artigo - dever de proteção 2

12
OS DIREITOS FUNDAMENTÁIS E SEUS MÚLTIPLOS SIGNIFICADOS NA ORDEM CONSTITUCIONAL Por GlLMAR FERREIRA MENDES* SUMARIO 1. INTRODUCÁO.—2. DIREITOS FUNDAMENTÁIS ENQUANTO DIREITOS DE DEFESA.—3. DIREITOS FUNDAMENTÁIS ENQUANTO NORMAS DE PROTECÁO DE INSTITUTOS JURÍDICOS.—4. DIREITOS FUNDAMENTÁIS ENQUANTO GA- RANTÍAS POSITIVAS DO EXERCfcio DAS LIBERDADES: A) Direitos funda- mentáis enquanto direitos a prestares positivas. B) Direito a organizagao e ao procedimento. C) Os direitos de igualdade: a hipótese de exclusáo de beneficio incompatível com o principio da igualdade.—5. DIREITOS FUNDAMENTÁIS E DEVER DE PROTECÁO. 1. INTRODUCÁO A Constituicáo brasileira de 1988 atribuiu significado impar aos direi- tos individuáis. Já a colocacáo do catálogo dos direitos fundamentáis no inicio do texto constitucional denota a intencáo do eonstituinte de lhes emprestar significado especial. A amplitude conferida ao texto, que se des- dobra em setenta e sete incisos e dois parágrafos (art. 5 o ), reforca a im- pressao sobre a posigao de destaque que o eonstituinte quis outorgar a esses direitos. A idéia de que os direitos individuáis devem ter eficacia * Ministro do Supremo Tribunal Federal; ex-Procurador da República; Professor Adjunto da Universidade de Brasilia - UnB; Mestre em Direito pela Universidade de Brasilia - UnB (1988), com a dissertasao «Controle de Constitucionalidade: Aspectos Políticos e Jurídicos»; Doutor em Direito pela Universidade de Münster, República Federal da Alemanha - RFA (1990), com a dissertacáo «Die abstrakte Normenkontrolle vor dem Bundesverfassungsgericht und vor dem brasilianischen Supremo Tribunal Federal», publicada na serie Schriften zurn Offentlichen Recht, da Editora Duncker & Humblot, Berlim, 1991 (a traducáo para o portugués foi publicada sob o título Jurisdicao Constitucional, Saraiva, 1996). 131 Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional Núm. 8, 2004

Upload: felipe-dalenogare-alves

Post on 16-Dec-2015

6 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

OS DIREITOS FUNDAMENTÁIS E SEUS MÚLTIPLOS SIGNIFICADOS NA ORDEM CONSTITUCIONAL

TRANSCRIPT

  • OS DIREITOS FUNDAMENTIS E SEUS MLTIPLOSSIGNIFICADOS NA ORDEM CONSTITUCIONAL

    Por GlLMAR FERREIRA MENDES*

    SUMARIO1. INTRODUCO.2. DIREITOS FUNDAMENTIS ENQUANTO DIREITOS DEDEFESA.3. DIREITOS FUNDAMENTIS ENQUANTO NORMAS DE PROTECODE INSTITUTOS JURDICOS.4. DIREITOS FUNDAMENTIS ENQUANTO GA-RANTAS POSITIVAS DO EXERCfcio DAS LIBERDADES: A) Direitos funda-mentis enquanto direitos a prestares positivas. B) Direito a organizagaoe ao procedimento. C) Os direitos de igualdade: a hiptese de exclusode beneficio incompatvel com o principio da igualdade.5. DIREITOS

    FUNDAMENTIS E DEVER DE PROTECO.

    1. INTRODUCO

    A Constituico brasileira de 1988 atribuiu significado impar aos direi-tos individuis. J a colocaco do catlogo dos direitos fundamentis noinicio do texto constitucional denota a intenco do eonstituinte de lhesemprestar significado especial. A amplitude conferida ao texto, que se des-dobra em setenta e sete incisos e dois pargrafos (art. 5o), reforca a im-pressao sobre a posigao de destaque que o eonstituinte quis outorgar aesses direitos. A idia de que os direitos individuis devem ter eficacia

    * Ministro do Supremo Tribunal Federal; ex-Procurador da Repblica; Professor Adjuntoda Universidade de Brasilia - UnB; Mestre em Direito pela Universidade de Brasilia - UnB(1988), com a dissertasao Controle de Constitucionalidade: Aspectos Polticos e Jurdicos;Doutor em Direito pela Universidade de Mnster, Repblica Federal da Alemanha - RFA(1990), com a dissertaco Die abstrakte Normenkontrolle vor dem Bundesverfassungsgerichtund vor dem brasilianischen Supremo Tribunal Federal, publicada na serie Schriften zurnOffentlichen Recht, da Editora Duncker & Humblot, Berlim, 1991 (a traduco para o portugusfoi publicada sob o ttulo Jurisdicao Constitucional, Saraiva, 1996).

    131

    Anuario Iberoamericano de Justicia ConstitucionalNm. 8, 2004

  • GILMAR FERREIRA MENDES

    imediata ressalta a vinculacao direta dos rgos estatais a esses direitos eo seu dever de guardar-lhes estrita observancia.

    O constituinte reconheceu ainda que os direitos fundamentis sao ele-mentos integrantes da identidade e da continuidade da Constituigo, consi-derando, por isso, ilegtima qualquer reforma constitucional tendente a su-primi-los (art. 60, 4o).

    Se se pretende atribuir aos direitos individuis eficacia superior dasnormas meramente programticas, ento deve-se identificar precisamente oscontornos e limites de cada direito, isto , a exata definico do seu mbitode protecao. Tal colocaco j suficiente para realcar o papel especialconferido ao legislador, tanto na concretizacao de determinados direitos,quanto no estabelecimento de eventuais limitaces ou restrices1. Eviden-temente, nao s o legislador, mas tambm os demais rgaos estatais compoderes normativos, judiciais ou administrativos cumprem urna importantetarefa na realizaco dos direitos fundamentis.

    Os direitos fundamentis sao, a um s tempo, direitos subjetivos e ele-mentos fundamentis da ordem constitucional objetiva. Enquanto direitossubjetivos, os direitos fundamentis outorgam aos titulares a possibilidadede impor os seus interesses em face dos rgos obrigados2. Na sua ditnen-so como elemento fundamental da ordem constitucional objetiva, os direi-tos fundamentis tanto aqueles que nao asseguram, primariamente, umdireito subjetivo, quanto aqueloutros, concebidos como garandas individu-is formam a base do ordenamento jurdico de um Estado de Direitodemocrtico.

    verdade consabida, desde que Jellinek desenvolveu a sua Teora dosquatro "status"3, que os direitos fundamentis cumprem diferentes funcSesna ordem jurdica.

    Na sua concepco tradicional, os direitos fundamentis sao direitos dedefesa (Abwehrrechte), destinados a proteger determinadas posicSes subje-tivas contra a intervenco do Poder Pblico, seja pelo (a) nao-impedimen-to da prtica de determinado ato, seja pela (b) no-intervencao em situa-c5es subjetivas ou pela no-eliminaco de posicoes jurdicas4.

    1 PETER LERCHE, Grundrechtlicher Schutzbereich, Grundrechtsprgung und Grundrechts-

    eingriff, in ISENSEE/KlRCHHOFF, Handbuch des Staatsrechts, vol. V, p. 739 (740).2 KONRAD HESSE, Grundzge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, Hei-

    delberg, 1995, p. 112; Walter KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte, in JURA, 1988,p. 617 (619).

    3 G. JELLINEK, Sistema dei Diritti Pubblici Subiettivi, trad. ital., Milao, 1912, p. 244. So-

    bre a crtica da Teora de Jellinek, cf. ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, Frankfurt amMain, 1986, pp. 243 s.; cf., tambm, INGO SARLET, A eficacia dos Direitos Fundamentis, Por-to Alegre, 1998, pp. 153 s.

    4 Cf. ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 174; Ver, tambm, CANOTILHO, Direito

    Constitucional, Coimbra, 1991, p. 548.

    132

  • OS DIREITOS FUNDAMENTIS E SEUS MLTIPLOS SIGNIFICADOS NA ORPEM CONSTITUCIONAL

    Nessa dimenso, os direitos fundamentis contm disposicoes defini-doras de uma competencia negativa do Poder Pblico (negative Kompetenz-bestimmung), que fica obrigado, assim, a respeitar o ncleo de liberdadeconstitucionalmente assegurado5.

    Outras normas consagram direitos a prestacoes de ndole positiva (Lei-stungsrechte), que tanto podem referir-se a prestagoes fticas de ndolepositiva (faktische positive Handlungen), quanto a prestacoes normativas dendole positiva (normative Handlungen)6.

    Tal como observado por Hesse, a garanta de liberdade do individuoque os direitos fundamentis pretendem assegurar somente exitosa nocontexto de uma sociedade livre. Por outro lado, uma sociedade livre pres-supSe a liberdade dos individuos e cidados, aptos a decidir sobre as ques-toes de seu interesse e responsveis pelas questoes centris de interesse dacomunidade. Essas caractersticas condicionam e tipificam, segundo Hesse,a estrutura e a funco dos direitos fundamentis. Eles asseguram nao ape-nas direitos subjetivos, mas tambm os principios objetivos da ordem cons-titucional e democrtica7.

    2. DIREITOS FUNDAMENTIS ENQUANTO DIREITOS DE DEFESA

    Enquanto direitos de defesa, os direitos fundamentis asseguram aesfera de liberdade individual contra interferencias ilegtimas do Poder P-blico, provenham elas do Executivo, do Legislativo ou, mesmo, do Judici-rio. Se o Estado viola esse principio, dispoe o individuo da corresponden-te pretenso que pode consistir, fundamentalmente, em uma:

    (1) pretenso de abstenco (Unterlassungsanspruch);(2) pretenso de revogaco (Aufhebungsanspruch), ou, ainda, em uma(3) pretenso de anulaco (BeseigungsansprucKf.Os direitos de defesa ou de liberdade legitimam ainda duas outras pre-

    tensoes adicionis:

    (4) pretenso de consideraco (Bercksitigungsanspruch), que impoe aoEstado o dever de levar em conta a situaco do eventual afetado,fazendo as devidas ponderaces9; e

    5 Cf., HESSE, Grundzge des Verfassungsrechts, cit., p. 133.

    6 ALEXY, Theorie der Grundrechte, cit., p. 179; Ver, tambm, CANOTILHO, Direito Consti-

    tucional, cit., p. 549.7 HESSE, Bedeutung der Grundrechte, in ERNST BENDAAVERNER MAIHOFER/HANS-

    JOCHEN VOGEL, Handbuch des Verfassungsrechts, Berlim, 1995, vol. I, p. 127 (134).8 Cf. ULRICH BATTIS/CHRISTOPH GUSY, Einfhrung in das Staatsrecht, 4a edicao, Hei-

    delberg, 1999, p. 236.9 BATTIS/GUSY, Einfhrung in das Staatsrecht, cit., p. 236.

    133

  • GILMAR FERREIRA MENDES

    (5) pretenso de defesa ou de protecao (Schutzanspruch), que impe aoEstado, nos casos extremos, o dever de agir contra terceiros10.

    A clssica concepco de matriz liberal-burguesa dos direitos fundamen-tis informa que tais direitos constituem, em primeiro plano, direitos dedefesa do individuo contra ingerencias do Estado em sua liberdade pessoale propriedade. Esta concepco de direitos fundamentis apesar de serpacfico na doutrina o reconhecimento de diversas outras ainda conti-nua ocupando um lugar de destaque na aplicaco dos direitos fundamen-tis. Esta ccncepco, sobretodo, objetiva a limitaco do poder estatal a fimde assegurar ao individuo urna esfera de liberdade. Para tanto, outorga aoindividuo um direito subjetivo que permite evitar interferencias indevidasno mbito de proteco do direito fundamental ou mesmo a eliminaco deagresses que esteja sofrendo em sua esfera de autonomia pessoal11.

    Analisando as posicoes jurdicas fundamentis que integram os direitosde defesa, importa consignar que estes nao se limitam as liberdades eigualdades (direito geral de liberdade e igualdade, bem como suasconcretizaces), abrangendo, ainda, as mais diversas posicoes jurdicas queos direitos fundamentis intentam proteger contra ingerencias dos poderespblicos e tambm contra abusos de entidades particulares, de forma quese cuida de garantir a livre manifestacao da personalidade, assegurandourna esfera de auto-determinacao do individuo12.

    3. DIREITOS FUNDAMENTIS ENQUANTO NORMAS DE PROTECO DE INSTI-TUTOS JURDICOS

    A Constituicao outorga, nao raras vezes, garanta a determinados insti-tutos, isto , a um complexo coordenado de normas, tais como a proprie-dade, a heranca, o casamento, etc. Outras vezes, clssicos direitos de liber-dade dependem, para sua realizacao, de intervenco do legislador.

    Assim, a liberdade de associaco (CF, art. 5o, XVII) depende, pelomenos parcialmente, da existencia de normas disciplinadoras do direito desociedade (constituicSo e organizaco de pessoa jurdica, etc.). Tambm aliberdade de exerccio profissional exige a possibilidade de estabelecimen-to de vnculo contratual e pressupe, pois, urna disciplina da materia noordenamento jurdico. O direito de propriedade, como observado, nao sequer imaginvel sem disciplina normativa13.

    10 BATTIS/GUSY, Einfhrung in das Staatsrecht, cit., pp. 236 s.

    11 SARLET, A eficacia dos direitos fundamentis, cit., p. 167.

    12 Cf. nesse sentido, SARLET, A eficacia dos direitos fundamentis, cit., p. 169.

    13 Cf., sobre o assunto, KREBS, Freiheitsschutz duren Grundrechte, cit., p. 617 (623).

    134

  • OS DIREITOS FUNDAMENTIS E SEUS MLTIPLOS SIGNIFICADOS NA ORDEM CONSTITUCIONAL

    Da mesma forma, o direito de protecao judiciria, previsto no art. 5o,XXXV, o direito de defesa (art. 5o, LV), e o direito ao juiz natural (art. 5o,XXXVII), as garantias constitucionais do habeas corpus, do mandado deseguranca, do mandado de injuncao e do habeas data sao tpicas garantiasde carter institucional, dotadas de mbito de protecao marcadamente nor-mativo14.

    Entre nos, Ingo Sarlet assinala como autnticas garantias institucionaisno catlogo da nossa Constituico a garanta da propriedade (art. 5o, XXII),o direito de heranca (art. 5o, XXX), o Tribunal do Jri (art. 5o, XXXVIII),a lngua nacional portuguesa (art. 13), os partidos polticos e sua autono-mia (art 17, caput e 1). Tambm fora do rol dos direitos e garantias fun-damentis (Ttulo II) podem ser localizadas garantias institucionais, taiscomo a garanta de um sistema de seguridade social (art. 194), da familia(art. 226), bem como da autonomia das universidades (art. 207), apenaspara mencionarmos alguns dos exemplos mais tpicos. Ressalte-se quealguns desses institutos podem at mesmo ser considerados garantiasinstitucionais fundamentis, em face da abertura material propiciada peloart. 5o, 2o da Constituicao15.

    Nesses casos, a atuacao do legislador revela-se indispensvel para aprpria concretizaco do direito. Pode-se ter aqui um autntico "dever cons-titucional de legislar" (Verfassungsauftrag), que obliga o legislador a expe-dir atos normativos "conformadores" e concretizadores de alguns direitos16.

    4. DIREITOS FUNDAMENTIS ENQUANTO GARANTAS POSITIVAS DO EXER-CCIO DAS LIBERDADES

    A garanta dos direitos fundamentis enquanto direitos de defesa con-tra intervencao indevida do Estado e contra medidas legis restritivas dosdireitos de liberdade nao se afigura suficiente para assegurar o pleno exer-ccio da liberdade. Observe-se que nao apenas a existencia de lei, mas tam-bm a sua falta podem revelar-se afrontosas aos direitos fundamentis17. o que se verifica, v.g., com os direitos a prestaco positiva de ndole nor-mativa, inclusive o chamado direito organizacao e ao processo (Recht aufOrganization und auf Verfahren) e, nao raras vezes, com o direito de igual-dade.

    Vinculados concepco de que ao Estado incumbe, alm da nao-inter-venco na esfera da liberdade pessoal dos individuos, garantida pelos di-reitos de defesa, a tarefa de colocar a disposicao os meios materiais eimplementar as condicoes fticas que possibilitem o efetivo exerccio das

    14 Cf., PIEROTH/SCHLINK, Grundrechte - Staatsrecht, II, p. 53.

    15 SARLET, A eficacia dos direitos fundamentis, cit., p. 182.

    16 BATTIS/GUSY, Einfhrung in das Staatsrecht, cit., p. 327.

    135

  • GILMAR FERREIRA MENDES

    liberdades fundamentis, os direitos fundamentis a prestacoes objetivara/em ltima anlise, a garanta nao apenas da liberdade-autonomia (liberda-de perante o Estado), mas tambm da liberdade por intermedio do Estado,partindo da premissa de que o individuo, no que concerne conquista emanutenco de sua liberdade, depende em muito de urna postura ativa dospoderes pblicos. Assim, enquanto direitos de defesa {"status libertatis" e"status negativus") dirigem-se, em principio, a urna posigo de respeito eabstencao por parte dos poderes pblicos. Os direitos a prestacoes, que, demodo geral, e ressalvados os avancos registrados ao longo do tempo, po-dem ser reconduzidos ao "status positivus" de Jellinek, implicam urna pos-tura ativa do Estado, no sentido de que este se encontra obligado a colocar disposico dos individuos prestacoes de natureza jurdica e material18.

    A concretizaco dos direitos de garantas as liberdades exige, nao rarasvezes, a edicao de atos legislativos, de modo que eventual inercia do legis-lador pode configurar afronta a um dever constitucional de legislar.

    A) Direitos fundamentis enquanto direitos a prestacoes positivas

    Como ressaltado, a visao dos direitos fundamentis enquanto direitosde defesa (Abwehrrechf) revela-se insuficiente para assegurar a pretensaode eficacia que dimana do texto constitucional. Tal como observado porKrebs, nao se cuida apenas de ter liberdade em relaco ao Estado (Freiheitvom...), mas de desfrutar essa liberdade mediante atuaco do Estado (Frei-heit durch...)19.

    A moderna dogmtica dos direitos fundamentis discute a possibilida-de de o Estado vir a ser obrigado a criar os pressupostos fticos necess-rios ao exerccio efetivo dos direitos constitucionalmente assegurados esobre a possibilidade de eventual titular do direito dispor de pretensao aprestacoes por parte do Estado20.

    Se alguns sistemas constitucionais, como aquele fundado pela Lei Fun-damental de Bonn, admitem discusso sobre a existencia de direitos fun-damentis de carter social (soziale Grundrechte)21, certo que tal contro-versia nao assume maior relevo entre nos, urna vez que o constituinte,embora em captulos destacados, houve por bem consagrar os direitos so-ciais, que tambm vinculam o Poder Pblico, por forca inclusive da efic-

    17 Cf., sobre o assunto, KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit., p. 617 (623).

    18 Cf., nesse sentido, SARLET, A eficacia dos direitos fundamentis, cit., pp. 185-186.

    19 KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit., p. 617 (624).

    20 KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit., p. 617 (624).

    21 Cf. KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit., p. 617 (624-5); ALEXY, Theorie

    der Grundrechte, cit., 395 s.

    136

  • OS DIREITOS FUNDAMENTIS E SEUS MLTIPLOS SIGNIFICADOS NA ORDEM CONSTITUCIONAL

    cia vinculante que se extrai da garanta processual-constitucional do man-dado de injunco e da acao direta de inconstitucionalidade por omisso22.

    Nao subsiste dvida, tal como enfatizado, de que a garanta da liberda-de do exerccio profissional ou da inviolabidade do domicilio nao assegu-ra pretenso ao trabalho ou moradia. Tais pretenses exigem nao s acaolegislativa, como, nao raras vezes, medidas administrativas23.

    Se o Estado est constitucionalmente obrigado a prover tais demandas,cabe indagar se, e em que medida, as acoes com o propsito de satisfazertais pretenses podem ser juridicizadas, isto , se, e em que medida, taisacoes se deixam vincular jurdicamente24.

    Outra peculiaridade dessas pretenses a prestacoes de ndole positiva a de que elas estao voltdas mais para a conformacao do futuro do quepara a preservaco do status quo. Tal como observado por Krebs, preten-s5es conformaco do futuro (Zukunftgestaltung) impoem decisoes queestao submetidas a elevados riscos: o direito ao trabalho (CF, art. 6o) exigeurna poltica estatal adequada de criaco de empregos. Da mesma forma, odireito educacao (CF, art. 205 c/c art. 6o), o direito assistncia social(CF, art. 203 c/c art. 6o) e previdencia social (CF, art. 201 c/c art. 6o)dependem da satisfaco de urna serie de pressupostos de ndole econmi-ca, poltica e jurdica.

    A submisso dessas posices a regras jurdicas opera um fenmeno detransmutaqao, convertendo situacoes tradicionalmente consideradas de na-tureza poltica em situacoes jurdicas. Tem-se, pois, a juridicizaeo do pro-cesso decisorio, acentuando-se a tensao entre direito e poltica25.

    Observe-se que, embora tais decisoes estejam vinculadas jurdicamen-te, certo que a sua efetivaco est submetida, dentre outras condicio-nantes, "reserva do financeiramente possvel" {Vorbehalt des finanziellMglichen). Nesse sentido, reconheceu a Corte Constitucional alema, nafamosa deciso sobre "numerus clausus" de vagas as Universidades (nu-merus-clausus Entscheidung), que pretenses destinadas a criar os pressu-postos fticos necessrios para o exerccio de determinado direito estaosubmetidas "reserva do possvel" (Vorbehalt des Mglichen)26.

    Os direitos a prestaedes encontraran! urna receptividade sem preceden-tes no constitucionalismo patrio, resultando, inclusive, na abertura de um

    22 O mandado de injuncao, concebido para assegurar direitos e liberdades constitucionais,

    sempre que a falta de norma regulamentadora tornar invivel o seu exerccio (CF, art. 5o,LXXI), e a acao direta de inconstitucionalidade por omissao (CF, art. 103, 2o), destinada atornar efetiva norma constitucional, expressam, no plano material, o efeito vinculante para olegislador das normas que reclamam exped9ao de ato normativo.

    23 Cf. KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit., p. 617 (624-5); ALEXY, Theorie

    der Grundrechte, 1988, cit., pp. 395 s.24

    Cf. KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit., p. 617 (625).25

    Cf. KREBS, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit., p. 617 (625).26

    BVerfGE 33, 303 (333).

    137

  • GILMAR FERREIRA MENDES

    captulo especialmente dedicado aos direitos sociais no catlogo dos direi-tos e garantas fundamentis. Alm disso, verifica-se que mesmo emoutras partes do texto constitucional encontra-se urna variada gama de di-reitos a prestacpes. Neste contexto, limitando-nos, aqui, aos direitos fun-damentis, basta urna breve referencia aos exemplos do art. 17, 3o daConstituicao Federal (direito dos partidos polticos a recursos do fundopartidario), bem como do art. 5o, incisos XXXV e LXXIV (acesso Justi-9a e assistncia jurdica integral e gratuita)27.

    B) Direito organizacao e ao procedimento

    Nos ltimos tempos vem a doutrina utilizando-se do conceito de "di-reito a organizacao e ao procedimento" (Recht auf Organization una aufVerfahren) para designar todos aqueles direitos fundamentis que depen-dem, na sua realizagao, tanto de providencias estatais com vistas criacoe conformaco de rgos, setores ou reparticoes (direito organizaco),como de outras, normalmente de ndole normativa, destinadas a ordenar afruico de determinados direitos ou garantas, como o caso das garantasprocessuais-constitucionais (direito de acesso justica; direito de protecaojudiciria; direito de defesa)28.

    Reconhece-se o significado do direito organizaco e ao procedimen-to como elemento essencial da realizaco e garanta dos direitos funda-mentis29.

    Isto se aplica de imediato aos direitos fundamentis que tm por objetoa garanta dos postulados da organizaco e do procedimento, como o casoda liberdade de associaco (CF, art. 5o, XVII), das garantas processuais-constitucionais da defesa e do contraditrio (art. 5o, LV), do direito ao juiznatural (art. 5o, XXXVII), das garantas processuais-constitucionais de ca-rter penal (inadmissibilidade da prova ilcita, o direito do acusado ao si-lencio e a nao-auto-incriminaco, etc.). Tambm poder-se-ia cogitar aqui daincluso, no grupo dos direitos de participacao na organizaco e procedi-mento, do direito dos partidos polticos a recursos do fundo partidarioe do acesso a propaganda poltica gratuita nos meios de comunicaco(art. 17 3o da CF), na medida em que se trata de prestacSes dirigidastanto manutencao da estrutura organizacional dos partidos (e at mesmode sua prpria existencia como instituicSes de importancia vital para a de-

    27 SARLET, A eficacia dos direitos fundamentis, cit., p. 186.

    28 Cf., sobre o assunto, HESSE, Grundzge des Verfassungsrechts, cit., p. 144; ALEXY,

    Theorie de Grundrechte, cit., p. 430; CANOTILHO, Direito Constitucional, Coimbra, 1993,pp. 546 s.

    29 KONRAD HESSE, Bedeutung der Grundrechte, cit., p. 127 (146-147).

    138

  • OS DIREITOS FUNDAMENTIS E SEUS MLTIPLOS SIGNIFICADOS NA ORDEM CONSTITUCIONAL

    mocracia), quanto garanta de urna igualdade de oportunidades no queconcerne participago no processo democrtico30.

    Ingo Sarlet ressalta que a problemtica dos direitos de participaco naorganizago e procedimento centra-se na possibilidade de exigir-se do Es-tado (de modo especial do legislador) a emisso de atos legislativos e ad-ministrativos destinados a criar rgos e estabelecer procedimentos, oumesmo de medidas que objetivem garantir aos individuos a participacoefetiva na organizaco e procedimento. Na verdade, trata-se de saber seexiste urna obrigaco do Estado neste sentido e se a esta corresponde umdireito subjetivo fundamental do individuo31.

    Assim, quando se impoe que determinadas medidas estatais que afetemdireitos fundamentis devam observar um determinado procedimento, sobpena de nulidade, nao se est a fazer outra coisa senao proteger o direitomediante o estabelecimento de determinadas normas de procedimento.

    o que ocorre, v.g., quando se impSe que determinados atos processu-ais somente podero ser praticados com a presenca do advogado do acusa-do. Ou, tal como faz a Constituigo brasileira, quando se estabelece que asnegociaces coletivas somente podero ser celebradas com a participacodas organizacoes sindicis (Constituigo Federal, art. 8o, VI)32.

    Canotilho anota que o direito fundamental material tem irradiaco so-bre o procedimento, devendo este ser conformado de forma a assegurar aefetividade tima do direito protegido33.

    C) Os direitos de igualdade: a hiptese de excluso de beneficio incom-patvel com o principio da igualdade

    O principio da isonomia pode ser visto tanto como exigencia de trata-mento igualitario (Gleichbehandlungsgebot), quanto como proibigo de tra-tamento discriminatorio (Ungleichbehandlungsverbot)M. A leso ao princi-pio da isonomia oferece problemas sobretudo quando se tem a chamada"excluso de beneficio incompatvel com o principio da igualdade" (yvill-krlicher Begnstigungsausschluss).

    Tem-se urna "excluso de beneficio incompatvel com o principio daigualdade" se a norma afronta ao principio da isonomia, concedendo van-tagens ou beneficios a determinados segmentos ou grupos sem contemplaroutros que se encontram em condices idnticas.

    30 SARLET, A eficacia dos direitos fundamentis, cit., p. 196

    31 SARLET, A eficacia dos direitos fundamentis, cit., pp. 196-197.

    32 Cf. ADIMC 1361, DJ de 12.4.96.

    33 J. J. GOMES CANOTILHO, Tpicos sobre um curso de mestrado sobre efeitos fundamen-

    tis. Procedimento Processo e Organizaco, Coimbra, 1990, tpico 2.2.34

    CANOTILHO, Constituicao Dirigente e Vinculacao do Legislador, Coimbra, 1982, pp. 381-382.

    139

  • GILMAR FERREIRA MENDES

    Essa exclusao pode verificar-se de forma concludente ou explcita. Ela concludente se a lei concede beneficios apenas a determinado grupo35; aexclusao de beneficios explcita36 se a lei geral que outorga determinadosbeneficios a certo grupo exclui sua aplicacao a outros segmentos37.

    O postulado da igualdade pressupe a existencia de, pelo menos, duassituacoes que se encontram numa relacao de comparaco38. Essa relativi-dade do postulado da isonomia leva, segundo Maurer, a urna inconstitu-cionalidade relativa (relative Verfassungswidrigkeit), porm, nao no senti-do de urna inconstitucionalidade menos grave. que inconstitucional naose afigura a norma "A" ou "B", mas a disciplina diferenciada das stua-ces (die Unterschiedlichkeit der Regelung)39.

    Essa peculiaridade do principio da isonomia causa embaragos, urna vezque a tcnica convencional de superaco da ofensa (cassago, declaracode nulidade) nao parece adequada na hiptese, podendo inclusive suprimiro fundamento em que assenta a pretensao de eventual lesado40.

    5. DIREITOS FUNDAMENTIS E DEVER DE PROTEgo

    A concepco que identifica os direitos fundamentis como principiosobjetivos legitima a idia de que o Estado se obriga nao apenas a observaros direitos de qualquer individuo em face das investidas do Poder Pblico(direito fundamental enquanto direito de protecao ou de defesa Abwehr-recht), mas tambm a garantir os direitos fundamentis contra agressopropiciada por terceiros (Schutzpflicht des Staats)41.

    A forma como esse dever ser satisfeito constitu tarefa dos rgaos es-tatais, que dispoem de ampia liberdade de conformaco42.

    A jurisprudencia da Corte Constitucional alema acabou por consolidarentendimento no sentido de que do significado objetivo dos direitos funda-mentis resulta o dever do Estado nao apenas de se abster de intervir nombito de protecao desses direitos, mas tambm de proteger esses direitoscontra a agresso ensejada por atos de terceiros43.

    35 Cf. BVerfGE 18, 288 (301); 22, 349 (360).

    36 Cf. BVerfGE 25, 101.

    37 Cf., a propsito, MAURER, Zur Verfassungswidrigerklarung von Gesetzen, in Festschrift

    fr Werner Weber, Berlim, 1974, p. 345 (349); JRN IPSEN, Rechtsfolgen der Verfassungswid-rigkeit von Norm und Einzelakt, Baden-Baden, 1980, p. 109; FRIEDRICH JLICHER, Die Ver-fassungsbeschwerde gegen Urteile bei gesetzgeberischem Unterlassen, Berlim, 1972, pp. 51 s.

    38 HARTMUT MAURER, Zur Verfassungswidrigerklarung, cit., p. 345 (354).

    39 MAURER, Zur Verfassungswidrigerklarung, cit., p. 345 (354).

    40 MAURER, Zur Verfassungswidrigerklarung, cit., p. 347 (354).

    41 HESSE, Grundzge des Verfassungsrechts, cit., pp. 155-156.

    42 HESSE, Grundzge des Verfassungsrechts, cit., p. 156.

    43 Cf., a propsito, BVerfGE 39, 1 s.; 46, 160 (164); 49, 89 (140 s.); 53, 50 (57 s.); 56, 54

    140

  • OS D1REITOS FUNDAMENTIS E SEUS MLTIPLOS SIGNIFICADOS NA ORDEM CONSTITUCIONAL

    Essa interpretagao do Bundesverfassungsgericht empresta, sem dvida,urna nova dimenso aos direitos fundamentis, fazendo com que o Estadoevolua da posigo de "adversario" (Gegner) para urna felo de guardiodesses direitos (Grundrechtsfreund oder Grundrechtsgaranif*.

    fcil ver que a idia de um dever genrico de protego fundado nosdireitos fundamentis relativiza sobremaneira a separacao entre a ordemconstitucional e a ordem legal, permitindo que se reconhega urna irradia-gao dos efeitos desses direitos (Austrahlungswirkung) sobre toda a ordemjurdica45.

    Assim, ainda que se nao reconhega, em todos os casos, urna pretensosubjetiva contra o Estado, tem-se, inequvocamente, a identificaco de umdever deste de tomar todas as providencias necessrias para a realizagoou concretizago dos direitos fundamentis46.

    Os direitos fundamentis nao contm apenas urna proibico de interven-gao {Eingriffsverbote), expressando tambm um postulado de protegao(Schutzgebote). Haveria, assim, para utilizar urna expressao de Canaris, naoapenas urna proibigo do excesso (bermassverbot), mas tambm urnaproibigo de omisso (Untermassverbot)41.

    Nos termos da doutrina e com base na jurisprudencia da Corte Consti-tucional alema, pode-se estabelecer a seguinte classificacao do dever deprotego48:

    (a) Dever de proibigao (Verbotspflichf), consistente no dever de se proi-bir urna determinada conduta;

    (b) Dever de seguranga (Sicherheitspflicht), que impe ao Estado o de-ver de proteger o individuo contra ataques de terceiros medianteadogo de medidas diversas;

    (c) Dever de evitar riscos (Risikopflicht), que autoriza o Estado a atuarcom o objetivo de evitar riscos para o cidadao em geral, mediantea adogao de medidas de protego ou de prevengo, especialmenteem relagao ao desenvolvimento tcnico ou tecnolgico.

    (78); 66; 39 (61); 77 170 (229 s.); 77, 381 (402 s); ver, tambm, JOHANNES DIETLEIN, DieLehre von den grundrechtlichen Schutzpflichten, Berlim, 1991, p. 18.

    44 Cf., a propsito, DIETLEIN, Die Lehre von den grundrechtlichen Schutzpflichten, cit.,

    pp. 17 s.45

    INGO VON MNCH, Grundgesetz-Kommentar, Kommentar zu Vorbemerkung Art 1-19,N 22.

    46 INGO VON MNCH, Grundgesetz-Kommentar, cit., Art 1-19, N 22.

    47 CLAUS-WILHELM CANARIS, Grundrechtswirkungen und Verhaltnismassigkeitsprinzip in

    der richterlichen Anwendung und Fortbildung des Privatsrechts, JuS, 1989, p. 161 (163).48

    INGO RlCHTER/GUNNAR FOLKE SCHUPPERT, Casebook Verfassungsrecht, 3 e d i g a o , M u -nique, 1996, pp. 35-36.

    141

  • GILMAR FERREIRA MENDES

    Discutiu-se intensamente se haveria um direito subjetivo observanciado dever de proteco ou, em outros termos, se haveria um direito fun-damental proteco. A Corte Constitucional acabou por reconhecer essedireito, enfatizando que a nao observancia de um dever de protegocorresponde a urna leso do direito fundamental previsto no art. 2, II, daLei Fundamental49.

    49 Cf. BVerfGE 77, 170 (214); ver tambm RICHTER/SCHUPPERT, Casebook Verfassungs-

    recht, cit., pp. 36-37.

    142