artigo do ivan

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 DOI: 10.11606/issn.2238 -3867.v13i2p212-223 Sala aberta Desrazão, tragédia e experiência traumática brasileira em Qorpo Santo Ivan Delmanto 1 Resumo O texto trata da formação da dramaturgia brasileira por meio de uma experiência social subjetiva e trágica encontrada na peça de Qorpo Santo Hoje sou um; e amanhã outro. Palavras-chave : dramaturgia brasileira; subjetividade; tragédia.  Abstract The text deals with the formation of dramaturgy brazilian by means of a social experience subjective and tragic found in play of Qorpo Santo Hoje sou um; e amanhã outro . Keywords:  brazilian dramatur gy; subjectivity; tragedy. Máquina dialética da desrazão Fr edric Jameson define o romance, em O inconsciente polí tico, como um processo mais do que como uma forma: um conjunto específico, quase que totalmente intermi- nável, “de operaçõe s e procedimentos programát icos” , em vez de um objeto acabado cuja estrutura imóvel poderia ser contemplada. Tal processo em que se constitui o romance o tornaria um ideologema narrativo cuja forma externa, “secretada como uma concha ou um exoesqueleto” continuaria a emitir sua mensagem mesmo depois da extinção do hospedeiro: Nesse sentido, o romance desempenha um papel significativo no que poderia muito bem ser chamado de revolução cultural propriamente burguesa – aquele imenso processo de transformações por meio do qual populações cujos costumes eram estabelecidos por outros modos de produção, agora arcaicos, são efetivamente reprogramadas para a vida e para o trabalho no novo mundo do capitalismo de mercado. 2  1 Ivan Delmanto é diretor teatral, dramaturgo e educador . Bacharel em direção teatral pela ECA - USP é também mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada na FFLCH USP. É doutorando PPGAC USP, na área de T eoria Teatral, onde desenvolve projeto de pesquisa sobre a formação do teatro brasileiro sob orientação da Profa. Dra. Maria Silvia Betti. 2 JAMESON, 1992, p.155.

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Artigo de Ivan Delmanto

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  • DOI: 10.11606/issn.2238-3867.v13i2p212-223Sala aberta

    Desrazo, tragdia e experincia traumtica brasileira em Qorpo Santo

    Ivan Delmanto1

    Resumo

    O texto trata da formao da dramaturgia brasileira por meio de uma experincia social subjetiva e trgica encontrada na pea de Qorpo Santo Hoje sou um; e amanh outro.

    Palavras-chave: dramaturgia brasileira; subjetividade; tragdia.

    Abstract

    The text deals with the formation of dramaturgy brazilian by means of a social experience subjective and tragic found in play of Qorpo Santo Hoje sou um; e amanh outro .

    Keywords: brazilian dramaturgy; subjectivity; tragedy.

    Mquina dialtica da desrazo

    Fredric Jameson define o romance, em O inconsciente poltico, como um processo

    mais do que como uma forma: um conjunto especfico, quase que totalmente intermi-

    nvel, de operaes e procedimentos programticos, em vez de um objeto acabado

    cuja estrutura imvel poderia ser contemplada. Tal processo em que se constitui o

    romance o tornaria um ideologema narrativo cuja forma externa, secretada como uma

    concha ou um exoesqueleto continuaria a emitir sua mensagem mesmo depois da

    extino do hospedeiro:

    Nesse sentido, o romance desempenha um papel significativo no que poderia muito bem ser chamado de revoluo cultural propriamente burguesa aquele imenso processo de transformaes por meio do qual populaes cujos costumes eram estabelecidos por outros modos de produo, agora arcaicos, so efetivamente reprogramadas para a vida e para o trabalho no novo mundo do capitalismo de mercado.2

    1 Ivan Delmanto diretor teatral, dramaturgo e educador. Bacharel em direo teatral pela ECA - USP tambm mestre em Teoria Literria e Literatura Comparada na FFLCH USP. doutorando PPGAC USP, na rea de Teoria Teatral, onde desenvolve projeto de pesquisa sobre a formao do teatro brasileiro sob orientao da Profa. Dra. Maria Silvia Betti.

    2 JAMESON, 1992, p.155.

  • 213

    O ideologema pode assim ser entendido como uma formao anfbia, cuja carac-

    terstica estrutural essencial pode ser descrita como sua possibilidade de se mani-

    festar como pseudo-ideia um sistema conceitual ou de crena, um valor abstrato,

    uma opinio ou um preconceito ou como uma protonarrativa, uma fantasia de classe

    essencial com relao aos personagens coletivos que so as classes em oposio,

    fantasia que permite que uma aparente coerncia interna e formal reprima o impen-

    svel, o que se coloca alm dos limites de representao experimentados por deter-

    minada sociedade.

    Poderamos ler o drama burgus, descrito por Peter Szondi, como um ideo-

    logema, parte integrante da mesma constelao histrica que formou o romance.

    Durante a emergncia do drama burgus, segundo Szondi:

    O acento sobre o mrito patritico dos comerciantes tambm da maior relevncia, bem como a equiparao com o nobre que se deriva da [...] O comerciante age como instrumento da razo, na medida em que corrige sobre a terra a distribuio natural e, por assim dizer, irracional dos bens. [...] Levar ordem a desordem natural constitui a tarefa do mercador.3

    A partir de uma anlise do drama O mercador de Londres, de Lillo, Szondi iden-

    tifica como surgimento da tradio teatral burguesa a abolio da clusula dos estados

    e, com a entrada do comerciante em cena, a afirmao dos ideais burgueses como

    funo primordial da mimese teatral do perodo e de sua estrutura de sentimento. Os

    comerciantes do drama de Lillo no so imitados em sua verdadeira condio, mas

    apresentados como deveriam ser, como portadores de uma misso social progres-

    sista. Assim, a forma dialgica do drama seria capaz de expressar, simultaneamente,

    um perodo histrico em que a racionalidade e o raciocinar, como diz Hegel, consti-

    tuem-se como critrio para o estabelecimento dos pactos sociais, das relaes capi-

    talistas de poder e da verdade. O dilogo intersubjetivo do drama, carter absoluto de

    sua forma, tambm baseada em um presente absoluto das aes, est baseado na

    emergncia de um sujeito autnomo e centrado. Por outro lado, tal estrutura capaz

    de revelar, se vista tambm em seu ncleo, uma ciranda geral de pantomimas em

    que o fetiche da mercadoria torna o flutuar do dilogo base da prpria personalidade

    descentrada e fracionada do sujeito.

    possvel identificar no Brasil um processo de (de)formao do drama bastante

    distinto. Podemos partir de uma afirmao de Dcio de Almeida Prado que, no prefcio

    ao seu livro de crticas teatrais, Teatro em progresso, justifica a adoo do ttulo da

    3 SZONDI, 2004, p. 64.

  • 214

    obra relacionando-o aos fragmentos do Finnegans Wake de James Joyce, publicados

    sob o ttulo de work in progress, isto , obra em andamento, ainda no concluda:

    [...] no h dvida de que toda obra de arte, todo gnero literrio, jamais deixa de evoluir. Mas no bem a isto ou apenas a isto que me refiro. A poesia e o romance brasileiro da fase propriamente modernista, por exemplo, alcanaram por vezes plenamente os seus objetivos.[...] Foram aquilo que sua poca esperava e desejava que fossem. [...] Ora, essa plenitude, embora relativa, que buscaramos em vo no moderno teatro brasileiro. Para todos os efeitos, ele permanece ainda work in progress.4

    Cabe ento a pergunta: passados mais de quarenta anos da afirmativa feita por

    Dcio, pode-se falar em formao da dramaturgia brasileira? Partindo da descoberta

    de nosso crtico teatral, parece-nos que o percurso histrico brasileiro no se ajusta ao

    processo formativo da dramaturgia europeia, j que por aqui seria possvel identificar

    uma espcie de acmulo e sedimentao de diversos estgios ou modos de produo

    em simultaneidade, a conviverem em contradio, de maneira a fazer do atraso das

    relaes sociais base de sustentao para formas de sociabilidade mais modernas.

    Assim, o movimento a ser tratado seria constitudo por uma formao de runas, por

    uma antiformao de carter trgico: o impulso contraditrio e dilacerante que rene,

    a todo momento, realidades e universos contrrios, arruinando-os aps cada coliso.

    A importao dos modelos de sociabilidade surgidos na Europa, assolada

    por um processo histrico tambm ele altamente contraditrio e desigual, teria sido

    expressa, entre ns, por diversas formaes sociais fraturadas, que poderiam ser

    reveladas por um conceito ampliado de tragdia. Seria possvel identificar, nesse

    percurso histrico contraditrio, diversas manifestaes de certa dialtica trgica

    que, no obstante sua diversidade, poderia caracterizar este processo de formao

    singular. Diante de um quadro atual no qual tudo indicaria ser impossvel que nossa

    sociedade venha a se reproduzir de maneira consistente5, seguimos Roberto

    Schwarz quando se pergunta sobre a ideia de formao: E se a parte da moderni-

    zao que nos tocou for esta mesma dissociao agora em curso, fora e dentro de

    ns? E quem somos ns nesse processo?6 Talvez possamos afirmar que essa ideia

    ou ideal esteja simplesmente reduzida miragem. O andamento da histria teria

    inviabilizado o projeto passado; visto hoje, o contraste entre anseios e resultados

    atestaria a iluso da utopia formadora.

    4 PRADO, 1964, p.XVII.

    5 SCHWARZ, 1999, p. 56.

    6 SCHWARZ, 1999, p. 57

  • 215

    Segundo Peter Szondi, a tragdia seria definida pela figurao da contradio:

    no gnero trgico, a conscincia da dualidade a conscincia da ciso. A conscincia

    da dualidade insolvel, sem sntese possvel.

    O trgico um modus, um modo determinado de aniquilamento iminente ou consumado, justamente o modo dialtico. trgico apenas o declnio que ocorre a partir da unidade dos opostos, a partir da transformao de algo em seu oposto, a partir da autodiviso. Mas tambm s trgico o declnio de algo que no pode declinar, algo cujo desaparecimento deixa uma ferida incurvel. Pois a contradio trgica no pode ser superada em uma esfera de ordem superior seja imanente ou transcendente.7

    Tentaremos, ao partir desse conceito de tragdia, identificar certo processo de

    deformao histrica no Brasil. Para isso, podemos identificar em peas e autores

    brasileiros uma dissoluo dos modelos originais europeus formando tecidos textuais

    dilacerados por contradies mltiplas e aparentemente insuperveis. Testar o conceito

    de tragdia para ler tais experincias uma tentativa de figurar o processo interno que

    estrutura as relaes constitutivas de nossa nacionalidade, o nosso processo parti-

    cular de constituio histrico social marcado pela modernizao conservadora, em

    que as heranas de pas colonial, escravocrata e patriarcal jamais so superadas, ao

    contrrio, so agravadas com a passagem do tempo.

    O jogo das oposies seria capaz de impor forma trgica um incessante movi-

    mento pendular similar ao da antiformao brasileira - entre extremos que nunca

    encontram um momento de sntese. Certas figuraes de nossa dramaturgia pode-

    riam ser vistas como o testemunho de que a formao a integrao social e cultural

    modelada no centro do capitalismo, mas com lgica e dinamismo prprios tal qual

    idealizada pelas utopias de modernizao arruinou-se, elaborando, ao mesmo

    tempo, uma espcie de antiformao, que sobrevive dessas runas. Essa espcie de

    falncia social geraria tambm uma subjetividade falida, trgica, mas antidramtica

    por excelncia, para falarmos em termos teatrais, por no dar dimenso ao conceito

    de indivduo. Seria trgica, por contraditria e dilacerada. Se o nome freudiano dos

    saberes no sabidos o Inconsciente, o nome freudiano dos no saberes no

    sabidos trauma a intruso violenta de qualquer coisa de radicalmente inesperado,

    qualquer coisa para que o sujeito no estava em absoluto preparado e que no pode

    integrar seja de que maneira for: o que permanece, nessa experincia subjetiva, no

    o fantasma do trauma, mas o prprio trauma. Slavoj Zizek chamou esses sujeitos de

    ps-traumticos, comparando-o s vtimas de Alzheimer e de outras leses cerebrais:

    7 SZONDI, 2004, p. 34.

  • 216

    No h continuidade entre esse novo sujeito ps-traumtico e a sua identidade anterior: depois do choque, literalmente um outro sujeito que emerge. Os seus traos so bem conhecidos: ausncia de investimento afetivo, indiferena e distncias profundas trata-se de um sujeito trgico que no est mais dentro do mundo. O sujeito vive a morte como uma forma de vida a sua vida pulso de morte encarnada, uma vida desprovida de investimento ertico8.

    Falar, no Brasil, em sujeitos ps-traumticos cometer uma impreciso, uma

    vez que precisamente a persistncia do trauma que torna a sua situao catas-

    trfica. Talvez devamos falar em um sujeito-em-trauma para definir essa subjetivi-

    dade brasileira que teria caractersticas to distintas do indivduo burgus tradicional.

    Perguntamo-nos se possvel traar, no plano de uma experincia social subjetiva

    brasileira, um percurso de trauma contnuo que segue em paralelo ao nosso processo

    histrico de formao s avessas. Tal esboo, a ser traado, estaria preocupado em

    fixar as mscaras morturias das vtimas dessa experincia social, dos soterrados

    pelo descarrilamento contnuo da locomotiva de nossa histria.

    Delrio trgico Esclarecido

    A dramaturgia de Qorpo Santo constitui um caso singular entre ns de impor-

    tao do modelo dramtico burgus. Considerado por boa parte da fortuna crtica

    como uma espcie de precursor do surrealismo, tambm constitui opinio hegemnica

    que Qorpo Santo, por outro lado, com os ps fincados no tectonismo deslizante do

    sculo XIX, provavelmente pretendeu imitar os moldes de Joaquim Manoel de Macedo

    e de Jos de Alencar, estes ltimos, eles prprios inspirados pelos modelos franceses,

    sobretudo da comdia realista, uma espcie de alta comdia que no tinha como

    objetivo primeiro provocar o riso, mas descrever costumes e discutir questes de inte-

    resse social da burguesia europeia. A diviso de suas peas em atos, quadros e cenas

    comprovaria que Qorpo Santo estava preocupado em escrever peas bem-feitas,

    dentro dos moldes tradicionais vigentes na poca, tentando, certamente, seguir par-

    metros que devia conhecer.9 Essa dialtica entre uma forma (dramtica) retirada das

    comdias de costumes europeias e um contedo onrico, aparentemente delirante,

    teria levado alguns dos seus comentadores a consider-lo tambm um mau escritor:

    Qorpo Santo incorre num erro muito comum de pessoas que no tm hbito de lidar diretamente com o palco, ou seja, no tem noo de tempo em

    8 ZIZEK, 2011, p. 358-361

    9 FRAGA, 1988, p. 58.

  • 217

    teatro. A sua diviso em cenas, quadros e atos absolutamente arbitrria, e poderamos, inclusive, questionar essa prpria diviso.10

    Mais do que a diviso em cenas e atos, parece arbitrria aos comentadores

    de Qorpo Santo a utilizao do modelo do drama burgus que serviria como uma

    espcie de camisa-de-fora ao pleno desenvolvimento dos contedos onricos ou

    expressionistas tratados pelo dramaturgo. Da a impresso de inabilidade na utilizao

    da carpintaria dramtica e de certa sensao de obra mal-acabada e desconjuntada,

    que a leitura crtica de Qorpo Santo geralmente pretendeu fixar. Vejamos uma cena da

    pea Hoje sou um; e amanh outro para tentar compreender tal itinerrio crtico:

    MINISTRO - cousa to simples, quanto verdadeira: 1.a - Que os nossos corpos no so mais que os invlucros de espritos, ora de uns, ora de outros; que o que hoje Rei como V. M. ontem no passava de um criado, ou vassalo meu, mesmo porque senti em meu corpo o vosso esprito, e convenci-me, por esse fato, ser ento eu o verdadeiro Rei, e vs o meu Ministro! 11

    Aparentemente, estamos diante do princpio da subjetividade descentrada, tal

    como descrito pela filosofia de David Hume. Mesmo sem conhecer o filsofo ingls,

    Qorpo Santo teria sido capaz de configurar a identidade como fico de maneira

    muito prxima a de Hume. O dado novo no dramaturgo brasileiro estaria em situar o

    vagar das impresses que constituiriam a subjetividade no ar rarefeito de certa luta de

    classes, uma vez que o processo descrito pelo ministro foi capaz de transform-lo, no

    dia anterior, de um funcionrio burocrata na prpria substncia da majestade divina. A

    revelao acima ocorre logo na cena inicial da pea e tem o poder de desestabilizar as

    crenas do rei, fazendo-o perdoar, no ato seguinte, dois suspeitos de uma conspirao

    armada para derrub-lo do poder:

    O REI [...]Estais portanto servida, Senhora, em vosso pedido; mesmo que o no fizsseis, a conversao que acabo de ter com um dos nossos mais distintos polticos, e atualmente na primeira pasta do Governo, seria bastante para perdoar a esses, de quem tive denncia de que conspiram contra o nosso Governo! 12

    Assim, antecipando-se ao pedido de clemncia que seria realizado pela Rainha, o Rei

    perdoa os possveis conspiradores baseando-se na revelao, trazida pelo Ministro, acerca

    da instabilidade da subjetividade. Estaramos diante da figurao de uma experincia subje-

    tiva brasileira, marcada pelo fluxo constante de identidades, caracterstica de uma sociedade

    formada por mltiplas culturas e etnias? O reconhecimento dessa experincia teria gerado

    10 FRAGA, 1988, p. 58.

    11 LEO, 2000, p. 184.

    12 LEO, 2000, p. 187.

  • 218

    a ao do rei. Esta primeira leitura constituiria o nosso exoesqueleto da pea, o ideologema

    que a recobre impedindo-nos de enxergar o que o tecido mais profundo esconde.

    Na perspectiva de Zizek, toda formao discursiva deve ser entendida em relao

    com aquilo que no pode acomodar dentro de seus prprios termos discursivos ou

    simblicos. Este exterior traumtico chega a ser a ameaa que motiva e, eventual-

    mente serve de obstculo, ambio lingustica de obter a inteligibilidade. A ininteli-

    gibilidade de Qorpo Santo, se seguirmos esse caminho, talvez esteja relacionada no

    a uma falta de habilidade do dramaturgo em dividir seu material corretamente entre

    atos e cenas, ou a qualquer outro pecado de mau dramaturgo, mas sim a um ncleo

    traumtico da prpria experincia histrica e subjetiva nacional.

    Se retomarmos as formulaes de Louis Althusser, a ideia de que toda formao

    ideolgica se constitui atravs e contra um antagonismo constitutivo e, por consequncia,

    deve ser entendida como um esforo por encobrir ou suturar uma srie de relaes confli-

    tuosas, talvez seja possvel ler o drama de Qorpo Santo para alm do seu exoesque-

    leto. Mas como essa sutura ideolgica nunca seria completa, quer dizer, posto que nunca

    pudesse se estabelecer como um conjunto necessrio ou geral, transparente, de cone-

    xes, estaria sempre marcada pela incapacidade de exercer uma determinao completa,

    por uma contingncia constitutiva, que emerge dentro do campo ideolgico como sua

    instabilidade permanente (e promissora). Seguiremos a promessa de tentar decifrar tal

    experincia traumtica sem a pretenso de fornecer uma interpretao una e totalizadora

    do texto de Qorpo Santo, mas como possibilidade de lermos, por entre as frestas e fissuras

    da pea, traos de uma determinada experincia histrica subjetiva brasileira, o que nos

    distanciaria, no plano da formao de nossa dramaturgia, dos modelos europeus.

    Aps a revelao do Ministro, o Rei, encantado, deseja saber quem foi o sbio a

    formular tal teoria da identidade ficcional e pede um retrato do autor, para ser colocado

    em destaque na Corte:

    O REI - Poderamos obter um retrato desse ente a meu ver to grande ou maior que o prprio Jesus Cristo!?MINISTRO - Eu no possuo algum; mas pode se encomendar ao nosso Cnsul na cidade de Porto Alegre, capital da Provncia de So Pedro do Sul, em que tem habitado, e creio que ainda vive. [...] (Chega-se a uma mesa, pega em uma pena e papel, e escreve:)Sr. Cnsul de... De ordem de Nosso Monarca, tenho a determinar a V. Sa. que no primeiro correio envie a esta Corte um retrato do Dr. Q... S..., do maior tamanho, e mais perfeito que houver. Sendo indiferente o preo. O Primeiro Ministro DOUTOR S E BRITO Corte de..., maio 9 de 186613.

    13 LEO, 2000, p. 187.

  • 219

    A data mencionada na carta a ser enviada pelo Ministro, 9 de maio de 1866,

    geralmente atribuda na fortuna crtica do dramaturgo como o dia em que a pea

    estaria sendo escrita. Os dados geogrficos, Rio Grande do Sul e Porto Alegre, reme-

    teriam biografia do prprio Qorpo Santo que assim pode ser visto como o sbio, to

    importante quanto Jesus Cristo, citado na conversa entre o rei e seu ministro. possvel

    interpretar a pea como manifestao das idiossincrasias biogrficas de Qorpo Santo;

    dessa forma poderamos encarar a flutuao subjetiva mencionada como retrato do

    prprio autor, em um outro procedimento a antecipar as confisses surrealistas ou,

    indo mais alm, at mesmo a escrita performativa dos textos ps-dramticos mais

    contemporneos. Tal interpretao parece justificvel, mas ainda estamos tateando o

    exoesqueleto do ideologema, distantes de uma experincia traumtica capaz de abrir

    uma lacuna na linguagem, espera de decifrao.

    Sigamos com a leitura da pea. Mais adiante, o pas atacado por tropas

    inimigas. Em um procedimento pico notvel, digno das narraes de batalhas que

    nos fazem os personagens de Shakespeare, Qorpo Santo narra, por meio da rainha,

    a violenta e brutal batalha que transcorre fora do palcio, na praia, durante o desem-

    barque inimigo:

    A RAINHA - (apita; um soldado da guarda imperial ou real responde com um toque de cometa; ela torna a apitar; ele fala.) Corre; voa onde est o Rei, e dize-Lhe que desembarcaram tropas inimigas na pennsula(...) Como saltam cabeas, pernas, braos pelos ares! Que carnificina horrvel se observa!? Como se matam; como se destroem entes humanos!14

    Retomemos os dados de nossa investigao: estamos no ano de 1866, no Rio

    Grande do Sul, em uma localidade prxima a Porto Alegre. H um rei que participa

    de uma guerra sangrenta. Parece-me possvel conjecturar se estamos diante de uma

    chave alegrica que perdeu seu sentido ao longo do tempo, por meio da sutura ideo-

    lgica, mas que pode ser agora recuperada se contemplarmos a Guerra do Paraguai.

    O Rio Grande do Sul dos sculos XVIII e XIX tradicionalmente recordado como

    supridor de tropas e meios logsticos para os embates entre o imprio portugus e

    o imprio espanhol, e posteriormente, para o imprio brasileiro em suas interven-

    es nas repblicas do Prata. A provncia rio grandense teve seu territrio invadido

    pelos paraguaios no ano de 1865. A cidade de Uruguaiana foi tomada pelas tropas

    paraguaias comandadas pelo general Estigarribia e recuperada aps um cerco pelas

    tropas da Trplice Aliana. Nesse episdio, o imperador D. Pedro II esteve presente no

    14 LEO, 2000, p. 191.

  • 220

    campo de batalha, acompanhado de seu genro, o Conde DEu. O Conde escreveu um

    dirio de sua viagem, intitulado Viagem militar ao Rio Grande do Sul, importante obra

    testemunhal que fornece elementos para uma anlise da experincia traumtica do

    perodo estudado:

    Os paraguaios, saindo do seu pas, atravessaram, sem disparar um tiro, a provncia argentina de Corrientes; em seguida passaram Uruguai na parte superior do seu curso e penetraram na provncia brasileira do Rio Grande do Sul, apoderando-se das vilas de So Borja e Itaqui15

    Talvez seja possvel ler na pea de Qorpo Santo, em uma primeira camada

    de sentido, uma figurao quase realista da Guerra do Paraguai. Mas no estamos

    diante do cdigo realista do drama burgus, somente. O tempo todo, a narrativa linear

    da pea, quase transparente quando confrontamos as cenas com os dados reais da

    experincia histrica traumtica da guerra, interrompida por aes injustificadas,

    dando pea o encadeamento lgico da desrazo e do pesadelo. Alm da teoria sobre

    a subjetividade, que to rapidamente faz o Rei mudar completamente sua conduta,

    vemos a batalha sangrenta ser interrompida para que o monarca troque de roupa:

    O REI - (entrando banhado em sangue e suores; para a Rainha) Senhora, mandai-me vir outro fardamento limpo para mudar.RAINHA - Entremos nesta cmara. (Entram, e passados alguns minutos, ele se apresenta com nova farda, calas, etc.) Adeus! Volto ao combate; e juro-vos que antes de pr-se o sol, no ficar um soldado inimigo em territrio nosso. (Parte.)16

    A atitude injustificada do Rei interrompe a unidade do drama burgus, gerando uma

    ao impossvel de ser justificada dentro dos critrios tradicionais de construo do bom

    personagem dramtico. Como interpretar essa lgica desarazoada presente na pea?

    Talvez possamos recolher alguns escombros da experincia sangrenta da Grande Guerra.

    Em Qorpo Santo a ausncia de sentido da Guerra parece ser corroborada pela

    ausncia de sentido da prpria forma do drama, esburacada pelas atitudes injusti-

    ficadas de seus personagens. Haveria, no procedimento delirante de Qorpo Santo,

    uma maneira de representar o trauma da guerra vivido pela experincia social subje-

    tiva de suas vtimas. Vejamos o final da pea brasileira:

    O REI - (Senta-se; pega a pena, e escreve:) Meus muito amados sditos e Governadores das diversas Provncias do meu importante Reino! Participo-vos, e sabei que quase inesperadamente fui surpreendido por numerosos traidores, ladres e assassinos, mas que em um dia, hoje cercado dos meus generais e dos mais valentes, denodados soldados, obtive o mais completo triunfo sobre eles. (...)E conservai-vos, como sempre, no desempenho to

    15 ORLEANS, 1936, p. 27.

    16 LEO, 2000, p. 193.

  • 221

    honroso, quo importante do Governo que vos conferiu O vosso Rei Q... s, - m. - Palcio das Mercs, Abril 9 de 1866.O REI E A RAINHA - (para o publico) Sempre a Lei, a Razo e a Justia triunfam da perfdia, da traio e da maldade!17

    O que chama ateno em primeiro lugar o final reconciliado que a pea abriga.

    Aps o banho de sangue, o reino estaria de novo higienizado, graas ao genocdio come-

    tido pela aliana entre soldados e generais, elite e povo. H um contraste violento entre

    as descries brutais da guerra e esse final apaziguado e utpico, o que parece nos

    revelar que a continuidade da sociedade brasileira, alegorizada por aquele reino fictcio,

    erigiu-se sobre os escombros da guerra. Tal interpretao e no a leitura ideolgica

    sobre a Guerra do Paraguai, que deposita nos sonhos expansionistas de um ditador,

    Solano Lopes, toda a responsabilidade pelos massacres - obtida exatamente graas

    lgica do delrio. O que interrompe o fluxo linear e hegemnico da histria, fazendo

    abrir as feridas anteriormente suturadas, o delrio. Se no tivssemos acompanhado

    o Rei trocar de roupa durante a guerra, ou a Rainha discutir com suas damas sobre o

    horrio do almoo, logo aps a narrao das atrocidades, seria possvel no estranhar

    a reconciliao proposta pelo casal na ltima frase da pea. Mas por estarmos diante de

    uma estrutura dramtica prpria, que questiona os preceitos do drama burgus europeu

    transformando o que havia de Ilustrao em barbrie, possvel identificar na experi-

    ncia da Guerra do Paraguai um trauma suturado pela narrativa ideolgica, coerente e

    racional. A desrazo no atua apenas como contedo da ao dos personagens, mas

    est presente na prpria estrutura dramtica da pea: a diviso das cenas e dos atos

    injustificada tanto quanto as interrupes ou a psicologia dos personagens. Estamos

    diante no de um mau dramaturgo, mas de uma pea que soube plasmar, por meio da

    desrazo, a convivncia contraditria, no Brasil, entre discurso liberal e prtica genocida.

    Mas ainda h um detalhe fundamental. Vejamos como o Rei assina a sua partici-

    pao oficial: Q....S... Qorpo Santo? O Rei torna-se, ao longo da pea, o prprio autor,

    que tambm o filsofo que exps sua doutrina no comeo da trama. O processo de

    exposio da desrazo est completo com a flutuao final da identidade do prprio

    protagonista da pea. O que possvel ler nessa flutuao?

    Estaramos, ao ler a cena final da pea de Qorpo Santo, diante de um giro ainda

    mais desarrazoado e paradoxal: talvez no seja possvel fazermos justia funo

    ideolgica e funo crtica da pea, a menos que queiramos aceitar a presena,

    17 LEO, 2000, p. 193.

  • 222

    nas crateras do texto, tambm de uma funo mais positiva: daquilo que poderamos

    chamar de seu potencial utpico e transcendente:

    Pequena proposta metodolgica para a dialtica da histria cultural .(...) de importncia decisiva aplicar novamente uma diviso a essa parte negativa, inicialmente excluda, de modo que a mudana de ngulo de viso ( mas no de critrios!) faa surgir novamente, nela tambm, um elemento positivo e diferente daquele anteriormente especificado. E assim por diante, ad infinitum, at que todo o passado seja recolhido no presente em uma apocastase (admisso de todas as almas no Paraso) histrica18.

    O conceito de apocastase, apresentado acima por Benjamin, fundamental para

    compreendermos a feio traumtica da experincia social subjetiva figurada na pea

    de Qorpo Santo. A transformao do Rei em Qorpo Santo alegoria de um sonho de

    apocastase geral: nada mais paradisaco do que se transformar em um homem mais

    importante do que Jesus Cristo. No entanto, essa apocastase revela o seu contrrio,

    seu processo de encobrimento do trauma e no de redeno.

    Em Hoje sou um; e amanh outro no estamos diante da subjetividade do drama

    burgus europeu. A razo e as razes burguesas expostas nos determinantes textuais

    do drama aqui se transformam em desrazo, em delrio, voando em crculos sobre o

    vazio de uma base social colonial que produz, como ideologia, uma autoimagem liberal

    e progressista. A utopia delirante do Rei e da Rainha, que acreditam poder apagar o

    rastro sangrento da guerra escrevendo uma carta, e a utopia real do Quilombo do

    Gran Chaco, que acreditou poder paralisar a guerra fugindo dela, so o pontos cegos

    que revelam o seu negativo: recolher a subjetividade brasileira ao Paraso, fazer sua

    apocastase, reconhec-la por meio do seu sonho e do seu trauma.

    A utopia funciona no Brasil exposto na pea de Qorpo Santo como delrio porque

    serve de ideal apaziguador para aquilo que no pode ser reconciliado. como se

    o trauma crescesse graas sua sutura: a utopia no pode ter aqui a pretenso de

    redeno porque serve como ideologema, tentando encobrir o horror do trauma coletivo.

    Nesse deslocamento entre utopia e realidade, ou na inverso de sinal da utopia, que

    transforma resistncia em sutura, tal a magnitude do horror, talvez seja possvel ler mais

    um trao instvel e provisrio, verdade daquilo que tratamos aqui de experincia

    social subjetiva. A dramaturgia de Qorpo Santo pode nos revelar que tal subjetividade

    brasileira, acmulo de escombros, armazenados nos tmulos dos soterrados de tal

    processo histrico, mais do que instvel ou mutante, pura desrazo, funcionando na

    lgica do delrio quando procura recolher ao Paraso a rocha cheia de sangue do Inferno.

    18 BENJAMIN, 2007, P. 501.

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    Referncias Bibliogrficas

    JAMESON, Fredric. O Inconsciente poltico. So Paulo: tica, 1992.

    SZONDI, Peter. Teoria do drama burgus. So Paulo: Cosacnaify, 2004, p. 64.

    DE ALMEIDA PRADO, Dcio.Teatro em progresso: crtica teatral (1955-1964). So Paulo: Editora Perspectiva, 1964.

    SCHWARZ, Roberto. Os sete flegos de um livro. In: Seqncias brasileiras: ensaios. So Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.46-58.

    SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trgico. So Paulo: Zahar, 2004.

    ZIZEK, Slavoj. Viver no fim dos tempos. Lisboa: Relgio d gua, 2011.

    FRAGA, Eudynir. Surrealismo ou absurdo?. So Paulo: Perspectiva, 1988.

    LEO, Jos Joaquim de Campos. (Qorpo Santo). Hoje sou um; e amanh outro. In: Teatro completo. So paulo: Iluminuras, 2000.

    ORLEANS, Luis Filipe Maria Fernando Gasto de. Viagem militar ao Rio Grande do Sul. So Paulo: Cia. Editora Nacional, 1936.

    BENJAMIN, Walter. As Passagens. So Paulo: EDUSP, 2007.