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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2016 (13 a 15 de outubro de 2016) Modos e lugares de consumo da arte moderna à contemporânea: espaços ilimitados e os consumidores de rupturas. 1 Márcio G. Casarotti 2 Pesquisador integrante do Grupo de Pesquisas “Comunicação, Consumo e Arte” do PPGCom-ESPM (CNPq) Resumo Este artigo proporciona o acompanhamento e a reflexão sobre as historicidades da exibição e do consumo da arte moderna e contemporânea nas sociedades ocidentais. Observa as transformações nas relações de produção e exposição, desde o início do século passado até o presente, caracterizado pelo adensamento das sociedades em grandes metrópoles, a diversificação dos espaços expositivos e as mudanças significativas nas subjetividades e coletividades. Aponta o entrelaçamento da cultura advinda da intensa industrialização e atividade mercantil e a expressão artística em seus sucessivos movimentos. Também aborda o consumo de arte interpelado por novos discursos, os hábitos, espaços e modalidades de visitação, midiatização e mediação. E como a produção artística em diversos suportes e linguagens gera, em igual medida, discursos comunicacionais híbridos, que definem e propõe novos modos e protagonismos de se interagir, comunicar e consumir o que é produzido hoje em arte e em torno dela. Palavras-chave: Historicidades do consumo de arte; Comunicação da arte; Sociologia do consumo; Arte contemporânea. Desde os tempos em que esteve mais restrita a ser escolhida, contratada, comprada e contemplada pela realeza, pela Igreja e pela aristocracia, a arte na cultura ocidental vem passando por significativos fenômenos até que chegasse ao seu atual papel nas sociedades contemporâneas. Mudaram as suas motivações, os seus lugares, 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação e Consumo: periodizações e perspectivas históricas , do 6º Encontro de GTs de Pós-Graduação - Comunicon, realizado nos dias 14 e 15 de outubro de 2016. 2 Marcio Geraldo Casarotti, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pelo PPGCom ESPM-SP. Pesquisador das interfaces da comunicação, arte e consumo na contemporaneidade. E-mail: [email protected].

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PPGCOM  ESPM  //  SÃO  PAULO  //  COMUNICON  2016  (13  a  15  de  outubro  de  2016)  

Modos e lugares de consumo da arte moderna à contemporânea: espaços ilimitados e os consumidores de rupturas. 1

Márcio G. Casarotti 2

Pesquisador integrante do Grupo de Pesquisas “Comunicação, Consumo e Arte”

do PPGCom-ESPM (CNPq)

Resumo

Este artigo proporciona o acompanhamento e a reflexão sobre as historicidades da exibição e do consumo da arte moderna e contemporânea nas sociedades ocidentais. Observa as transformações nas relações de produção e exposição, desde o início do século passado até o presente, caracterizado pelo adensamento das sociedades em grandes metrópoles, a diversificação dos espaços expositivos e as mudanças significativas nas subjetividades e coletividades. Aponta o entrelaçamento da cultura advinda da intensa industrialização e atividade mercantil e a expressão artística em seus sucessivos movimentos. Também aborda o consumo de arte interpelado por novos discursos, os hábitos, espaços e modalidades de visitação, midiatização e mediação. E como a produção artística em diversos suportes e linguagens gera, em igual medida, discursos comunicacionais híbridos, que definem e propõe novos modos e protagonismos de se interagir, comunicar e consumir o que é produzido hoje em arte e em torno dela.

Palavras-chave: Historicidades do consumo de arte; Comunicação da arte; Sociologia do consumo; Arte contemporânea.

Desde os tempos em que esteve mais restrita a ser escolhida, contratada,

comprada e contemplada pela realeza, pela Igreja e pela aristocracia, a arte na cultura

ocidental vem passando por significativos fenômenos até que chegasse ao seu atual

papel nas sociedades contemporâneas. Mudaram as suas motivações, os seus lugares, 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação e Consumo: periodizações e perspectivas históricas , do 6º Encontro de GTs de Pós-Graduação - Comunicon, realizado nos dias 14 e 15 de outubro de 2016. 2 Marcio Geraldo Casarotti, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pelo PPGCom ESPM-SP. Pesquisador das interfaces da comunicação, arte e consumo na contemporaneidade. E-mail: [email protected].

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as suas linguagens, a subjetividade de seus autores, os seus assuntos, a maneira de se

fazer ver e ser vista, de ser representada, referenciada e de ser consumida. Para que se

possa atingir o território das reflexões aqui objetivado é necessário trilhar um percurso,

mesmo que rápido, de entendimento destas transformações. Assim será possível traçar

correlações entre as modificações sociais e seus entrelaçamentos com os movimentos

artísticos: como produtos e mercados foram surgindo, se diferenciando e definindo

seus modos de consumo material e simbólico. E então encontrar o tempo presente da

arte contemporânea3, seus diálogos e tensões na atual sociedade globalizada da

informação e do consumo.

Partimos então, dos séculos anteriores ao século XIX, nos quais a maior parte

da produção, contemplação e consumo esteve mais circunscrita à nobreza e ao clero,

quando a arte respondia a agenciamentos de motivações e estéticas estreitamente

ligados à ideologia destas hegemonias. E em seus espaços permanecia em exibição.

1 2 3 Fig. 1 Um dos salões do Palácio de Buckinghan, Londres, Inglaterra; Fig.2 Capela Sistina, Vaticano, Itália; Fig.3 Jardins do Palais du Luxembourg, Paris, França

Os assuntos da pintura, escultura, poesia e música eram os grandes feitos, as

conquistas, as posses. O poderio que se pudesse ostentar, ornamentar e simbolizar.

Assim, era contemplada em seus espaços institucionais limitados, de modo a servir de

comunicação e reforço a seus sistemas de crenças e onde era raramente facultada a

visitação àquele que não era fidalgo, clérigo ou membro da realeza. A visitação e

3  neste artigo, a arte moderna inicia-se com a arte após Cezanne em fins do sec XIX, e a arte contem-porânea será considerada como a produção artística das últimas décadas, iniciada no pós II Guerra.  

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permanência nesses espaços obedecia à políticas de visibilidade, que atuavam de

maneira a consolidar sobre os visitantes, os institutos daqueles poderes. Tudo - obras,

espaços e modos de ver - era voltado à solene celebração da tradição. O contemplar e o consumir arte, desde fins do século XIX

O avanço da industrialização e o desenvolvimento mercantil na segunda metade

do século XIX criou as condições para o enfraquecimento da realeza, a pulverização da

aristocracia e, sobretudo, o aparecimento de uma burguesia industrial e mercantil. Com

ela, um comércio mais forte expandiu-se entre as cidades levando a infinidade de

novos produtos a serem comercializados em mercados cada vez mais distantes. Na

virada do século XIX para o XX, a indústria e os mercados locais e internacionais

firmemente constituídos, proporcionam as bases para o surgimento da futura sociedade

do consumo. São fatos que vão se relacionar organicamente com os modos de

produção, visibilidade e consumo da arte.

Intelectuais destas épocas acompanhavam criticamente os acontecimentos. Max

Weber (1864-1920) sublinha como a consolidação da ética protestante deixaria os

indivíduos e sobretudo as novas classes ascendentes, mais libertas dos pesos morais

das convicções religiosas antigas, insuflando energia de produção e consumo ao que

denominou de “espírito do capitalismo”. As mercadorias se multiplicavam e se

misturavam à vida das cidades e das pessoas e começavam a instaurar uma nova lógica

das trocas, da acumulação e da ostentação simbólica. Uma nova classe ascendia, mas

que curiosamente reproduzia alguns referenciais de ostentação da realeza. Em sua obra,

publicada em 1900, “A teoria da classe ociosa”, Veblen (1857-1929) atesta as

características destas mudanças nas sociedades de classes, com essa nova burguesia

assumindo modos de consumo e de relações que tinham como a posse e a ostentação

de objetos, mercadorias e serviços como expressões de distinção, prestígio e

pertencimento.

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“Alcançado o estágio quase-pacífico de indústria, com a escravidão como sua instituição fundamental, o princípio geral, mais ou menos rigorosamente observado é que a classe servil industrial deve consumir somente o que é necessário a sua subsistência. Pela própria natureza das coisas, os luxos e os confortos da vida pertencem à classe superior. (...) Estes artigos de consumo são dispendiosos e portanto nobres e honoríficos.” (VEBLEN, 1965. p .76)

O autor evidencia o fenômeno social crescente no qual mercadorias e serviços,

para além de suas funções primárias, servem de sinais de uma comunicação de posição

social, poderio econômico e pertencimento.“ Para o homem ocioso, o consumo

conspícuo de bens é um instrumento de respeitabilidade”. (VEBLEN, 1965.p .80). A

burguesia queria então ter e ostentar como a realeza, a nobreza e o clero. Ao abraçar a

ética protestante o fazia com o beneplácito de renovados sistemas morais e

simbologias. E aí entende-se que assim como os produtos, a arte, seus agendamentos e

assuntos, seus públicos consumidores e os locais onde seria contemplada também

mudariam. A arte também se libertaria e se projetaria para compartilhar das mudanças

e maneiras de interpelar a sociedade.

O consumo, advindo de uma forte produção industrial em massa de produtos,

começa a se expandir, solicitando uma comunicação publicitária em larga escala. São

as bases que engendrariam o aparecimento da chamada “indústria cultural” que só

poderia acontecer pelo estágio de amadurecimento alcançado e então tornado contínuo,

“de uma tríade representada pela conjugação de: meios de comunicação de massa,

cultura de massa e sociedade de consumo”.(TEIXEIRA COELHO, 1986, p.8-14).

Uma sociedade que se adensava em grandes cidades, com novas classes de burguesia e

assalariados começou a originar novas relações entre os artistas, produtores de arte, e

os espaços de exibição. Arte, artistas e negociantes de arte, começaram a sair dos

palácios e igrejas e ir ao encontro dos olhares – e bolsos – desses novos integrantes do

tecido social. O “ver” também começa a cada vez mais ser uma forma de consumir,

tanto os conteúdos artísticos das obras, quanto no ecoar das informações e discursos

que em torno dela gravitam. Assim, os espaços e lugares onde era comercializada e

exibida foram se multiplicando e alterando seus limites.

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4 5 6 7

8 9 Os espaços de exibição da arte: expansões e rupturas de limites. Fig.4. Vista da Exposição Universal de 1900, Paris; Fig. 5 Um dos salões do MET, NY, USA; Fig. 6 Átrio central do Guggenheim NY, USA; Fig. 7 Homepage do site ArtProject, do Google, onde o visitante escolhe e visita virtualmente dezenas de museus e galerias do mundo inteiro Fig. 8 Street Art Graffitti, de Ricardo AKn, São Paulo, Brasil. Fig. 9 Tilt Brush Google, programa onde o usuário pode “entrar” em espaço virtual 3D, pintando, esculpindo e animando suas criações. E onde “visitantes” podem transitar entre essas obras .

A figura abaixo, descreve esta expansão de lugares de exibição através dos

dois últimos séculos. A intencional inversão de alguns dos lugares e espaços de uma

coluna à outra objetiva em alguma medida a refletir como o porte e relevância de

certos locais vão perdendo importância no decorrer no tempo, sobretudo em função de

uma medida de “audiência’ e fluxo de pessoas e visibilidade, tanto real quanto, nas

últimas duas décadas, virtualmente. O que era antes visto por poucas centenas de

pessoas, cada vez mais era levado ao acesso de centenas de milhares4 .

4  Para que se tenha uma idéia mais atual, a 29ª Bienal de São Paulo, de 2010, em seus 85 dias de exposição, recebeu mais de meio milhão de pessoas.  

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Fig. 10. O “local” de exibição da obra de arte com o passar do tempo. (envolvendo, mais recentemente as informações sobre ela, a contemplação e o consumo) ( figura do autor)

A arte se misturava cada vez mais às cidades. Retratava e simbolizava outros

sinais de valor e se adicionava de uma nova característica: os processos e máquinas

agora permitiam que fossem reproduzidas. Mais uma vez limites eram quebrados e

permitia-se às obras que tivessem a visibilidade5 multiplicada para muito além do

entorno físico da obra original. Sendo mais contemplada e aumentava suas

possibilidades de consumo.

Com os assuntos e estéticas apostando nas rupturas, inovações e

tensionamentos, a arte desprendia-se do convencional, do tradicional. E a produção

artística dos diversos movimentos avançava entrelaçando-se com a dialética das

questões da sociedade moderna agora acelerada pelos combustíveis da expansão de

mercados, meios de comunicação globais e forte consumo. Como comenta Heinich

(2001), em seu livro Sociologia da Arte, não se trata mais de “ considerar a arte e a

5  Visibilidade aqui usada no sentido mais afeito as artes visuais. O mesmo fenômeno aconteceu à musica e ao cinema por exemplo.  

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sociedade, como os teóricos da primeira geração, nem a arte na sociedade, como os

historiadores da segunda geração, mas a arte como sociedade”(HEINICH, 2001, p.28).

A filósofa da arte Anne Cauquelin (1909-1992) acompanhou essas transformações

pelas quais passaram a arte moderna (a partir das rupturas promovidas por Cézanne em

fins do séc XIV) até a arte contemporânea, pontuando que elas podem ser entendidas

como a passagem de arte de um “regime” para outro. Como rompeu limites dos

espaços expositivos e expandiu a produção de suas materialidades, a arte moderna para

ela podia ser compreendida como existindo num “regime de consumo”. Podia agora ser

mais exibida, apregoada, comercializada. E, com o crescimento e multiplicação dos

meios de comunicação, também em infovias digitais, a arte contemporânea, a partir do

pós guerras, sem perder algumas das características do regime de consumo, se

desenvolveria num substrato de relações que ela chamou de “regime da informação”. A

figura 19, mais à frente, auxilia na compreensão desta caracterização.

O fenômeno da obra de arte assim mais exibida, reproduzida em

múltiplos,conduziria o cientista social da Escola de Frankfurt, Walter Benjamin (1892 -

1940) a ver oportunidades nesta multiplicação. “A reprodutibilidade técnica das obras

de arte sobretudo possibilitou que ela se emancipasse de uma existência parasitária que

lhe era imposta pela função ritual, tornando-se mais numerosas as ocasiões em que

poderiam ser expostas. Em lugar de repousar e se limitar a essa função, ela agora,

expandindo seu valor ao expositivo, se fundaria em outra forma de práxis: a práxis

política.“ (BENJAMIN, 1985, p 171). O autor captura de maneira singular a surpresa e

o encantamento dos habitantes das grandes cidades ocidentais à época, com a

quantidade e variedade de novos produtos e mercadorias a serem vistas e consumidas.

Destaca as Exposições Universais, grandes mostras em grandes espaços, que dão lugar,

visibilidade e comércio à infinidade produtos, máquinas, processos, inovações e

produção artística. Agora abertas a um público maior, são lugares de ir, ver e adquirir.

Em suas palavras, as Exposições Universais eram o centro de peregrinação ao fetiche

da mercadoria. Pesavento (1997) estabelece as relações motivadoras históricas como

estas primeiras grandes exposições, além de engendrarem uma multiplicação ainda na

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atualidade das feiras e grandes eventos do comércio e da indústria, também

contribuíram para dar forma às grandes feiras e exibições de arte.

O surgimento do consumidor de arte moderna: um consumidor de rupturas

O que se passava no campo das artes e dos movimentos artísticos à época era

igualmente marcante. Ainda no final do século XIX, o Impressionismo e o

Expressionismo proporcionaram rupturas fundamentais ao libertarem a arte dos

cânones clássicos, e levarem a produção artística a ganhar novos assuntos, estéticas, e

lugares. Os assuntos da arte desprendiam-se do passado e iam às ruas capturar as

subjetividades que surgiam, o homem da multidão, os trabalhadores simples, o bas

fond, as cidades em transformação e os ritmos da nova sociedade. As transformações

refletiam esteticamente o avanço de uma sociedade de ritmo fabril frenético gerando

uma grande diversidade de produtos, comercializado em diversas localidades. O

zeitgeist da virada do século XIX para o XX era o da inovação. Da proposição do

novo, e sobre esse novo ainda nem bem entendido, em poucos anos uma outra

proposição de ruptura estética e ou de conteúdo. A despeito do establishment não

aceitar de imediato6 essas ondas inovadoras que artistas traziam, individualmente ou

em grupos, os olhares mais atentos começavam a perceber os valores desse espírito

artístico e até filosófico da inovação. Um público, ilustrado e amador, foi surgindo para

essas irrupções. Obras, exposições, performances que geravam comentários, opiniões

em embates. Geravam curiosidade de ver, de dizer algo sobre. Geravam expectativas,

negócios, novos profissionais nesse campo, galeristas, marchands, colecionadores do

novo. Um campo, e um público sedento pelo próximo “novo”, a próxima ruptura: o

nascimento do consumidor da “arte moderna”. Um consumidor de rupturas.

Naquelas épocas, o Futurismo, a Bauhaus e o Cubismo, refletiam e

tensionavam a realidade de uma sociedade industrializada, da ansiedade produtiva e de 6  Em 1863, foi realizada uma mostra paralela ao Salon de Paris, com as obras de arte recusadas da mostra principal: no Salon des Refusés ( Salão dos Recusados), estavam Manet e Cézanne entre outros. Cézanne era considerado por Picasso e Matisse, entre outros, como “o pai de todos nós”.  

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consumo. Assim, para um olhar que se tornava multifacetado, o Cubismo trouxe o

objeto multifacetado, bem como os tempos e os espaços em multiplicação. Da

bidimensionalidade da tela ganhava-se a tridimensionalidade e mais a dimensão do

tempo. A rupturas com cânones, a proposição de novas estéticas e valores passou a ser

o comportamento típico dos artistas de vanguarda. O movimento Dada assinala a

primeira saturação estética a esta produção incansável de materialidades e visualidades

e trazia os não-objetos, os não-sentidos, os não-significados. Uma lógica do caos que

as grandes guerras trouxeram, em que pluralidades explodidas numa relação que é

não-relação, sinalizava também o descrédito nas utopias que esse novo mundo

mercantil vendido pela publicidade como redentor, traria. O fluxo e expressão amoral

de idéias e signos que propunha definia, entre outras coisas, o prenúncio do

Surrealismo.

11 12 13

14 15

16 17 18 Representações do feminino na pintura, nos quatro séculos recentes. Fig 11: Sir Francis Grant (1803-1878). Portrait of Queen Victoria, 1843; Fig.12 Giovanni Battista Tiepolo, Saint Catherine of Siena,

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1746, Fig. 13. La maja vestida, Goya, cerca de 1800; Fig.14. La maja desnuda, Goya, cerca de 1800; Fig. 15. Olympia, E. Monet, 1863; Fig. 16. Nu couché jouant avec un chat, P. Picasso, 1964; Fig 17. Madame Recamier, R. Magritte, 1951; Fig. 18. Four Marilyns, Andy Warhol, 1962.

Uma reflexão relevante acerca desses fenômenos é o que acontecia nas

subjetividades do visitante e consumidor desta arte “moderna”, que começou a ser

produzida e exposta década apos década. E que quase sempre continha elementos de

rupturas com cânones, convenções. Ruptura com o antigo, com o que era velho,

celebrando um “novo”. Assim, o consumidor das materialidades, discursos e

proposições de sentido dessa nova arte que sempre se inovava, tornava-se de certa

forma, um consumidor de rupturas, o que por extensão o fazia se distanciar e denegar o

que era velho e ultrapassado. E em numa relação instigante, este indivíduo, mesmo que

avançando em idade cronológica, - envelhecendo cronologicamente por uma medida –

por outra, ao consumir as visualidades e discursos da arte moderna, convidava-se a “se

renovar”, se inovar, a estar contemporâneo com as discussões propostas pela arte às

suas visões de mundo. Quer como indíviduo quer como participante da sociedade. Pois

a nova arte interpelava a razão e a sensibilidade a todos esses assuntos. Vale notar que

esse convite feito pela arte moderna, a arejar-se com as rupturas e proposições

começava a operar uma dimensão de descolamento do convite que produtos

tecnológicos – automóveis, eletrodomésticos, etc – faziam. A inovação tecnológica,

espetacular e crescente, interpelava para territórios de imersão nas lógicas de produção

da sociedade global de consumo. Os chamamentos da arte moderna e suas rupturas

propositivas não se acomodavam naturalmente no establishment. Muitas vezes, os

artistas e movimentos propunham - e continuamente propõe -dialogias, críticas,

denegações. Poderiam ser citados centenas de referencias, mas Marcel Duchamp

(1887-1968) e suas obras, exemplifica estas características apontadas.

A comunicação da arte: parte de um composto que também pode ser consumido

PPGCOM  ESPM  //  SÃO  PAULO  //  COMUNICON  2016  (13  a  15  de  outubro  de  2016)  

A indústria e o comércio, cada vez mais atuaram como alavancadores e

patrocinadores dos meios de comunicação deste mundo globalizado, recheando as

emissões de mensagens publicitárias acerca das características e vantagens de seus

produtos e marcas. Expande-se a sociedade global de consumo, na trajetória inexorável

que a levará a ser a atual sociedade global da informação. Nessa etapa do capitalismo,

os meios de comunicação de massa e a publicidade - a midiatização que promovem e

as mediações entre os sujeitos dos discursos trocados pelas plataformas de

comunicação - tornam-se vetores de articulação onipresentes do sistema e em mesma

medida alvos preferidos da análise crítica de cientistas sociais. Roland Barthes (1982)

aponta como “o discurso publicitário subjacente aos produtos são expandidos em

verdadeiras mitologias. Fornecem ao público os signos da coisa e não a coisa em

si”.(BARTHES, 1982. p131-132). Silverstone(2005), aponta entre as suas

características, o fato de que começava-se a consumir, para além das materialidades

(objetos, obras de arte e afins) também os próprios discursos em torno delas.

(...) “com efeito, consumo e mediação são, em inúmeros aspectos, fundamentalmente interdependentes. Consumimos a mídia. Consumimos pela mídia. Aprendemos como e o que consumir pela mídia. Somos persuadidos a consumir pela mídia. A mídia, não é exagero dizer, nos consome. E, como já opinei e continuarei a argumentar, o consumo é, ele mesmo uma forma de mediação, a medida que os valores e significados, dados de objetos e serviços, são traduzidos e transformados nas linguagens do privado, do pessoal e do particular. Consumimos objetos. Consumimos bens. Consumimos informação.(...) ” (SILVERSTONE, 2005. p. 150)

Assim, desde as primeiras décadas do século XX, com o aporte dos meios de

comunicação, e o conhecimento e informação cultural valorizados, como capital

simbólico e distintivo, consumir arte passou a tomar uma dimensão mais ampliada do

que especificamente comprar a obra de arte. Começou-se a consumir o podemos

denominar de “composto artístico”, ou seja, um território de materialidades, discursos

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e referências simbólicas que contém a obra, mas a expande enquanto informação e

consumo. A figura abaixoexemplifica.

Fig. 19 . A obra de arte como um “composto” (de materialidades e discursos relacionados) dedicados à sua exibição, informação, visibilidade e consumo material e simbólico. (figura do autor)

O consumo desse “composto” pode se dar de diversas maneiras, isolada ou

articuladamente. Os públicos podem ser atingidos pela comunicação, imagens e

informações sobre as obras de determinado artista; podem ir à exposição

presencialmente; ou podem visitar a exposição ou contemplar as obras virtualmente;

podem comprar reproduções das obras; podem comprar objetos com reproduções das

obras; podem se informar pela publicidade que dela se faz; podem consultar ou

adquirir material editorial sobre elas; podem freqüentar cursos específicos sobre o

artista e suas obras; podem colecionar informações coletadas do consumo de diversos

meios de informação sobre seus artistas e obras preferidas; podem trocar, multiplicar e

retransmitir informações e imagens sobre artista e obra a sua rede de contatos. E,

finalmente mas não em menor grau de importância, podem comprar a obra

originalmente colocada à venda pelo artista ou espaço de exposição e comercialização.

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Considerações finais

A arte se expandiu para uma infinidade de novos locais, espaços e

materialidades e assim também expandiu as dimensões de significação de seus

discursos e nos modos de ser consumida, para além da dimensão material. Mais do que

em toda a história da humanidade, há mais arte hoje misturada aos objetos, às

embalagens, ao design , à arquitetura dos interiores e exteriores, nas casas de todas as

classes, nas ruas, na moda, no corpo. Nos laptops, nos iPods e tablets. Arte exposta,

arte em produção, arte arquivada. Arte como linguagem simbólica, como identidade de

grupo, como distinção, como referencial de status, como decoração plácida , arte que

cultua o belo e arte que tem o belo como mais um de seus assuntos. Arte nas jóias, nos

perfumes, na publicidade, no saco de pipocas. Produzida, trocada como mercadoria ou

discurso, consumida. A atualidade convive com todo o passado da arte, retomado,

reproduzido, retransformado, com o presente e com as possibilidades de futuro. Mais

livre para exercer suas escolhas, os indivíduos e grupos podem escolher e consumir a

arte que lhes convém, onde lhes convém. Há, por certo, os consumidores de arte

clássica, ou artesanato. Mas na atualidade a expressiva parcela de indivíduos, de todas

as idades e origens, adquiriram o hábito de acompanhar, aguardar e reagir às

interpelações dos compostos, as indagações não convencionais da arte contemporânea.

Os “consumidores de rupturas”, como denominamos aqui. Exposições, bienais,

performances, e uma série de intervenções possíveis entre os lugares e as plataformas

de expressão do mundo atual. Augé (2010) comenta sobre esta nova topografia dos

“lugares” e “espaços”, neste artigo tratados nossos palcos de contemplação e consumo,

dizendo que se um lugar pode se definir pelo que tem de identitário, relacional e

histórico. E um espaço que não pode ainda se definir por nenhum desses aspectos,

definirá um não-lugar. E defende a hipótese de que essa “ supermodernidade é

produtora de não lugares (...) Acrescentemos que existem os não lugares como lugares:

lugares se recompõe nele, relações se reconstituem nele.(...) O lugar e o não lugar são,

antes, polaridades fugidias: o primeiro nunca é completamente apagado e o segundo

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nunca se realiza totalmente – palimpsestos em que reinscreve, sem cessar, o jogo

embaralhado da identidade e da relação.” (AUGÉ, 2010. p 73-74) Nessas dimensões,

materiais, digitais, híbridas, transitam atualmente os compostos artísticos. Em busca

das atenções dos consumidores das novas delimitações que buscam transpor, e das

proposições de sentido (r)evolucionárias – mesmo que transitórias - que o espírito da

arte sempre faz surgir na próxima dobra sutil do tempo.

Referências

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PPGCOM  ESPM  //  SÃO  PAULO  //  COMUNICON  2016  (13  a  15  de  outubro  de  2016)  

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