artes visuais e o ensino deslocado: reflexÕes …

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ARTES VISUAIS E O ENSINO DESLOCADO: REFLEXÕES ACERCA DAS VISUALIDADES XILOGRÁFICAS NO FAZER PEDAGÓGICO Igor Bonifacio da Silva Universidade Federal do Agreste de Pernambuco UFAPE [email protected] José Bezerra de Brito Neto Universidade Federal do Agreste de Pernambuco UFAPE [email protected] Resumo: Torna-se cada vez mais evidente a necessidade de romper com os paradigmas eurocêntricos que influenciam tão diretamente o fazer pedagógico dos docentes das Artes Visuais. Sendo assim, é essencial que outras referências teóricas, metodológicas e imagéticas sejam consideradas em seu planejamento. Por isso, este trabalho teve como objetivo discutir a utilização das visualidades xilográficas para a construção de um ensino deslocado. Mediante uma pesquisa bibliográfica com o estudo de textos produzidos por autores como Quijano (1992), Walsh (2009), Moura (2016), Gabriel (2012), Silva (2016) etc., pudemos constatar que, a xilogravura, além de permitir subsídios para a elaboração de um ensino decolonial, já que evidencia aspectos de determinado grupo social, no caso, o povo interiorano e suas produções, que sofrem exclusões devido ao eurocentrismo; possibilita à aproximação dos discentes a cultura daquela região muitas vezes desvalorizada pelos indivíduos; bem como o trabalho com a interdisciplinaridade, como a História e a Língua Portuguesa, a partir dos gêneros textuais. Além de contribuir para a educação visual dos discentes, o trabalho com a xilogravura, quando relacionado o cotidiano vivenciado pelos discentes, auxilia no contato intercultural com novas possibilidades de produção e existência estética. Palavras-chave: Arte. Movimento Armorial. Decolonialidade. 1 INTRODUÇÃO A hierarquia e dominação entre culturas, estabelecida pelo Colonialismo, que através da violência física e simbólica, controlou os âmbitos político, social e cultural de sociedades consideradas pelos povos europeus e norte-americanos como subalternas, reverbera até os dias atuais. Quijano afirma que Isso foi produto (...) de uma sistemática repressão não só de específicas crenças, ideias, imagens, símbolos ou conhecimentos que não serviram para a dominação colonial global. A repressão recaiu sobre os modos de conhecer, de

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ARTES VISUAIS E O ENSINO DESLOCADO: REFLEXÕES ACERCA DAS

VISUALIDADES XILOGRÁFICAS NO FAZER PEDAGÓGICO

Igor Bonifacio da Silva

Universidade Federal do Agreste de Pernambuco – UFAPE

[email protected]

José Bezerra de Brito Neto

Universidade Federal do Agreste de Pernambuco – UFAPE

[email protected]

Resumo: Torna-se cada vez mais evidente a necessidade de romper com os paradigmas

eurocêntricos que influenciam tão diretamente o fazer pedagógico dos docentes das Artes

Visuais. Sendo assim, é essencial que outras referências teóricas, metodológicas e

imagéticas sejam consideradas em seu planejamento. Por isso, este trabalho teve como

objetivo discutir a utilização das visualidades xilográficas para a construção de um ensino

deslocado. Mediante uma pesquisa bibliográfica com o estudo de textos produzidos por

autores como Quijano (1992), Walsh (2009), Moura (2016), Gabriel (2012), Silva (2016)

etc., pudemos constatar que, a xilogravura, além de permitir subsídios para a elaboração

de um ensino decolonial, já que evidencia aspectos de determinado grupo social, no caso,

o povo interiorano e suas produções, que sofrem exclusões devido ao eurocentrismo;

possibilita à aproximação dos discentes a cultura daquela região muitas vezes

desvalorizada pelos indivíduos; bem como o trabalho com a interdisciplinaridade, como

a História e a Língua Portuguesa, a partir dos gêneros textuais. Além de contribuir para a

educação visual dos discentes, o trabalho com a xilogravura, quando relacionado o

cotidiano vivenciado pelos discentes, auxilia no contato intercultural com novas

possibilidades de produção e existência estética.

Palavras-chave: Arte. Movimento Armorial. Decolonialidade.

1 INTRODUÇÃO

A hierarquia e dominação entre culturas, estabelecida pelo Colonialismo, que

através da violência física e simbólica, controlou os âmbitos político, social e cultural de

sociedades consideradas pelos povos europeus e norte-americanos como subalternas,

reverbera até os dias atuais. Quijano afirma que

Isso foi produto (...) de uma sistemática repressão não só de específicas

crenças, ideias, imagens, símbolos ou conhecimentos que não serviram para a

dominação colonial global. A repressão recaiu sobre os modos de conhecer, de

produzir conhecimento, de produzir perspectivas, imagens, sistemas de

imagens, símbolos, modos de significação; sobre os recursos, padrões e

instrumentos de expressão formalizada e objetivada, intelectual ou visual.

(1992, p. 2).

O autor peruano ainda acrescenta que a imposição de expressões dos povos

dominantes, além de contribuir para o controle social, ainda exerceu influência quanto a

impedir a produção cultural e intelectual dos povos dominados (QUIJANO, 1992). Por

esse motivo, pode-se notar que as manifestações culturais eurocêntricas1 ainda são

hipervalorizadas e muitas vezes, desempenham um papel mais influente que a própria

cultura de determinada sociedade. As produções artísticas que encontram-se dentro desta

perspectiva alcançam mais reconhecimento, enquanto o trabalho de artistas que vivem

em periferias passam despercebidos.

As escolas, assim como quaisquer outras instituições presentes em determinada

sociedade, irão absorver e reproduzir concepções desta em suas práticas. Moura (2016)

afirma que há nas instituições educacionais de Educação Básica, um processo de ensino

e aprendizagem que compreendem práticas euro/nortecêntricas, reflexo de uma formação

docente baseada em princípios reprodutivistas, acríticos e apolíticos, que desencadeou,

especificamente nas aulas de Artes Visuais

[...] uma cegueira em relação aos produtores de Arte e à produção artística

latino-americana, assim como a consequente ausência desses entre os

conteúdos escolares, contribuindo para o desconhecimento das visualidades

latino-americanas como representações artísticas e culturais... (MOURA,

2016, p. 300)

Dessa forma, é necessário que o docente rompa com essas barreiras coloniais, a

fim de reconhecer, legitimar e utilizar como referências imagéticas em sua prática

pedagógica produções que não estão no centro sócio-histórico-econômico, como por

exemplo, as latinas-americanas.

Mediante uma pesquisa bibliográfica, definida por Marconi e Lakatos (2010),

como um tipo de investigação que, ao colocar o pesquisador em contato direto com os

trabalhos produzidos sobre determinado tema, permite, através de uma nova perspectiva,

que o mesmo chegue a outras conclusões, tivemos como objetivo discutir as

1Conforme Quijano (2005) é uma perspectiva de conhecimento, perpassando crenças, manifestações

culturais, etc. que iniciada na Europa Ocidental, ampliou-se mundialmente e tornou-se hegemônica,

colonizando e sobrepondo-se a todas as demais perspectivas. Sua elaboração demonstra um padrão de

poder: colonial, moderno, capitalista e eurocentrado.

possibilidades das visualidades presentes em xilogravuras para a produção de uma

pedagogia decolonial.

2 A PERSPECTIVA DECOLONIAL NO ENSINO DA ARTE

Assim como a história e a cultura, as manifestações artísticas também sofreram as

implicações causadas pelo colonialismo, a partir de algumas tentativas de apagamento.

Estas deram-se, por exemplo, mediante a catequização e educação, baseada em princípios

europeus, dos povos ameríndios e africanos, como também com o desenvolvimento do

sistema econômico capitalista, que demandava mão de obra, escravizando os povos

dominados, ambas impossibilitando os mesmos de se manifestarem cultural e

artisticamente (PODESTÁ; FERNANDES, 2019). Estas práticas contribuíram,

consequentemente, para a disseminação dos conhecimentos, de modo geral, sob a

perspectiva eurocêntrica tornando-a hegemônica e banalizando os saberes considerados

inferiores.

Tratando-se das produções artísticas visuais, passaram pelo funil da hegemonia

criada pela colonialidade aquelas que foram produzidas por “homem, branco, pai de

família, católico, proprietário, letrado e heterossexual” (MOURA, 2016, p. 309). São

justamente as imagens criadas sob uma perspectiva eurocêntrica por artistas que

representam a personificação do eurocentrismo que estão presentes no repertório

imagético dos docentes e que os mesmos utilizam como referência para suas aulas,

tornando explícito a necessidade de pensar a decolonialidade em sua prática pedagógica.

A decolonialidade definida por Quijano (1992) seria, portanto, o ato de

desprender-se, em primeiro lugar, epistemologicamente das vinculações com a

colonialidade, que permitiria trocas de experiências e significações, produzindo, como

consequência, novas comunicações intelectuais. Walsh (2009) soma à esta discussão,

quando afirma que estruturas sociais, políticas e epistêmicas, originárias do colonialismo

e que mantêm padrões de poder enraizados na raça, inferiorização de indivíduos e no

conhecimento eurocêntrico devem ser rompidas para que haja “a construção de novos

marcos epistemológicos que pluralizam, problematizam e desafiam a noção de um

pensamento e conhecimento totalitários, únicos e universais” (WALSH, 2009, p. 23).

Neste sentindo, para que o ensino das Artes Visuais adote um caráter decolonial e

transponha a hegemonia eurocêntrica, devem ser incluídos no fazer pedagógico do

docente obras marginalizadas e que não obedecem a perspectiva estética estabelecida

pelos europeus e norte-americanos e foram criadas por artistas que estão inseridos em

grupos subalternos, como negros, mulheres, lgbtqia+, candomblecistas, etc. Ademais, é

importante que o professor elabore práticas que “se voltem também para o território

latino-americano, como forma de conhecer, reconhecer e problematizar a nossa produção

artística/poética” (MOURA, 2016, p. 310) consideradas “na visão colonizadora, as

imagens, os artefatos e as identidades dos atrasados, dos primitivos, dos bárbaros que

necessitam ser modernizados e civilizados.” (MOURA, 2016, p. 308), contudo são

produções potentes que carregam a história de um o povo que foi e segue sendo

negligenciado e violentando.

Dar visibilidade e reconhecer de expressões e técnicas artísticas que foram há

muito esquecidas e excluídas do repertório imagético da sociedade, além de possibilitar

que saberes silenciados passem a ser ouvidos pelos indivíduos, também tornará possível

estabelecer “uma nova relação entre os conhecimentos, capaz de incorporar os saberes de

povos dominados e a cultura popular em grau de paridade com a cultura erudita”

(PODESTÁ; FERNANDES, 2019, p. 238).

É importante salientar que a Base Nacional Comum Curricular (2018), documento

normatizador vigente, inclusive, determina que as manifestações artísticas apresentadas

aos discentes não devem ser reduzidas àquelas produções legitimadas pelas instituições

culturais ou divulgadas através da mídia, como também orienta que seja promovido o

diálogo intercultural, pluriétnico e plurilíngue. Diante disto, podemos perceber que há o

incentivo para que manifestações artísticas marginalizadas sejam introduzidas nas aulas

de arte durante o trabalho com qualquer linguagem (artes visuais, dança, música e teatro),

promovendo, também, um debate que favoreça a reflexão acerca das produções criadas

por indivíduos de outras etnias e que encontram-se em um contexto sociocultural

diferente.

Por fim, o documento também afirma, nos objetos de conhecimentos da unidade

temática “Artes Visuais”, que o docente deverá oportunizar situações em que seus

discentes possam analisar e reconhecer as influências que matrizes estéticas locais,

regionais e nacionais desempenham em produções visuais (BRASIL, 2018). Sendo assim,

utilizar como exemplo artistas e obras mais próximas da realidade vivenciada pelos

indivíduos que compõem a turma e que, ao mesmo tempo, desobedecem a estética

eurocêntrica pode ser um primeiro passo para a construção de uma pedagogia decolonial.

3 A ARTE DA XILOGRAVURA

Há certa confusão quanto à origem da xilogravura no território brasileira. Autores

como Gabriel (2012), por exemplo, defendem que a técnica já era praticada pelos povos

ameríndios que utilizavam frutas cortadas ao meio como uma espécie de carimbo natural

ou entalhavam madeira e talos de vegetais. Herskovits (1986 apud SOUZA, C., 2011),

em contrapartida, afirma que a mesma foi trazida pelos gravadores que acompanhavam a

família real. O fato é que na primeira metade do século XIX, os xilógrafos eram,

majoritariamente, estrangeiros. Ademais, nesta mesma época, a xilogravura de topo2

passou a ser a mais utilizada com o objetivo de ilustrar livros e periódicos.

Assim como qualquer outra manifestação artística, a xilogravura também foi

rejeitada por uma parcela da sociedade. Como também foi perdendo espaço para outros

materiais, como o cliche de zinco. Entretanto, “vários artistas se conscientizaram que eles

deviam traçar o rumo de sua arte, então (...) passaram a executar tanto o trabalho de

criação quanto o ofício de entalhe e impressão” (GABRIEL, 2012, p. 12). Por ser uma

produção de baixo custo, foi muito utilizada pelas camadas mais pobres da sociedade,

mantendo sua cultura viva.

A madeira é o principal material para a criação da xilogravura. É nela que, a partir

da utilização de outras ferramentas, como por exemplo a goiva, são entalhadas as imagens

almejadas pelo xilógrafo. A sua escolha é um desafio para os artistas, deve ser uma

madeira boa o suficiente para que não empene durante sua produção. Gabriel destaca as

etapas realizadas:

A confecção da matriz começa com a seleção da espessura da prancha que deve

ter mais ou menos dois centímetros de altura. Os procedimentos de confecção

da matriz passam pelo lixamento e polimento para que ela adquira uma

2 Diferente da xilogravura de fio, qual a árvore é cortada em sentido longitudinal, na xilogravura de topo, a

madeira é cortada em sentido transversal ao tronco da árvore, sendo, em consequência, mais dura e

compacta.

superfície lisa, tornando-se assim própria para a execução do entalhe. Após o

entalhe lixa-se novamente (...) e começa o entitamento. Nesta etapa a tinta

gráfica é espalhada sobre a matriz sobrepondo um pedaço de papel sobre ela

(2012, p. 13)

No Agreste Pernambucano a cultura xilográfica ainda é muito presente.

Produzidas tradicionalmente por artistas populares, suas obras trazem referências a

lendas, mitos, religiosidade, como também retratam histórias, conhecimentos e

experiências da vida do povo interiorano. Ademais, também ilustram livretos da literatura

de Cordel, produzidas pelos próprios xilógrafos ou por cordelistas da região. Mestre Dila

(1937-2019) e J. Borges (1935-), reconhecidos como Patrimônio Material de Pernambuco

são alguns dos principais xilógrafos do estado.

4 AS VISUALIDADES XILÓGRAFICAS NO PROCESSO DE ENSINO

O número de imagens que, através dos meios de comunicação, chegam até os

indivíduos, têm crescido substancialmente, sejam como forma de entretenimento, meios

pedagógicos ou publicitários, influenciando a construção dos seus referenciais

imagéticos. Por isso é importante que seja trabalhado com os discentes “a aproximação

entre imagens-cultura visual-cultura-identidade para poder entender, como a visualidade

interfere e importa em suas vidas” (GABRIEL, 2012, p. 15).

Considerar a utilização da xilogravura como referência imagética para as aulas de

Artes Visuais, além de estar dando visibilidade a uma técnica artística que geralmente

não tem espaço nos meios midiáticos, ainda apresenta, por si só, um caráter decolonial no

ensino. Isso porque sua produção rompe com o paradigma que julga como arte apenas as

obras criadas a partir de um pincel sob uma tela; quem a produz são indivíduos que não

conferem a personificação do eurocentrismo e que pertencem as camadas populares da

sociedade; sua estética, com aspectos rústicos, vai de encontro com aquela estabelecida

pelo colonialismo, geralmente ancorada ao belo (OLIVEIRA, 2016) e às obras

renascentistas, como pode-se perceber nas imagens abaixo:

Imagem 1 – Cindô e Amália, Mestre Dila

Fonte: acervo Memórias da Poesia Popular (2017)

Imagem 2 – O Cangaceiro e o Lobisomem, Mestre Dila

Fonte: acervo Memórias da Poesia Popular (2017)

Introduzir xilogravuras produzidas por artistas pernambucanos no planejamento

pedagógico irá permitir que os estudantes tenham contato com a arte popular daquela

região, bem como possibilitará que os mesmos conheçam alguns aspectos históricos do

seu estado, passando a reconhecer e valorizar suas manifestações culturais de modo geral,

conforme Silva (2017), resgatando, consequentemente, a identidade do povo que vive

naquele território. A autora ainda acrescenta que esta prática

[...] aumentaria a cultura dos alunos em arte, a frente do desenvolvimento da

capacidade de aprendizagem cultural, bem como adquirir os conhecimentos e

habilidades e a formação de atitudes e valores críticos, artísticos e estéticos

(SILVA, 2017, p. 26).

As obras (imagem 3 e 4) abaixo, criadas pelo xilógrafo J. Borges, representam

alguns símbolos culturais tanto do Brasil quanto de Pernambuco que podem ser

apresentadas aos estudantes mediante o trabalho com a xilogravura.

Imagem 3 – Luiz Gonzaga, J. Borges

Fonte: acervo Fuchic (2018)

Nascido no Sertão de Pernambuco e tendo a música “Asa Branca” como um de

seus grandes sucessos, Luiz Gonzaga (imagem 3), conhecido como Rei do Baião foi um

grande sanfoneiro, cantor e compositor da música popular brasileira. Diante desta

xilogravura, podem ser debatidos temáticas como quem foi Luiz Gonzaga; o que seria, de

fato, a música popular brasileira; quais são seus principais aspectos; que artistas faziam e

fazem parte desse movimento.

Possibilita também que pesquisas sejam desenvolvidas, como por exemplo, na

região em que os discentes residem, há produtores da música popular brasileira? Quem

são? Quais os assuntos tratados em suas músicas? Permitindo, desse modo, que os

estudantes tomem uma postura ativa durante o processo de aprendizagem.

Imagem 4 – Lutadores de Capoeira, J. Borges

Fonte: acervo Fuchic (2018)

A capoeira (imagem 4), oriunda dos escravos trazidos da África na época colonial,

é uma expressão cultural que mistura dança, música, arte marcial, esporte e cultura

popular. Seus principais aspectos também podem ser trabalhados. Qual seu objetivo; o

porquê dos seus movimentos; quais instrumentos são utilizados numa roda de capoeira;

como, por quem e porque ela foi trazida para o Brasil; porque é um grande símbolo de

resistência para o povo negro.

Tornou-se explícito que o trabalho com a xilogravura em sala de aula oferece a

possibilidade de interdisciplinaridade com demais componentes curriculares (SOUZA,

N., 2019). Para exemplificar, temos a geografia, incitando a análise dos componentes

regionais presentes nas obras apresentadas em sala de aula; a história, mediante o debate

de fatos históricos que ocorreram no Brasil ou mais especificamente, no estado

pernambucano, bem como a discussão das figuras folclóricas brasileiras; também “pode-

se explorar tanto o universo literário quanto o visual através das imagens, sendo que há

possibilidade também trabalhar com a prática da xilogravura dentro da sala de aula e a

partir dos desenhos criarem histórias” (SOUZA, J., 2013, p. 23), principalmente com o

gênero textual Cordel, que está intrinsecamente relacionado às xilogravuras.

Imagem 5 – Nascimento do Brasil, J. Borges

Fonte: acervo Fuchic (2018)

O Nascimento do Brasil (imagem 5), mais um trabalho do xilógrafo

pernambucano J. Borges, é um ótimo exemplo. A partir desta obra, muitos aspectos

podem ser problematizados. A vinda dos portugueses para nosso território no século XV,

como ela se deu e quais foram seus resultados; como viviam os indígenas que já

ocupavam essa região e como eles foram tratados a partir deste marco histórico, nos

levando, consequentemente, a pergunta: o Brasil foi realmente descoberto?

Imagem 6 – Jesus e o Diabo, Mestre Dila

Fonte: acervo Memórias da Poesia Popular (2017)

Debates acerca da religião também podem ser desenvolvidos mediante a

xilogravura, no entanto, os mesmos não devem estar limitados apenas uma delas, como

por exemplo, o cristianismo. Outras vertentes religiosas devem ser consideradas dentro

desta discussão, a fim de contemplar todos os estudantes presentes em sala de aula, bem

como garantir a laicidade.

Conforme Souza (2019), uma prática pedagógica mais próxima do contexto

vivenciado pelos discentes, permitirá que os mesmos se reconheçam como integrantes do

processo de evolução da aprendizagem individual e coletivamente. A autora também

afirma que esta perspectiva mais realista, além de ser crítico social, também irá propiciar

o acesso a conhecimentos culturais básicos para o exercício social (SOUZA, N. 2019).

Por isso é importante que o professor conheça a realidade em que os seus estudantes

estejam inseridos, relacionando seu cotidiano e suas raízes culturais em suas aulas,

aumentando as possibilidades de obterem melhores resultados a partir de sua prática

pedagógica.

Sousa (2013), após o desenvolvimento de uma oficina de xilogravura realizada

Museu Vivo da Memória Candanga no Distrito Federal e que tinha como objetivo utilizar

materiais que foram descartados ou produzidos artesanalmente, concluiu que a mesma

contribuiu tanto para o crescimento no processo de educação visual dos sujeitos

participantes da pesquisa quanto em métodos de ensino. Em suas palavras, levou os

alunos a “novos olhares sobre a técnica e cumprindo um papel social de conscientização

e reutilização de materiais que poderiam ser descartados e se tornam suportes para a

linguagem gráfica” (SOUSA, 2013, p. 42). O autor ainda acrescenta que possibilita que

“os alunos enriqueçam as aulas com diálogos e suas gravuras e através de debates de

leitura de imagens, possa haver esse intercâmbio cultural dentro de sala de aula” (SOUSA,

2013, p. 42) mediante o compartilhamento de suas vivências.

Por fim, gostaríamos de salientar que a potência decolonial da xilogravura não se

faz presente somente no rompimento da matriz colonial e da arte erudita. Ela faz parte de

uma cultura visual, como dito anteriormente, popular qual os xilógrafos representam o

seu cotidiano e da sua comunidade. Dessa forma, o contexto em que as obras foram

produzidas, quem são os autores e como devem ser suas vidas também deve ser um objeto

de análise dentro do trabalho pedagógico com a xilogravura. Ademais, é uma arte

acessível qual sua produção e disseminação não precisa de uma formação acadêmica, bem

como, atrelada a oralidade da literatura do Cordel, não há a necessidade da alfabetização

formal para sua compreensão.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi exposto, podemos concluir que o ensino que envolva aspectos

decolonais não pode limitar-se apenas ao plano das ideias, o mesmo tem que ser posto em

prática no cotidiano escolar, a partir, especialmente, das referências que são utilizadas no

fazer pedagógico, sejam elas teóricas ou imagéticas. O estudo da xilogravura, por sua vez,

é uma ótima proposta para o processo de ensino e aprendizagem, aproximando os

discentes da cultura popular e possibilitando, inclusive, o trabalho com a

interdisciplinaridade.

Gostaríamos de salientar que a inclusão de referências imagéticas não-

eurocêntricas é o primeiro passo para a construção de uma educação decolonial nas Artes

Visuais. Também devem ser estimulados o desenvolvimento de uma estética

desobediente nas produções artísticas dos discentes, bem como a utilização de materiais

além da madeira, como o isopor, E. V. A. ou demais subsídios que foram ou seriam

descartados.

Se o docente se sentir inseguro ou despreparado para mediar oficinas voltadas para

a elaboração da xilogravura, há a possibilidade de convidar xilográficos locais para

ministrar as aulas. Além de serem profissionais que têm domínio da técnica, podendo,

aliás, apresentar outra perspectiva da realidade mediante as visualidades xilográficas, o

docente também estará dando espaço para que o discurso de artistas, geralmente

excluídos, sejam reconhecidas e valorizadas.

A importância de decolonizar práticas educacionais, com o objetivo de romper

paradigmas pré-estabelecidos e que reproduzem apenas uma perspectiva do

conhecimento intelectual e cultural da nossa sociedade, torna-se cada vez mais evidente.

É, mais do que necessário, que pensamentos outros, especialmente os marginalizados,

sejam legitimados no fazer pedagógico.

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