Trata-se de abordar o tema a partir das noções identitárias trabalhadas por diversos teóricos, entre os quais Hall, Sartre, Heidegger, Ricoeur e outros. Pensar em identidade é pensar naquilo que nos constitui como sujeitos e nos diferencia em relação ao outro. A dinâmica proposta é percorrer o caminho vivido pelo personagem, sua trajetória existencial, que culminará na reconstrução de sua identidade. Palavras-Chave: identidade, discurso, ser, existência. 1 Aluno do curso de Mestrado Profissional Interdisciplinar em Ciências Humanas, da Faculdade Interdisciplinar em Humanidades, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), campus de Diamantina-MG.

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A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO PERSONAGEM AUGUSTO

MATRAGA

CONSTRUCTION OF IDENTITY OF CHARACTER AUGUSTO MATRAGA

Wellington Costa de Oliveira1

RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar, de maneira interdisciplinar,

reflexões acerca da construção da identidade do personagem Augusto Matraga, no conto

“A hora e vez de Augusto Matraga”, da obra Sagarana de João Guimarães Rosa. Trata-

se de abordar o tema a partir das noções identitárias trabalhadas por diversos teóricos,

entre os quais Hall, Sartre, Heidegger, Ricoeur e outros. Pensar em identidade é pensar

naquilo que nos constitui como sujeitos e nos diferencia em relação ao outro. A

dinâmica proposta é percorrer o caminho vivido pelo personagem, sua trajetória

existencial, que culminará na reconstrução de sua identidade.

Palavras-Chave: identidade, discurso, ser, existência.

ABSTRACT: This article aims to present, in an interdisciplinary way, reflections on

identity construction Augusto Matraga character in the story "Time and time of

Augustus Matraga" Sagarana the work of João Guimarães Rosa. It is approaching the

theme from the notions of identity worked by various theorists, including Hall, Sartre,

Heidegger, Ricoeur and others. Thinking about identity is thinking about what

constitutes us as subjects and differentiates us in relation to each other. The dynamics is

1 Aluno do curso de Mestrado Profissional Interdisciplinar em Ciências Humanas, da Faculdade Interdisciplinar em Humanidades, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), campus de Diamantina-MG.

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proposed travel the road lived the character, his existential trajectory, culminating in the

reconstruction of their identity.

Keywords: identity, discourse, being, existence.

INTRODUÇÃO

O presente artigo importa um momento há tempos aguardado pelo autor para que

pudesse problematizar e articular a construção da identidade do personagem Augusto

Matraga, objeto de estudo de seu mestrado. Para discutir a construção da identidade do

personagem Augusto Matraga, procurou-se estabelecer um diálogo teórico entre certos

conceitos presentes nos trabalhos de Sartre, Heidegger, Hall e Ricoeur. A aproximação

entre esses pensadores se dá em torno da concepção de identidade e relações

estabelecidas entre os processos de constituição da identidade.

Partindo da filosofia existencialista, observamos que seus pensadores, Heidegger e

Sartre, acentuam de modo fundamental, que o homem é um existente. Como postula

Sartre isto significa que:

“Significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada; só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que não existe Deus para concebê-la”2.

O homem é o que ele vai fazendo de si mesmo, de sua vida. Parte-se da premissa

que, de acordo com esse ramo da filosofia, o homem (Ser) não é um sujeito acabado,

pronto, e que ele vai se construindo e reconstruindo. O personagem Matraga do conto

2 SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um humanismo. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p.05.

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também não está pronto, acabado. Pode-se afirmar que ele vai se construindo. Mas se

construindo em quê? O autor a partir da frase inicial do conto coloca em discussão a

questão da identidade. Como construir o ser a partir do não-ser? O autor dá existência

ao personagem quando cita a sua genealogia, “Matraga é Estêves. Augusto Estêves,

filho do Coronel Afonsão Estêves, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira”3. Então pode-se

afirmar que o pai dele é. Ele ainda não é. Matraga vai ainda construir sua identidade.

Observa-se que na construção da identidade do personagem há presente o modelo

de identidade chamado de mesmidade (identidade do mesmo). A mesmidade funda-se

na permanência de uma substância imutável, de um substrato, de uma estrutura que o

tempo não afeta. No caso do personagem a genética de ser filho do Coronel Afonsão

Esteves, isso é imutável, permanente.

Ricoeur (1991), na obra O si-mesmo como um outro, vai trabalhar sobre a ótica do

caráter o conceito de mesmidade dizendo que:

“Eu entendo aqui por caráter o conjunto das marcas distintivas que permitem reidentificar um indivíduo humano como sendo o mesmo. Pelos traços primitivos que vamos dizer, ele reúne a identidade numérica e qualitativa, a continuidade ininterrupta e a permanência no tempo. É por isso que ele designa, de maneira emblemática, a mesmidade da pessoa”4.

Na construção da identidade do indivíduo, do personagem em voga, há também a

problematização sobre o que o diferencia dos demais da sociedade e o que o torna

singular. Como propõe Ricoeur (1991), é ipseidade (identidade do si). “Ipseidade é

aquilo que caracteriza o indivíduo como ser único, singular, como nenhum outro era, o

que o mesmo dizia de si”5.

Observa-se que a problematização da identidade começou com o Cogito de

Descartes, exatamente por que este permanece encarcerado em si mesmo e não consente

assim fundar a certeza objetiva da verdade.

3 ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.344.4 RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991, p.144.5 Idem, p.140.

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“E, ao notar que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão sólida e tão correta que as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo, julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro princípio da filosofia que eu procurava”6.

Desta forma o cogito-sum, ou seja, o penso como englobando também

necessariamente a realidade do sujeito pensante, tornou-se o protótipo da ideia clara e

distinta. O cogito inclui tudo o que pode ser pensado.

Ricoeur observa que Descartes exaltou o sujeito retirando a possibilidade da

dúvida sobre si mesmo enquanto outro.

“[...] ou o Cogito tem valor de fundamento mas é uma verdade estéril à qual não pode ser dada uma sequência sem ruptura da ordem das razões, ou é a ideia do perfeito que a fundamenta na sua condição de ser finito, e a primeira verdade perde a aureola do primeiro fundamento”7.

A proposta de Ricoeur é construir uma identidade que comporte o pensar o

homem entre os demais. Para Ricouer torna-se necessário pensar a identidade através da

mesmidade e ipseidade como já citado anteriormente. O si mesmo como outro implica

também pensar no conceito de alteridade.

“Si-mesmo como um outro sugere, imediatamente, que a ipseidade do si-mesmo implica a alteridade num grau tão íntimo, que uma não se deixa pensar sem a outra, que, de preferência, uma passa na outra, como se diria em linguagem hegeliana. Ao ‘como’ queríamos ligar a significação forte, não apenas de comparação – o si-mesmo como sendo semelhante à alteridade –, mas mais de uma implicação o si-mesmo enquanto... outro”8.

Sendo assim, de acordo com Ricoeur, só se pode pensar em identidade como

alteridade. O idêntico e o diferente são inseparáveis.

6 DESCARTES, Rene. Discurso do método. Tradução: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.38.

7 RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991, p.21.8 Idem, p.14.

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Faz-se agora um diálogo com a teoria de Domingues (1999) na tentativa de

entender a construção da identidade através da concepção de homem. Domingues, em

sua obra O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das Ciências

humanas, ele dialoga com Foucault e diz que ele:

“Ao construir sua arqueologia das ciências humanas, nos sugere que o homem é um problema recente na trajetória da cultura e como tal destinado a desaparecer do espaço de nossa Episteme, como rosto na areia com o refluxo da maré”9.

Segundo Domingues, “há quatro idades na arqueologia das ciências humanas que

nem o homem e a Episteme são os mesmos”10. Essas idades fornecem uma trajetória

estruturante da concepção de homem. O homem da Idade Cosmológica é pensado a

partir do cosmos. A alma é entendida como: “cósmica e vai buscar através do espírito e

do movimento uma explicação para physys. Temos a antropologia do homem interior

personificada na máxima socrática conhece-te a ti mesmo”11. Na Idade Teológica,

pensa-se o homem a partir da problemática dos desígnios da providência divina. Nesse

período, “o homem está envolto no mistério da criação e da teologia do pecado.

Observar-se aqui uma antropologia do homem pecaminoso herdado da filosofia

agostiniana”12. Dando continuidade Domingues, propõe a Idade Mecânica, nessa idade

“o homem adquire autonomia e é interrogado a partir dele mesmo e de seus dispositivos

mecânicos que no fundo de seu ser regulam suas relações entre o ‘eu’ e o mundo” 13.

Temos aqui a figura do grande relojoeiro que é Deus, esse relojoeiro constrói o homem

com seus mecanismos capazes de se mover. Essa concepção da origem à antropologia

do homem máquina presente na filosofia de Descartes. Por fim, propõe a Idade

Histórica, nesse momento temos “o descentramento do homem e sua dissolução na

9 DOMINGUES, Ivan. O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das Ciências humanas. São Paulo: Edições Loyola, 2ª ed.,1999, p.15.

10 Idem, p.15.11 Idem, p.15.12 Idem, p.16.13 Idem, p.16.

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natureza humana, nas positividades da história e da cultura num período da idade

moderna aos nossos dias. Nessa idade teremos modos do ser: do indivíduo em Freud; da

sociedade em Marx; da língua em Bopp, etc., nasce à antropologia do homem histórico

que nos reenvia Kant”14.

A problematização da construção da identidade, do sujeito, do homem, como se

vê é algo histórico. A hermenêutica da conta de entender essa construção do sujeito,

pois como Ricouer (1989) afirma: “... o sujeito de que ela fala sempre foi oferecido à

eficácia da história”15. O idealismo de Dilthey postulou que o conhecimento da história

da humanidade conduziria ao conhecimento de si mesmo.

Ao se analisar a construção da identidade do personagem, vê-se que ele sempre

viveu à sombra do pai “Fora assim desde menino, uma meninice à louca e à larga, de

filho único de pai pancrácio16”. Com a morte do pai, Coronel Afonsão, Matraga assume

a identidade de Coronel. Qual seria a identidade do Coronel Augusto Esteves? A

identidade de Augusto Esteves construída por Rosa no conto está integrada num espaço

violento e animalizado, no qual a posse da terra, dos animais, dos empregados, da

esposa e da filha se confundem. O poder financeiro, arrogância, violência, são

constitutivos da identidade do coronel Augusto Esteves. Novamente vê-se a questão da

mesmidade presente na identidade do personagem. Pode-se, assim como Heidegger,

perguntar quem é o “ser-ai”. O conhecimento de si é presuntivo, é um conhecimento

que se dá sempre no âmbito precedente da relação, o sujeito se constitui sempre na

relação comunicativa falando de algo para alguém. Segundo Ricoeur (1991), a

identidade do personagem é construída através da narrativa, conforme propõe:

14 DOMINGUES, Ivan. O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das Ciências humanas. São Paulo: Edições Loyola, 2ª ed.,1999, p.16.

15 RICOEUR, Paul. Do Texto à Ação. Ensaios de Hermenêutica II. (trad. de Alcino Cartaxo e Maria José Sarabando). Porto: Rés, 1989, p.61.

16 ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.346.

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“A narrativa constrói a identidade do personagem, que podemos chamar sua identidade narrativa, construindo a da história relatada. É a identidade da história que faz a identidade do personagem”17.

Para Ricoeur a identidade narrativa é ponte mediadora entre os conceitos de mesmidade e ipseidade, que constituem a identidade do personagem.

“[…] a identidade narrativa mantém-se entre as duas; tornando narrável o caráter, a narrativa restitui-lhe o movimento abolido nas disposições adquiridas, nas identificações-com sedimentadas. Tornando narrável a perspectiva da verdadeira vida, ele lhe dá traços reconhecíveis de personagens amados e respeitados. A identidade narrativa mantém juntas as duas pontas da cadeia: a permanência no tempo do caráter e da manutenção de si”18.

Na construção da identidade do personagem, ressalta-se que com a perda do poder

financeiro, advindo do mal uso do dinheiro e dos bens herdados, Augusto Esteves perde

também a mulher, a filha, os jagunços e a própria identidade. Ele é destituído da

identidade de Coronel pelas mãos de outra patente Major Consilva. Após ser

vilipendiado por seus algozes, Augusto Esteves ao perder a identidade, recebe uma

marca a ferro e fogo. Nesse momento há morte do sujeito e sua redução à animalidade.

Marcado como gado, ele é abandonado à própria sorte para morrer. Ao se perder, o

personagem se encontra. A perda da identidade de coronel dá espaço para surgir a

identidade do santo. A passagem de forma violenta o destitui da identidade anterior,

Augusto Esteves, que num primeiro momento dá lugar a Nhô Augusto, que será

denominado Augusto Matraga.

O caminho acima percorrido por Augusto Matraga, faz parte da construção da sua

nova identidade em que cada etapa é importante. Por isso, não se excluem mutuamente,

mas sim, completam-se dentro do processo. Para Sartre (1987), primeiramente o ser

humano existe, encontra-se no mundo, surge, a partir daí é que se definirá, ou seja,

construirá a sua essência, que não é dada a priori:

17 RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991, p. 176.18 RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991, p. 196.

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“O homem é tão somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo.”19.

Segundo Reale o existencialista entende que o ser humano vai além do “simples

momento do processo de uma Razão oniabrangente ou uma dedução do Sistema”20.

“A existência é modo de ser finito e é possibilidade, isto é, um poder-ser. A existência, precisamente, não é essência, coisa dada por natureza, realidade predeterminada e não modificável. As coisas e os animais são o que são e permanecem o que são. Mas o homem será o que ele decidiu ser”21.

Esse poder-ser é questionado pelo personagem quando dialoga com mãe Quitéria

sobre sua atual situação: “Desonrado, desmerecido, marcado a ferro feito rês, mãe

Quitéria, e assim tão mole, tão sem homência, será que eu posso mesmo entrar no

céu?”22. De acordo com Sartre não temos como alterar o passado, apenas podemos

modificar a sua significação:

“O passado que sou, tenho-de-sê-lo sem nenhuma possibilidade de não sê-lo. Assumo sua total responsabilidade como se pudesse modificá-lo, e, todavia, não posso ser outra coisa senão ele. Veremos mais tarde que conservamos continuamente a possibilidade de modificar a significação do passado, na medida em que este é um ex-presente que teve um futuro. Mas, do conteúdo do passado enquanto tal, nada posso subtrair, e a ele nada posso adicionar”23.

Diante das adversidades sofridas, Matraga encontra socorro junto àqueles que não

pertenciam a sua classe social, ao seu convívio diário: “...o preto que morava na boca do

brejo”, “...chamou a preta, mulher do preto que morava na boca do brejo”24. Nota-se que

19 SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um humanismo. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p.06.20 REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. 4 ed. São Paulo: Paulus, 1990. 3 vol.,

p.594. 21 REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. 4 ed. São Paulo: Paulus, 1990. 3 vol.,

p.594.22 ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.361.23 SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um humanismo. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p.168-

169.24 ROSA, 2000, p.352.

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aqueles que o socorrem são identificados pela raça, mas não são nomeados, são os

outros. Também estão à margem da sociedade. Pois vivem no meio do mato, na encosta

de um barranco, desprovidos dos bens materiais e do convívio urbano. Matraga está

órfão e é adotado pelo casal de negros. Ele agora tem uma mãe, Mãe Quitéria. É

batizado novamente como “Nhô Augusto”. Abandonado pelos seus, ele encontra refúgio

em si mesmo e na religião para reconstruir a própria identidade. Matraga ao

experiênciar a quase morte, rememora a própria vida. Sartre (1987) diz que:

“a morte jamais é aquilo que dá à vida seu sentido: pelo contrário, é aquilo que, por princípio, suprime da vida toda significação. Se temos de morrer, nossa vida carece de sentido, porque seus problemas não recebem qualquer solução e a própria significação dos problemas permanece indeterminada”25.

Mergulhado nesse universo de sensações, ele faz uma releitura da própria vida. O

personagem deseja a presença do Padre para pedir perdão dos pecados e poder morrer

em paz. O padre redireciona o pensar de Matraga para uma prática do bem, do perdão,

da penitência. Leva-o a entender que a sua história de vida pode seguir outro caminho

que irão conduzi-lo a um novo eu. A dinâmica de mudança se dá pelo trabalho e oração:

“Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua”26.

O termo reze e trabalhe, nos remete a conceito basilar dos beneditinos ora et

labora27, o par trabalho e oração é fundamental para constituição do ser no mundo.

Nota-se que mesmo antes das adversidades sofridas, a descrição do

25 SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um humanismo. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p.661.26 ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.355.27 A Regula Benedicti foi composta em 529 para a abadia de Monte Cassino, na Itália, por São Bento de

Núrsia (480-543), irmão gémeo de Santa Escolástica. Ela preceituava a pobreza, a castidade, a obediência, a oração e o trabalho, bem como a obrigação de hospedar peregrinos e viajantes em seus mosteiros, dar assistência aos pobres e promover o ensino.

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personagem o desumaniza “bicho grande do mato”28, “cascavel barreada em

buraco”29. É a partir do convívio com o outro, com o diferente, que ele se reconhece

humano: “Apenas, Nhô Augusto se confessou aos seus pretos tutelares, longamente,

humanamente, e foi essa a primeira vez”30. Passa-se a ver, conforme a noção de

sujeito sociológico proposta por Hall, que o personagem começa a entender, que o

sujeito “é formado na relação com outras pessoas importantes para ele”31. A sua nova

identidade começa a ser construída a partir do convívio com a família de negros e

através do exercício da penitência proposta pelo Padre. Não que tais personagens não

existissem anteriormente, mas sim, porque começaram a existir no horizonte de

Matraga e tornaram-se importante para ele.

Essa trajetória estabelecida por Rosa, a qual o personagem deve percorrer é

existencial. É ela que será fator preponderante para a construção da identidade do

personagem. Ao se tomar consciência do mundo, das próprias atitudes, da

responsabilidade dos atos tomados, Matraga questiona a própria existência. Na

verdade ele busca compreender a própria existência. A compreensão para Heidegger

não se desvincula da dinâmica existencial que é a realização do poder ser que é o ser-

no-mundo. Como Ricoeur destaca “O compreender não se dirige, portanto, à posse

de um fato, mas à apreensão de uma possibilidade de ser”32.

A compreensão conduz o personagem a construção da nova identidade. A

identidade do homem religioso, começa com a tomada de consciência da impotência

enquanto ser diante da morte, diante dos homens e até mesmo diante de si. Isso o faz

buscar alento nas palavras do padre que diz: “cada um tem a sua hora e vez: você há

de ter a sua”33. É na religiosidade que busca se realizar e construir-se como sujeito.

28 ROSA, 2000, p.368.29 Idem, p.377.30 Idem, p.386.31 HALL, Stuart. A identidade na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p.11.32 RICOEUR, Paul. Do Texto à Ação. Ensaios de Hermenêutica II. (trad. de Alcino Cartaxo e Maria

José Sarabando). Porto: Rés, 1989, p.98.33 ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.356.

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Sartre diz “o ser é, o nada não é, o nada é posterior ao ser, pois precisa de algo para

negá-lo”34. Matraga ao tomar consciência do não ser, demonstra que em algum

momento ele já teve a consciência da posição ser. No passado Matraga era o Coronel

Augusto Esteves, esta passagem do ser para o não ser, exige do personagem que com

base no passado busque alternativas que possam reconstruir o self no presente.

Matraga toma consciência de si, da finitude humana e principalmente passa a

ver o reflexo de suas ações no mundo. Temos aqui o que Heidegger define com

Dasein (O ser-ai). Segundo Heidegger (1989), na obra Ser e Tempo, a pergunta sobre

o ser não deve se basear no ser daquele ente que são as coisas, que consiste em

simples presença no mundo, mas sim no ser daquele ente que é o homem, o único

ente capaz de fazer-se a pergunta sobre o ser. O ser do homem não consiste numa

simples presença no mundo, e sim num Ser-aí (Dasein):

O ser-aí, o Dasein, imerso em sua existência, é um ser-no-mundo [In-der-Welt-sein], que se encontra sempre situado num contexto de vivência no mundo, e não está simplesmente lançado num espaço apenas delimitado física ou naturalmente. O conceito de ser-no-mundo é uma estrutura ontológica fundamental do ser-aí, que indica a inseparabilidade do homem e do mundo e igualmente do mundo em relação ao homem. Estar em um mundo significa habitar o mundo”35.

Segundo Ricoeur (1989), em Heidegger “este Dasein não é um sujeito para

quem há um objeto, mas um ser no ser. Dasein designa o lugar onde surge a questão

do ser, o lugar da manifestação, a centralidade do Dasein é apenas a de um ser que

compreende o ser”36.

Matraga adentra na compreensão do mundo. A tomada de consciência de si

conduz Matraga a se reconhecer não somente como homem, mas sobretudo como

34 SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p.57.

35 HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Vozes, 1989, p.54.36 RICOEUR, Paul. Do Texto à Ação. Ensaios de Hermenêutica II. (trad. de Alcino Cartaxo e Maria

José Sarabando). Porto: Rés, 1989, p.96.

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humano. Ricoeur ressalta que o discurso é “a articulação significante da estrutura

compreensível do ser-no-mundo”37. O homem possui um mundo e não apenas uma

circunstância, este oferece maneiras possíveis de ser, como estaturas de nosso ser-no-

mundo.

Ao final do conto Matraga chega ao arraial do Rala-Coco montado no jumento.

A cena faz alusão a Jesus entrando em Jerusalém. Por fatalidade do destino encontra-

se novamente com o bando de Joãozinho Bem-Bem. É a partir desse encontro mortal,

que a construção identitária de Augusto Matraga chega ao fim. Pois, acontece a

remissão dos pecados, o reconhecimento do personagem pelo parentes, e a chegada a

sua hora e sua vez. Augusto é identificado como um santo guerreiro pelo povo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As considerações feitas, aqui, busca apresentar a interdisciplinaridade entre a

literatura e a filosofia na construção da identidade do personagem. Observa-se que o

fenômeno literário pode ser analisado e interpretado com o auxílio da filosofia, em

particular da hermenêutica. O presente texto teve como objetivo mostrar a trajetória da

construção da identidade do personagem Matraga, apresenta também o caminho

percorrido para se chegar às conclusões de que a identidade não está pronta, não está

dada. Ela é construída constantemente e reconstruída também. Aqui entende-se a

proposição de Hall (2006) quando diz:

“Esta perda de um "sentido de si" estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento - descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos - constitui uma ‘crise de identidade’ para o indivíduo”38.

37 Idem, p.100.

38 HALL, Stuart. A identidade na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p.09.

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MUCURIPRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

FACULDADE INTERDISCIPLINAR EM HUMANIDADESMESTRADO PROFISSIONAL INTERDISCIPLINAR EM CIÊNCIAS

HUMANASDIAMANTINA – MG

Essa “crise de identidade”, foi justamente o que testemunhamos ao decorrer da

narrativa. É questionador pensar que não se tem uma identidade única. Porém, se tem

identidades que são construídas no decorrer da vida. Como responder a questão ‘Quem

sou eu?’. No conto observa-se que Matraga só tem consciência de quem é de fato ao

final da vida.

A filosofia existencialista considera o homem como ser finito, “lançado no

mundo” e continuamente dilacerado por situações problemáticas ou absurdas. A

identidade de acordo com Hall (2006), não está pronta, finita, acabada. É um construir-

se, um completar-se e até certo ponto como se vê no conto, um reconstruir-se a cada

momento e circunstância proposta pela vida. João Guimarães Rosa ao iniciar o conto

diz: “Matraga não é Matraga, não é nada”, assim como no Grande Sertão: veredas

(2006), temos a expressão “Nonada”. Pode se pensar que a intenção do autor seja

justamente propor a seguinte questão, que o sujeito não está pronto e acabado. Ele se

constrói aos poucos a partir da negação. De acordo com a hermenêutica o sujeito ao

expor o seu ser-no-mundo, compreende a experiência da vida interpretando suas ações.

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REFERÊNCIAS

DESCARTES, Rene. Discurso do método. Tradução: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

DOMINGUES, Ivan. O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das Ciências humanas. São Paulo: Edições Loyola, 2ª ed.,1999.

HALL, Stuart. A identidade na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Vozes, 1989.

RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991.

_____. Do Texto à Ação. Ensaios de Hermenêutica II. (trad. de Alcino Cartaxo e Maria José Sarabando). Porto: Rés, 1989.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. 4 ed. São Paulo: Paulus, 1990. 3 vol.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 1. ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

_____. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.

_____. O Existencialismo é um humanismo. São Paulo: Nova Cultural, 1987. 191 p. (Coleção Os Pensadores).