arthur c clarke - o outro lado do ceu

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  • 8/2/2019 Arthur C Clarke - O Outro Lado Do Ceu

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    SUMRIONota bibliogrfica, 9Os nove trilhes de nomes de Deus, 13Refugiado, 25O OUTRO LADO DO CU:

    Entrega especial, 43Um amigo de penas, 48Respire fundo, 53Liberdade do espao, 57Transitrio, 62O chamado das estrelas, 67

    A muralha das trevas, 73Verificao de segurana, 101A derradeira manh, 109AVENTURA LUNAR:

    A linha de partida, 119Robin Hood, F.R.S., 125Dedos verdes, 131Tudo que brilha, 138Olhem para o espao, 143Uma questo de residncia, 149

    Campanha publicitria, 157Todo o tempo do mundo, 163O casanova csmico, 181A estrela, 191Vindo do Sol, 207Transincia, 273As canes da Terra distante, 223

    Para Hector

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    NOTA BIBLIOGRFICA

    Estas histrias foram escritas durante o perodo 1947-57 e, reunidas sminhas trs coletneas anteriores, Expedio Terra, Ao encontro do futuro eCon-

    tos da taberna, somam todos os meus trabalhos curtos de fico que, acredito,devem ser preservados em forma de livro.Somente trs vezes, que eu saiba, escrevi histrias baseadas em idias

    sugeridas por outras pessoas. Meus amigos testemunharo que sou uma pessoamuito sbria para ter imaginado "A derradeira manh", que devida a A.H. Smith,enquanto "Todo o tempo do mundo" surgiu dos talentos duvidosos de Mike Wilson.Em 1935 eu transformei esta ltima histria em uma pea para televiso, que foi aoar pela rede da American Broadcasting Company. Desde ento tenho conseguidoevitar qualquer envolvimento com a tev, embora um contato puramente social como "Capito Vdeo" seja, sem dvida, o responsvel por "Verificao de segurana".

    "Os nove trilhes de nomes de Deus" o produto de uma tarde chuvosa em

    Nova Iorque e os direitos para adaptao cinematogrfica foram adquiridos por umestdio de Hollywood num momento de aberrao mental. Ainda estou aguardandoo resultado com desconfiana.

    "Refugiado", para total confuso dos bibligrafos, foi publicado pela primeiravez por Anthony Boucher no The Magazine of Fantasy and Science Fictioncom ottulo "?", de vez que Boucher achou o meu ttulo original insatisfatrio,estabelecendo um concurso para escolher outro melhor. Acabou optando por "Aterra de majestade" e, para aumentar a confuso, Ted Carnell, da revista inglesaNew Worlds, batizou-o com o nome de "Prerrogativa real".

    "A estrela" possui uma histria pouco comum. Em 1954, Carl Biemiller, darevista Holiday, pediu-me que escrevesse um artigo sobre astronomia, o que aceiteicom alguma relutncia, j que envolvia uma considervel quantidade de pesquisa (eportanto trabalho). Contudo valeu a pena, pois logo aps a publicao emHoliday oreferido artigo (cujo ttulo no vou mencionar, j que revelaria a trama) foiselecionado pelo Reader's Digest. Nessa ocasio o jornal Observer anunciou umconcurso para histrias curtas sob o tema "2500 d.C." e eu percebi que j tinha omaterial em minhas mos. O conto foi escrito com intensa emoo e desnecessrio dizer que nem ao menos foi classificado. (Os vencedores foramposteriormente publicados num volume intitulado2500 d.C. e os leitores podero sedivertir fazendo seu prprio julgamento.) Em compensao, entretanto, "A estrela"apareceu em uma revista e foi escolhido como o melhor conto de fico cientfica de

    1956. Aventura lunar tambm tem uma gnese incomum. Foi escrita como umasrie de seis histrias independentes, mas interligadas, a pedido do EveningStandard, e quando a proposta foi feita eu de incio a rejeitei. Parecia impossvelescrever histrias com um mximo de 1.500 palavras que fossem compreensveis massa de leitores, a despeito de transcorrerem num ambiente completamentealiengena. Pensando melhor, acabei aceitando o desafio e a srie resultante foi tobem-sucedida que exigiu uma segunda, O outro lado do cu. Esta teve a sorte deaparecer nas bancas de jornais de Londres ao mesmo tempo em que o Sputnik Isurgia nos cus.ARTHUR C. CLARKE

    Londres

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    OS NOVE TRILHES DE NOMES DE DEUS

    - Este um pedido um pouco incomum - disse o Dr. Wagner com o que esperava

    fosse uma atitude de discrio recomendvel. - At onde sei, a primeira vez quealgum recebe um pedido para fornecer um Computador Seqenciador Automtico aum mosteiro tibetano. No quero parecer indiscreto, mas dificilmente chegaria apensar que sua... ah... instituio encontraria muita utilidade nessa mquina. Poderiame explicar o que pretende fazer com ela?

    - Com prazer - respondeu o lama, ajeitando o seu manto de seda enquantocolocava de lado, cuidadosamente, a rgua de clculo que estivera utilizando paraconverses monetrias. - Seu computador Mark V pode realizar qualqueroperao matemtica de rotina envolvendo at dez dgitos. Contudo, para nossotrabalho, estamos interessados em letras, no em nmeros. Assim, desejamos quemodifiquem os circuitos de sada de modo que a mquina imprima palavras e no

    colunas de nmeros.- Eu no compreendo bem...- Este um projeto em que estamos trabalhando h trs sculos. Na verdade,

    desde que a lamaseria foi fundada. um pouco estranho para seu modo de pensar,assim, peo que escute com a mente aberta enquanto tento explicar.

    - Naturalmente.- na verdade bem simples. Estamos j h algum tempo compilando uma

    lista que dever conter todos os nomes possveis de Deus.- Peo que me desculpe...- Temos razes para acreditar - continuou o lama sem se perturbar - que

    todos esses nomes possam ser escritos usando no mais do que nove letras de umalfabeto que elaboramos.

    - E esto fazendo isso h trs sculos?- Sim, espervamos terminar a tarefa em aproximadamente 15 mil anos.- Oh! - exclamou o Dr. Wagner, parecendo um pouco atordoado. - Agora

    percebo por que desejam uma de nossas mquinas. Mas qual exatamente afinalidadedesse projeto?

    O lama hesitou por uma frao de segundo e Wagner se perguntou se o teriaofendido. Entretanto no havia sinal de aborrecimento na resposta.

    Chame de ritual, se desejar, mas uma parte fundamental de nossascrenas. Todos os muitos nomes do Ser Supremo, como Deus, Jeov, Al e assim

    por diante, so apenas rtulos criados pelo homem. Existe aqui um problemafilosfico de alguma complexidade, o qual no me proponho discutir, mas em algumlugar, entre todas as combinaes possveis de letras que podem ocorrer,encontram-se o que podemos chamar de os nomes verdadeiros de Deus. Atravs deuma sistemtica permutao de letras, temos tentado catalogar todos eles.

    - Compreendo. Comearam com AAAAAAA... e vo trabalhar at ZZZZZZZ...- Exatamente, embora utilizemos um alfabeto especial de nossa prpria

    criao. Modificar as impressoras automticas para lidarem com ele evidente-mente trivial. Um problema mais interessante o de projetar circuitos adequadospara eliminar as combinaes absurdas. Por exemplo, uma letra no deve aparecerem sucesso mais do que trs vezes.

    - Trs? Est querendo dizer duas, sem dvida.- Trs o correto. Receio que levaria muito tempo para explicar por qu,mesmo se entendesse nosso idioma.

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    - Tenho certeza que sim - replicou Wagner apressadamente. - Prossiga.- Felizmente ser muito simples adaptar o seu Computador Seqenciador

    Automtico a este trabalho, j que tendo sido adequadamente programado ele irpermutar uma letra de cada vez e imprimir o resultado. O que teria consumido 15 mil

    anos ser feito em apenas 100 dias.O Dr. Wagner quase no percebia os dbeis sons vindos das ruas deManhattan l embaixo. Encontrava-se num mundo diferente, um mundo demontanhas naturais, no construdas pelo homem. L em cima, em seus longnquosninhos, esses monges haviam trabalhado pacientemente, gerao aps gerao,compilando suas listas de palavras sem nexo. Haveria um limite para asextravagncias humanas? Ainda assim, ele no podia deixar transparecer nenhumindcio de seus pensamentos mais ntimos. O fregus sempre tem razo...

    - No h dvida - respondeu o doutor - de que podemos modificar o Mark Vpara imprimir listas dessa natureza. Estou mais preocupado com os problemas deinstalao e manuteno. Chegar ao Tibete nos dias de hoje no fcil.

    - Podemos conseguir isso. Os componentes so suficientemente pequenospara viajar pelo ar. Esta foi uma das razes que nos levaram a escolher sua m-quina. Se puder lev-la at a ndia, forneceremos o transporte a partir de l.

    - E deseja contratar dois de nossos engenheiros?- Sim, pelos trs meses que o projeto dever durar.- No tenho dvida de que nosso departamento de pessoal pode conseguir

    isso. - O Dr. Wagner tomou notas em seu bloco. - Restam apenas mais doisdetalhes...

    Antes que ele pudesse terminar a frase o lama apresentou uma pequena tirade papel.

    - Este o meu certificado de crdito no Banco Asitico.- Obrigado. Parece ser... ah... satisfatrio. A segunda questo to trivial que

    hesito em mencion-la... mas causa espanto o quo frequentemente os detalhesbvios deixam de ser observados. De que fonte de energia eltrica o senhor dispe?

    - Um gerador diesel produzindo 50 quilowatts a 110 volts. Foi instalado hcinco anos e muito confivel. Tornou a vida no mosteiro de lamas muito maisconfortvel, embora, claro, tenha sido instalado para fornecer energia aos motoresque acionam os moinhos de orao.

    - claro - respondeu o Dr. Wagner. - Eu deveria ter pensado nisso.

    A vista do parapeito era vertiginosa, mas com o tempo acostumamo-nos a

    tudo. Depois de trs meses, George Hanley no se impressionava mais com a que-da de 600 m no abismo nem com o remoto quadriculado dos campos no vale lembaixo. Debruava-se sobre as pedras polidas pelo vento e fitava de modomelanclico as montanhas distantes cujos nomes nunca se importara em aprender.

    Isso, pensava George, fora a coisa mais louca que j lhe acontecera: o"Projeto Xangri-L", como algum espirituoso l do laboratrio o balizara. Faziasemanas agora que o Mark V permanecia derramando acres de folhas de papelcobertas de algaravia. Pacientemente, inexoravelmente, o computador rearrumavaletras em todas as combinaes possveis, esgotando cada classe antes de passar seguinte. Quando as folhas emergiam das impressoras eltricas, os monges ascortavam cuidadosamente, colando-as em enormes livros. Dentro de mais uma

    semana, com a ajuda dos cus, eles terminariam. George no fazia ideia de queobscuros clculos teriam convencido os monges a no se importarem com aspalavras de 10, 20 ou 100 letras. Um de seus pesadelos mais frequentes era a res-

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    peito de uma mudana de planos, com o grande lama (que eles naturalmentechamavam Sam Jaffe*1, embora ele no se parecesse nem um pouco com este)anunciando subitamente que o projeto seria estendido at cerca de 2060 d.C. Eleseram bem capazes disso.

    George ouviu a pesada porta de madeira bater ao vento enquanto Chuck saiupara se colocar a seu lado no parapeito. Como de hbito, Chuck fumava um doscharutos que o haviam tornado to popular entre os monges, os quais, tinha-se aimpresso, estavam muito propensos a abraar todos os pequenos e a maioria dosgrandes prazeres da vida. Esta era uma das coisas que os favoreciam: podiam serdoidos, mas no eram puritanos. Aqueles passeios frequentes at a aldeia l em-baixo, por exemplo...

    - Escute aqui, George - disse Chuck, ansioso. - Descobri uma coisa que podesignificar encrenca.

    - O que h de errado? A mquina no est funcionando? - Era a pior coisaque George podia imaginar. Atrasaria seu retorno e nada poderia ser mais horrvel.

    Do modo como se sentia agora, at mesmo a viso de um comercial de tevpareceria uma bno dos cus. Pelo menos, representaria um elo de ligao comseu lar.

    - No, no nada disso - disse Chuck apoiando-se no parapeito, oque era algo fora do comum, pois normalmente ele se apavorava com a altura. -Acabo de descobrir qual a razo disso tudo.

    - O que quer dizer? Pensei que soubssemos.- Certo, sabemos o que os monges esto tentando fazer. Mas no sabemos

    por qu. a coisa mais louca...- Diga alguma coisa nova - resmungou George.- Bem, o velho Sam se abriu comigo. Voc sabe como ele aparece toda tarde

    para observar aquelas folhas saindo da mquina. Bem, dessa vez ele parecia umpouco excitado, ou pelo menos to perto disso quanto possvel. Quando eu lhe disseque ns estvamos no ltimo ciclo ele me perguntou, naquele seu belo sotaquebritnico, se eu imaginava o que eles estavam tentando fazer. Eu disse: " claro!", eele me contou.

    - Prossiga: eu vou acreditar.- Bem, eles crem que quando tiverem catalogado todos os nomes do

    Criador - e calculam que existam aproximadamente 9 trilhes deles - a vontade deDeus ser cumprida. A raa humana ter terminado o que estava obrigada a fazerdesde a sua criao e no haver mais nenhum motivo para continuar. De fato, a

    prpria idia de tal coisa soa como uma blasfmia.E o que eles esperam que faamos, ento? Cometer suicdio?- No haver necessidade disso. Quando a lista estiver completa, Deus entra

    em ao e simplesmente acaba com tudo... bingo!- Oh, entendo. Quando terminarmos o nosso trabalho, ser o fim do mundo.Chuck deu uma risada curta e nervosa.- Foi exatamente isso que eu disse a Sam. E voc sabe o que aconteceu?

    Ele olhou para mim de um modo muito estranho, como se eu fosse o pior aluno daclasse, e disse: "No nada to simples assim."

    George pensou por um momento.- Isso o que chamo de ter uma viso ampla. Mas o que voc acha que

    1 Sam Jaffe, ator que interpretou o benvolo governante de Xangri-L na primeira verso de Horizonte perdido,

    dirigida por Frank Capra em 1936. (N. do T.)

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    devamos fazer? No creio que isso faa a menor diferena para ns dois. Afinal decontas, j sabamos que eles eram malucos.

    - Sim, mas no percebe o que pode acontecer? Quando a lista estivercompleta e no soar a trombeta final, ou seja l o que for que eles esperam, ns po-

    demos levar a culpa. Foi a nossa mquina que eles estiveram usando. Esta situaono me agrada nem um pouco.- Entendo - disse George lentamente. - Voc tem um ponto de vista

    interessante, mas esse tipo de coisa j aconteceu antes, voc sabe muito bem.Quando eu era garoto, l em Louisiana, tnhamos um pastor excntrico que disseuma vez que o mundo ia se acabar no domingo seguinte. Centenas de pessoasacreditaram nele, at venderam suas casas. No entanto, quando nadaaconteceu, eles no ficaram furiosos, como era de esperar. Simplesmenteconcluram que o pastor cometera algum erro em seus clculos e continuaramacreditando. Creio que alguns deles ainda acreditam.

    - Bem, caso voc ainda no tenha reparado, isto aqui no a Louisiana.

    Existem apenas dois de ns e centenas desses monges. Gosto deles e vou ter penado velho Sam quando o trabalho de toda a sua vida sair pela culatra. Mas ao mesmotempo eu no queria estar por perto.

    - H semanas que desejo estar longe daqui, mas no h nada que possamosfazer at que o contrato termine e o transporte chegue para nos levar de volta.

    - claro - sugeriu Chuck pensativamente - que ns podemos sempre tentarum pouquinho de sabotagem.

    - Uma ova que podemos! Isso s tornaria as coisas piores.- No do jeito que eu quero. Escute s. A mquina dever terminar o seu

    trabalho dentro de quatro dias, no presente ritmo de vinte e quatro horas. Otransporte chega em uma semana, certo? Ento, tudo que temos de fazer encontrar alguma coisa que precise ser substituda durante um dos perodos deinspeo. Alguma coisa que interrompa o trabalho por um ou dois dias. Ns aconsertaremos, claro, mas no com muita rapidez. Se ajustarmos nossocronograma adequadamente, poderemos nos encontrar l embaixo, no campo depouso, quando o ltimo nome sair da mquina. Ento eles no sero capazes denos pegar.

    - No gosto disso - disse George. - Seria a primeira vez que eu desertaria deum trabalho. Alm do mais, isso os deixaria desconfiados. No, eu vou esperar,acontea o que acontecer.

    - Ainda no gosto disso - repetiria ele, sete dias depois, enquanto os rijos

    pneis montanheses os carregavam para baixo, ao longo da estrada tortuosa. - Eno pense que estou fugindo porque tenho medo. Apenas sinto por aqueles pobrescoitados l em cima e no quero estar por perto quando eles descobrirem quetrouxas tm sido. No sei como Sam vai suportar isso.

    - engraado - respondeu Chuck - mas quando eu disse adeus tive aimpresso de que ele sabia que estvamos desertando... e no se importou porquesabia que a mquina estava funcionando regularmente e que o trabalho logo estariaterminado. Depois disso... bem, claro que para ele no vai haver nenhum depoisdisso...

    George virou-se em sua sela e contemplou a estrada que deixavam para trsna montanha. Aquele era o ltimo lugar de onde se podia ter uma viso clara do

    mosteiro de lamas. Os prdios atarracados e angulosos apareciam delineadoscontra o ltimo brilho do poente. Aqui e ali, luzes cintilavam como vigias no costadode um transatlntico. Luzes eltricas, claro, compartilhando o mesmo circuito que o

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    Mark V. Durante quanto tempo? perguntou George de si para si. Iriam os mongesdespedaar o computador em seu dio e frustrao? Ou apenas se sentariamcalmamente e recomeariam a fazer os seus clculos?

    Sabia exatamente o que estava acontecendo l nas montanhas, naquele

    exato momento. O grande lama e seus assistentes estariam sentados, com seusmantos de seda, inspecionando as folhas de papel enquanto os monges novios asretiravam das impressoras e as colavam nos grandes volumes. Ningum estariadizendo nada. O nico som seria a batida incessante, o interminvel matraquear dostipos atingindo o papel, j que o prprio Mark V era inteiramente silencioso enquantorelampejava atravs de seus mil clculos por segundo. "Trs meses assim eramsuficientes", pensava George, "para deixar qualquer um subindo pelasparedes."

    - L est ele! - gritou Chuck, apontando para o vale. - No lindo?"Certamente que era", pensou George. O velho e surrado DC-3 parecia uma

    pequena cruz prateada esperando no final da pista. Em duas horas ele os conduziria

    em direo liberdade e sanidade. Era um pensamento para ser saboreado comoum licor fino e George deixou que ele circulasse em sua mente enquanto o pneitrotava pacientemente ao longo do declive.

    A noite repentina do alto Himalaia encontrava-se agora praticamente sobreeles. Felizmente a estrada era muito boa, at onde podem ser as estradas naquelaregio, e ambos carregavam tochas. No havia o menor perigo, apenas um certodesconforto causado pelo frio penetrante. O cu acima era perfeitamente claro, ilu-minado pelas estrelas familiares e amigas. "Ao menos no haveria risco do piloto serincapaz de decolar por causa das condies do tempo", pensou George. Essapreocupao fora a nica que lhe restara.

    Comeou a cantar, mas logo desistiu. Essa vasta arena de montanhas,cintilando como fantasmas encapuados de branco em todas as direes, no enco-rajava tanta alegria. Da a pouco George olhou para o seu relgio.

    - Devemos estar l dentro de uma hora - avisou a Chuck por sobre o ombro.E ento acrescentou numa reflexo tardia: - Gostaria de saber se o computador jterminou. Devia ser a esta hora.

    Chuck no respondeu, de modo que George se virou em sua sela. S pdever o rosto de Chuck como uma branca silhueta oval erguida para o cu.

    - Olhe - sussurrou Chuck, e George ergueu os olhos para o cu. (H sempreum ltimo tempo para tudo.)

    L em cima, sem nenhum estardalhao, as estrelas estavam se apagando.

    REFUGIADO- Quando ele vier a bordo - disse o capito Saunders enquanto esperava que

    a rampa de abordagem se estendesse -, de que diabo eu devo cham-lo?Houve um silncio pensativo enquanto o oficial de navegao e o assistente

    do piloto consideravam esse problema de etiqueta. Ento Mitchell trancou o painelde controle principal e os mltiplos mecanismos da nave mergulharam nainconscincia enquanto a energia lhes era retirada.

    - O ttulo correto - disse ele com voz arrastada - "sua alteza real".- Argh! - resmungou o capito. - Macacos me mordam se vou chamar algum

    disso!

    - Nestes tempos de progresso - sugeriu Chambers solcito - eu creio que"senhor" o suficiente. Mas no precisa se preocupar, caso esquea. J faz longotempo desde que algum foi mandado para a Torre. E alm disso esse Henrique

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    no to duro quanto o outro que teve todas aquelas esposas.- opinio corrente - acrescentou Mitchell - que ele um jovem muito

    agradvel. E muito inteligente tambm. conhecido por fazer perguntas tcnicas aque as pessoas no so capazes de responder.

    O capito Saunders ignorou as implicaes dessa observao, concluindoque, se o prncipe Henrique quisesse saber como funcionava um Gerador deEmpuxo por Campo de Compensao, Mitchell poderia dar todas as explicaes.Levantou-se cuidadosamente. Haviam operado sob meia gravidade durante o vo eagora que se encontravam na Terra ele se sentia com o peso de uma tonelada detijolos. Comeou a caminhar ao longo dos corredores que conduziam at a comportainferior. Com um grande ronronar oleoso, a grande porta curva deslizou para fora deseu caminho; ele ajustou o sorriso e saiu para encontrar as cmaras de televiso e oherdeiro do trono britnico.

    O homem que um dia, presumivelmente, seria Henrique IX da Inglaterra aindatinha pouco mais de 20 anos. Sua altura era um pouco abaixo da mdia e suas

    feies finas realmente correspondiam a todos os clichs genealgicos. O capitoSaunders, que era de Dallas e no tinha a menor inteno de se impressionar comprncipe algum, descobriu-se inesperadamente sensibilizado por aqueles olhosgrandes e tristes. Eram olhos que haviam presenciado muitas recepes e paradas,que tinham de observar um nmero incontvel de coisas completamentedesinteressantes e que nunca tinham oportunidade de se desviar de percursos eroteiros oficiais cuidadosamente planejados. Olhando para aquela face altiva mascansada, o capito Saunders vislumbrou pela primeira vez a solido absoluta darealeza, e toda a sua antipatia por tal instituio tornou-se subitamente trivial anteseu verdadeiro defeito: o que havia de errado com a Coroa era a injustia de sedepositar semelhante fardo sobre um ser humano.

    Os corredores da Centaurus eram muito estreitos para permitirem umaexcurso em massa e logo ficou claro que agradava muito ao prncipe Henrique terde deixar o seu squito para trs. Assim que comearam a percorrer o interior danave, o capito Saunders perdeu toda a sua formalidade e circunspeo e em minu-tos estava tratando o prncipe como a qualquer outro visitante. Ele no percebia queuma das primeiras lies ensinadas realeza consiste em fazer as pessoas sedescontrarem.

    - Como sabe, capito - disse o prncipe pensativo - este um grande dia parans. Sempre desejei que um dia fosse possvel ter espaonaves operando a partirda Inglaterra, mas ainda assim parece estranho ter o nosso prprio porto aqui,

    depois de todos esses anos. Diga-me, algum dia chegou a lidar com foguetes?- Bem, eu tive algum treinamento com eles, mas j estavam sendoaposentados quando me diplomei. Tive sorte, alguns dos mais antigos tiveram devoltar para a escola e comear tudo de novo. Ou ento abandonar completamente oespao quando no puderam se adaptar s novas naves.

    - Fazia tanta diferena assim?- Oh, sim, quando os foguetes se tornaram obsoletos, foi uma mudana to

    grande quanto a da vela para o vapor na navegao martima. Essa, por sinal, uma analogia que se ouve com freqncia. Havia um certo encantamento nos velhosfoguetes, tal como acontecia com os antigos veleiros, que est ausente nessasnaves modernas. Quando a Centaurusdecola, sobe to silenciosa quanto um balo

    - e igualmente lenta, se assim o desejar. Mas a partida de um foguete estremecia ocho por quilmetros e a pessoa ficaria surda durante dias se permanecesse muitoperto da plataforma de lanamento. Mas deve saber tudo isso dos velhos registros

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    noticiosos.O prncipe sorriu.- Sim - disse ele - freqentemente assisto aos filmes l no palcio. Acho que

    j assisti a todos os incidentes de cada expedio pioneira e tambm fiquei triste ao

    ver o fim dos foguetes. Mas com eles ns nunca teramos um espaoporto aqui naplancie de Salisbury. As vibraes teriam derrubado Stonehenge.- Stonehenge? - indagou Saunders, enquanto mantinha a comporta aberta e

    permitia que o prncipe entrasse no poro de carga nmero trs.- Um antigo monumento, um dos mais famosos crculos de pedra do mundo.

    Realmente impressionante e com mais de trs mil anos de idade. V v-lo se puder,fica a apenas uns 16 km.

    O capito Saunders conteve o sorriso com alguma dificuldade. Que pasestranho era esse. Onde mais se encontrariam contrastes assim? Fazia com que sesentisse muito jovem e rude ao se lembrar de que, l em sua casa, Billy the Kid eraparte da histria antiga e no havia nada em todo o Texas com mais de 500 anos de

    idade. Pela primeira vez comeava a perceber o significado da tradio. Ela conferiaao prncipe Henrique algo que Saunders jamais poderia possuir: autoconfiana,pose, equilbrio. Sim, era isso, um orgulho que de algum modo estava livre daarrogncia por se considerar to assentado que jamais teria necessidade deafirmao.

    Foi surpreendente o nmero de perguntas que o prncipe Henrique conseguiufazer nos trinta minutos concedidos para sua visita ao cargueiro. E no eram asperguntas de rotina que as pessoas fazem por simples polidez, totalmentedesinteressadas nas respostas. Sua altezareal, o prncipe Henrique, sabia muito arespeito de espaonaves e o capito se sentiu completamente exaurido ao entregarseu distinto convidado nas mos do comit de recepo, que permaneceraaguardando do lado de fora da Centauruscom uma pacincia habilmente simulada.

    - Muito obrigado, capito - disse o prncipe, enquanto apertavam as mos nacomporta de ar. - H eras que no me sentia to satisfeito com uma visita assim.Espero que tenham uma permanncia agradvel aqui na Inglaterra e uma viagemmuito bem-sucedida. - Ento o squito o arrastou para longe e os funcionrios doporto, at ento frustrados, puderam subir a bordo e verificar a documentao danave.

    - Bem... - disse Mitchell quando tudo terminara. - Que acham do nossoprncipe de Gales?

    - Ele me surpreendeu - respondeu Saunders com franqueza. - Eu nunca teria

    adivinhado que ele era um prncipe. Sempre imaginei que eles fossem um tantobobos, mas este sabiaos princpios do Campo Impulsor. Ser que ele j esteve noespao?

    - Uma vez, eu acho, apenas um pulo acima da atmosfera numa nave daFora Espacial, que no chegou nem a entrar em rbita antes de regressar, mas oprimeiro-ministro quase teve um ataque. Houve interpelaes no Parlamento eeditoriais no The Times. Todos concordavam que o herdeiro do trono era muitovalioso para se arriscar nessas invenes modernas. Assim, embora tenha a patentede comodoro da Real Fora Espacial, ele nunca esteve nem ao menos naLua.

    - Pobre sujeito - murmurou o capito Saunders.

    Tinha trs dias para aproveitar, de vez que no constitua trabalho do capitosupervisionar o carregamento da nave ou a manuteno antes de cada vo.

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    Saunders conhecia comandantes que permaneciam nas imediaes, respirandofortemente junto nuca dos engenheiros encarregados, mas ele no era desse tipo.Alm do mais, queria conhecer Londres. J estivera em Marte, em Vnus e na Lua,mas essa era a sua primeira visita Inglaterra. Mitchell e Chambers deram-lhe todas

    as informaes teis e o colocaram no monotrilho para Londres antes de correremao encontro de suas famlias. Eles logo voltariam ao espaoporto, um dia antes dele,para se certificarem de que tudo estava em ordem. Era um grande alvio ter oficiaisem quem podia confiar totalmente: eram cautelosos e destitudos de imaginao,mas eficientes ao extremo. Se eles afirmassem que tudo estava em ordem,Saunders sabia que poderia decolar sem preocupao.

    O esguio e aerodinmico cilindro assoviou atravs da paisagem bem-cuidada.Estava to prximo do solo e movia-se to rpido que o passageiro s poderia obterbreves vislumbres, enquanto campos e cidades relampejavam ao redor. Tudo,pensava Saunders, era to incrivelmente compacto e em tal escala liliputiana. Nohavia espaos abertos ou campos com mais de um quilmetro e meio de extenso,

    o que era o suficiente para deixar qualquer texano com claustrofobia. Ainda mais umtexano especial, que era tambm um piloto do espao.

    Os limites precisamente definidos de Londres apareceram no horizonte comoos baluartes de uma cidade murada. Com algumas excees, os prdios eram todosmuito baixos, talvez 15 ou 20 andares de altura. O monotrilho disparou atravs deum estreito canyon, por sobre um parque muito bonito, um rio que devia ser oTamisa, e finalmente parou com um poderoso impulso de desacelerao. Um alto-falante anunciou com uma voz recatada que parecia temerosa de ser ouvida:

    - Esta a estao de Paddington. Passageiros para o Norte, tenham agentileza de permanecer sentados.

    Saunders retirou sua bagagem da prateleira e saiu para a estao. Ao entrarno metro passou por uma banca de jornais e olhou as revistas que exibia. Metadedelas tinha na capa fotografias do prncipe Henrique ou de outros membros dafamlia real. Isso, pensou Saunders, j era demais. Tambm percebeu que todos os jornais vespertinos mostravam o prncipe entrando ou saindo da Centaurus ecomprou alguns para ler no metro - perdo, os londrinos chamavam seu subterrneode "tubo".

    Todos os editoriais apresentavam uma similaridade montona. Pelo menos,regozijavam-se: a Inglaterra no precisaria mais ficar em segundo plano com relaos naes que dominavam o espao. Agora era possvel operar com uma frotaespacial sem precisar de milhes de quilmetros quadrados de deserto. As

    silenciosas naves que desafiavam a gravidade poderiam pousar, se assim fossenecessrio, em pleno Hyde Park, sem com isso perturbar os patos no Serpentine.Saunders achou estranho que esse tipo de patriotismo ainda conseguisse sobreviverna era espacial, mas calculou que os britnicos haviam se sentido muito mal quandoprecisaram conseguir por emprstimo os locais de lanamento dos australianos,americanos e russos.

    Aps um sculo e meio, o metro londrino ainda era o melhor sistema detransporte do mundo e deixou Saunders em seu destino, com toda segurana,menos de dez minutos depois de ter deixado Paddington. Em dez minutos aCentaurusteria atravessado 75 mil quilmetros, mas, afinal de contas, o espao noera to abarrotado quanto isto aqui. Nem as rbitas das naves eram to tortuosas

    quanto as ruas que precisou percorrer para chegar ao seu hotel. Todas as tentativasde urbanizar Londres tinham falhado completamente e ele levou 15 minutos paracompletar os ltimos 90 metros de seu percurso.

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    Tirou o casaco e desabou na cama aliviado. Trs dias calmos e sossegadospara aproveitar sozinho. Parecia bom demais para ser verdade.

    E era. Mal havia respirado fundo quando o telefone tocou.- Capito Saunders? Fico feliz de poder encontr-lo. Aqui da BBC, ns

    temos um programa chamado Esta noite na cidadee gostaramos...

    O rudo da comporta de ar se fechando era o som mais doce que Saunderstinha ouvido nos ltimos dias. Agora estava em segurana, ningum poderia al-can-lo aqui, nessa fortaleza blindada que logo estaria bem distante, na liberdadedo espao. No que tivesse sido maltratado, pelo contrrio, fora tratado bemdemais. Fizera quatro aparies (ou tinham sido cinco?) em vrios programas deteleviso, estivera em mais festas do que seria capaz de se lembrar e adquiriravrias centenas de novos amigos, esquecendo (do modo como se sentia agora)todos os antigos.

    - Quem inventou aquele papo - indagou a Mitchell quando se encontraram na

    comporta - de que os ingleses so reservados e retrados? Deus me ajude se euencontrar esse ingls tpico.

    -Presumo - disse Mitchell - que se divertiu vontade.- Pergunte isso amanh - replicou Saunders. - Ento j devo ter conseguido

    reintegrar minha psique.- Pude v-lo no programa de entrevistas da noite passada - lembrou

    Chambers. - Voc parecia um bocado plido.- Obrigado, o tipo de encorajamento de que preciso no momento. Gostaria

    de v-lo pensar num sinnimo para inspido depois de ter permanecido acordadoat as trs da madrugada.

    - Desenxabido - respondeu Chambers prontamente.- Insosso - acrescentou Mitchell, tentando no ficar para trs.- Vocs venceram. Vamos dar uma olhada naquelas tabelas de vistoria e ver

    se os engenheiros cumpriram o cronograma.Uma vez sentado diante da mesa de controle, o capito Saunders

    rapidamente recuperou a sua natural eficincia. Estava em casa novamente e o seutreinamento assumiu o comando. Sabia exatamente o que devia fazer e o faria compreciso automtica. direita e esquerda, Mitchell e Chambers verificavam seusinstrumentos e chamavam a torre de controle.

    Levaram uma hora para realizar toda a complicada rotina de pr-vo. Quandoa ltima assinatura fora colocada sobre a ltima folha de instrues e a ltima luz

    vermelha no painel tornara-se verde, Saunders descansou o corpo na poltrona eacendeu um cigarro. Tinham dez minutos antes da decolagem.- Um dia - ele disse - vou voltar Inglaterra incgnito e descobrir como um

    lugar como este pode funcionar. No entendo como conseguem juntar tanta gentesobre uma ilhazinha sem que ela afunde.

    - Hum! - resmungou Chambers. - Devia ver a Holanda. Faz a Inglaterraparecer o Texas.

    E depois h essa questo da famlia real. Vocs sabem que onde quer que eufosse as pessoas ficavam me perguntando como me sa com o prncipe Henrique, arespeito do que falamos, se eu no o achava um timo sujeito e por a afora?Francamente, fiquei saturado e no sei como conseguem suportar isso h mil anos.

    - No pense que a famlia real foi sempre popular - respondeu Mitchell. -Lembre-se do que aconteceu a Carlos I. E algumas das coisas que dizamos arespeito dos primeiros Jorges eram quase to rudes quanto os comentrios que sua

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    gente fez posteriormente.- s que ns gostamos de tradio - disse Chambers. - No temos medo de

    mudar quando chega a ocasio, mas, no que concerne famlia real, bem, ela nica e somos bastante orgulhosos dela, exatamente como vocs com relao

    Esttua da Liberdade.- No uma boa comparao. No acho que seja direito colocar sereshumanos em pedestais e trat-los como se fossem... bem, pequenos deuses. Olhepara o prncipe Henrique, por exemplo. Pensa que ele j teve alguma oportunidadede fazer as coisas que realmente deseja? Eu o vi trs vezes na televiso quandoestava em Londres. A primeira vez foi inaugurando uma escola em algum lugar,depois, fazendo uma palestra na Worshipful Company of Fishmongers no Guildhall(juro que noestou inventando) e, finalmente, ouvindo um discurso de boas-vindasdo prefeito de Podunk, ou o que seja o equivalente disso. Acho que preferiria estarna cadeia a viver esse tipo de vida. Por que no deixam em paz o pobre sujeito?

    Dessa vez, nem Chambers nem Mitchell se ergueram para responder. De

    fato, mantiveram um silncio glido, e Saunders pensou: "Devia ter mantido a bocafechada, agora feri os sentimentos dos dois. Devia ter me lembrado daqueleconselho que li em algum lugar: ''Os ingleses possuem duas religies: o crquete e afamlia real. Jamais tente criticar um dos dois.''

    O incmodo silncio foi interrompido pelo rdio e pela voz do controlador doespaoporto.

    - Controle para Centaurus, sua rota de vo est livre. Tudo em ordem para adecolagem.

    - Programa de decolagem comeando agora! - respondeu Saundersacionando a chave principal. Depois voltou a se reclinar para que seus olhos obser-vassem todo o painel de controle, as mos fora do quadro, mas prontas para aoinstantnea.

    Encontrava-se tenso, mas inteiramente confiante. Crebros melhores do queo seu, crebros feitos de metal, cristal e feixes relampejantes de eltrons, assumiamo controle da Centaurus agora. Se necessrio ele poderia assumir o comando,todavia nunca antes elevara a nave manualmente e esperava no faz-lo nunca. Seos automticos falhassem, ele simplesmente cancelaria a decolagem e ficaria naTerra at que o defeito estivesse consertado.

    O campo principal entrou em ao e o peso foi drenado da Centaurus. Houvegemidos de protesto da estrutura e do casco da nave enquanto as tenses seredistribuam. Os braos curvos da plataforma de pouso no suportavam mais carga

    alguma e o mais leve sopro de brisa teria carregado a nave cargueira para longe nocu.Da torre, o controlador chamou de novo:- Seu peso agora zero, verifique a calibragem.Saunders olhou para os medidores. O campo elevador seria agora idntico ao

    peso da nave e as leituras dos medidores deveriam concordar com o total dascargas embarcadas. Pelo menos uma vez essa verificao revelara a presena deum clandestino a bordo de uma espaonave - os medidores eram sensveis a esseponto.

    - Um milho, quinhentos e sessenta mil, quatrocentos e vinte quilogramas -leu Saunders nos indicadores de empuxo. - Muito bem, confere at uma margem de

    15 quilos. a primeira vez que temos peso de menos. Voc poderia ter levado umacarga extra de doces para aquela sua namorada opulenta de Port Lowell, Mitch.O co-piloto deu um sorriso amarelo. Nunca conseguira fazer com que

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    esquecessem um episdio ocorrido em Marte, que lhe dera a indesejada reputaode preferir louras esculturais.

    No havia sensao de movimento, mas a Centaurusagora entrava no cude vero, enquanto seu peso no era. apenas neutralizado, mas invertido. Para os

    observadores no solo, ela seria uma estrela se elevando, um glbulo prateadosubindo atravs das nuvens. sua volta, a atmosfera azul mergulhava na eternaescurido do espao. Como uma conta movendo-se ao longo de um fio invisvel, ocargueiro seguia o padro de ondas de rdio que o guiariam de um mundo a outro.

    Esta, pensou Saunders, era sua 26.a decolagem da Terra. Mas oencantamento no se esgotava nunca, nem ele poderia se cansar do sentimento depoder que lhe proporcionava estar sentado diante desse painel de controle,dominando foras alm dos sonhos dos antigos deuses. E no havia duas partidasiguais: algumas eram na aurora, outras em direo ao poente, algumas acima daTerra rendada de nuvens, outras sobre cus lmpidos e cintilantes. O espao podeser imutvel, mas na Terra o mesmo padro nunca se repete e nenhum homem

    jamais olhou duas vezes para o mesmo cu ou para a mesma paisagem. Lembaixo, as ondas do Atlntico marchavam eternamente em direo Europa, e aoalto, acima delas, mas muito abaixo da Centaurus, as brilhantes faixas de nuvensavanavam sopradas pelos mesmos ventos. A Inglaterra comeava a se confundircom o continente e a linha costeira da Europa tornava-se enevoada e reduzida pelaperspectiva, ao mergulhar abaixo da curva do horizonte. Nas fronteiras do oeste,uma mancha fugidia no horizonte era o primeiro indcio da Amrica. Com uma nicaolhadela, o capito Saunders poderia abarcar todas as lguas atravs das quaisColombo avanara com dificuldade, meio milhar de anos atrs.

    Com o silncio da fora ilimitada, a nave se desvencilhou dos ltimos eloscom a Terra. Para um observador externo, o nico sinal da energia que elaconsumia seria o brilho vermelho das aletas irradiadoras, no equador da nave,dissipando no espao a perda de calor dos conversores de massa.

    "14:03:45", escreveu o capito Saunders caprichosamente em seu dirio."Velocidade de escape alcanada. Desvio de curso desprezvel."

    A anotao era desnecessria. Os modestos 40 mil quilmetros horrios quehaviam sido quase inatingveis para os primeiros astronautas no tinham qualquersignificado prtico agora, uma vez que a Centaurusainda acelerava e continuaria aganhar velocidade durante horas. Mas o significado psicolgico era profundo. Atento, se a energia falhasse, eles teriam cado de volta Terra. Agora, a gravidadeno seria mais capaz de recaptur-los. Haviam atingido a liberdade do espao e

    poderiam escolher o planeta que quisessem. Na prtica, claro, haveria o diabo seeles no escolhessem Marte nem entregassem sua carga de acordo com os planos,mas o capito Saunders, como todos os espaonautas, era fundamentalmente umromntico. Mesmo num vo de rotina como esse, s vezes ele sonhava com a glriaanelada de Saturno, ou com as vastides escuras de Netuno, iluminadas pelos fogosdistantes de um Sol encolhido.

    Uma hora aps a decolagem, de acordo com o sagrado ritual, Chambersdeixou o computador de navegao por sua prpria conta e exibiu os trs clicesque ficavam guardados embaixo da mesa de mapas. Enquanto fazia o tradicionalbrinde a Newton, Oberth e Einstein, Saunders procurava saber qual a origem dessacerimnia. Tripulaes espaciais faziam isso h pelo menos 60 anos e talvez a

    origem pudesse ser rastreada at aquele legendrio engenheiro de foguetes quefizera a famosa observao: "Eu consumo mais lcool em 60 segundos do que vocjamais vendeu neste seu bar piolhento."

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    Duas horas depois, o computador foi alimentado com a ltima correo decurso que as estaes rastreadoras da Terra poderiam fornecer. De agora emdiante, at que Marte surgisse deslizando sua frente, eles estavam sozinhos. Umpensamento que causava solido e no entanto curiosamente agradvel, a ponto de

    Saunders sabore-lo em sua mente. S havia eles trs e ningum mais num raio de1.600.000 km.Nessas circunstncias, a detonao de uma bomba atmica dificilmente teria

    sido mais perturbadora do que uma modesta batida na porta da cabine...O capito Saunders nunca se assustara tanto em sua vida. Com um grito que

    j escapara de sua boca antes mesmo que tivesse uma chance de segur-lo,disparou quase um metro acima de sua poltrona antes que a gravidade residual danave o arrastasse para baixo. Chambers e Mitchell, por outro lado, mantiveram atradicional fleuma britnica. Simplesmente giraram em seus assentos em forma deconcha, olhando para a porta e esperando que o comandante tomasse a iniciativa.

    Saunders precisou de vrios segundos para se recuperar. Tivesse sido

    confrontado com o que poderia ser chamado de emergncia normal e ele j estariacom metade do corpo dentro de um traje espacial. Mas uma modesta batida na portada cabine de controle, quando todos os ocupantes da nave se encontravamsentados ao seu lado, no era um teste razovel.

    Um clandestino era simplesmente impossvel. O perigo fora to bvio, desdeos primrdios do vo espacial comercial, que as mais severas precaues eramtomadas. Saunders sabia que um de seus oficiais estaria sempre de servio duranteo carregamento, de modo que ningum pudesse esgueirar-se para dentro sem serpercebido. Depois haveria a detalhada inspeo de pr-vo realizada por Mitchell eChambers. finalmente, havia o teste do peso, um momento antes da decolagem, quefoiconclusivo. No, um clandestino era inteiramente...

    A batida na porta soou novamente. O capito Saunders fechou os punhos ecomprimiu o maxilar. Dentro de alguns minutos, pensou ele, algum romntico idiotaia se arrepender.

    - Abra a porta, Sr. Mitchell - rosnou ele. Com uma nica e longa passada, oco-piloto cruzou a cabine e escancarou a comporta.

    Por longo tempo, ningum falou. Ento, o clandestino entrou na cabinebamboleando ligeiramente na baixa gravidade. Ele parecia completamente calmo emuito satisfeito consigo mesmo.

    - Boa-tarde, capito Saunders - disse ele. - Devo-lhe uma desculpa por estasbita intruso.

    Saunders engoliu em seco. Ento, enquanto as peas do quebra-cabeaacabavam por se encaixar, ele olhou primeiro para Mitchell, depois para Chambers.Os dois oficiais responderam com expresses de sincera e indizvel inocncia.

    - Ento isso - exclamou Saunders amargamente.No havia mais qualquer necessidade de explicaes, tudo estava

    perfeitamente claro. Era fcil imaginar as complicadas negociaes, os encontros meia-noite, a falsificao dos registros, a descarga dos volumes no-essenciais queseus companheiros de confiana haviam realizado s suas costas. Tinha certeza deque seria uma histria muito interessante, mas no queria ouvi-la agora. Estavamuito preocupado tentando imaginar o que o Manual de direito espacial diria arespeito de uma situao como essa, embora j tivesse a certeza sombria de que

    no iria ajud-lo em nada.Obviamente, era tarde demais para voltar. Os conspiradores no teriamcometido um erro de clculo to bvio. Ele teria que se sair da melhor maneira

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    possvel no que parecia ser a sua viagem mais delicada.Ainda tentava imaginar alguma coisa para dizer quando o sinal PRIORIDADE

    comeou a piscar no painel do rdio. O clandestino olhou para seu relgio.- Eu estava esperando por isso - disse ele. - Provavelmente, o primeiro-

    ministro. Acho melhor falar com o pobre homem.Saunders concordou.- Muito bem, Vossa Majestade Real - disse ele mal-humorado e com tamanha

    nfase que o ttulo soou quase como um insulto. Ento, sentindo-se por demaisaborrecido, retirou-se para um canto.

    Era realmente o primeiro-ministro e parecia extremamente desconcertado.Vrias vezes usou a expresso "sua obrigao para com o povo" e pelo menos umavez houve uma distinta emoo em sua voz ao dizer algo a respeito da "devoo deseus sditos Coroa". Saunders compreendeu com surpresa que o homemrealmente acreditava no que dizia.

    Enquanto prosseguia essa lengalenga emotiva, Mitchell inclinou-se para

    Saunders e sussurrou-lhe no ouvido:- O velho tem um grande problema e sabe disso. Todo mundo vai sair atrs

    do prncipe quando ouvirem o que aconteceu. voz corrente que h anos ele tentasubir ao espao.

    - Preferia que ele no tivesse escolhido a minhanave - respondeu Saunders.- E ainda no tenho certeza se isso no conta como motim.

    - Motim coisa nenhuma. Guarde bem minhas palavras: quando tudo istoestiver terminado, voc ser o nico texano a possuir a Ordem da Jarreteira. Noser timo?

    - Psiu! - pediu Chambers. O prncipe estava falando, suas palavras saltavamo abismo que agora o separava da ilha que um dia governaria.

    - Sinto muito, senhor primeiro-ministro - disse -, se lhe causei preocupao.Estarei de volta assim que for oportuno. Algum tem de fazer tudo pela primeira veze eu senti que chegara o momento de um membro da minha famlia deixar a Terra.Ser uma parte valiosa de minha educao e me tornar mais apto a cumprir minhasobrigaes. Adeus.

    Deixou cair o microfone e caminhou para a janela de observao, a nica quese abria para o espao em toda a nave. Saunders o observou de p diante da janela,orgulhoso e solitrio, mas inteiramente satisfeito, agora. E, ao ver o prncipe olhandopara as estrelas que afinal alcanara, sentiu que todo o aborrecimento e aindignao lentamente se esvaam.

    Por longo tempo, ningum falou. Afinal, o prncipe Henrique afastou seu olhardo deslumbrante esplendor alm da vigia, virou-se para o capito Saunders e sorriu.- Onde a cozinha, capito? Posso estar sem prtica, mas quando eu era

    escoteiro costumava ser o melhor cozinheiro da minha patrulha.Saunders relaxou-se lentamente e respondeu ao sorriso. A tenso pareceu

    escapar da cabine de controle e, embora Marte ainda estivesse bem longe, ele tevecerteza de que, afinal de contas, a viagem no ia ser m.

    O OUTRO LADO DO CUENTREGA ESPECIAL

    Ainda posso me lembrar do entusiasmo que tomou conta de todos em 1957quando a Rssia lanou os primeiros satlites artificiais, conseguindo suspender al-

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    guns quilos de instrumentos acima da atmosfera. claro que eu era apenas umgaroto na ocasio, mas saa de casa ao cair da tarde, como todo mundo, tentandolocalizar aquelas minsculas esferas de magnsio enquanto elas disparavamatravs do cu do crepsculo, centenas de quilmetros acima de minha cabea.

    estranho pensar que algumas delas ainda esto no mesmo lugar, embora agoraestejam abaixode mim, de modo que eu teria de olhar em direo Terra se qui-sesse v-las.

    Sim, um bocado de coisas aconteceu nestes ltimos 40 anos e receio quevocs a na Terra considerem as estaes espaciais como algo comum, do dia-a-dia, esquecendo-se de toda a habilidade, cincia e coragem consumidas em suaconstruo. Quo frequentemente vocs param para pensar que todas as suaschamadas telefnicas de longa distncia e a maioria de seus programas de televisoso transmitidos atravs de um dos satlites? E quantas vezes do crdito aosmeteorologistas aqui em cima pelo fato de as previses do tempo no constituremmais piadas, como na poca de seus avs, tendo agora uma preciso que chega

    aos 99%?A vida era difcil na dcada de 1970, quando eu subi para trabalhar nas

    estaes externas. Elas estavam sendo construdas s pressas para abrirem os mi-lhes de novos canais de tev e rdio que seriam disponveis to logo existissemequipamentos, aqui no espao, capazes de transmitir programas para qualquer lugardo globo.

    Os primeiros satlites artificiais giravam muito prximos da Terra, enquanto astrs estaes, formando o grande tringulo da Rede Retransmissora, precisam ficara 35.200 km de altura, igualmente espaadas em torno do equador. A essa altitude,e em nenhuma outra, elas levam exatamente um dia para completar suas rbitas,ficando assim eternamente suspensas sobre o mesmo ponto da Terra em rotao.

    J trabalhei nas trs estaes, mas meu primeiro servio foi a bordo daRetransmissora Dois. Ela fica quase exatamente sobre Entebbe, em Uganda, efornece servios para a Europa, a frica e a maior parte da sia. Hoje em dia, umaestrutura imensa, com centenas de metros de largura, transmitindo milhares deprogramas simultneos para o hemisfrio abaixo, enquanto lida com o trfego derdio de metade do mundo. Quando a vi pela primeira vez, entretanto, da janela dofoguete transportador que me levara at a rbita, ela parecia uma pilha de refugo deriva no espao. Partes pr-fabricadas flutuavam ao redor em incorrigvel confuso,e parecia impossvel que alguma ordem pudesse emergir daquele caos.

    As acomodaes para a equipe tcnica e os grupos de montagem eram

    primitivas, consistindo em uns poucos foguetes transportadores fora de uso quehaviam sido depenados de tudo, exceto dos purificadores de ar. Eram os "cascos",como ns os batizamos, onde um homem teria apenas espao suficiente paraacomodar a si prprio mais alguns metros cbicos para seus pertences. Havia umaestranha ironia no fato de que, embora vivssemos no meio do espao infinito, malpodamos abrir os braos.

    Foi um grande dia quando recebemos a notcia de que os primeirosalojamentos pressurizados estavam subindo ao nosso encontro. Completos, comchuveiros de jato-agulha capazes de funcionar at aqui, onde a gua, como tudomais, no tinha peso. A no ser que j tenham vivido a bordo de uma espaonavesuperlotada, vocs no sero capazes de perceber o que isso significa. Poderamos

    jogar fora nossas esponjas midas e sentir-nos verdadeiramente limpos, afinal. ..E os chuveiros no eram os nicos luxos prometidos. Tambm estavamenviando da Terra uma espaosa sala de estar inflvel, capaz de acomodar at oito

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    pessoas, uma biblioteca microfilmada, uma mesa magntica de bilhar, jogos dexadrez de material leve e novidades similares para espaonautas entediados. Sim-plesmente pensar em todos esses confortos j fazia parecer suportvel a vidaapertada dentro dos cascos, ainda que nos pagassem apenas mil dlares por sema-

    na para aguent-la.Partindo da Segunda Zona de Reabastecimento, 3.200 km acima da Terra, ofoguete to avidamente esperado levaria seis horas para chegar at ns com suapreciosa carga. Eu estava de folga naquela ocasio e me posicionei ao telescpio,onde costumava passar meus escassos perodos de lazer. Era impossvel mecansar de explorar o grande mundo suspenso no espao ao nosso lado. Com amaior potncia do telescpio, a pessoa se sentia a apenas uns poucos quilmetrosacima da superfcie da Terra e, quando no havia nuvens, era possvel distinguirobjetos do tamanho de uma pequena casa. Eu nunca estivera na frica, mas passeia conhec-la muito bem enquanto estava de folga na Estao Dois. Voc pode noacreditar nisto, mas eu frequentemente localizava elefantes movendo-se ao longo

    das plancies, e as imensas manadas de zebras e antlopes eram fceis de ver,enquanto fluam para l e para c, como mars vivas sobre as grandes reservas.

    Mas o meu espetculo favorito era a aurora surgindo sobre as montanhas nocorao do continente. A linha de luz solar vinha deslizando sobre o oceano Indico eo novo dia apagava as minsculas e cintilantes galxias das cidades que reluziamna escurido abaixo de mim. Antes que o sol atingisse as terras baixas ao redor, ospicos do Kilimanjaro e do monte Qunia flamejavam na aurora, qual estrelasbrilhantes cercadas pela noite. E enquanto o sol se elevava mais alto, o diamarchava rapidamente ao longo de suas encostas, at que os vales se enchessemde luz. A Terra estava ento em seu primeiro quarto crescente, em direo TerraCheia.

    Doze horas depois eu presenciaria o mesmo processo se revertendo,enquanto as mesmas montanhas recebiam os ltimos raios do poente. Elasbrilhariam por breve momento no estreito cinturo do crepsculo e ento a Terragiraria rumo escurido e a noite desceria sobre a frica.

    Mas no era a beleza do globo terrestre que me preocupava agora. Nem aomenos olhava para a Terra, e sim para a penetrante estrela azul-clara que seelevava acima da borda ocidental do disco do planeta. O cargueiro automticoencontrava-se eclipsado pela sombra da Terra e o que eu via era a incandescnciados foguetes que o impulsionavam em sua subida de 32 mil km.

    Tantas vezes eu j observara foguetes subindo ao nosso encontro que

    conhecia de cor todas as etapas de suas manobras. Assim, quando os foguetes nose apagaram, continuando a queimar ininterruptamente, em questo de segundosfiquei sabendo que alguma coisa estava errada. Numa fria intil e doentia, observeienquanto todos os nossos esperados confortos e, pior ainda, a nossacorrespondncia moviam-se com rapidez cada vez maior ao longo de uma rbitainvoluntria. O piloto automtico do cargueiro emperrara, se houvesse um pilotohumano a bordo, ele poderia ter assumido os controles, desligando o motor, masagora todo o combustvel que teria conduzido o transporte em sua viagem de ida evolta estava sendo queimado numa nica descarga de fora.

    Quando os tanques de combustvel se esgotaram e aquela estrela distantetremeluziu e se apagou no campo de viso do meu telescpio, as estaes rastrea-

    doras j haviam confirmado o que eu sabia. O cargueiro j se movia com demasiadarapidez para que a gravidade da Terra pudesse recaptur-lo; de fato, dirigia-se paraas vastides csmicas alm de Pluto... Levou um bom tempo para que o moral

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    fosse recuperado, e quando algum, na seo de computao, calculou a histriafutura de nosso cargueiro desgarrado, isso s tornou as coisas piores. Como vocssabem, nada se perde realmente no espao. Uma vez que uma rbita calculada,voc sabe onde algo vai estar at o fim da eternidade. Enquanto observvamos

    nossa sala de estar, nossa biblioteca, nossos jogos e nossa correspondncia seafastando nos amplos horizontes do sistema solar, j sabamos que tudo voltaria umdia, em perfeitas condies. Se tivssemos uma nave de prontido, seria fcilinterceptar tudo na segunda vez que passasse em sua trajetria ao redor do Sol,bem no incio da primavera do ano 15862 d.C.UM AMIGO DE PENAS

    Pelo menos que eu saiba, nunca houve um regulamento que proibisse algum demanter bichos de estimao a bordo de estaes espaciais. Ningum nunca seimportou, e se tal norma existisse eu tenho certeza de que Sven Olsen a teriaignorado.

    Com um nome como esse, vocs podem imaginar Sven imediatamente comoum gigante nrdico de quase dois metros de altura, com a constituio de um touro euma voz do mesmo teor. Se fosse assim, suas chances de conseguir trabalho noespao teriam sido muito pequenas. Na verdade ele era um sujeitinho magro masvigoroso, como a maioria dos primeiros astronautas, e conseguia qualificar-sefacilmente para-o prmio de 150 libras que mantinha tantos de ns em dieta deemagrecimento.

    Sven era um dos nossos melhores montadores e superava a todos notrabalho difcil e especializado de recolher as vigas quando estas flutuavam ao redorem queda livre, obrigando-as a realizar o bale tridimensional em cmara lenta que ascolocaria nas posies exatas, ento fundindo as peas quando estivessemprecisamente posicionadas dentro do padro desejado. Eu nunca me cansava deobserv-lo e a seu grupo enquanto a estao crescia sob as mos deles como umimenso quebra-cabea. Era uma tarefa difcil, j que um traje espacial no umavestimenta muito cmoda para se trabalhar. No entanto a equipe de Sven tinha umagrande vantagem sobre as turmas de construo que vocs podem ver na Terraerguendo arranha-cus. Podiam retroceder e admirar sua obra sem seremabruptamente separados dela pela gravidade.

    No me perguntem por que Sven queria um bichinho de estimao, nem porque ele escolheu aquele. No sou psiclogo, mas devo admitir que sua escolha foimuito ajuizada. Claribel no pesava praticamente nada, suas necessidades

    alimentares eram infinitesimais e, ao contrrio do que teria acontecido com a maioriados animais, ela no se afligia com a ausncia de gravidade.A primeira vez que percebi Claribel a bordo foi quando estava sentado no

    minsculo cubculo que eu ironicamente chamava de meu escritrio, verificandominhas listas de estoques para decidir quais os itens que iam faltar a seguir. Quandoouvi um assovio musical junto de minha orelha pensei que fora emitido pelo sistemade intercomunicao e fiquei aguardando um comunicado. Este no veio: e em vezdisso houve um longo e envolvente padro meldico que me fez olhar para cima tosubitamente que me esqueci completamente de uma quina de viga metlica bematrs da minha cabea. Quando as estrelas cessaram de cintilar diante de meusolhos, tive minha primeira viso de Claribel.

    Era um pequeno canarinho amarelo, suspenso no ar, to imvel quanto umbeija-flor, mas com muito menos esforo, j que suas asas estavam serenamentefechadas. Ns olhamos um para o outro durante um minuto e, antes que eu pudesse

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    compreender o que estava acontecendo, ele deu um curioso salto para trs, quetenho certeza nenhum canrio terrestre jamais conseguiu, e partiu com algumaspreguiosas batidas de asa. Era bastante evidente que j aprendera a operar naausncia de gravidade e no desejava se esforar alm do necessrio.

    Sven no confessou que era o dono do bichinho durante vrios dias e,quando afinal o fez, isso no mais importava, j que Claribel conquistara a todos. Eleo introduzira clandestinamente no ltimo transporte da Terra, quando retornava deum perodo de licena, parcialmente, afirmava, por pura curiosidade cientfica: queriaver como um pssaro se comportaria quando no tivesse mais peso, mas aindapudesse usar as asas.

    Claribel vicejou e engordou. De um modo geral no tnhamos muitadificuldade em ocultar nosso hspede no autorizado quando os VIPs da Terravinham nos visitar. Uma estao espacial tem incontveis lugares para esconderijos,e o nico problema que Claribel ficava um pouco barulhento quando se perturbava.s vezes tnhamos que pensar rpido para explicar os curiosos pios e assovios que

    saam dos poos de ventilao e anteparos dos depsitos. Por duas vezesescapamos por pouco, mas quem sonharia em procurar um canrio em uma estaoespacial?

    Trabalhvamos agora em turnos de 12 horas, o que no era to mau quantoparece, uma vez que se necessita de muito pouco sono quando no espao. claroque no existe "dia" ou "noite" quando se flutua em luz solar permanente, mas aindaera conveniente nos prendermos s tradies. Certamente quando acordei naquela"manh", me sentia realmente como s seis da manh na Terra. Tinha uma dor decabea persistente e vagas lembranas de uma noite de sonhos agitados. Leveisculos para desatar as correias de minha cama e ainda me encontrava apenasparcialmente acordado quando me reuni ao resto da equipe de planto no refeitrio.O desjejum foi extraordinariamente silencioso e havia um assento vago.

    - Onde est o Sven? - perguntei no muito preocupado.- Est procurando Claribel - algum respondeu. - Disse que no consegue

    encontr-lo em parte alguma. E normalmente o canrio que o acorda.Antes que eu pudesse replicar que, normalmente, tambm ele que me

    acorda, Sven apareceu na porta e todos percebemos imediatamente que algumacoisa estava errada. Ele abriu lentamente uma das mos e l estava um minsculomontinho de penas amarelas com duas pequeninas garras apontadas pateticamentepara cima.

    - O que aconteceu? - perguntamos todos ns, igualmente preocupados.

    - No sei - disse ele desolado. - J o encontrei assim.- Vamos dar uma olhada - disse Jock Duncan, nosso cozinheiro-mdico-dietista. Aguardamos em silncio enquanto ele o segurava de encontro ao ouvidonuma tentativa de detectar algum batimento cardaco.

    Da a pouco sacudiu a cabea.- No ouo nada, mas isso no prova que ele esteja morto. Nunca auscultei o

    corao de um canrio - acrescentou guisa de desculpa.- D-lhe uma dose de oxignio - sugeriu algum, apontando para o

    cilindro de emergncia com a faixa verde no nicho ao lado da porta. Todos con-cordaram que era uma ideia excelente e Claribel foi acomodado dentro da mscarade oxignio, que era suficientemente grande para servir-lhe de tenda.

    Para nossa agradvel surpresa ele se reanimou imediatamente. Com umlargo sorriso Sven removeu a mscara e Claribel subiu em seu dedo. Deu uma sriede trinados do tipo que usava para nos convocar ao refeitrio e prontamente virou

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    outra vez de pernas para o ar.- No entendo - lamentou Sven. - Que h de errado com ele? Nunca fez isso

    antes.Naqueles ltimos minutos havia alguma coisa perturbando minha mente, mas

    meus pensamentos pareciam demasiado retardados naquela manh, como se poralgum motivo eu fosse incapaz de despertar inteiramente. Achei que precisava deum pouco daquele oxignio, mas antes que pudesse alcanar a mscara acompreenso explodiu em meu crebro. Voltei-me para o engenheiro que estava deservio e disse afobado:

    - Jim! H alguma coisa errada com o ar! por isso que Claribel desmaiou.Acabo de me lembrar que os mineiros costumam levar canrios para avis-los deuma contaminao por gases.

    - Tolice - respondeu Jim. - Os alarmes teriam disparado. Temos circuitosduplos operando independentemente .

    - Ah... o segundo alarme ainda no foi ligado - lembrou o seu assistente.

    Aquilo abalou Jim e ele saiu sem dizer mais nada, enquanto continuvamos adiscutir e a passar a garrafa de oxignio como se fosse um cachimbo da paz.

    Ele voltou dez minutos depois com uma expresso de humildade. Fora umdaqueles acidentes que no poderiam acontecer: havamos sofrido um de nossosraros eclipses na sombra da Terra durante aquela noite, e parte do purificador de arse congelara. O nico alarme no circuito de emergncia no funcionara e meiomilho de dlares em engenharia qumica e eltrica tinham nos deixado na mo.Sem Claribel logo estaramos mortos.

    Assim, se voc visitar agora alguma estao espacial, no se surpreenda seouvir um inexplicvel trinado de pssaro. No precisa ficar alarmado, pelo contrrio.Isso significar que sua segurana est duplamente garantida, quase sem despesaextra.

    RESPIRE FUNDO

    H muito tempo descobri que as pessoas que nunca saram da Terra tmcertas idias fixas a respeito das condies de vida no espao. Todo mundo "sabe",por exemplo, que um homem morre de modo horrvel e instantneo quando exposto ao vcuo que existe alm da atmosfera. Na literatura popular, voc encon-trar numerosas descries sangrentas de viajantes espaciais que explodiram, e euno vou estragar seu apetite repetindo-as aqui. Algumas dessas histrias so

    basicamente verdadeiras. J puxei para dentro da comporta homens que seriampssima publicidade para as viagens espaciais.E no entanto, ao mesmo tempo, existem excees a toda regra, at mesmo a

    essa. Eu sei porque aprendi do modo mais difcil.Encontrvamo-nos nos ltimos estgios da construo do Satlite de

    Comunicaes Dois, todas as principais unidades haviam sido unidas, os alojamen-tos, pressurizados, e a estao iniciara o lento movimento de rotao em torno deseu eixo, o que trouxera de volta a sensao, pouco familiar, do peso. Eu disse"lento", mas em sua borda exterior a nossa roda de 60 m de dimetro encontrava-segirando a 48 km por hora. claro que no tnhamos qualquer sensao demovimento, mas a fora centrfuga causada por esse giro nos proporcionava metade

    do peso que teramos na Terra. Isso era o suficiente para evitar que as coisasficassem flutuando nossa volta, sem nos deixar desconfortavelmente vagarososaps semanas sem qualquer sensao de peso.

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    ramos quatro dormindo na pequena cabine cilndrica, conhecida comobarraca nmero seis, na noite em que tudo aconteceu. A cabine ficava no limite daestao, e se vocs imaginarem uma roda de bicicleta com um cordo de salsichassubstituindo o pneu tero uma boa ideia da estrutura toda. A barraca nmero seis

    era uma dessas salsichas e ns dormamos pacificamente em seu interior.Fui acordado por uma sbita sacudidela que no foi suficientemente violentapara me deixar alarmado, mas que me fez sentar e tentar descobrir o que acon-tecera. Qualquer coisa fora do normal numa estao espacial exige atenoinstantnea: assim, estendi a mo para o boto do intercomunicador ao lado deminha cama.

    - Al, Central - chamei. - O que foi isso?No houve resposta, a linha estava muda.Agora completamente alarmado, pulei da cama e tive um choque muito maior.

    No havia mais gravidade. Subi para o teto antes que tivesse oportunidade deagarrar um suporte, interrompendo o movimento ao custo de torcer o pulso.

    Era impossvel que a estao inteira houvesse subitamente parado de girar.S havia uma resposta. A falha no intercomunicador e, como rapidamentedescobrimos, no circuito de iluminao forou-nos a encarar a apavorante verdade.No ramos mais parte integrante da estao; nossa pequena cabine de algummodo se soltara, sendo atirada ao espao como uma gota de chuva caindo sobre umvolante giratrio.

    No havia janelas atravs das quais pudssemos olhar, mas no estvamosem completa escurido, j que as luzes de emergncia, acionadas por baterias,tinham se acendido automaticamente. Do mesmo modo, todas as aberturas deventilao haviam se fechado quando a presso cara. Por ora, poderamos conti-nuar vivendo em nossa atmosfera particular, muito embora no estivesse sendorenovada. Infelizmente, um contnuo assovio revelou-nos que o ar estava escapandoatravs de uma fenda em algum lugar da cabine.

    No havia meio de saber o que acontecera com o resto da estao. Pelo quesabamos, toda a estrutura poderia ter-se desmantelado e todos os nossos colegaspoderiam estar mortos ou na mesma situao em que nos encontrvamos: flutuandono espao em latas de ar que vazavam lentamente. Nossa nica e frgil esperanaera a possibilidade de que fssemos os nicos nufragos, que o resto da estaoestivesse a salvo e fosse capaz de enviar uma turma de resgate para nos encontrar.Afinal, estaramos nos afastando a no mais do que 48 km/h e uma das motonetas-foguetes poderia nos alcanar em questo de minutos.

    Na verdade, levou uma hora, embora, no fosse o meu relgio, eu nunca teriaacreditado que levasse to pouco tempo. Estvamos agora ofegantes e a agulha nomostrador em nosso nico tanque de oxignio de emergncia descera para umadiviso acima de zero.

    As batidas na parede pareciam sinal de um outro mundo. Batemos de voltavigorosamente e um momento depois uma voz abafada chamou atravs da parede.Algum do lado de fora pressionara o capacete de seu traje espacial de encontro aometal e seus gritos nos alcanavam por conduo direta. No era to ntido quanto ordio, mas funcionava.

    O ponteiro do oxignio arrastou-se lentamente para zero enquanto tnhamos onosso conselho de guerra. Estaramos todos mortos antes que pudssemos ser

    rebocados de volta estao, e no entanto a nave de resgate se encontrava aapenas alguns metros de distncia de ns, com sua comporta j aberta. Nossopequeno problema resumia-se em cruzar aqueles poucos metros... sem os trajes

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    espaciais.Fizemos nossos planos cuidadosamente, ensaiamos todos os movimentos

    com o pleno conhecimento de que no haveria repeties da performance . Depois,cada um de ns respirou profundamente, inspirando uma ltima golfada de oxignio

    para os nossos pulmes. Quando ficamos prontos, batemos na parede para enviar osinal aos nossos amigos que esperavam do lado de fora.Houve uma srie de batidas curtas enquanto as ferramentas automotoras

    trabalhavam no fino casco. Agarramo-nos firmemente aos suportes, o mais longepossvel da entrada, sabendo o que ia acontecer. E, quando aconteceu, foi tosbito que a mente foi incapaz de registrar a exata sequncia de eventos. A cabinepareceu explodir e um grande vento me puxou. O ltimo vestgio de ar me escapoudos pulmes atravs da boca, j aberta; depois, o silncio total e as estrelasbrilhando atravs da abertura escancarada que nos conduziria para a vida.

    Acreditem, no parei para analisar as sensaes. Acho, embora no tenhacerteza se no foi a imaginao, que meus olhos estavam ardendo e havia um

    formigamento sobre todo o meu corpo. E eu sentia muito frio, talvez porque aevaporao j estivesse comeando em minha pele.

    A nica coisa de que tenho certeza daquele fantstico silncio. Nunca osilncio total em uma estao espacial; h sempre o som das mquinas e bombasde ar. Esse era o silncio absoluto do vcuo, onde no havia o menor vestgio de arcapaz de conduzir sons.

    Quase imediatamente nos lanamos atravs da parede arrebentada,enfrentando o impacto direto da luz solar. Fiquei cego instantaneamente, mas issono importava, pois os homens, esperando nos trajes espaciais, me agarraram logo,assim que sa, e me empurraram para dentro da comporta da nave. L, o somgradualmente retornou enquanto o ar esguichava para dentro e nos lembrvamos deque poderamos respirar novamente. Depois me disseram que todo o salvamentodurara apenas vinte segundos...

    Bem, fomos os scios fundadores do Clube dos Respiradores de Vcuo, edesde aquela ocasio pelo menos uma dzia de outros homens j fez a mesmacoisa em emergncias semelhantes. O tempo recorde no espao agora de doisminutos; depois disso, o sangue comea a formar bolhas enquanto ferve temperatura do corpo, e essas bolhas logo chegam ao corao.

    No meu caso, s houve um efeito posterior. Durante talvez uns 15 segundos,fiquei exposto verdadeira luz solar, no essa coisa dbil que se filtra atravs daatmosfera da Terra. Respirar espao no me feriu nem um pouco, mas eu peguei a

    pior queimadura de sol que j tive na vida.

    LIBERDADE DO ESPAO

    Suponho que poucos entre vocs podem imaginar como eram as coisas antesque, graas aos satlites retransmissores, dispusssemos do atual sistema mundialde comunicaes. Quando eu era garoto, era impossvel enviar programas deteleviso atravs dos oceanos ou at mesmo estabelecer um contato de rdioconfivel, alm da curvatura da Terra, sem apanhar um timo sortimento de chiadose estalidos no caminho. E no entanto agora consideramos normal os circuitos livres

    de interferncias e no achamos nada demais em ver os nossos amigos do outrolado do globo to claramente como se estivssemos face a face. simplesmente umfato que, sem os satlites retransmissores, toda a estrutura mundial de comrcio e

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    indstria desabaria. Sem ter a gente aqui nas estaes espaciais, para retransmitiras mensagens em torno do globo, como vocs acham que as grandes organizaesde negcios manteriam contato entre seus crebros eletrnicos altamentedispersos?

    Mas tudo isso ainda era futuro no final da dcada de 1970, quandoterminamos o trabalho na Cadeia Retransmissora. J lhes contei a respeito dealguns dos problemas e quase desastres, eles eram bem srios quandoaconteceram, mas por fim superamos a todos. As trs estaes, igualmenteespaadas ao redor da Terra, no eram mais pilhas de vigas, cilindros de ar ecmaras plsticas de presso. Sua montagem estava terminada, havamo-nosmudado para dentro e agora podamos trabalhar com conforto, sem sermos tolhidospor trajes espaciais. E tnhamos gravidade novamente, agora que as estaeshaviam sido colocadas em lenta rotao. No era a gravidade verdadeira, claro,mas a fora centrfuga parece exatamente a mesma coisa quando se est noespao. Era agradvel poder derramar bebidas num copo e sentar sem ser

    carregado na primeira corrente de ar.Depois que as trs estaes tinham sido construdas, ainda restava um ano

    de trabalho contnuo a ser feito para instalar todos os equipamentos de rdio eteleviso, que elevariam as redes de comunicao do mundo at o espao. Foi umgrande dia quando estabelecemos a primeira ligao de tev entre a Inglaterra e aAustrlia. O sinal era irradiado para ns da Retransmissora Dois e, sentados porsobre o centro da frica, ns o irradivamos para a Retransmissora Trs, colocadaacima da Nova Guin, e eles o disparavam para a Terra novamente, limpo e claroaps uma jornada de 144.000 km.

    Esses, entretanto, eram os testes particulares dos engenheiros. Ainaugurao oficial do sistema seria o maior evento na histria mundial dastelecomunicaes: um minucioso programa global de tev no qual cada naotomaria parte. Seria um showde trs horas de durao, quando, pela primeira vez,cmaras de tev ao vivo passeariam volta do mundo proclamando humanidade aqueda da ltima barreira de distncia.

    O planejamento do programa, acreditava-se com certo cinismo, consumiratanto esforo quanto a prpria construo das estaes espaciais. De todos osproblemas que os planejadores precisaram resolver, o mais difcil foi a escolha domestre-de-cerimnias, que apresentaria as atraes do minucioso programa global aser apreciado por metade da raa humana.

    Deus sabe quanta conspirao, chantagem e at mesmo destruio de

    reputaes ocorreu por trs dos bastidores. Tudo o que sabemos que, umasemana antes do grande dia, um foguete no-programado subiu at nossa rbita,tendo a bordo Gregory Wendell. Isso foi uma grande surpresa, j que Gregory noera uma personalidade televisiva to grande quanto, digamos, Jeffers Jackson nosEstados Unidos ou Vince Clifford na Inglaterra. Todavia, parece que os grandesastros se anularam mutuamente e Gregg conseguira o ambicionado trabalho atravsde um daqueles acordos to bem conhecidos dos polticos.

    Gregg iniciara sua carreira como disc jockey na estao de rdio de umauniversidade do Meio-Oeste norte-americano e abrira seu caminho atravs do circui-to de clubes noturnos de Hollywood e Manhattan at conseguir seu prprio programadirio, costa a costa. parte sua personalidade cptica mas bem-humorada, seu

    maior trunfo era a voz profunda e aveludada, pela qual provavelmente deviaagradecer aos seus ancestrais negros. Mesmo quando voc discordasse do que eledizia, de fato at mesmo quando ele o estivesse demolindo em uma entrevista, ainda

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    acharia um prazerouvi-lo.Ns lhe proporcionamos uma grande excurso pela estao espacial e at

    mesmo (quebrando os regulamentos) o levamos para fora, num traje espacial, atra-vs da comporta. Ele adorou tudo, mas houve duas coisas que apreciou em

    particular:- Este ar que vocs fabricam - disse ele - supera o negcio que temos querespirar l em Nova Iorque. Esta a primeira vez que minha sinusite deixa de meincomodar desde que entrei para a televiso.

    Ele tambm gostou muito da baixa gravidade, j que, na borda da estao,um homem s tinha metade de seu peso na Terra, enquanto no eixo no teria pesoalgum.

    Entretanto, a nova vizinhana no distraiu Gregg de seu trabalho. Elepassava horas no Centro de Comunicaes, melhorando seu texto e anotandocorretamente todas as deixas, enquanto estudava as dzias de telas monitoras queseriam suas janelas para o mundo. Eu o encontrei uma vez, enquanto ele ensaiava

    sua apresentao da rainha Elizabeth, que falaria do Palcio de Buckingham, bemno final do programa. Ele estava to atento ao ensaio que nem notou que eu meencontrava ao seu lado.

    Bem, o programa agora faz parte da histria. Pela primeira vez um bilho deseres humanos observaram um nico programa que chegava ao vivo de cada cantoda Terra, e era como que uma lista de chamada para os maiores cidados domundo. Centenas de cmaras na terra, no mar e no ar observaram, indagadoras, omundo que girava, e no final houve aquele maravilhoso zoom da Terra, vista daestao espacial, fazendo todo o planeta retroceder at ficar perdido entre asestrelas.

    Houve algumas falhas, claro. Uma cmara instalada no leito do oceanoAtlntico no entrou no ar na hora programada e ns fomos obrigados a passar umtempo extra olhando para o Taj Mahal. Devido a uma troca errnea, subttulosrussos foram sobrepostos transmisso sul-americana, enquanto metade da UnioSovitica tentava ler em espanhol. Mas isso no era nada, comparado ao quepoderiater acontecido.

    E durante aquelas trs horas, apresentando os famosos e os desconhecidoscom igual naturalidade, surgia a voz suave, mas nunca pomposa, de Gregg. Ele fezum trabalho magnfico, as congratulaes jorraram atravs do feixe de transmissesno momento em que o programa terminou. Mas ele no as ouviu, fazendo uma nicachamada particular para seu empresrio e indo para a cama.

    Na manh seguinte, o transporte para a Terra estava esperando para lev-lode volta em direo a qualquer emprego que quisesse aceitar. E no entanto ofoguete partiu sem Gregg Wendell, agora locutor novato da Retransmissora Dois.

    - Eles pensaro que enlouqueci - disse ele, sorrindo de felicidade -, mas porque eu deveria voltar para aquela corrida de ratos l embaixo? Aqui tenho todo ouniverso para olhar, posso respirar ar livre de poluio, a baixa gravidade me fazsentir um Hrcules e minhas trs queridas ex-esposas no podem me alcanar. - Ele jogou um beijo para o foguete que partia, dizendo: - Adeus, Terra, voltarei quandoestiver com saudade dos engarrafamentos da Broadway ou das alvoradas escurasem apartamentos de cobertura. Se tiver saudade de casa, posso olhar para qualquerlugar do planeta com um simples giro de boto. Afinal, estou mais no centro das

    coisas aqui do que jamais poderia estar a na Terra, e no entanto posso me desligarda raa humana quando quiser.Ele ainda sorria ao observar o transporte iniciando sua longa viagem de volta

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    para a Terra,em direo fama e fortuna que poderiam ter sido suas. Depois,assoviando alegremente, deixou a sala de observao, em passos de 2,5 m, a fimde ler a previso do tempo para a Patagnia Setentrional.

    TRANSITRIO

    justo advertir-lhes, de sada, que esta uma histria que no tem fim. Masteve um comeo bem definido, pois foi quando ramos estudantes na Astrotech queencontrei Julie. Ela estava em seu ltimo ano de fsica solar quando eu me formava,e durante o ltimo ano de estudos ns nos vimos um bocado. Ainda tenho o gorro del que ela tricotou para que eu no batesse com a cabeadentro de meu capaceteespacial. (No, nunca tive a coragem de us-lo.)

    Infelizmente, quando fui mandado para a Retransmissora Dois, Julie foi para oObservatrio Solar, mesma distncia da Terra, mas um par de graus para leste ao

    longo da rbita. Assim, l estvamos ns: 35.200 km acima do corao da frica,mas com 1 .440 km de espao vazio e hostil a nos separar.

    No incio, estvamos to ocupados que a dor da separao foi amortecida, decerto modo. Mas, quando a novidade da vida no espao terminou, nossospensamentos comearam a percorrer o abismo que nos separava. E no apenas osnossos pensamentos, j que eu fizera amizade com o pessoal das Comunicaes enos acostumamos a bater rpidos papos atravs do circuito de tev interestaes.De certo modo, isso s tornava as coisas piores, vendo-nos face a face sem saberquantas pessoas nos estariam observando ao mesmo tempo. No h muitaprivacidade numa estao espacial...

    Algumas vezes, eu focalizava um dos nossos telescpios na estrela brilhantee longnqua que era o observatrio. Na claridade cristalina do espao, eu podia usarampliaes enormes e ver cada detalhe do equipamento de nossos vizinhos: ostelescpios solares, as esferas pressurizadas dos alojamentos que abrigavam aequipe, os lpis delgados dos foguetes de transporte que o visitavam, vindos daTerra. Frequentemente havia figuras em trajes espaciais, movendo-se em meio aolabirinto de equipamentos, e eu forava a vista numa desesperada e intil tentativade identificao. J difcil reconhecer algum num traje espacial mesmo quando seest a alguns metros de distncia. Isso no me impedia de tentar.

    Resignamo-nos a esperar, com toda a pacincia que poderamos reunir, atnosso perodo de licena, dentro de seis meses, quando tivemos um inesperado

    golpe de sorte. Menos da metade de nosso turno de trabalho se passara quando ochefe da seo de transporte subitamente anunciou que ia l fora com uma rede depegar borboletas para tentar agarrar uns meteoros. Ele no se tornou violento, masteve que ser despachado apressadamente para a Terra. Assumi a sua funo numabase temporria e agora tinha, pelo menos em teoria, a liberdade do espao.

    Havia dez das pequenas motonetas-foguetes de baixa potncia sob o meuorgulhoso comando, alm dos quatro grandes txis interestaes usados para trans-portar equipamento e pessoal de uma rbita para outra. Eu no tinha esperanas deconseguir um desses emprestado, mas, aps vrias semanas de cuidadosoplanejamento, fui capaz de colocar em ao um plano que concebera doismicrossegundos depois de ser informado de que agora era o chefe dos transportes.

    No h necessidade de dizer como fraudei listas de servio, falsifiquei diriose registros de combustvel ou persuadi meus colegas a me darem cobertura. Tudo oque importa que uma vez por semana eu poderia entrar no meu prprio traje

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    espacial, amarrar-me estrutura semelhante a uma aranha da moto Mark III e meafastar da estao sob fora mnima. Quando estava bem longe, eu passava paraempuxo total e o minsculo motor do foguete me arremessava atravs do vazio de1.440 km, at o observatrio.

    A viagem levava trinta minutos e as exigncias de navegao eramelementares. Eu podia ver para onde estava indo e de onde viera, todavia no meimporto de admitir que frequentemente me sentia... bem, um pouquinho solitrio... lpelo ponto mdio da jornada. No havia qualquer matria slida alm de mim numraio de quase 800 km e parecia uma queda um bocado longa at a Terra l embaixo.Era de grande ajuda naqueles momentos sintonizar o rdio do traje na faixa geral deservio e ouvir a conversa entre naves e estaes.

    No meio do vo, eu tinha que girar a moto e comear a frear. Dez minutosdepois, o observatrio j estava suficientemente prximo para que seus detalhesfossem visveis a olho nu. Pouco depois disso, eu flutuava at a pequena bolhaplstica de presso que se encontrava em processo de ser equipada com um

    laboratrio de espectroscopia... e l estava Julie me esperando, do outro lado dacomporta de presso.

    No vou fingir que restringamos nossa conversa aos ltimos progressos daastrofsica ou ao avano no cronograma da construo dos satlites. Poucas coisas,de fato, estariam to longe dos nossos pensamentos quanto isso, e a jornada devolta sempre parecia transcorrer a uma velocidade extraordinria.

    Eu estava altura do meio da rbita numa daquelas viagens de retornoquando o radar comeou a piscar no meu pequeno painel de controle. Havia algumacoisa grande no alcance mximo e estava se aproximando rapidamente. Ummeteoro, disse para mim mesmo, talvez at mesmo um pequeno asteride.Qualquer coisa que produzisse um sinal to forte deveria ser visvel. Li a marcaode posio e observei o campo de estrelas na direo indicada. A idia de umacoliso nunca me passou pela mente. O espao to incrivelmente vasto que euacreditava contar com uma segurana milhares de vezes maior do que a de umhomem na Terra atravessando uma rua movimentada.

    L estava ela. Uma estrela brilhante crescendo rapidamente junto ao p deOrion. J superava o brilho de Rigel e segundos depois no era mais uma estrela,comeando a mostrar um disco visvel. Agora, j se movia to rapidamente quantoeu podia virar a cabea; cresceu, tornando-se uma minscula lua deformada, edepois encolheu, com a mesma velocidade silenciosa e inexorvel.

    Suponho que tive uma viso clara daquilo durante talvez meio segundo, e

    aquele meio segundo me assombraria pelo resto da vida. O objeto j desapareceraquando pensei em verificar novamente o radar, e assim no tive meios de julgar qualfora a distncia mnima a que ele chegara e, portanto, qual o seu verdadeirotamanho. Poderia ter sido um objeto pequeno a centenas de metros de distncia oualguma coisa muito grande a dezenas de quilmetros. No h senso de perspectivano espao e, a no ser que voc saiba para que est olhando, no h meios decalcular distncias.

    claro que poderiater sido um meteoro muito grande e de formato singular;nunca terei certeza de que meus olhos, esforando-se para captar detalhes de umobjeto que se movia to rapidamente, no tenham sido confundidos. Posso terimaginado que vi aquela proa quebrada e amassada e o aglomerado de vigias

    escuras, como as rbitas vazias de uma caveira. Mas de uma coisa tenho certeza,mesmo com aquela viso breve e fragmentada. Se de fato erauma nave, no eradas nossas. Sua forma era totalmente aliengena e ela era muito, muito antiga.

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    Pode ser que a maior descoberta de todos os tempos tenha escorregado deminhas mos enquanto eu me debatia com meus pensamentos, a meio caminhoentre duas estaes espaciais. Mas eu no tinha medidas de velocidade ou direo.Fosse o que fosse que eu vislumbrara, agora estava perdido, alm de qualquer

    possibilidade de captura, nas vastides do sistema solar.O que poderia eu ter feito? Ningum teria acreditado em mim, pois eu notinha prova alguma. Se eu tivesse feito um relatrio, haveria uma encrenca inter-minvel. Viraria motivo de risos de todo o Servio Espacial, seria repreendido poruso indevido do equipamento e certamente no mais poderia ver Julie. E para mim,naquela idade, nada era mais importante. Se vocs j estiveram apaixonados,certamente compreendero; seno, nenhuma explicao servir.

    E assim eu no disse nada. Algum outro homem (daqui a quantos sculos?)receber a fama por provar que no fomos os primeiros a nascer dentre os filhos doSol. O que for que estiver circulando l fora, em sua rbita eterna, pode muito bemesperar, como j est esperando, h eras.

    E no entanto s vezes eu me pergunto: teria feito um relatrio, apesar detudo, se soubesse que Julie iria casar com outro?

    O CHAMADO DAS ESTRELAS

    L embaixo, na Terra, o sculo XX est morrendo. Enquanto olho para oglobo escurecido, bloqueando as estrelas, posso ver as luzes de centenas decidades despertas e h momentos em que desejo poder estar entre as multides,caminhando e cantando agora nas ruas de Londres, Cidade do Cabo, Roma, Paris,Berlim, Madri... Sim, posso ver todas com um nico olhar, brilhando como vaga-lumes contra o planeta mergulhado nas trevas. A linha da meia-noite divide agora aEuropa, e no Mediterrneo ocidental uma minscula estrela, muito brilhante, comeaa pulsar quando um exuberante barco de cruzeiro acena com seus holofotes para ocu. Creio que esto apontando para ns deliberadamente, j que durante osltimos minutos as cintilaes tm sido muito regulares e extraordinariamentebrilhantes. Daqui a pouco vou chamar o Centro de Comunicaes e descobrir qual o navio, de modo a poder transmitir-lhe nossas prprias saudaes. Passando agorapara a histria, recuando profundamente ao longo do fluxo do tempo, temos os 100anos mais incrveis que o mundo j viu. Cem anos que se iniciaram com a conquistado ar, viram em seu ponto mdio a diviso do tomo e agora terminam com a

    travessia do espao.(Nos ltimos cinco minutos, tenho me perguntado o que est acontecendoem Nairbi; agora percebi que eles esto realizando uma superexibio de fogos deartifcio. Foguetes de combusto qumica podem ser obsoletos aqui em cima, masesto sendo usados aos montes l na Terra esta noite.)

    O fim do sculo... e o fim do milnio. O que traro os 100 anos que comeamcom dois e zero? Os planetas, claro. Flutuando l no espao, a apenas umquilmetro e meio de distncia, encontram-se as naves da primeira expedio aMarte. Durante dois anos as vi crescer, montadas pea por pea, da mesma formacomo a estao espacial foi construda pelos homens com quem trabalhei h umagerao.