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DOM HÉLDER CAMARA, UM OLHAR SOBRE A CIDADE; RECIFE, CIDADELA NA LUTA PELO DESENVOLVIMENTO Murilo de Avelar Alchorne

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Page 1: Artigo de Murilo

DOM HÉLDER CAMARA, UM OLHAR SOBRE A CIDADE; RECIFE, CIDADELA NA LUTA PELO DESENVOLVIMENTO

Murilo de Avelar Alchorne

Page 2: Artigo de Murilo

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DOM HÉLDER CAMARA, UM OLHAR SOBRE A CIDADE; RECIFE, CIDADELA NA LUTA PELO DESENVOLVIMENTO

Murilo de Avelar Alchorne graduando em bacharelado em História pela UFPE

I. Introdu ção

No dia 11 de abril de 1964, Dom Hélder de Pessoa Camara chegou ao Recife

às 15:20, no Aeroporto dos Guararapes. Anfitriões esperavam-no; autoridades civis,

militares e eclesiásticas.1

Nascido em sete de fevereiro de 1909, em Fortaleza, Ceará, fez-se Bispo em

1952 passando a presidir a CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) e a

ocupar o cargo de Bispo Auxiliar de Dom Jaime Câmara, no Rio de Janeiro. Por

divergências Dom Hélder foi transferido da sua Diocese. Inicialmente ocuparia o

posto em São Luís, no Maranhão. No entanto, o Papa Paulo VI resolve o transferir

para a Arquidiocese de Olinda e Recife, por ocasião da morte do Arcebispo Dom

Carlos Coelho. Mas não só.

No dia seguinte, pronunciava no seu discurso de posse;

“(...) a providência divina me trouxe pela mão para Olinda e Recife: o Papa Paulo VI,

profundo conhecedor da situação da América Latina e do Brasil, resolveu que

deveria ser ocupado, sem perda de tempo, este posto-chave do nordeste brasileiro

(...) é uma graça divina descobrir os sinais dos tempos, estar à altura dos

acontecimentos, corresponder de cheio aos planos de Deus.”

Quando Dom Hélder fala-nos da graça que é estar à altura dos tempos,

quando ele fala que Recife é o posto chave do Nordeste, e esse, da América Latina,

é com um programa específico e temporário que ele atua, em conexão com algumas

máquinas de imaginário já em funcionamento na cidade;

“Já repararam como o Nordeste se transformou em tema nacional e centro das

atenções internacionais? Quase sempre, porém, dentro e fora do país, são

distorcidas as imagens que apresentam de nós. O Nordeste não aceita a

1 DIÁRIO DE PERNAMBUCO. 10-4-1964.

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profissionalização da miséria e não pode, e não deve aceitar ser tido como a região

mais explosiva, por excelência, da América Latina.”

Não podemos tomar a unidade física do texto do “Discurso de Posse” como

sendo homogêneo, reto, ele é uma série específica que aqui e alí mudam de rota, de

intercessores, o que é proferido não atinge a todos, nem com o mesmo

agenciamento: quando fala da não aceitação do Nordeste como a área mais

explosiva da América Latina, atua com um grupo específico que participa dos

mecanismos, aparelhos, usinas, maquinários de significação.

Principalmente os eclesiásticos e militares. Desde a década de 1950, a Igreja

Católica brasileira chamavam atenção para o Nordeste como objeto de uma prática

pastoral mais contundente que afastasse os camponeses da sedução do discurso

ateu comunista, das facções chinesas e soviéticas infiltradas na área.2 Tais perigos

começam a ser acentuados, principalmente, após a Revolução Cubana de 1959. Os

conflitos sociais surgidos na zona da mata canavieira pernambucana, que

proporcionaram a formação de grupos organizados de trabalhadores da cana, como

no caso das Ligas Camponesas, são inseridos na lógica dicotômica da oposição de

modos de produção (capitalista x socialista) da Guerra Fria, o que podemos ver em

várias reportagens, que vão de 1961 a 1964, da imprensa estadunidense acerca do

Nordeste brasileiro, jornais e revistas, como o The New York Times, Chicago

Tribune, Newsweek, veiculavam informações geralmente colocando Pernambuco –

Recife, Cabo de Santo Agostinho, Vitória de Santo Antão - como um centro de

fomento de uma revolução socialista camponesa, nos moldes cubanos.

Essa mensagem tem dois objetivos específicos, dialogar com a lógica

dicotomizada da Guerra Fria que fora interiorizada por esses dois grupos sociais

como sendo a estrutura de funcionamento social global e, depois, uma crítica às

condições de aceitação dessa visão de mundo, que se fundamentam na inserção do

Brasil, através do projeto político da elite que integra os poderes institucionais de

governo, no caso os Ministros Militares, a superação do subdesenvolvimento,

através da inserção na ordem capitalista.

2 Ver a Pastoral “Conosco, sem nós, ou contra nós, se fará a Reforma Agrária”, realizada em 1950, pelo bispo de Campanha, Minas Gerais, Dom Engelk. Para a documentação das diretrizes tomadas pela pastoral ver a coletânea de CARLI, Gileno Dé. A Igreja e a Reforma Agrária. Edição do Autor. 1984.

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A Dom Hélder Câmara, e a dezessete prelados metropolitas do Nordeste, que

realizaram uma reunião no Convento do Carmo, em Olinda, no dia 13 de abril de

1964, o comunismo também aparecia como um perigo a ser afastado:

“A angustia do momento presente se acentua, ainda, pelo fato de se tentar a

substituição dessa ordem anti-humana por soluções marxistas não menos

desumanizantes, pois atentam contra os direitos fundamentais da pessoa humana

(...)”3

Mas tal angústia só pode ser pensada em relação à própria ordem assimilada

como visão de mundo dos grupos aos quais se dirigem:

“Nossa ordem é, ainda, viciada pela pesada carga de uma tradição capitalista que

dominou o ocidente nos séculos passados. È uma ordem de coisas na qual o poder

econômico, o dinheiro, ainda detém a última instância das decisões econômicas,

políticas e sociais.”4

A disputa que se inicia entre Dom Hélder, os militares, e alguns setores

eclesiásticos, era em torno da alternativa a ser dada a via “comunista”. Enquanto os

dois últimos grupos viam o comunismo como o maior perigo a ser eliminado,

funcionando dentro da lógica do capitalismo do pós II Guerra, o Arcebispo de Olinda

e Recife pensa em como eliminar o comunismo reelaborando a sintaxe, a lógica, de

sua criação e funcionamento, ou seja, a própria percepção da ordem na qual

estavam inseridos:

“Qualquer dessas atitudes importaria em abandonar o ponto capital: a recuperação

do homem oprimido, sua inserção numa sociedade de acordo com a perspectiva

evangélica que defenda seus direitos inalienáveis e o ponha a serviço da

comunidade, ao mesmo tempo que o faça responsável pela construção de sua

própria história, chamando-o, também, a construção do reino de Deus.”5

As mensagens lançadas por Dom Hélder no seu discurso de posse, assim

como a Declaração do dia 13 de abril, instaurava já um devir histórico, ou uma série

nova em novas séries, que se diga; seguindo um movimento que colocará a

possibilidade de funcionamento, de sucesso, da Revolução militar no nordeste do

Brasil, e em Pernambuco, particularmente, em função de um novo grupo; os pobres.

Aqui não devemos entendê-los como uma massa homogênea, mas como um 3 DIÁRIO DE PERNAMBUCO, Bispos lançam declaração ao país.14-4-1964 4 Idem. 5 DIÁRIO DE PERNAMBUCO, Bispos lançam declaração ao país.14-4-1964

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conjunto de pontos que adquirem uma auto-temporalização conforme assumem o

papel principal nesta ou naquela forma histórica. Também deve-se ter em mente que

essas formas só existem por um momento, no conflito que se redobra entre a Igreja

Católica, Dom Hélder Câmara, os dirigentes militares e alguns indivíduos da

população recifense ativos em movimentos organizados durante o período de 1964-

1966, e que somente existem nessa tensão.

Se escolhemos tal cronologia e espaço é porque se mostram férteis em

registros e dinâmica. Como veremos, nesse período as relações entre Estado e

Igreja, e especialmente entre o Regime Militar e Dom Hélder Câmara, se mostram

fluidos, uns e outros são coagidos, se defendem, se atacam, confirmam seus

espaços e funções na sociedade. No entanto essa dinâmica se dá na reduplicação

de uma disputa em torno da pobreza, essa se dando a partir de novas instituições

imaginárias do pobre. Para tal deveremos por em foco duas coisas, primeiro

selecionar algumas dessas imagens, e seus cosmos, difundidos no Recife e, depois,

quais os trabalhos logicizantes, operados por Dom Hélder sobre elas, que permitem

gerar os conflitos com o Regime.

II. Um olhar sobre a cidade.

Nos anos 1960 era comum escutar-se um trocadilho com o nome da capital

pernambucana, a Veneza Brasileira propagandeada por Agamenon Magalhães,

durante o Estado Novo, cede lugar a Venérea Brasileira, Resífilis, capital do

subdesenvolvimento na América Latina. Veremos, no início da década de 1960 o

surgimento da sensação de perigo que a pobreza traz para um grupo social que era

privilegiado pelo status quo, que passa a ser sentida por parte daqueles que

disputam, com os pobres, e nos pobres, o direcionamento político do Recife e de

Pernambuco.

No Recife, podemos apontar algumas séries que produzem alterações;

mutações geográficas, mas essa como a mudança na constituição de uma

população, à medida que, ela mesma, produz mecanismos de se apreender, ou

perceber. Podemos indicar, então, um complexo específico, heterotópico.

Recife registrava, em suas estatísticas, os piores números de mortandade

infantil e desnutrição, ao mesmo tempo que havia um grande afluxo migratório do

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sertão e da zona da mata para a capital, provocado pela seca de 1958. Muitos

passam a ocupar as áreas de alagados e mangues, ilhas começavam a aparecer

para a cidade;

Rasas na altura da água

Vê-se brotar outras ilhas:

Ilhas ainda sem nome,

Ilhas ainda não de todo paridas.

Ilha Joana Bezerra,

Do Leite, do Retiro, do Maruim:

O touro da maré

A estas já não precisa cobrir.6

trabalhadores e pequenos proprietários, que, ao vender suas posses, migravam para

a capital pernambucana, em busca de melhores condições de trabalho e de vida. No

mesmo ano surge Brasília Teimosa, no Bairro do Pina; não longe dalí, a Ilha de

Deus no rio Tijipió, atrás das casas construídas pela Liga Social Contra o Mocambo7,

na Imbiribeira, e através desse mesmo complexo de águas da bacia do Pina, o

Coque, na ilha Joana Bezerra, que, em 1962, já contava com 20.000 pessoas, como

narra o visitante norte-americano Joseph A. Page, vivendo em “diminutos casebres

de madeira , com tetos de telhas ou cobertos de papelão”8

O problema da fome, já medicalizado pela Nutrição, passa a ser um problema

de bem-estar social, mas este é produzido, sobretudo baseado na sensação de

medo, apreensão, angústia. Podemos dizer que as condições de vida dessa

população, a pobreza, e, especificamente a fome, serão colocadas como um

problema social que repercute fisiologicamente, e, uma vez desta forma,

“naturalmente” torna-se um problema político, já que os “pobres esfomeados”

tornam-se suscetíveis de serem seduzidos por algum grupo político, como os, então

atuantes, comunistas.

6 MELO NETO, João Cabral de. O Rio, In: Morte e Vida Severina e outros poemas para vozes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2000. 7 A Liga foi criada na interventoria de Agamenon Magalhães, para tal ver GOMINHO, Zélia O., Veneza Americana X Mucambópolis. Recife: CEPE. 8 PAGE, Joseph A. A Revolução que Nunca Houve, o nordeste do Brasil, 1955-1964. Rio de Janeiro: Record. 1972.

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Essas alterações também eram adjuntas a alterações na percepção de alguns

recifenses, não só a geografia da cidade se constituía como lugar de batalha, mas

também os corpos, os órgãos, também o eram;

O homem magro

Vai pela rua

A roupa puída

No cabide de osso

A vida seca

O sonho seco

O homem magro por fora,

Magérrimo por dentro

Em condição de esqueleto

Vai pela rua caquética

Com seu medo osteológico9

A “magritude” de Mauro Mota é um canal, que seleciona e captura o corpo

como lugar dos embates. O medo é a composição do homem magro, é não

ontológico, mas osteológico. O corpo é relacionado a um determinado complexo de

acoplamentos de máquinas de imaginário, que o organiza. Organizar é criar um

organismo, pontos fixos, que mantêm correspondência entre si, com lugares e

funções “naturais”.

A percepção de Dom Hélder do Recife como cidadela na luta pelo

subdesenvolvimento se faz através da negação da “profissionalização da miséria”

não por uma dialética com o desenvolvimento, mas por mediações, por negações da

própria missão e do lugar que a Igreja, instituição da qual faz parte – e da qual

recebe as doutrinas -, ocupa na sociedade. Essas negações só podem ser

entendidas pelas mediações, pelos mecanismos de acoplamento, entendendo, que,

esses, não são dados, não são “juntas” pré-fabricadas que ligam canais, nem os

compostos/compósitos, da relação são, também, dados prontos. Ambos se

conformam, se modulam, nos seus próprios domínios, quebrando a sintaxe “natural”

do “organismo”. 9 MOTA, Mauro. Antologia Poética. Rio de Janeiro: José Olympio/FUNDARPE. 1982.

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III. Dup licações; lutas em “ Recife, cidadela na luta pelo desenvolvimento” .

A imagem de Pernambuco e de Recife como capital do subdesenvolvimento,

utilizada por Dom Hélder como um espaço para se quebrar a lógica da leitura

capitalista de mundo, negando-a, ao chamar atenção para a urdidura da região

como uma distorção, é potencializada como uma reduplicação da distorção,

colocando o prelado como um deturpador da situação; não há subdesenvolvimento.

No entanto, se esse não existe, é, agora, para aqueles que antes diziam

haver, e aos quais Dom Hélder dizia não haver, sendo o subdesenvolvimento, fruto

da propaganda de grupos em uma conjuntura social e política. Esta reviravolta se

faz no momento em que o Bispo inicia uma série de programas, através de

organizações comunitárias, ou em apresentações em rádios e televisão. Em 29 de

novembro de 1964 Hélder prepara uma apresentação para uma rede de televisão

local no intuito de esclarecer o que era o Concílio Vaticano II, que no início do ano

seguinte realizaria sua segunda sessão. A certa altura defendia a maior proximidade

entre o Papa, os Bispos, e o povo. A lógica para tal era urdida através de elementos

da vida cotidiana, mais especificamente os que fundavam a ordem econômica e a

própria situação daqueles ao qual o Concílio tentava criar mecanismos de

aproximação, os pobres;

“é bom que o Bispo entre nas filas e escute o povo (...) na dura hora em que a carne

está a 1400 cruzeiros, e o feijão marchando para os 500 cruzeiros”

A forma da alocução foi tida como subversiva, anti-revolucionária, pelos

militares da Sétima Região, do IV Exército. Aqui vemos o confronto pelo

delineamento de sentidos plurais que a cada momento se tornam outros, mas que

aqui se estrutura em dois, um, didático, no momento em que Dom Hélder pretende

debater em público o Concílio, mas também crítico, tanto em relação a conjuntura

sócio econômica como as práticas de um grupo de bispos e do Papa frente aos fiéis

denotando um afastamento entre os dois. A proposta de Hélder é a composição do

sentido e sua potencialização através da didática. Através da percepção dos

dirigentes locais do Exército e do governo, a logicização do discurso de Dom Hélder,

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recaindo na crítica econômica da alta dos preços significava a acusação de que o

Regime não cumprira com as suas promessas, e que, assim, é anti-revolucionária.

Esses pontos que se formam adquirem uma temporalidade conforme, ou

proporcional, sua potencialidade de criação de um “cosmos”, ou seja, a capacidade

de engendrar conexões entre formas de percepção, revezando sempre dois

movimentos, um; a intecionalidade em que se atua no mundo, e a distância entre

este e a interiorização segundo o aparelho perceptivo que é forjado pela sucessão

desse complexo; a afecção ou experiência. Essas duas só são possíveis conforme

uma outra proporção, formado pelo tempo entre a percepção e a afecção. Só a

pluralidade na qual o indivíduo é inserido, a sociedade, só nessa relação particular é

que podemos entender como surgem novos territórios.

Em 6 de junho de 1965 Dom Hélder recebeu o representante do Vaticano

Dom Antônio Saromé, no seu discurso, afirma que era uma iniqüidade pregar Deus

e a religião a um povo faminto.

A imprensa captura a assertiva de Dom Hélder como a afirmação de um

propósito que foge de suas responsabilidades como religioso, e que a nega, não só

explicitamente, segundo esta visão, mas mais silenciosamente quando serve de

signo aos poucos revelado de tal propósito escuso, o de se utilizar politicamente da

Igreja para atingir objetivos políticos, mas não qualquer um, não o revolucionário,

mas os daqueles países em que se usa a ditadura. Aqui, podemos lembrar da lógica

do subdesenvolvimento utilizada por Dom Hélder um ano atrás, e como a lógica,

agora, torna-se outra quando capturada e relogicizada pela imprensa:

“também não se justifica que Dom Hélder preconize a inclusão do Brasil no Terceiro

Mundo e a adoção de métodos postos em prática nos países que compõem, todos

eles totalitários”10

A mesma lógica utilizada por Hélder , no seu discurso de posse, é agora

posta de encontro com o próprio, desvalidando o seu discurso:

“Dom Hélder Câmara apresentou ao enviado do Vaticano um quadro muito

incompleto e muito imparcial das dificuldades com que luta o Nordeste, sem

mencionar, sequer, os porquês dessa situação (...) já que não tem o direito, por mais

10 JORNAL DO COMMERCIO, Mais político que sacerdote Hélder parece – 7/5/1965.

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que sejam suas convicções totalitárias, de ignorar a realidade sobre o chamado

terceiro mundo ”11

O prelado terá agora que se confrontar. Torna-se reterritorializado, agora, o

espaço, o Nordeste, o terceiro mundo, o subdesenvolvimento. A pobreza, passa a

ser uma realidade a ser descoberta e realmente solapada pelos verdadeiros

revolucionários, pelos benfeitores representantes da boa política.

A pobreza como disputa de sentidos na sociedade recifense, e de diferentes

níveis de poder e devir, entre Dom Hélder e os representantes locais do poder

militar, ganha mais uma configuração com as enchentes em junho, provocadas pelo

transbordamento do rio Capibaribe. Foi anunciada por todas as rádios e televisões,

no dia 9 de setembro de 1965, “a guerra contra a miséria, através de uma campanha

denominada Operação Esperança”. Aqui o discurso econômico crítico que fora

percebido como subversivo pelo comando militar local, por ocasião da palestra

televisionada onde Dom Hélder explicava o Concílio Vaticano II, onde se ressaltou

uma lógica de denúncia de preços altos, nesse momento será um campo onde se

propõe a atuação harmônica entre Dom Hélder e os militares através da cooperação

das várias esferas em um esforço comum;

“um plano de erradicação da miséria e promoção humana nos alagados recifenses,

onde vive, em mocambos, grande parte da população (...) partindo de uma análise

dos problemas econômicos e sociais, (...) o movimento integra o trabalho de todos os

setores – governo federal, estadual, municipal, clero, (...)”12

Harmonizou-se, temporariamente, também, a construção do nordeste em um

sentido comum de pobreza, como sendo uma região caracterizada por tal:

“(...) Recife, que é a metrópole da pobreza no Nordeste, ao mesmo tempo, que é o

centro das riquezas da região.”13

Em 24 de março de 1966, na Folha de São Paulo, é publicado um artigo de

autoria do arcebispo de Olinda e Recife, onde delineia alguns dos pontos citados,

tendo como sentido que “a fome dos povos famintos não é só de alimentos”,

afirmando que ninguém ignora os dados sobre a fome, que, a partir de 1959, se

acentua um desequilíbrio entre a produção de alimentos e o crescimento

11 Ibidem. 12 JORNAL DO COMMERCIO, Dom Hélder vai iniciar guerra contra miséria com Operação Esperança, 8/9/1965. 13 Ibidem.

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demográfico, o que contribui para a formação de um “cinturão da fome”, composto

por África, Oriente Médio, Sudeste asiático, e América Latina.

Há uma profunda relação entre fome e desenvolvimento. Embora a relação

entre a superprodução de alguns em detrimento da escassez de outros deva ser

pensada, no intuito de uma melhor distribuição dos alimentos produzidos no planeta

- não se deve identificar nutrição com desenvolvimento, mas sim, “vencer a fome

pelo desenvolvimento”.

Aqui a mútua apropriação dos discursos que urdem a região nordeste,

Pernambuco e Recife, particularmente, como regiões explosivas, por sua pobreza, é

retomado por Dom Hélder no intuito de pensar a crítica feita pela imprensa, em maio

de 1965, onde não se aceita o Brasil entre os países do chamado terceiro mundo.

Agora o Arcebispo capturará a relação pela qual o próprio Regime Militar se utilizou

para justificar a Revolução; promover as áreas de pobreza para se evitar a explosão

de revoltas comunistas, e a própria forma de se inserir na lógica capitalista do pós II

Guerra. Essa inserção só poderia ser feita compulsoriamente, à medida que se torna

alvo de investimentos de capital internacional, através de serviços, tecnologias e

recursos humanos na forma de tecnocratas que racionalizem tais investimentos.

A ajuda internacional não se constitui, como Hélder sente o mundo, em uma

solução para a fome e a pobreza, porque, essas, são questões de justiça, de paz.

Assim como estabelece, através da Mater et Magistra de João XXIII,

“tentação de aproveitar essa operação técnico-financeira, a fim de obter vantagem

política com espírito de domínio”.

Quando do Concílio Vaticano II, Hélder apresenta a Constituição sobre a

presença da Igreja no Mundo como registro da consolidação de uma nova postura

diante dos pobres, “é preciso chegar até a revisão, em profundidade, da política

internacional do comércio”. Onde se criam dois problemas eto-econômicos: um de

âmbito nacional, “rever o ângulo das relações entre países desenvolvidos e

subdesenvolvidos”14, o impasse entre os dois mundos se dá pela incapacidade do

primeiro mundo se por no ângulo dos países subdesenvolvidos, o que impele, então,

a necessidade da descoberta de um modelo próprio para superar tal posição, onde o

14 JORNAL DO COMMERCIO, 15/12/1966.

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pobre também é uma construção interna do Brasil, que o interioriza e o percebe

seguindo os elementos dispostos pela lógica da ajuda internacional;

“Infelizmente, egoísmo não é monopólio de país desenvolvido (...) permanece, dentro

dos países subdesenvolvidos, o colonialismo interno, que permite enriquecimento

fácil à custa de massas mantidas em situação infra-humana.”15

O olhar estrangeiro era percebido com extrema cautela e questionamento

ético, e põe em questão a postura de Barbara Ward, dela diz; “é curioso como, em

pleno mundo desenvolvido há, de vez em quando, quem nos entenda”, mas,

estabelece, como se dá o agenciamento do entendimento de Barbara, através da

reflexão da distância entre as experiências como elementos constitutivos da

memória e percepção, de acordo com as situações distintas de progresso material e

tecnológico. Questiona, então:

“que vivência têm, de subdesenvolvimento, autores nascidos e criados em plena

abundância. Ao ouvirem falar em massas em nível infra-humano como esperar que

raciocinem não em termos de inferioridade de racial, incapacidade física, da

preguiça, o que os leva, na melhor das hipóteses, a programas de ajuda?”16

No entanto, tal questionamento se faz frente a impossibilidade de se fixar a

exterioridade e a interioridade quanto ao posicionamento ético, que não se confunde

com nacionalidade mas ressalta o intercâmbio e a ao mesmo tempo a autonomia e a

dependência de cada percepção, cada consciência da pobreza, em um meio

altamente fluido, onde nenhuma das concepções pode reduzir a outra ao seu

domínio embora a cada momento elas possam ser capturadas e postas em

evidência fazendo com que as outras aparentem estar relegadas.

IV. Conclusão.

Ao perceber de forma diferente o pobre, Dom Hélder também o fabrica, torna-

o um espaço de disputa, para ele deve-se reordenar, também, suas significações no

imaginário social, o que passa por uma revisão da reprodução dos ângulos de

relações entre os dois mundos, desenvolvido e subdesenvolvido, e no interior do

segundo.

15 JORNAL DO COMMERCIO, 24/3/1966. 16 JORNAL DO COMMERCIO, 15/12/1966.

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13

Prestemos atenção a esses dois pontos, eles atuam sobre uma outra

intensidade e velocidade, se redobra, contorce, penetra outra máquina, que ainda

sendo sua é de outro. Esse registro em relação com outros, nos permite pensar

como Dom Hélder se posicionava diante de suas próprias atitudes, e assim diante

das dos outros – já que esse só existe com tais - uma conexão entre o seu modo de

memorar e sua percepção, a constante alteração de sua visão de mundo de acordo

com o compartilhamento de experiências no trajeto de sua vida cotidiana.