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Artes Musicais e Ciências Sociais Representações musicais e legado na morte de crianças Do Ciclo das crianças mortas, Kindertotenlieder, de Gustav Mahler, ao Orixá Àbíkú, do Candomblé Ketu nigeriano Vandelir Camilo 1 Daniela Mesquita 2 À mestra, professora Luciana Quillet Heymann INTROITO Nos últimos anos, assistimos ao surgimento de importantes pesquisas referentes à música como fenômeno social, ou seja, como objeto sociológico capaz de ser compreendido como fato socialou melhor seria fato musical3 (BECKER, 2013). Essas pesquisas indicam-nos que as atividades musicais coletivas são, justamente, onde se localiza a ligação entre “ideias musicais e as ideias sociológicas”. (BECKER, 2013). Nessa última chave, novos espaços de pesquisa vêm se constituído para uma análise relativa da música como objeto sócio histórico (BECKER, 2013; VIANA, 1998; BUSCATO, 2007). Segundo o músico e sociólogo Howard Becker (2013), uma análise sociológica da música, ao contrário da filosofia, não deve objetivar analisar se uma música é boa ou ruim, pois essa valorização estará calcada em gostos pessoais, e, sendo a sociologia uma ciência empírica, não cabe ao sociólogo esse julgamento 4 . Para Supicic (1983), a importância de uma visão sócio histórica sobre a música é o que permite a realização de uma sociologia musical, 1 Meu lugar de fala nesta comunicação é como músico do Theatro Municipal e mestre pela Escola de Ciências Sociais da FGV, CPDOC. No mais, não sou praticante e adepto de religião de matriz africana, o que também é representativo dos limites e do lugar que ocupo neste trabalho. 2 Musicista, cantora, Theatro Municipal, mestre em práticas Interpretativas. 3 O sociólogo Emile Durkeim (1858-1917) define fato socialcomo agentes reais ou conjunto de maneiras que estão no centro focal de uma sociedade. São os instrumentos sociais e culturais que determinam na vida de um indivíduo as maneiras de agir, pensar e sentir. E essas maneiras os obrigam a se adaptarem nas sociedades. O fato musicalestaria analogicamente assumindo esses sentidos. 4 Há trabalhos referenciais que buscam debater sobre a autonomia da sociologia da música como disciplina (REIS, 2007). O próprio surgimento da sociologia da música vem sendo reclamado por diferentes áreas disciplinares. Serraveza (1983) busca separar um caráter empírico da sociologia da música de um caráter especulativo, subjetivo e estético. O autor desse trabalho, neste momento, busca basear-se em uma visão que retorna aos estudos de Nobert Elias (1993), apoiando-se sobre a racionalização da linguagem musical como um importante elemento que permita compreensão da sociedade muito além da própria música. Iremos avançar nessas questões em trabalhos futuros.

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Artes Musicais e Ciências Sociais

Representações musicais e legado na morte de crianças

Do Ciclo das crianças mortas, Kindertotenlieder, de Gustav Mahler, ao Orixá Àbíkú, do

Candomblé Ketu nigeriano

Vandelir Camilo1

Daniela Mesquita2

À mestra, professora Luciana Quillet Heymann

INTROITO

Nos últimos anos, assistimos ao surgimento de importantes pesquisas referentes à

música como fenômeno social, ou seja, como objeto sociológico capaz de ser compreendido

como “fato social” ou – melhor seria – “fato musical”3 (BECKER, 2013). Essas pesquisas

indicam-nos que as atividades musicais coletivas são, justamente, onde se localiza a ligação

entre “ideias musicais e as ideias sociológicas”. (BECKER, 2013). Nessa última chave,

novos espaços de pesquisa vêm se constituído para uma análise relativa da música como

objeto sócio histórico (BECKER, 2013; VIANA, 1998; BUSCATO, 2007).

Segundo o músico e sociólogo Howard Becker (2013), uma análise sociológica da

música, ao contrário da filosofia, não deve objetivar analisar se uma música é boa ou ruim,

pois essa valorização estará calcada em gostos pessoais, e, sendo a sociologia uma ciência

empírica, não cabe ao sociólogo esse julgamento4. Para Supicic (1983), a importância de uma

visão sócio histórica sobre a música é o que permite a realização de uma sociologia musical,

1 Meu lugar de fala nesta comunicação é como músico do Theatro Municipal e mestre pela Escola de Ciências

Sociais da FGV, CPDOC. No mais, não sou praticante e adepto de religião de matriz africana, o que também é

representativo dos limites e do lugar que ocupo neste trabalho. 2 Musicista, cantora, Theatro Municipal, mestre em práticas Interpretativas. 3 O sociólogo Emile Durkeim (1858-1917) define “fato social” como agentes reais ou conjunto de maneiras que

estão no centro focal de uma sociedade. São os instrumentos sociais e culturais que determinam na vida de um

indivíduo as maneiras de agir, pensar e sentir. E essas maneiras os obrigam a se adaptarem nas sociedades. O

“fato musical” estaria analogicamente assumindo esses sentidos. 4 Há trabalhos referenciais que buscam debater sobre a autonomia da sociologia da música como disciplina

(REIS, 2007). O próprio surgimento da sociologia da música vem sendo reclamado por diferentes áreas

disciplinares. Serraveza (1983) busca separar um caráter empírico da sociologia da música de um caráter

especulativo, subjetivo e estético. O autor desse trabalho, neste momento, busca basear-se em uma visão que

retorna aos estudos de Nobert Elias (1993), apoiando-se sobre a racionalização da linguagem musical como um

importante elemento que permita compreensão da sociedade muito além da própria música. Iremos avançar

nessas questões em trabalhos futuros.

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por meio de pesquisas que iluminem as condições criativas, as quais permitem uma

investigação sobre “o músico e a sua criação musical em épocas e sociedades diversas”

(SUPICIC, 1983, p.83).

Esta comunicação terá como objeto de estudo algumas canções que surgiram em

virtude do elevado índice de mortalidade infantil no Império Austro-húngaro e no Império

Iorubá. As canções ancoram-se – mas não totalmente – na representação das mortes de

crianças e adolescentes, podendo ser identificadas, primeiramente, como músicas de protesto

e manifestação de caráter público contra a naturalização dessas mortes, “isso porque a vida

das crianças pelo menos até os dez anos de idade, mas particularmente nos primeiros anos de

vida, era uma condição efêmera que podia cessar de uma hora para outra” (PANCINO,

SILVEIRA, 2010). Essas são algumas das questões que nos levam a perceber os diferentes

sentidos atribuídos a essas músicas em seus contextos. Contextos estes que remetem a

questões sociais, religiosas, místicas e transcendentais; que buscam ora tratamento digno para

as crianças por parte da medicina, ora consolo religioso e esperança de afastar tal tragédia.

Primeiro, teremos como objeto as canções do Ciclo das crianças mortas,

Kindertotenlieder, de Gustav Mahler, compostas no período entre 1901 a 1904. A obra,

estreada em 1911, em Viena, é dividida em cinco canções para voz e acompanhamento de

orquestra ou piano. Em um segundo momento, teremos como objeto as canções para o Orixá

Àbíkú, criadas para diferentes rituais e eventos, com letras em caráter de louvor, sátiras e

propiciatórias ao espírito do Àbíkú com objetivo de afastar a morte de crianças da sociedade

iorubá.

Retomando Becker (2013) e direcionando suas questões para esta comunicação,

podemos entender as canções para crianças mortas como uma produção social, inter-

relacionada em diferentes lugares, sendo possível, portanto, conceber uma problematização

que nos aponte onde, como, por que e em que contexto essas canções foram compostas e

interpretadas.

Neste estudo, nossa atenção estará voltada para o conceito de representação social

(JODELET, 2001) e legado (HEYMANN, 2007). Buscaremos compreender os sentidos

sociais assumidos por essas canções em sociedades díspares e como esse legado musical vem

sendo constantemente atualizado em gravações, apresentações, cerimônias, etc. O objetivo

mais amplo deste texto é procurar conhecer, dentro de um campo da sociologia da música,

como as ideias de representação e legado podem contribuir para uma análise sócio histórica

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musical. Como diria Howard Becker (2013), buscamos, com este estudo, apenas exemplos

que possam chacoalhar nossos hábitos intelectuais e quem sabe, possam provocar ideias

novas.

1. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS PARA MÚSICAS DAS CRIANÇAS MORTAS

Denise Jodelet (2001), filósofa, inspirada em questões abordadas anteriormente por

Emile Durkeim (1925), aponta que as representações sociais são o que nos guia na forma em

que nomeamos e definimos diferentes aspectos de nossas realidades; na forma de interpretá-

los, julgá-los e de tomarmos posição, caso seja necessário. Assim, o cerne de uma

investigação relacionada às representações sociais recairia na necessidade de descrever,

analisar, explicar as dimensões, formas, processos e funcionamento das representações sociais

de determinados grupos. A autora define a representação social “como uma forma de

conhecimento, socialmente elaborado e compartilhado, que tem um objetivo prático e

concorre para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001,

p. X).

De acordo com essa filósofa e direcionando seu raciocínio para esta pesquisa,

podemos descrever tanto o Ciclo das crianças mortas, Kindertotenlieder, quanto as canções do

Orixá Àbíkú como representativas do incômodo dessas sociedades com a morte de crianças.

No decorrer dos séculos, diferentes práticas religiosas e crenças (batismo, purgatório, limbo,

Egbé Òrun, Àbíkú, Oloiko) assumiram a função de consolo e conforto para pais que perdiam

seus filhos. Apesar de existir indiferença com a morte de recém nascidos, crianças e

adolescentes, são encontrados, desde a antiguidade, numerosos relatos que descrevem o

quanto essas mortes, para muitos pais, sempre foi trágico e revoltoso.

A historiografia e outras fontes demográficas indicam que, em fins do século XIX, a

morte de crianças alcançou níveis elevadíssimos. Provérbios da época recitavam a realidade

daquelas sociedades: “a mãe semeia; a morte leva” ou “quem tem um não tem nenhum”,

dizia-se na França5. Essa mesma nação chegou a registrar quase 50% de mortes entre crianças

de 0 a 10 anos. Somente a partir do século XVIII, com a sensibilidade dos iluministas, que

contagiou notáveis de toda a Europa, é que, pouco a pouco, se percebeu a necessidade de se

salvar a vida de crianças.

5 Cf. Pacino e Silveira (2010).

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A pediatria somente surgiu em finais do século XIX. É nesse contexto que surgiram as

músicas para crianças mortas Kindertolieder; contudo, não para abrilhantar cerimônias

religiosas, mas representar uma queixa pública e chamar a atenção da sociedade e da

medicina. Para ratificar nossas afirmativas, retornemos a Jodelet (2001) ao ressaltar que as

representações sociais podem ser compreendidas como uma “forma de conhecimento,

socialmente elaborado e compartilhado, que tem um objetivo prático e concorre para a

construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p.5). Portanto,

é preciso perceber que essas canções surgiram como um forma de exigir atenção aos números

alarmantes de mortes infantis que acompanhavam esses povos. Essa representação original, a

partir do fato musical, implicou, certamente, em diferentes estilos nas músicas para crianças

mortas.

Agindo nessa linha, destacamos que as canções Kindertotenlieder seguem o sentido

das etapas do luto de um pai: morte; desespero; consolo; e esperança. Já as canções para o

Orixá Àbíkú, a partir de diferentes estilos musicais (louvor, satírica e encanto), buscam afastar

o espírito de morte das crianças em sua sociedade.

A título de informação, ressaltamos que toda representação, como a que estamos

fazendo, relativa às canções de crianças mortas, mesmo que baseada em partituras e

referenciais teóricos, é passível de defeitos. Entretanto, é um campo central das ciências

sociais e um domínio em plena expansão (JODELET, 2001). Dito isso, buscamos propor

possibilidades de compreensão para as representações sociais a partir de “fatos musicais”,

posto que determinadas composições têm a capacidade de orientar e organizar condutas e

comunicações sociais em determinadas sociedades.

Ainda não concluímos essa afirmação, mas buscamos recorrer ao conceito de

representações sociais – no caso, dessas canções – como reconstruções, ou seja, como

performances de uma realidade que exprimem o sentimento de indivíduos ou grupos.

Conforme conclui Jodelet (2001),

a representação, é, pois, a representante mental do objeto que reconstitui

simbolicamente. De outro lado, como conteúdo concreto do ato de pensar, a

representação carrega a marca do sujeito e de sua atividade. Este último

aspecto remete ao caráter construtivo, criativo, autônomo da representação

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que comporta uma parte de reconstrução, interpretação do objeto e de

expressão do sujeito (JODELET, 2001, p.5).

Assim, a partir do descontentamento e incômodo de diferentes sociedades na

naturalização de morte de crianças e do surgimento de canções-protesto contra essas

circunstâncias em ambos os contextos, optamos pela ideia de representação – adaptável, mas

baseada no sentido de uma reconstrução do “fato musical”, ou seja, uma análise que seja

capaz de iluminar e refletir sobre as performances de determinados grupos a partir do

surgimento de músicas. Por essa chave, Denise Jodelet (2001) comporta bem a nossa

interpretação relativa à representação dessas canções para crianças mortas.

2. KINDERTOTENLIEDER, O CICLO DAS CRIANÇAS MORTAS

Kindertotenlieder significa “canções das crianças mortas” e foi uma obra escrita pelo

poeta Friedrich Rückert (1788-1866) e publicada em 1871, contendo 428 poemas. Rückert é

considerado um importante poeta alemão, além de ter sido um dos primeiros pesquisadores da

cultura oriental em seu país, traduzindo o Alcorão para a língua alemã. É considerado um

gênio da linguagem; alcançou fama e prestígio durante sua trajetória, sendo reconhecido e

protegido pelo rei Frederico Guilherme IV da Prússia. Contudo, em 1833, a morte de seus

dois filhos pequenos por febre escarlatina foi traumática e perturbadora, resultando na criação

dos poemas em homenagem às crianças mortas. Os poemas trabalham em uma temática

excruciante e sombria diante da morte em um sentimento entre a ambiguidade da

perplexidade e da esperança através do alcance da salvação.

Esse Ciclo das crianças mortas foi musicado por Gustav Mahler para voz grave,

feminina ou masculina (contralto ou barítono) e acompanhamento de piano. É um Lieder,

típica canção germânica6. A ligação de Mahler com temas musicais relacionados à ideia da

morte é recorrente em sua trajetória composicional: suas primeiras composições já recorriam

à temática da morte7 – sua 1ª Sinfonia, por exemplo, utilizava o tema da canção infantil Frere

Jacks em marcha fúnebre. Seus biógrafos revelam as brincadeiras que mantinha com a irmã

na infância, constantemente relacionadas à ideia da morte, possivelmente indicativo de uma

6 É uma palavra de língua alemã que significa “canção”. O termo é usado tipicamente para classificar

composições para cantor solista e acompanhamento de piano com letra geralmente em alemão surgido em fins

do século XIX. Importantes compositores que se destacaram no gênero foram Franz Schubert, Robert Schuman,

Johannes Bramhs, Hugo Wolf e Othmar Schoeck. 7 Polca com introdução de marcha fúnebre.

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infância de extrema naturalização com a mortalidade infantil. Recentes pesquisas registram

estatísticas elevadas de mortes infanto-juvenis no início do século XX em toda a Europa –

Verona, mas também Paris, Londres, Berlim e Viena (PANCINO, SILVEIRA, 2010). Em

carta à esposa Alma Mahler, Gustav intitulou a experiência com a morte dos seus oito irmãos,

especialmente do irmão mais próximo, Ernst – coincidentemente, o mesmo nome do filho do

poeta Rückert, morto em 1833 –, na adolescência, como traumática.

Mahler selecionou cinco poemas de Rückert e os musicou entre 1901 e 1904. A

música é no estilo romântica, e os textos refletem diferentes sensações: angústia, reanimação,

resignação e, finalmente, transcendência. Stephen E. Hefling (2000) indica que Mahler

compôs a primeira, a terceira e a quarta música em 1901, e as tocou para a amiga Natalie

Bauer Lechner em 10 de agosto. Após uma longa pausa, as canções restantes foram

compostas em 1904. Foi um período produtivo na carreira de Gustav Mahler, uma vez que

fora nomeado maestro titular da Ópera de Viena, em fins do século XIX, e tornou-se uma

referência no campo musical. Em 1904, retornou às composições das crianças mortas,

exatamente duas semanas após o nascimento de seu filho. A atitude provocou incômodo em

sua esposa Alma, acreditando que Mahler pudesse estar tentando a providência divina ao

compor em cima de textos relacionados à morte de crianças enquanto seus filhos estavam com

saúde. Em carta, Alma declara:

Concebo que alguém se ponha a compor sobre textos tão

horrorosos quando não se tem filhos ou se acaba de perdê-los.

Porém, pode-se cantar as crianças mortas depois de haver beijado e

abraçado as suas meia hora antes, alegres e transbordantes de

saúde? Pelo amor de Deus, Gustav, estás brincando com fogo!8

As palavras de Alma revelam a angústia de uma mãe vendo seus filhos saudáveis e

alegres em seu lar, enquanto a morte de crianças era uma normalidade em toda a Europa. O

Ciclo das crianças mortas foi estreado em 29 de janeiro de 1905, com regência de Gustav

Mahler e com o solista, barítono, Friedrich Weidermann, acompanhado por uma pequena

orquestra formada por músicos integrantes da Filarmônica de Viena. A intenção de Mahler,

segundo seus principais biógrafos e contemporâneos, era, primeiramente, protestar e

8 Trecho de carta de Alma Mahler para Gustav Mahler. (MAHLER, apud LIBERMAN, 2010, P. 74)

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denunciar a elevada mortalidade de crianças e adolescentes. Lorraine Gorel (1993) argumenta

que a escolha dos poemas de Rüchert deu-se por Mahler buscar se colocar no lugar de um pai

que perdera uma criança, mas colocando-se como protagonista da tragédia. Os textos falam do

ponto de vista do enlutado, do inconformado pela naturalidade na morte de uma criança.

Lebrech (2011) sustenta que a música de Gustav Mahler é um protesto contra a indiferença do

mundo pelas altas taxas de mortalidade infantil; que reivindicava respeito às crianças mortas e

remédios para tratamentos (LEBRECHT, 2011, p.58).

Em 1907, as angustias de Alma Mahler confirmaram-se. A filha do casal, Maria, com

5 anos, foi vítima de febre escarlatina. Em carta ao amigo Guido Adjer, Mahler declara: “eu

me coloquei na situação em que um filho meu morreu. Quando eu realmente perdi minha

filha, eu não poderia mais ter escrito essas músicas”9.

Figura 1. Alma Mahler e as filhas, Maria (à

esquerda) e Ana (1906).

9 REIK, Theodor. A melodia assombrosa: experienciais psicanalíticas na vida e na música. New York.

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Disponível em

<https://www.pinterest.com/laurezurich/alma-

mahler/> Acesso em:10 de junho de 2018

O maestro Bruno Walter, que conheceu Mahler aos 18 anos e se tornou um importante

herdeiro da memória do compositor, na medida em que atualizava e renovava as narrativas

sobre a trajetória de seu mestre, declarando que, após a morte da filha, ele iniciou uma eterna

busca por respostas sobre a existência humana e sobre os mistérios da vida e da morte. Mahler

tornou-se um místico que acreditava na ressurreição e na continuação da vida em outros

patamares. Segundo Bruno Walter, essas crenças estão presentes na obra de Mahler e são a

razão principal de sua perenidade (WALTER, 1950).

No Kindertolieder, Mahler utilizou poemas que falam sobre luz e superação. Os cinco

poemas escolhidos tratam de diversos estágios emocionais em relação à morte: tristeza, luto,

revolta, esperança, até a aceitação da perda através de um sentimento de transcendência. À

medida que o tempo passa, o enlutado se acerca da espiritualidade para encontrar conforto e

resiliência, acreditando que os filhos, apesar da desgraça ocorrida, estarão bem nas mãos de

Deus.

Sigmund Freud, após uma tarde inteira de análise de Mahler em 1910, disse que pôde

admirar nesse homem uma capacidade genial de compreensão psicológica. De fato, os

poemas escolhidos por Mahler têm uma mensagem positiva de superação e podem trazer

conforto a quem tenha perdido um ente querido. Conforme apontou Freud, as etapas de luto, a

partir de uma observação psicanalítica, podem se enquadrar em etapas diversas, assim como

as diversas características de cada música do ciclo:

Cada uma das lembranças e expectativas isoladas, através das quais a libido

está vinculada ao objeto, é evocada e hipercatexizada10, e o desligamento da

libido se realiza em relação a cada uma delas. Porque essa transigência, pela

qual o domínio da realidade se faz fragmentariamente, deve ser tão

extraordinariamente penosa, que, de forma alguma, é coisa fácil de explicar

em termos de economia11. É notável que este penoso desprazer seja aceito

10 Valorizadas e revividas. Disponível em: <https://www.psicologiamsn.com/2011/12/psicanalise-depressao-e-

melancolia.html>. Acesso em 18 mai. 2017. 11 Freud vincula a questão da satisfação das necessidades humanas à riqueza, mesmo que não fale em

mercadorias. Disponível em:

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por nós como algo natural. Contudo, o fato é que, quando o trabalho do luto

se conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido (FREUD, 1917 [2010], p.

1).

Finalmente, o Kindertotenlieder foi executado em concertos beneficentes, Mahler´s

Kindertotenlieder for Unicef, para arrecadar fundos para as crianças sírias sobreviventes da

guerra e para a luta e desenvolvimento de crianças carentes ao redor do mundo (Londres

2015; Toronto 2016), reforçando a mensagem intrínseca da obra12.

3. AS CANÇÕES DAS CRIANÇAS MORTAS ÀBÍKÚ13

Àbíkú significa “aquele nascido para morrer”. Para o povo iorubá, existe um mundo

paralelo onde residem deuses e antepassados cercados por uma legião de crianças chamado

Egbé Òrun Àbíkú – são as crianças que nascem para morrer em um curto espaço de tempo e

que geram um grande sofrimento para seus familiares. As meninas são chefiadas por Oloiko, e

os meninos por Ìyájanjasa. Assim, quando uma criança Àbíkú surge no Aire (terra), ocorrem

manifestações que ela terá que cumprir e tão logo voltar para o Orum (céu). Segundo o

pesquisador doutor George Olusola Ajibade, os Àbíkú não são, como muitos acreditam, seres

do mal que têm como missão trazer sofrimento para suas mães; “são seres que são divididos

por querem permanecer com suas famílias na terra e seu compromisso e obrigação de voltar

Orum”. Ajibade aponta ainda que

há diferentes tipos de Àbíkú: o primeiro, Àbíkú- Omode, que é designado

para crianças; e o segundo, Àbíkú-Agba, referindo-se a jovens ou adultos que

morreram nos momentos mais importantes de suas vidas e antes dos pais,

<https://books.google.com.br/books?id=h3dDaVEjATkC&pg=PA103&lpg=PA103&dq=em+termos+de+econo

mia+freud&source=bl&ots=9L_VEL8Ca6&sig=dQOZuF5Df2yF0DhB38OuzZ01lxc&hl=pt-

BR&sa=X&ved=0ahUKEwjh59nZgvrTAhXMh5AKHRbBDfsQ6AEIIDAB#v=onepage&q=em%20termos%20

de%20economia%20freud&f=false>. Acesso em 18 mai. 2017. 12 Disponível em: <https://www.universaledition.com/composers-and-works/gustav-mahler-

448/works/kindertotenlieder-3059>. Acesso em 9 jun. 2017. 13 Esta seção terá como referencial teórico uma visão africanista do povo iorubá com ênfase nos trabalhos do

professor doutor George Olussola Ajibade a partir do candomblé ketu praticado na atual região do Golfo

Africano e herdeiro de práticas ancestrais da iorubalandia.

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resultando em uma alteração da ordem natural a que a sociedade está

acostumada (AJIBADE)14.

Uma vez que não é o foco deste artigo trabalhar uma análise etnográfica do conceito

de Àbíkú na sociedade iorubá, partiremos para a análise das canções e o contexto social das

músicas associadas às mortes de crianças através do Orixá Àbíkú.

Primeiramente, é preciso registrar que as músicas fazem parte de toda a cultura iorubá,

sendo praticadas em diversas atividades daquela sociedade. Seu povo recorre às canções para

expressar suas alegrias, sentimentos, tristezas, felicidades e protestos. Ademais, a morte

prematura de crianças e jovens é considerada trágica nessa sociedade, o Okuf. O pesquisador

Ajibade lembra ainda que a sociedade iorubá viveu uma alta taxa de mortalidade infantil,

devido a anemias falciformes e falta de cuidados parentais, além de diversas outras doenças, o

que foi e é um grande desafio de médicos no passado e na atualidade.

São diversos os contextos sociais em que os iorubás utilizam as canções para o Àbíkú.

Contudo, é preciso frisar que essas canções surgem também como um protesto ao elevado

índice de mortalidade infantil em seu povo (AJIBADE). Em segundo lugar, as canções

buscam afastar o espirito Àbíkú; para isso, adotam diferentes perspectivas entre canções:

sátiras, de louvores, de encantos ou propiciatória.

A sátira tem o sentido de criticar um desvio de pessoas, instituições, ideias, opiniões

ou costumes por meio de ridicularizações que têm objetivo de curar as feridas causadas pelo

desvio naquela sociedade. As canções satíricas são declarações que podem desencorajar os

Àbíkú a realizar seus costumes. Para o povo iorubá, que valoriza muito a vinda de crianças, a

infertilidade e a esterilidade são desprezíveis; assim sendo, ele satiriza o Àbíkú cantando que é

melhor ter o Àbíkú por perto do que ser estéril “Àbíkú Pó Jagan” (“ter o Àbíkú é melhor do

que ser estéril”). Em outras canções, os Àbíkú são ridicularizados, comparados a seres inúteis.

Dessa forma, essa sociedade demonstra acreditar que esses espíritos poderão ser impedidos de

realizar seus atos cantando a inutilidade do Àbíkú em relação à esterilidade. Uma dessas

canções afirma “ERE-Igbo ó dojún o, panti àjamra ó DAB.15

14 Para o povo iorubá, os episódios de aborto e morte prematura de crianças, jovens e adultos podem ser

compreendidos como resultantes de aços dos Àbíkú, também chamados de Emèré, pertencente à Egbe-Ábíkú (cf.

Ajibade). 15

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As canções de louvor buscam retratar os Àbíkú como seres especiais e que necessitam

ser venerados, adorados e elogiados, pois acredita-se que, dessa forma, eles podem mudar de

atitude. Há também cultos de louvor para o Àbíkú com músicas e danças que buscam

engrandecer o Orixá. O pesquisador Ajibande aponta que esses rituais ocorrem em santuários

de Erê, onde se reverencia Iya Erê, com genuflexões e reverências em cerimônias que se

realizam ainda hoje. O autor registra ainda que, apesar de toda a “incursão” tanto do Islã

quanto do Cristianismo, essas religiões não conseguiram interferir na tradição das práticas do

povo iorubá; ao contrário, para o pesquisador, foram justamente essas incursões que

provocaram o atual reforço em alguns aspectos dessa tradição. George Ajibande finaliza

apresentando a letra de uma das canções enigmáticas nesse perfil:

Iya Einse Le ri Le Duro

IIya Edar Le ri Le ò

Ber Eyn tabi Bere

Kara O rò yin

Ati lile gangan

Mo ti so

Ati esse ni

O je ese

Eni Ti sin

ERE nTanra rè JE

As canções encantatórias surgem pela necessidade dessa sociedade de coibir a morte

de crianças através do encantamento ao Àbíkú, que eles acreditam poder afastar o espírito. O

pesquisador Ajibade reflete sobre uma dessas canções em uma cerimônia chamada

JADÙKÚ16, que ocorre anualmente durante um Festival de Egúngún, em Ekosin, na Nigéria.

A cerimônia consiste em um mascarado que sai pelo bairro com um pote17 que é jogado no rio

Osun18, na periferia da cidade. Em seguida, as crianças da região saem mascaradas, cantando

16 JADÙKÚ pode significar “bandido”. É também o nome de um baile de máscaras com a finalidade de afastar o

mal da comunidade. 17 O pote contém sangue de bode, amendoim, vinho, nozes de cola, Kola amargo e mel (cf. AJIBADE). 18 O rio Osun (oxum) é um rio que flui em terras da iorubalandia, no Sudoeste da Nigéria. Esse é um dos vários

rios referidos na mitologia local relacionado a mulheres que se converteram em águas fluentes. A adoração anual

no Templo de Osun, perto do rio Osun, em Osogbo, tem se tornado evento concorrido de várias partes da Nigéria

e do exterior.

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as canções que buscam encantar o Àbíkú para o afastar e poupar do mal as famílias daquela

comunidade, como exprime o trecho a seguir:

Lile: Oni làbikúo lo Nilo yll o

EGBE: Oni Iolómo ó Jere Omo-na

Lile: Oni Lemere o lo Nilo yll o

Egbe: Oni lolómo ó Jere Omo-na

Finalmente, as canções propiciatórias. Estas desdobram-se à medida que a comunidade

busca suplicar ao Àbíkú em vez de recorrer a quaisquer outros procedimentos. Essas canções

revelam muito sobre a sociedade iorubá, pois representam sua relação com a natureza e com

os objetos que devem ser utilizados para a cerimônia. Algumas canções sugerem que se

chame o Àbíkú pelo nome de ÈBÈLÓKÚ19. A canção a seguir mostra que o povo também

recorre a objetos para adorar o Àbíkú: as mulheres que sofreram abortos ou perderam filhos é

que podem apresentar esses objetos especiais. A canção finaliza lembrando que, para adorar o

Àbíkú, é necessário também recorrer às crianças que já estejam no mundo espiritual. Essas

crianças são consideradas misteriosas, uma vez que podem colocar seus pais em vergonha

pelo fato de não ter filhos ou em tristeza por tê-los perdido. Daí que se canta “Omo má Je n té

o. Omo gbèbè mi. Omo má Je n té o” e prossegue:

To ló SERE nd?

Maa SERE

Òbúko béléjé

Maa SERE

Akuko gàgàrà

Maa SERE

Owo orúpe wúwo

Maa SERE

ERE LAA pecado ENI TIO SERE

´n Tanra rè JE

19 Doutor Ajibade registra que, na Nigéria, esse é um dos muitos nomes geralmente dados a determinadas

crianças que creem ter poderes e necessitam ser tratadas.

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Na sociedade iorubá, como a mulher é a mais facilmente afetada quando seu filho

morre, ela geralmente o adora em um santuário ao Àbíkú. Portanto, a mãe de um Àbíkú na

terra é considerada os “olhos” pelos quais a sociedade deve ter piedade ou compaixão. O

pesquisador Ajibade aponta que todos os fundamentos, rituais, sacrifícios e serviços

propiciatórios são realizados para as mães dos Àbíkú. Nestas canções, as mães de Àbíkú

podem ser chamadas de Iya Olúpèéde:

Lya Olúpèéde

Ma, Pe e

Ogún Orógbo

Ma, Pe e

Oji Obi

Ma, Pe e

Ekuru wèlèmù

Àbíkú são adorados como qualquer outro deus ou deusa no reino Iorubá no panteão de

Orisà. As mães que perderam seus filhos participam dessas cerimônias para que a sociedade

possa mostrar sua misericórdia; além disso, acredita-se que a presença dessas mães pode

trazer o espírito Erê ou Jánjàsá no momento da louvação. Ainda hoje, essas mulheres

participam no Festival de Osun, em Osogbo, indicativo, segundo Ajibade, da crença ainda

atual desse povo na morte de suas crianças.

4. LEGADOS CONTRASTIVOS EM MÚSICAS

Esta seção buscará, de forma breve e genérica, recorrer às ideias relacionadas ao

legado em ciências sociais para compreender essas canções de morte de crianças. Buscamos,

com isso, propor ferramentas dentro de uma sociologia da música que permita que

problematizemos novos paramentos de pesquisa em diálogo com a conceituação de legado

memorial.

A socióloga e pesquisadora Luciana Heymann (2007) sustenta a ideia de que podemos

compreender os sentidos de legado dentro do campo das ciências sociais, ao contrário do viés

político. Trata-se de um investimento social, por meio do qual um fato é fundador de um

projeto social, político e ideológico, configurando-se em objetos que remetem ao personagem,

ao fato, ao período ou ao tema em questão e que passa a ser objeto de preservação, divulgação

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e atualização constante. Segundo a autora, “A produção de um legado implica, de fato, na

atualização (presente) do conteúdo que lhe é atribuído (passado), bem como na afirmação da

importância de sua constante rememoração (futuro)”. (HEYMANN, 2007, p.3)

Para avançarmos nessa discussão, gostaríamos de atentar às atribuições que essa

pesquisadora oferece à ideia de legado, conjugando-os com nosso objeto de análise – as

canções compostas em protesto pelo elevado número de mortes infantis, que vêm sendo

constantemente atualizadas, seja em concertos, em apresentações específicas ou em rituais e

práticas folclóricas. Nesse sentido, as composições de protesto no passado e suas

rememorações no presente, através de representações (gravações, festivais) aproximam-se da

noção de legado, à medida que “aproxima passado e futuro, sem nunca igualá-los, na medida

em que o significado da memória musical que se torna objeto desse tipo de investimento é

dotado de um valor que transcende o contexto de sua atuação” (HEYMANN, 2007, p.3, grifo

nosso).

Podemos observar que as canções das crianças mortas de Mahler, na Europa, vêm

sendo apresentadas em diferentes países na atualidade. Além do fato de ser uma peça que se

realiza com poucos integrantes, essa peça caracteriza-se por ser de fácil realização financeira

no meio musical. Portanto, recentemente, a UNICEF realizou apresentações do

Kindertotenlieder em diversos países para arrecadação de fundos financeiros com finalidade

de ajudar as crianças sírias, por exemplo20.

O legado das canções do Àbíkú, no atual contexto afro, pode ser descrito como de

canções de preservação e de divulgação da morte de crianças por meio das quais o conteúdo

associado a essas canções é constantemente atualizado e renovado em cultos anuais, semanais

ou em casos particulares. O pesquisador nigeriano Ajibade registra que, no santuário de Egbe-

Àbíkú, localizado dentro do Tribunal de Osun, realizam-se importantes rituais ainda hoje. Na

cidade de Osogbo, atualmente, também acontecem diferentes rituais e canções nas águas

místicas do rio Osun. Além disso, as canções de Àbíkú são constantemente praticadas, tal qual

o antiquíssimo Festival de Osun realizado anualmente Osogbo, na Nigéria, importante

“manutenção da memória nacional”. Citando Luciana Heymann, essas composições para

crianças mortas produzem um legado memorial, uma vez que dependem das ações de sujeitos

que expressam a “necessidade” de reassunção desse legado e que sejam os porta-vozes do

20 Disponível em: <https://www.justgiving.com/fundraising/musiciansforsyria>. Acesso em: 9 jun. 2018.

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risco de esquecimento da importância desse legado para a “memória nacional” (HEYMANN,

2007, p.3).

Por fim, apesar da brevidade desta comunicação, buscamos lançar mão de ideias sobre

possibilidades de se pensar o conceito de legado em composições musicais ou – melhor seria

– como “fatos musicais”, posto que poderíamos associar essa noção a um passado que se

atualiza com diferentes redefinições. Ou seja, a “noção de legado é investida de uma

exemplaridade que faz com que seja possível projetá-la para frente e ressignificá-la ao longo

do tempo, num processo em que seu próprio conteúdo vai sendo redefinido” (HEYMANN,

2007, p.3).

Tendo em vista o exposto, observamos a multidisciplinaridade com que podemos

enfocar as canções musicais no âmbito das ciências sociais, por meio de diferentes diálogos.

No caso desta pesquisa, pretendemos compreender os interesses na produção dessas canções;

o interesse nos significados sociais dessas músicas em suas realidades; e os contextos

diversos. Tais perspectivas tinham o intuito de compreender as representações sociais em

canções para crianças mortas, possivelmente imbuídas no sentido de ser instrumento para a

manutenção de um “fato musical”, pois essas canções são, ainda hoje, importantes símbolos

de legado social e cultural. Essa ressonância do aspecto de representação e legado produz-se

de forma cônscia e incônscia. Assaz, é revelado o caráter de protestação intencional de ambos

os contextos pelo elevado índice de mortalidade infantil, buscando desnaturalizar a aceitação

desse fato. Essa construção musical, baseada na noção de representação, assim como legado,

confere legitimidade a essas canções que, como percebemos, podem ser “desconstruídas”

exclusivamente de valores estéticos e analisadas como “fato social”.

Por fim, esperamos que esse artigo provoque a produção de conhecimento dentro das

artes musicais para que músicos vislumbrem, a partir de uma perspectiva sociológica da

música, os aspectos sociais, históricos, representacionais e legatários que envolvem a causa.

Buscamos, com isso, provocar “desconstruções” sobre determinadas composições musicais.

Assim, distanciamo-nos, neste momento, de análises comprometidas exclusivamente com os

usos estético-musicais21 de determinadas composições e perseguimos uma abordagem que

envolva os sentidos empíricos, sociais e históricos de determinadas composições musicais

21 As dificuldades na definição teórica-metodológica para uma disciplina sociológica da música recaem nas

zonas de fronteiras de disciplinas. A musicologia vem debatendo com a sociologia os limites de sua zonas de

atuação, recaindo sobre os musicólogos, muitas vezes, o privilégio de debater questões estético-musicais.

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perante suas sociedades ou grupos22. Buscamos, portanto, desenvolver ângulos de análise que

se entendessem como sociologia da música.

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Trabalho apresentado no Seminário “O Estado Novo 70 anos”, realizado no CPDOC/FGV.

Rio de Janeiro, 28 nov. 2007.

22 Por falta de espaço, pretendemos ainda abordar as possibilidades da metodologia da história comparada para

trabalhar nas artes musicais determinadas composições. Cf. Barros, 2007.

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