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Cultura Escolar Migrações e Cidadania Actas do VII Congresso LUSOBRASILEIRO de História da Educação 20 23 Junho 2008, Porto: Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (Universidade do Porto) ISBN xxxxxxxxxxxxx A literatura de cordel e o ensino da história Maria Ângela de Faria Grillo 1 UFRPE EIXO 2 – Currículo, práticas educativas e quotidiano escolar O objetivo deste trabalho é relatar uma experiência desenvolvida no Curso de Especialização de Ensino em História da Universidade Federal Rural de Pernambuco, através de uma Oficina. A expectativa dos alunos era de como é possível ensinar a História do Nordeste de uma forma crítica e ao mesmo tempo agradável, descolada dos livros didáticos que pouco abordam os problemas enfrentados pelas populações nordestinas, tais como a seca, a pobreza, a questão da terra, as disparidades sociais etc. Tentando preencher esta lacuna introduzi, como recurso didático, a literatura de cordel enquanto registro cultural, que trata dessas questões, já que é preciso se analisar os fatos históricos não somente a partir das versões oficiais, da fala dos políticos e jornais tendenciosos, mas também através das representações dadas pelos poetas de cordel que, através dos folhetos, mostram outras visões de momentos históricos vivenciados e testemunhados por eles. Esse rico material de estudo históricosocial pode ser significativo para se avaliar as versões que circulam em diferentes meios sociais, permitindo que se resgate uma série de atitudes críticas entre os chamados setores populares. Nesse sentido, estudar através da produção da cultura popular é estar aberto a todas as possibilidades, desvencilharse dos conceitos e preconceitos, privilegiando códigos e significados simbólicos partilhados entre sujeitos sociais de um mesmo espaço geográfico e de um mesmo tempo histórico. Esse rico material de estudo históricosocial pode ser significativo para avaliarmos versões que circulavam em diferentes meios sociais, permitindo que se resgate uma série de atitudes críticas entre os chamados setores populares. Mas, é preciso ter cautela em relação a uma concepção que dota a cultura popular de sinais absolutamente positivos e contestadores, frente à cultura dominante, em relação à qual haveria total autonomia (AZEVEDO, 1990). Inicialmente impressos em papel pardo, medindo cerca de 12 X 18 cm, com 8, 16 ou 32 páginas, contendo ilustrações em xilogravuras condizentes com o conteúdo, os folhetos servem de suporte material para a chamada Literatura Popular em Verso, encontrada no Nordeste Brasileiro, também conhecida por Literatura de Cordel 2 . Este tipo de literatura ocupa um espaço 1 Doutora em História pela UFF/EHESS. Professora Adjunta de História da UFRPE 2 Segundo Curran, este termo passa a ser utilizado pelo folclorista Theo Brandão, na década de 1960. Cf. In: CURRAN, Mark. História do Brasil em cordel. São Paulo: EDUSP, 1998, p. 24. De acordo com Márcia Abreu: “A expressão ‘literatura de cordel nordestina’ passa a ser empregada pelos estudiosos a partir da década de 1970, importando o termo português que, lá sim, era empregado popularmente. Na mesma época, influenciados pelo contato com os críticos, os poetas populares começam a utilizar tal denominação”. Cf.. ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Campinas: Mercado das Letras, 1999, pp. 1718.

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Page 1: Artigo Angela 2

Cultura Escolar Migrações e Cidadania ­ Actas do VII Congresso LUSO­BRASILEIRO de História da Educação 20 ­ 23 Junho 2008, Porto: Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (Universidade do Porto) ISBN xxx­xxx­xxxxx­x­x

A literatura de cordel e o ensino da história

Maria Ângela de Faria Grillo 1 UFRPE

EIXO 2 – Currículo, práticas educativas e quotidiano escolar

O objetivo deste trabalho é relatar uma experiência desenvolvida no Curso de Especialização de Ensino em História da Universidade Federal Rural de Pernambuco, através de uma Oficina. A expectativa dos alunos era de como é possível ensinar a História do Nordeste de uma forma crítica e ao mesmo tempo agradável, descolada dos livros didáticos que pouco abordam os problemas enfrentados pelas populações nordestinas, tais como a seca, a pobreza, a questão da terra, as disparidades sociais etc. Tentando preencher esta lacuna introduzi, como recurso didático, a literatura de cordel enquanto registro cultural, que trata dessas questões, já que é preciso se analisar os fatos históricos não somente a partir das versões oficiais, da fala dos políticos e jornais tendenciosos, mas também através das representações dadas pelos poetas de cordel que, através dos folhetos, mostram outras visões de momentos históricos vivenciados e testemunhados por eles. Esse rico material de estudo histórico­social pode ser significativo para se avaliar as versões que circulam em diferentes meios sociais, permitindo que se resgate uma série de atitudes críticas entre os chamados setores populares. Nesse sentido, estudar através da produção da cultura popular é estar aberto a todas as possibilidades, desvencilhar­se dos conceitos e preconceitos, privilegiando códigos e significados simbólicos partilhados entre sujeitos sociais de um mesmo espaço geográfico e de um mesmo tempo histórico.

Esse rico material de estudo histórico­social pode ser significativo para avaliarmos versões que circulavam em diferentes meios sociais, permitindo que se resgate uma série de atitudes críticas entre os chamados setores populares. Mas, é preciso ter cautela em relação a uma concepção que dota a cultura popular de sinais absolutamente positivos e contestadores, frente à cultura dominante, em relação à qual haveria total autonomia (AZEVEDO, 1990).

Inicialmente impressos em papel pardo, medindo cerca de 12 X 18 cm, com 8, 16 ou 32 páginas, contendo ilustrações em xilogravuras condizentes com o conteúdo, os folhetos servem de suporte material para a chamada Literatura Popular em Verso, encontrada no Nordeste Brasileiro, também conhecida por Literatura de Cordel 2 . Este tipo de literatura ocupa um espaço

1 Doutora em História pela UFF/EHESS. Professora Adjunta de História da UFRPE

2 Segundo Curran, este termo passa a ser utilizado pelo folclorista Theo Brandão, na década de 1960. Cf. In: CURRAN, Mark. História do Brasil em cordel. São Paulo: EDUSP, 1998, p. 24. De acordo com Márcia Abreu: “A expressão ‘literatura de cordel nordestina’ passa a ser empregada pelos estudiosos a partir da década de 1970, importando o termo português que, lá sim, era empregado popularmente. Na mesma época, influenciados pelo contato com os críticos, os poetas populares começam a utilizar tal denominação”. Cf.. ABREU, Márcia. Histórias de cordéis e folhetos. Campinas: Mercado das Letras, 1999, pp. 17­18.

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de criação que deve ser percebido em vários níveis: o simbólico, o artístico, o lingüístico, o social, o político, o econômico e especialmente o histórico. Desde que surgiu no Nordeste do Brasil, independente do sistema literário institucionalizado, em meados do século XIX 3 , vem testemunhando fatos da História do Brasil revelando a preocupação dos poetas e ouvintes com o mundo ao seu redor.

O Nordeste do Brasil é considerado um local privilegiado em se tratando de narradores: cantadores, poetas de cordel, contadores de histórias, são todos considerados grandes narradores que estabeleceram fortes vínculos com a experiência de narrar, constituindo um rico fabulário de contos, poemas, histórias de vida comum de todos, em todos os dias, histórias de heróis e histórias de trabalho (GUILLEN, 1999: 148). O grande narrador da vida local nordestina é o poeta de cordel que, desde o início do século, percorria o sertão de feira em feira, de mercado em mercado, vendendo seus folhetos.

É preciso considerar o perfil social do autor de folhetos, que revela, quase sempre, um homem de pouca instrução, mas com grande talento para contar histórias, dirigidas, em princípio, à comunidade da qual ele se origina. A sua identidade se confunde com a do grupo, ressalvada sua condição de portador de uma herança cultural e literária, cujas raízes se perdem no tempo e na memória coletiva. A relação com a realidade, pilar de sua produção poética resulta, sem dúvida, das condições de vida quase sempre inóspitas e sem acesso às fontes seguras de transmissão sistemática do conhecimento acessível apenas aos cidadãos das classes mais favorecidas (SANTOS, 1987: 17).

Interessante notar que numa época e numa região em que a maioria da população era constituída de analfabetos, estes folhetos impressos encontravam um grande público de auditores, pois as poesias eram apresentadas por cantadores em saraus, reuniões e feiras, e por serem escritas em versos 4 , havia certa facilidade de serem memorizadas pelos ouvintes.

Antônio Arantes descreve a leitura realizada, em casa, pelo comprador do folheto:

“Na leitura dos folhetos em casa, as pessoas em geral reproduzem o modo de leitura do folheteiro (...). Nas reuniões de vizinhos ou amigos, em horas de folga, quem sabe mais canta ou declama os folhetos, segurando o livrinho e repassando o texto, embora muitas vezes já o conheçam de cor, totalmente ou em parte, exatamente como acontece com o folheteiro na feira. Os ouvintes (homens, mulheres e crianças) respondem ao leitor de acordo com o que acontece no enredo, rindo e manifestando aprovação a valores expressos nos poemas, através de frases estereotipadas como: ‘Êta cabra valente da gota! ‘É valente demais, homem’, etc.” (ARANTES, 1998: 36).

O Cordel que através de sua narrativa conta os acontecimentos de um dado período e de um dado lugar se transforma em memória, documento e registro da história brasileira. Tais

3 Existe uma polêmica em torno do aparecimento do primeiro folheto no Brasil: segundo Orígenes Lessa foi em 1835 (Cf. Em LESSA, Orígenes. A voz dos poetas. Rio de Janeiro: FCBR, 1984); para Ariano Suassuna, seria em 1836 (Cf. Em SUASSUNA, Ariano. O romance da Pedra do Reino e o Príncipe do sangue vai e volta. Romance armorial­ popular brasileiro. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1971); e de acordo com Ruth Terra o surgimento do primeiro folheto é datado de 1893 (Cf. Em TERRA, Ruth Brito Lemos. Memória de Lutas: Literatura de Folhetos do Nordeste (1893­1930). São Paulo: Global, 1983).

4 O tipo de estrofe mais simples e mais antigo dos cantadores é a quadra, que se compõe de quatro versos de sete sílabas (redondilha maior) e segue o esquema rímico a­b­c­b. . Por volta de 1870 surge a sextilha, uma estrofe de seis versos, com esquema rimico a­b­c­b­d­b. Cf. In DAUS, Ronald. O ciclo épico na poesia popular do Nordeste. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa.1982.

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acontecimentos recordados e reportados pelo cordelista, que além de autor se coloca como conselheiro do povo e historiador popular dá origem a uma crônica de sua época.

O cordel, que através da narrativa registra os acontecimentos de um dado período e de um dado lugar, se transforma em memória, documento e registro da história. Tais acontecimentos recordados e reportados pelo cordelista, que além de autor é conselheiro do povo e historiador popular, dão origem a uma crônica de sua época.

Trata­se, então, de crônica popular porque expressa a cosmovisão das massas de origem nordestina e as raízes do Nordeste na linguagem do povo. É história popular porque relata os eventos que fizeram a história a partir de uma perspectiva popular. Seus poetas são do povo e o representam nos seus versos. Nesse sentido, o cordel pode ser considerado o documento popular mais completo do Nordeste brasileiro(CURRAN: 1998: 19­20). Ora, constitui­se, pois, em um rico material de estudo histórico­social e literário.

Há quem afirme, erroneamente, que a cultura popular, e conseqüentemente a literatura de cordel, reproduz os valores tradicionais e conservadores, e que tende a assimilar o discurso das instituições oficiais, que a tacha de incapaz de gerar ou criar seus próprios significados simbólicos. Como critica Marilena Chauí:

Fala­se de cultura popular enquanto cultura dominada, invadida, aniquilada pela cultura de massa e pela indústria cultural, envolvida pelos valores dominantes, pauperizada intelectualmente pelas restrições impostas pela elite, manipulada pela folclorização nacionalista, demagógica e explorada, em suma, impotente face à dominação e arrastada pela potência destrutiva da alienação. (CHAUÍ: 1982 )

Mas não se pode deixar de lembrar que, na poesia de cordel, há uma grande quantidade de personagens estradeiros, astutos, trapaceiros, anti­heróis, que sobrevivem por expedientes e artimanhas que lhes valem como alternativa para escapar do sistema opressor.

Existem, ainda, personagens típicos do universo sertanejo que reviram o mundo com humor. Ressaltam­se inúmeros folhetos em que a crítica social e política, reveladora das ocasiões históricas difíceis, traduzem­se pelo humor e pela ironia das situações (SANTOS: 1987,12). Esses anti­heróis, sublimadores das classes pobres e representantes da necessidade de desforra no plano da sátira, protagonistas de proezas e diabruras, circundados pela simpatia popular que os desculpa e lhes perdoa a falta de escrúpulos e a ausência de qualquer remorso, podem ser exemplificados nas figuras de Pedro Malasartes, João Grilo e Cancão de Fogo (PELOSO: 1996 147­158).

Não estou, com isso, tentando resolver a oposição criada entre cultura popular e cultura erudita, pois acreditamos que elas se diferenciam no que tange ao conteúdo e à forma de representação de uma realidade social, mas acreditamos que elas não estão desvinculadas uma da outra, pois se alimentam reciprocamente na “circularidade” existentes entre ambas. Cabe, então, ao historiador compreender as múltiplas criações e recriações que as classes populares fazem daquilo que lhe é evidenciado.

Cabe ao historiador compreender as múltiplas criações e recriações que as classes populares fazem daquilo que lhe é evidenciado, pois estudar o que é produzido por elas, é estar aberto a todas as possibilidades, desvencilhar­se dos conceitos e preconceitos, privilegiando códigos e significados simbólicos partilhados entre sujeitos sociais de um mesmo espaço geográfico e de um mesmo tempo histórico. Embora possamos ter um modo de vida racionalizado e refinado, não podemos esquecer que muitas práticas culturais populares pontilham nosso cotidiano. Uma atitude de descaso para com as coisas populares, muitas vezes,

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está associada a raciocinar o fazer das classes populares a um fazer desprovido de saber (ARANTES:1998, 14; MACHADO: 1995/1996, 109).

“... Foi uma forma de banditismo social...”, “... está vivo na memória sertaneja pela crueldade...” ou “... aterrorizou o sertão nordestino...” Banditismo, crueldade e terror são clichês que ouvimos quando falamos, por exemplo, sobre o cangaço. Essas visões estereotipadas encontradas em vários textos escritos não passam de frases prontas e generalizações sobre o cangaço. Devemos analisar esse movimento não somente a partir da fala das camadas dominantes, dos coronéis grandes proprietários rurais, mas também pela visão das camadas populares, dos poetas sertanejos que vivenciaram e testemunharam essas ações, e através da literatura de cordel, que se apresenta como um rico material de estudo histórico­social e que, apesar de não estar livre das coerções inevitáveis do saber institucionalizado, narra os acontecimentos sob o ponto de vista popular. Esse material é significativo para avaliar a consciência crítica dos populares.

É comum ouvir­se que a História do Brasil precisa ser recontada. Se a historiografia se dispõe a tal empreendimento, não pode desprezar o cotejo da versão oficial com a popular, porquanto esse confronto ajudará a reescrever a História do povo brasileiro (SANTOS: 1987, 23).

Fazer Oficina: Iniciamos nossos trabalhos com a leitura e discussão de textos que esclarecem o

significado do fazer oficina. Visto, então, que se trata de um processo plurídimensional, coletivo, criativo, planejado e coordenado, e que coloca o desafio de um modo de trabalhar que se opõe ao tradicional (CORCIONE, 1994; CARNEIRO, 2000), passamos a desenvolver uma dinâmica de grupo. Os alunos uniram­se em pequenos grupos, cada um deles recebeu um cordel com um tema relacionado à História do Nordeste. A partir daí, os grupos se reuniram, separadamente, para analisar e discutir a importância e aplicação do folheto em sala de aula. Para tanto, propomos então alguns caminhos e/ou sugestões para o estudo da História através da Literatura de Cordel:

1) Relação com um tema da História. Como é tratado esse tema: quais os pontos que se aproximam e quais pontos que se distanciam da versão do livro didático?

2) Apresentação do autor: como um narrador, uma testemunha ou uma personagem da história?

É possível identificar a origem regional e social do autor?

3) Apresentação da narrativa: como forma de uma reportagem, um ensinamento, um aconselhamento, um protesto ou uma contestação?

4) Personagens principais e secundários: trata­se de heróis positivos, heróis negativos, heróis ambivalentes, ou são feitas caricaturas desses heróis? Como se dão às relações entre essas personagens?

5) Que valores são passados, pelo autor, através do texto: uma visão maniqueísta, uma preocupação com a moral, uma justificativa, uma aplicação da justiça?

6) Quais são os recursos usados pelo autor: uma peleja, um diálogo com o céu ou com o inferno, ou apenas uma narrativa de acontecimentos?

7) Como é escrito o poema: ele traz regionalismos, gírias, ditos populares, crenças e superstições?

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Nesse sentido, desenvolveu­se a primeira atividade de Oficina. Em seguida, foi apresentado o filme O auto da compadecida, de Guel Arraes, que traz personagens e situações típicas do cordel. Visto e discutido o filme, os grupos passaram a realizar uma simulação de como seria a utilização dos folhetos na sala de aula, enquanto auxiliar do livro didático. Cabe ressaltar que um grupo não conhecia o folheto do outro. Após a apresentação dos grupos seguiu­se o momento de avaliação deste exercício. Neste momento, percebeu­se a utilização de todos aqueles procedimentos básicos discutidos anteriormente, e todos concordaram que esta atividade aproxima os alunos de sua realidade, diferentemente do livro didático.

Interessante notar como os alunos que, inicialmente estavam encabulados em apresentar, foram relaxando durante o processo, que se tornava cada vez mais prazeroso. Devemos ressaltar que as apresentações foram repletas de criatividade.

A título de exemplo, passo a apresentar uma pequena análise de alguns trechos de poesias de cordel que marcam que imagens são construídas sobre o movimento do Cangaço 5 .

Inúmeras são as representações feitas sobre o Cangaço por vários poetas de cordel e, dentre eles, podemos destacar: Leandro Gomes de Barros (1865­1918), Francisco das Chagas Baptista (1882­1930) e João Martins de Athayde (1880­1959), todos estes nordestinos.

Na poesia de Chagas Baptista, por exemplo, escritas na primeira pessoa, o cangaceiro Antonio Silvino é cantado como um justiceiro:

“Uns quatrocentos mil réis

Com os pobres distribuí

Não serve isto para minh’alma

Porque esta eu já perdi,

Mas serve pros miseráveis

Que estavam nus e eu vesti.”

(A História de Antônio Silvino)

“Tomei dinheiro dos ricos

e aos pobres entreguei

protegi sempre a família

moças pobres amparei;

o bem que fiz apagou

os crimes que pratiquei.”

(O interrogatório de Antônio Silvino)

5 Os poemas aqui transcritos, em sua forma original, fazem parte do acervo de Literatura de Cordel, da Fundação Casa de Rui Barbosa, situada no Rio de Janeiro.

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Nos trechos acima citados, podemos verificar que este cangaceiro podia se considerar um protetor dos pobres e das moças desamparadas, e que apesar de se reconhecer como quem já perdeu a sua alma, pode ser perdoado, pois o fruto de seus roubos praticados contra os grandes fazendeiros era distribuído entre os mais necessitados, além disto, ainda amparava as moças desprotegidas. Declarando­se inimigo dos cangaceiros, que assassinavam viajantes e fazendeiros apenas para roubar, Silvino, ainda nas palavras de Chagas Batista, se orgulha de ser um defensor da honra e de respeitar as famílias e por isso se coloca como se tivesse uma proteção divina, como podemos conferir nos seguintes versos:

“Se eu fosse como dizem

Deshonrador e ladrão

Se ofendesse a todo mundo,

Não teria proteção;

E talvez tivesse morto

Ou condenado a prisão.”

(A vida de Antonio Silvino)

A valorização do respeito à honra e ao pudor das mulheres, sejam elas donzelas ou casadas, apresentada em algumas poesias, é tão marcante que o ato de desrespeitá­las poderia ser visto como até mais grave do que o ato de se cometer um homicídio.

Confesso que sou homicida

Mas não sou desonrador;

De mulher casada ou donzella,

Nunca offendi ao pudor,

E até me glorio de ser

Da honra um defensor...

Só perdôo as mulheres,

Porque estas são parte fraca;

Mas meu perdão para os homens

É bala e ponta de faca!...

Nas luctas sou como o lobo

Quando a sua presa ataca!

(A vida de Antonio Silvino)

O autor, Francisco das Chagas Batista, nesse folheto de 1907, coloca na fala desse cangaceiro a idéia de sexo frágil como se as mulheres precisassem de um homem que as defendesse e, por causa de sua fragilidade, elas são perdoadas e liberadas da morte.

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Mas, na literatura de cordel é comum perceber folhetos que culpam a mulher por sua beleza física, sempre relacionada ao poder da sedução. Além disso, encontramos várias críticas ao uso de recursos e/ou artifícios para seu embelezamento, como a utilização de maquilagem, perfume, corte de cabelo, vestimentas etc. No folheto de autoria de Caetano Cosme da Silva, podemos conferir que a mulher ganha o estigma de desonrada apenas por sua forma de vestir:

“O velho disse meu filho

você sahia pela rua

aonde ver uma moça

mal vestida, quase nua

não queira porque ella

está no mundo da lua.

A moça que tem vergonha

não mostra as carnes dela

e não faz vestido curto

mesmo no meio da canela

nem usa manga quimone

que isto deshonra ella”.

(O rapaz que apanhou das moças por não saber namorar)

Há um grande número de folhetos que trata das transformações do mundo moderno e das novas gerações. Não faltam comparações com os tempos antigos, o que nos leva a pensar quão conservadores são tais autores. Demonstram uma enorme dificuldade em lidar com novos valores e situações em que as mulheres e eles mesmos se vêem envolvidos.

Leandro Gomes de Barros, em seu folheto, mostra­se incomodado com as mudanças de atitudes e as transformações ocorridas no vestuário feminino. O aspecto físico entre homens e mulheres chegava a ser confundido: a nova moda de cabelo curto e a utilização de calças compridas, indistintamente, por senhoras e senhoritas, escandalizavam os homens, causando indignação e até certa confusão.

“Hoje se vê uma moça,

ninguem sabe si é rapaz

anda com calça e chapéo,

pouca diferença faz,

vê­se até calças de velhos

com breguilhas para traz”.

(As cousas mudadas)

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VII Congresso LUSO­BRASILEIRO de História da Educação

Aqui fica evidenciada a existência de preconceitos relativos a qualquer forma de transformação da mulher. Poucas mulheres se contrapunham abertamente a seus pais ou maridos, pois mesmo com as mudanças sociais, ocorridas no início do século XX, os padrões e a austeridade patriarcal permaneciam (ou deveriam permanecer) inabaláveis.

Principalmente no Nordeste vamos encontrar, nesse período, a típica sociedade patriarcal. Nela a mulher inexiste como individualidade e como pessoa jurídica, passando do domínio de um senhor para o de outro, ou seja, do pai (ou, na ausência desse, do irmão), para o marido. Como ato simbólico do casamento religioso, essa imagem ainda sobrevive aos nossos dias, quando a noiva é entregue, no altar, pelo pai (ou por qualquer outro homem que represente sua família) ao noivo, seu futuro marido, como uma representação da submissão que lhe é devida. Simone de Beauvoir parece bastante pertinente, ao fazer uma relação entre a subordinação da mulher e o surgimento de um conceito rígido de propriedade privada: “A propriedade privada aparece: senhor dos escravos e da terra, o homem se torna também proprietário da mulher”. (BEAUVOIR, 2002: 74).

Neste sentido, quando o elemento de posse individual se torna importante numa sociedade, ele se estende não só a terras, imóveis e animais, mas também a seres humanos, como escravos e mulheres. Assim, a mulher passa a ser coisificada, tratada como um objeto, como se fizesse parte dos bens móveis.

O casamento era visto como um ato tão importante para a realização da vida de uma mulher que permanecer solteira era motivo de escárnio e zombaria. O poeta José Costa Leite debocha da mulher solteira:

“A filha do coronel

era uma destinta pessoa

charmosa e palpitosa,

mas já era uma coroa

tinha 28 anos

porém era muito boa

Quando o rapaz foi embora

a moça ficou danada

com vontade de casar

chega estava arrepiada

moça velha é um perigo

quando está assim gamada

Ela ficou aperriada

que o sangue ferveu na veia

moça vitalina é fogo

quando ela se aperreia

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VII Congresso LUSO­BRASILEIRO de História da Educação

é capaz de correr doida

na força da lua cheia”.

(A moça que pisou Santo Antônio no pilão para casar com o boiadeiro)

A mulher aqui é também utilizada para satirizar o coronel, que, apesar de seu poder e riqueza, tem uma filha que não consegue se casar. Fica evidente o preconceito sofrido pela mulher solteira. A partir de uma certa idade, a moça que não casava era chamada de “vitalina” ou “caritó”, e que estaria apta a “morrer no barricão” (formas jocosas de se tachar de “solteirona” uma mulher, tida como madura). (NAVARRO, 1998: 64, 169 e 248).

Mas, voltando ao cangaço, poemas de Leandro Gomes e de Antonio Batista Guedes, por exemplo, trazem o reconhecimento do cangaceiro Antonio Silvino para com seus parceiros, ora lamentando suas mortes, ora reconhecendo seus feitos, como podemos conferir:

“Com eles, venci afrontas,

Ganhei somas de dinheiro,

Fiz medo a todas as classes,

Com eles venci questão,

Perdida na relação,

Vinda do Rio de Janeiro.”

(As lágrimas de Antonio Silvino por Tempestade)

“Ah! Se Cocada existisse

Ou ao menos Tempestade...”

“A morte desses dois homens,

Para mim foi dois castigos,

Com eles eu afrontava

Os mais horríveis perigos

E fazia intimidarem­se

Meus maiores inimigos.”

(O testamento de Antonio Silvino)

Cocada e Tempestade haviam sido dois grandes companheiros de Silvino, que lamenta a sua morte. Interessante notar, nesses poemas, é que ao mesmo tempo em que o cangaceiro elogia os feitos e chora a morte de seus amigos, ele se coloca como um bandido, quando diz: “fiz medo a todas as classes” ou ainda, nos versos de Batista Guedes, quando fala: “Com eles eu afrontava, os mais horríveis perigos”.

Outro cangaceiro muito cantado na poesia de folhetos é Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. O poeta Francisco das Chagas Batista nos conta que ao ser preso Antonio Silvino,

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Lampião passou a governar, pelas armas o sertão nordestino, estabelecendo decretos, como podemos verificar a seguir:

“Diz o primeiro decreto

No seu artigo primeiro:

­Todo e qualquer sertanejo,

Negociante ou fazendeiro,

Agricultor ou matuto

Tem que pagar tributo

Que se deve ao cangaceiro.

No paragrapho primeiro

Desse artigo elle restringe

A lei somente aos ricos

Dizendo:­ a lei não attinge

Ao pobre aventureiro

Pois que não possue dinheiro

Diz que não tem e não finge.”

(Os decretos de Lampeão)

Mais uma vez, pode­se notar, que apesar de se colocar como uma figura autoritária, também este cangaceiro poderia ser representado como uma pessoa que não sacrificava os pobres, uma vez que estes eram isentos de pagar os tributos, pois estes só seriam cobrados de quem tivesse dinheiro.

O mesmo cordelista nos relata o encontro de Padre Cícero com Virgulino, da seguinte forma:

“Disse­lhe o padre:­ Meu filho,

Não persista no pecado,

Deixe a carreira dos crimes

Se torne um regenerado.

Se me promete deixar,

Lhe prometo trabalhar.

P’ra você ser perdoado.

Lampeão lhe respondeu:

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VII Congresso LUSO­BRASILEIRO de História da Educação

­Padre muito agradecido,

Não posso deixar agora

Porque estou comprometido

A tomar certas vinganças

Porém tenho esperanças

De deixar de ser bandido.

(Conselhos de Padre Cícero a Lampeão)

É digno de nota o apelo religioso registrado através dos conselhos de Padre Cícero, como se bastasse um pedido do padre para que Lampião deixasse de ser cangaceiro. Ao mesmo tempo, o cangaceiro acabou prometendo que, ao concluir suas vinganças, deixaria de ser um bandido.

Um pouco diferente de Lampião, Maria Bonita não foi poupada no cordel do poeta Martins de Athayde. Ali a companheira do cangaceiro foi apresentada como uma mulher sanguinária e cruel:

“Esta mulher assassina

Que até rifle maneja

Não era por amizade

Que ela o bando ocupava

Seu instinto era malvado

Seu amor degenerado

Só luto e dor espalhava.”

(Maria Bonita: a mulher no cangaço)

Na poesia de Manuel Pereira Sobrinho, entretanto, recupera­se a imagem da cangaceira Maria Bonita, doce e meiga capaz de arrebatar o coração do homem mais valente de sua época,

Lampião era de aço

Porém diante a beleza

Daquela mulher mimosa

Com um porte de princesa

Cabelos e olhos grandes

Parecendo uma duquesa

Morena cor de canela

Dessas que o vento palpita

Muito bem feita de corpo

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12 A literatura de cordel e o ensino da história

VII Congresso LUSO­BRASILEIRO de História da Educação

Lábios da cor de uma fita

Disse Lampião: ­ Te levo

Minha “Maria Bonita”

(A verdadeira história de Lampião e Maria Bonita)

Podemos perceber, nos versos de Sobrinho, que a beleza e a doçura de Maria Bonita podiam ser vistas como tão irresistíveis, que Lampião se apaixonou por ela imediatamente. Pode­se notar, também, que o poeta entendia ser possível valorizar a personalidade de Lampião, encobrindo suas qualidades ruins. Os ouvintes e leitores desses versos talvez pudessem ter alguma simpatia com o “herói amoroso”. A afirmação de que Lampião poderia ser capaz de amar, o tornava uma pessoa digna de ser amada (DAUS: 1982, 55).

Nestes folhetos há, freqüentemente, a representação de características contraditórias convivendo com os protagonistas. Ao mesmo tempo em que são apresentados como foras da lei, podem estar lutando contra as injustiças, adquirindo características nobres, mesmo que não se comportem como os heróis mais tradicionais, como aqueles que só praticam o bem.

Através dessa literatura em verso podemos perceber que as representações sobre os cangaceiros diferem das encontradas nos livros didáticos e/ou na literatura oficial. Quase sempre tratados como bandidos nestes espaços, os cangaceiros dos cordéis são ao menos mais contraditórios: podem ser assassinos e possuir sentimentos de amor; podem roubar, mas ajudar aos necessitados. Bem mais variada e polissêmica, embora sempre violenta, dever ter sido a realidade do cangaço.

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VII Congresso LUSO­BRASILEIRO de História da Educação

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