arte pública e política1 por cristina pratas...

15
– CONVOCARTE N.º1 | ARTE PÚBLICA << The notion of Public Art has been moving in a terrain open to redefinitions and interpretations. This fact derives, among others, from the artistic dynamics developed in the second half of the twentieth century and from the identity expansion of the traditional disciplines. But it also stems from the fact that in our days this notion it is applied to artistic interventions with very different purposes. Nevertheless, it is possible to understand the convergence of the critical discourse to a characterization of the notion of Public Art based on two elements: the relationship with the Space and the relationship with the Public. But these concepts have extended the perimeters of its significance. On the one hand, the Space it has been understood through an anthropological and social dimension. On the other hand, the connection between the Politics and Public 2 became central to some artistic practices. This text it is precisely about the relation of the Public Art with the Politics. No decorrer da década de noventa do sé- culo XX, a noção de Arte Pública foi profi- cuamente discutida nos EUA a partir do comprometimento social que alguns artis- tas manifestavam nas suas obras. Dela re- sultou a proposta de uma nova tipologia artística, então denominada de ‘novo gé- nero de arte pública’. A designação surgiu pela primeira vez numa edição publicada em 1995, que reunia as intervenções ocorri- das no simpósio ‘Mapping the Terrain: New Genre Public Art’, realizado em 1991 no San Francisco Museum of Modern Art. Suzanne Lacy, a quem coube o trabalho de edição do volume com o mesmo título, destacava aí o papel pioneiro e o contributo da inicia- tiva para um conhecimento e compreensão de produções artísticas cuja contextualiza- ção teórica ocorria até ao momento a par- tir da designação lata de ‘artistas políticos’ (Lacy, 1995, p.12). A introdução de Lacy veiculava o ‘novo gé- nero de arte pública’ a questões de ordem social, o que no seu entender evidenciava uma convergência histórica com o desen- volvimento de vários grupos de vanguarda, como os feministas, marxistas e de outros activistas (Lacy, 1995, p.25). A designação Arte Pública e Política 1 por Cristina Pratas Cruzeiro Professora Assistente Convidada na FBAUL e Investigadora do CIEBA.

Upload: others

Post on 27-Oct-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Arte Pública e Política1 por Cristina Pratas Cruzeirorepositorio.ul.pt/bitstream/10451/27738/2/Convocarte_1_p.200-214.pdf · nero de arte pública’ a questões de ordem social,

– C

ON

VO

CA

RT

E N

.º1

| A

RT

E P

ÚB

LIC

A

<<

The notion of Public Art has been moving in a terrain open to redefinitions and interpretations. This fact derives, among others, from the artistic dynamics

developed in the second half of the twentieth century and from the identity expansion of the traditional

disciplines. But it also stems from the fact that in our days this notion it is applied to artistic interventions with

very different purposes. Nevertheless, it is possible to understand the convergence of the critical discourse to

a characterization of the notion of Public Art based on two elements: the relationship with the Space and the

relationship with the Public. But these concepts have extended the perimeters of its significance. On the one

hand, the Space it has been understood through an anthropological and social dimension. On the other hand,

the connection between the Politics and Public 2 became central to some artistic practices. This text it is precisely

about the relation of the Public Art with the Politics.

No decorrer da década de noventa do sé-culo XX, a noção de Arte Pública foi profi-cuamente discutida nos EUA a partir do comprometimento social que alguns artis-tas manifestavam nas suas obras. Dela re-sultou a proposta de uma nova tipologia artística, então denominada de ‘novo gé-nero de arte pública’. A designação surgiu pela primeira vez numa edição publicada em 1995, que reunia as intervenções ocorri-das no simpósio ‘Mapping the Terrain: New Genre Public Art’, realizado em 1991 no San Francisco Museum of Modern Art. Suzanne Lacy, a quem coube o trabalho de edição do volume com o mesmo título, destacava aí o papel pioneiro e o contributo da inicia-tiva para um conhecimento e compreensão de produções artísticas cuja contextualiza-ção teórica ocorria até ao momento a par-tir da designação lata de ‘artistas políticos’ (Lacy, 1995, p.12).

A introdução de Lacy veiculava o ‘novo gé-nero de arte pública’ a questões de ordem social, o que no seu entender evidenciava uma convergência histórica com o desen-volvimento de vários grupos de vanguarda, como os feministas, marxistas e de outros activistas (Lacy, 1995, p.25). A designação

Arte Pública e Política1

p o r C r i s t i n a P r a t a s C r u z e i r o

Professora Assistente Convidada na FBAUL e Investigadora do CIEBA.

Page 2: Arte Pública e Política1 por Cristina Pratas Cruzeirorepositorio.ul.pt/bitstream/10451/27738/2/Convocarte_1_p.200-214.pdf · nero de arte pública’ a questões de ordem social,

2 0 1 – C R I S T I N A P R A T A S C R U Z E I R O

tinha em conta o facto de determinadas práticas artísticas se centrarem numa inter-venção social baseada na interacção con-tinuada com diferentes segmentos da po-pulação ou com comunidades específicas, alargando dessa forma o perímetro da con-textualidade que, até aí, tinha estado afecto ao princípio da espacialidade. Lacy descre-ve-as considerando que “They have enga-ged broad, layered, or atypical audiences, and they imply or state ideas about social change and interaction. Most important, the artists selected provide different models of practice and ideology.” (1995, p.13).

Para Suzanne Lacy, as características que uniam determinadas práticas e em simul-tâneo as distinguiam das restantes centra-vam-se na sensibilidade relativamente à au-diência, à estratégia social e à sua eficácia real (Lacy, 1995, p.20). Ainda assim, a auto-ra destacava de entre elas o ‘público’ como a componente essencial do trabalho, con-siderando que a relação entre o artista e a audiência poderia, em si mesma, tornar-se a obra de arte (Lacy, 1995, p.20). Para Lacy, estas práticas apenas podiam ser relacio-nadas com as do espectro político em ter-mos teóricos, uma vez que as áreas sociais em que actuavam – por exemplo a oposição ao racismo, a violência sobre as mulheres, a Sida ou a ecologia – “are as much a recoun-ting of a traditional leftist agenda as they are the subject matter of new genre public art.” (Lacy, 1995, p.30). A autora sugeria a existência de campos de actuação distintos entre as práticas artísticas abrangidas pela nova designação e as restantes práticas ar-tísticas assentes numa intervenção social e política. A diferenciação tinha em conta os

procedimentos metodológicos e de inte-racção com uma audiência ampla e diver-sificada – assente em assuntos relevantes para as suas vidas – e com uma actuação no terreno social que privilegiava questões de ordem cultural (Lacy, 1995, p.20), uma op-ção alinhada com os caminhos que então se trilhavam no domínio político.

A indexação destas práticas artísticas à in-tervenção social e política motivou desde logo uma série de reflexões teóricas de cariz ideológico que importa conhecer. Tradicio-nalmente, os artistas com uma intervenção social de relevo – fosse enquanto cidadãos ou enquanto artistas – estavam maioritaria-mente afectos ao marxismo. Mas durante as décadas de setenta e de oitenta, ao mesmo tempo que a reconstrução teórica da obra de Marx era abundante e dirigida por orien-tações filosóficas distintas como as de Györ-gy Lukács, Ernst Bloch, Antonio Gramsci ou Louis Althusser, diferentes organizações po-líticas de fundamento marxista colapsavam. Simultaneamente, assistia-se de forma glo-balizada à privatização de todos os aspec-tos da existência social e da dominação do poder capitalista (Bidet e Kouvelakis, 2008, p.5 e 6). Com a queda do Muro de Berlim em 1989 e o fim da URSS em 1991, sucede-ram-se os vaticínios de morte do marxismo. A eles, juntaram-se os discursos analíticos do pós-modernismo, as teorias do fim da História e as da derrota do marxismo sobre o capitalismo como, entre outros, Francis Fukuyama defendeu em ‘The End of History and the Last Man’, de 1992.

Esta conjuntura, onde “this theoretical tra-de-off made in the name of deconstructing

Page 3: Arte Pública e Política1 por Cristina Pratas Cruzeirorepositorio.ul.pt/bitstream/10451/27738/2/Convocarte_1_p.200-214.pdf · nero de arte pública’ a questões de ordem social,

– C

ON

VO

CA

RT

E N

.º1

| A

RT

E P

ÚB

LIC

A

<<

grand historical and political narratives came at the very moment when capitalism emer-ged as the totalizing world system” (Shole-tte, 2011, p.15), não foi coincidência. Não obstante, determinou uma alteração subs-tancial no panorama do pensamento crítico, das ideologias e também da sua influência sobre críticos, artistas e práticas artísticas.

A incidência nos conflitos gerados fora do contexto económico ganhou bastante ex-pressividade a partir da segunda metade do século XX, sobretudo nos EUA. Estes conflitos, associados ao contexto cultural – como as questões de género, de raça, de identidade – procuraram com frequência instalar-se num ‘novo’ pensamento de es-querda veiculado ao feminismo e/ou ao pós-colonialismo, afastando-se da análise social marxista.

Durante este período, o pensamento filosófi-co ‘pós-marxista’ e ‘neo-marxista’3 de Ernest Laclau e Chantal Mouffe, Paulo Freire e Hen-ry Giroux ou ainda de activistas associados às teorias feministas como bell hooks, tor-nou-se uma referência para alguns círculos e tipologias artísticas, nomeadamente as do ‘novo género de arte pública’. Nele, a con-vergência com o marxismo assenta apenas na forma “in which Marx discloses the shor-tcomings of modern democratic theory (…) namely, free and equal development of a self-determining community.” (Tønder e Tho-massen, 2005, p.2). As divergências são mais profundas, assentando num pensamento que considera o marxismo desactualizado na sua estruturação e análise social, eco-nómica e política. É isso que, por exemplo, Ernest Laclau e Chantal Mouffe sustêm em

‘Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics’, publicada em 1985, onde propõem que os objectivos de uma nova esquerda assentem na criação de uma democracia radicalizada e plural que articule a luta de diferentes grupos e formas de subordinação como a classe, a raça, o sexo, assim como as causas dos movimen-tos ecológicos, antinucleares ou anti-institu-cionais (Laclau e Mouffe, 1987, p.6).

A influência destes autores para o pensa-mento crítico produzido no contexto das artes, durante os anos noventa, raramen-te tem sido equacionada no que se refere à reflexão que determinados autores fize-ram durante este período sobre a relação das artes com a Política. Não obstante, esse equacionamento é fundamental para o en-quadramento ideológico de algumas tipo-logias artísticas inseridas no perímetro da Arte Pública, assim como o é para caracte-rizar a re-focagem do contexto artístico na-quele período em matéria de intervenção social e política.

No mesmo ano em que Chantal Mouffe e Ernest Laclau publicaram o volume atrás referido – 1985 –, Hal Foster publicou ‘For a Concept of the Political in Contemporary Art’, onde propunha fazer uma reflexão so-bre a conjuntura político-artística dos anos oitenta a partir de uma revisão das relações entre os domínios cultural e político e en-tre o social e o económico (Foster, 1985, p.140). Neste ensaio, que se aproxima às considerações tecidas no contexto do pós--marxismo, Foster reiterava que o modelo social marxista, baseado na luta de classes, estava ultrapassado. A definição de clas-

Page 4: Arte Pública e Política1 por Cristina Pratas Cruzeirorepositorio.ul.pt/bitstream/10451/27738/2/Convocarte_1_p.200-214.pdf · nero de arte pública’ a questões de ordem social,

2 0 3

se era, no seu entender, uma praxis social específica e não um dado histórico perma-nente que pudesse ser representado (1985, p.143). Por isso argumentava que:

Today progressive social forces in the west cannot be defined strictly in terms of “pro-ductive man” – for two reasons. Historically, women, blacks, students...were no long su-bordinate in production or consigned to a realm outside it – to consumption or culture; and socially, the site of struggle for these po-litical forces is as much the cultural code of representation as the means of production, as much homo significans as homo œcono-micus. (Foster, 1985, p.142).

Hal Foster formulava então a questão: “if it can no longer be conceived as representa-tive of a class, materially productive or cul-turally vanguard, how and where is political art to be posed?” (Foster, 1985, p.140). Em resposta, afirmava que o poder não pode-ria continuar e ser exercido exclusivamente ou maioritariamente através do controlo dos meios de produção, mas através do controlo dos meios de representação (1992, p.260). Desta forma, a arte política não poderia con-tinuar a ser concebida apenas “as a repre-sentation of a class subject (…) or an instru-ment of revolutionary change (…).” (Foster, 1985, p.143), valores transversais à socie-dade, tendo antes que ser concebida para “specific uses and material effects (...)” (Fos-ter, 1985, p.143). Para que isso acontecesse, tornava-se necessário “see in the social for-mation not a “total system” but a conjuncture of practices, many adversarial, where the cultural is an arena in which active contesta-tion is possible” (Foster, 1985, p.149).

Hal Foster partia da análise baseada na comutação entre a cultura e a economia (Foster, 1985, p.146) pelo que defendia uma radical alteração estratégica da arte crítica em relação às utilizadas durante as primei-ras vanguardas. Se aí a estratégia tinha as-sentado na transgressão cultural e política, agora ela deveria assentar na resistência e interferência (Foster, 1985, p.149) políti-ca, efectuada directamente no campo da cultura (Foster, 1985, p.154). Isso exigia da arte uma concepção de cultura como es-paço conflitual onde era possível oferecer resistência e interferir com os sistemas de produção simbólica e com os processos de circulação que controlam as representações culturais. Era esse o lugar possível para tra-balhar no sentido da transformação social.

O ensaio de Hal Foster terminava sugerin-do uma distinção entre ‘arte política’ e ‘arte com uma política’. Para o autor, a primeira mantinha-se encerrada num código retóri-co, pelo que reproduzia representações ideológicas enquanto que a segunda, im-plicada com um posicionamento estrutural de pensamento, procurava uma prática ma-terial efectiva com a totalidade social (1985, p.155). Dadas as estratégias de actuação, o autor considera que a última procurava produzir um conceito de ‘político’ relevante para a época (Foster, 1985, p.155), evitan-do dessa forma a apropriação e dominação pelo poder.

Em 1996, Hal Foster clarificava a sua per-spectiva, publicando o texto ‘The artist as etnographer’. A partir da recuperação do pensamento que Walter Benjamin expres-sou em 1934 no texto ‘Der Autor als Produ-

– C R I S T I N A P R A T A S C R U Z E I R O

Page 5: Arte Pública e Política1 por Cristina Pratas Cruzeirorepositorio.ul.pt/bitstream/10451/27738/2/Convocarte_1_p.200-214.pdf · nero de arte pública’ a questões de ordem social,

– C

ON

VO

CA

RT

E N

.º1

| A

RT

E P

ÚB

LIC

A

<<

zent’ (O autor enquanto produtor), o autor considerou que a partir dos anos oitenta vários artistas e críticos começaram a tra-balhar em versões contemporâneas do par-adigma aí expresso. Mas a par do modelo do ‘autor enquanto produtor’, Hal Foster identifica o nascimento de um novo par-adigma, o do ‘artista enquanto etnógrafo’ (1999, p.172). Estruturalmente similares, os dois consideram que o lugar da trans-formação política é simultaneamente o lu-gar da transformação artística (Foster, 1999, p.173). O que os distingue é o sujeito pelo qual o artista comprometido luta, uma vez que no modelo do artista como produtor o sujeito é definido em termos da relação económica e no modelo do artista como etnógrafo é definido em termos da identi-dade cultural (Foster, 1999, p.173).

O paradigma etnográfico identificado por Hal Foster, de onde se destaca o carácter antropológico das práticas artísticas, é tam-bém evidenciado no volume editado por Suzanne Lacy como sendo uma característi-ca do ‘novo género de arte pública’. Lucy Lippard, no texto ‘Looking around: where we are, where we could be’, aí incluso, propõe que se volte a olhar em redor, ao que está ao alcance dos olhos e do corpo. Conside-ra a autora que “because we have lost our own places in the world, we have lost re-spect for the earth, and treat it badly.” (Lip-pard, 1995, p.115). A noção antropológica de Lugar é definida por Lippard como um espaço social com conteúdo humano, at-ravés do qual se podem compreender as in-terligações pessoais, sociais e culturais. Pos-tula por isso a necessidade de aprofundar a reflexão sobre a experiência pública dos

Lugares e considera que “When this kind of research into social belonging is incor-porated into interactive and participatory art forms, collective views of place can be arrived at. It provides ways to understand how human occupants are also part of the environment rather then merely invaders (but that too).” (Lippard, 1995, p.116). As-sim, no seu entender, as práticas artísticas comprometidas com o contexto social – por ela denominadas de “art of place” (Lip-pard, 1995, p.119) – deviam trabalhar com as particularidades humanas geradas nos Lugares, centrando-se nesse microcosmos para dele retirar as dimensões práticas, so-ciais e políticas da comunidade.

As práticas artísticas compreendidas nes-ta tradição teórica são várias e os propósit-os que as movem também. Não obstante, o seu eixo central – o contacto directo com determinadas comunidades – é tenden-cialmente entendido como o elemento de maior significância política. De tal forma que “a community art project has only ‘succeed-ed’ when it realizes an interaction between participants and the artist and wider com-munity at which it was aimed.” (De Bruyne e Gielen, 2011, p.21). Para o enquadramen-to da questão, é importante referir que as metodologias colaborativas e participativas estavam a assumir neste período uma forte proeminência. Por exemplo, na mesma al-tura em que o perímetro de actuação con-ceptual do ‘novo género de arte pública’ estava a sedimentar-se, Nicolas Bourriaud escrevia ‘Esthétique Rélationnel’ (publica-do em 1997), dedicado à arte centrada nas interacções humanas e no seu contexto so-cial (Bourriaud, 2008, p.13). Tal como Lip-

Page 6: Arte Pública e Política1 por Cristina Pratas Cruzeirorepositorio.ul.pt/bitstream/10451/27738/2/Convocarte_1_p.200-214.pdf · nero de arte pública’ a questões de ordem social,

2 0 5

pard, o autor identifica nas ‘microutopias’ do presente a significância política da arte relacional. Mas como Claire Bishop obser-va, a mesma tende a centrar-se não no es-paço social mas na relação entre o artista e o espectador (Bishop, 2004, p.56). Isso é também notado por Christian Kavragna em relação ao ‘novo género de arte pública’:

The rhetoric of the NGPA hardly obscures the process of “othering”, the construction of an “other” as a condition for further pro-jections. The “others” are not only poor and disadvantaged, they are also representati-ves of what is genuine and real, so that they are at once both needy and a source of in-spiration (1998).

O discurso de Lacy, de Foster, de Lippard e de outros autores como Rosalyn Deut-sche4 ou Nicolas Bourriaud relevava uma intervenção social segmentada face a uma intervenção social dirigida ao contexto económico e político hegemónico. Chris-tian Kavragna considerou por isso que “What is noticeable about the programma-tic writings by Lacy and Jacob, but also by Lucy Lippard, Suzi Gablik and Arlene Raven, is that political analysis is largely missing, even though there is much talk of social change at the same time.” (1998). Contudo, a omissão da análise política dos discursos críticos sobre arte destes autores não era casual. Acontecia porque eram enformadas por teorias políticas ideológicamente alin-hadas com um pensamento sobre as dinâ-micas sociais marcadamente niilista e em muitos aspectos anti-marxista. A este res-peito, por exemplo, o artista Gregory Sho-lette sustenta que toda a teoria política de

Ernest Laclau e Chantal Mouffe, “a duo of anti-Marxist Leftists (...) attempted to prove that any universal economic explanation of society is merely a fetish or myth dreamed up by Marx and elaborated on by his follow-ers.” (2011, p.14). Sholette rejeita liminar-mente a visão ‘horizontal’ do pluralismo de-fendido por Mouffe e Laclau assim como o facto de considerarem que:

No one privileged signifier—such as the economy or class status—could possibly af-fect all of these positions [as posições de conflito social] because capitalism is not a totality, it is instead a text with a multiplici-ty of interpretive possibilities that generate merely local conflicts of power and temporal moments of subjectivity (2011, p.14).

Naturalmente que este debate não está en-cerrado e dele tem resultado uma extensa profusão de relacionamentos da Arte Públi-ca com o Político. Um dos efeitos mais evi-dentes tem sido o crescimento de propos-tas terminológicas e sub-tipologias dentro do tecto abrangente da Arte Pública, cu-jos propósitos se enunciam como políti-cos5. Mas a questão essencial passa pela dimensão ideológica que esses propósitos têm, assim como pela interrogação acer-ca da sua relação com o sistema capitalista neoliberal e com a Política.

O BAVO, um colectivo sediado em Roter-dão, fundado pelos arquitectos-filósofos Gideon Boie e Matthias Pauwels, tem de-senvolvido uma investigação nesta matéria, designando as práticas artísticas sem pro-pósitos políticos dirigidos para o comba-te às estruturas hegemónicas de poder de

– C R I S T I N A P R A T A S C R U Z E I R O

Page 7: Arte Pública e Política1 por Cristina Pratas Cruzeirorepositorio.ul.pt/bitstream/10451/27738/2/Convocarte_1_p.200-214.pdf · nero de arte pública’ a questões de ordem social,

– C

ON

VO

CA

RT

E N

.º1

| A

RT

E P

ÚB

LIC

A

<<

“NGO art”, ou seja, arte ONG (Organização não governamental). Este colectivo centra a sua pesquisa e acção na dimensão polí-tica da arte, na arquitectura e planeamento urbano, através da filosofia e psicanálise e sustenta que:

It is no doubt noble and much-needed that artists undertake some direct action in the of-ten harrowing social situations that continue to exist in our current societies (...). When it comes to gauging the effectiveness of the-se socially committed practices in tackling the problems at hand in a more fundamen-tal sense, however, they are often found la-cking. (...) They reason and operate more like humanitarian organizations or NGOs: rather than addressing the larger, political issues, they focus on what they can do immediately for the affected individuals or groups within the limitations of the feasible. With these or-ganizations they share a high measure of self-censorship. It is a known fact that huma-nitarian organizations deliberately avoid ta-ckling head-on controversial political issues for fear that the relief effort might be com-promised (...). NGO-art is in fact characteri-zed by a denial of politics: the question of what can be done here and now, and how this can be achieved most efficiently is more important than exposing and combating more underlying structures – which should be the essence of politics (De Cauter, L. e De Roo, 2011, p.291).

O colectivo artístico destaca a acção direc-ta, uma característica essencial das práticas artísticas de carácter colaborativo, participa-tivo e relacional, como denotadora do prag-matismo próprio das mesmas (De Cauter, L.

e De Roo, 2011, p.289). O objectivo passa por “do what can be done within the realms of possibility and to offer instant relief or em-powerment through a concrete project or intervention” (De Cauter, L. e De Roo, 2011, p.291) e não por “initiating long-term politi-cal processes in which ‘the impossible is de-manded’ and of which no one knows wheth-er they will ultimately produce a concrete improvement for the social groups in ques-tion.” (De Cauter, L. e De Roo, 2011, p.291).

Para o colectivo, a questão do enquadra-mento num projecto social de fundo aca-ba por ser essencial no momento de aufer-ir sobre a intervenção política das práticas artísticas contemporâneas. Isto determina uma actividade político-artística prolonga-da, pelo que se torna impossível a obtenção de efeitos a curto prazo, como diferentes práticas artísticas comunitárias e relacionais pretendem. O BAVO sustém inclusive que a compulsão em atingir resultados imediatos não só condena os artistas comprometidos a uma neutralidade política como os torna extremamente vulneráveis politicamente (De Cauter, L. e De Roo, 2011, p.291).

Em certa medida, a análise deste colectivo coloca em destaque a importância que as di-ferentes concepções de intervenção política no espaço social têm na concepção e estru-turação da prática artística. Em relação à Arte Pública na sua dimensão comunitária, a análise do investigador Pascal Gielen con-tribuí para uma melhor compreensão desta problemática. Em ‚Mapping Community Art‘ (2011), o autor considera que “an engaged artist, who sincerely wishes to make a po-litical statement, forces himself into a par-

Page 8: Arte Pública e Política1 por Cristina Pratas Cruzeirorepositorio.ul.pt/bitstream/10451/27738/2/Convocarte_1_p.200-214.pdf · nero de arte pública’ a questões de ordem social,

2 0 7

ticulary complex role. This is especially the case when he tries to substantiate this social claim from an artistic position.” (De Bruyne, P. e Gielen, 2011, p.18). A complexidade que Gielen identifica está relacionada com o que considera ser um frágil equilíbrio en-tre o contexto artístico e o contexto político, podendo um levar à anulação do outro (De Bruyne, P. e Gielen, P., 2011, p.19).

Pascal Gielen considera existirem dois posi-cionamentos extremos na arte comunitária. Um responde à noção de 'estética auto-rel-acional' e acontece quando o trabalho serve a identidade do artista e o outro pressupõe a existência da noção de‚ 'estética alter-rela-cional' e acontece quando o trabalho serve a identidade do Outro (De Bruyne, P. e Giel-en, P., 2011, p.18). Estes dois posicionamen-tos sugerem que a arte comunitária pode seguir duas direcções: obedecer às regras da arte profissional ou servir exclusivamente a interacção social levando inevitavelmente a um suicídio artístico (De Bruyne, P. e Giel-en, P., 2011, p.20 e 21). Ainda assim, consid-era o autor, o sucesso do trabalho depende de um correcto equilíbrio entre os dois posicionamentos (De Bruyne, P. e Gielen, P., 2011, p.21).

O que se julga ser essencial nesta análise é que Gielen sublinha que o propósito que conduz o trabalho para a interacção social determina que o mesmo possa ser consider-ado subversivo ou digestivo. A divisão entre os dois pólos não é intransponível pelo que a uma estética auto-relacional não tem que corresponder necessariamente um propósi-to digestivo, assim como a uma estética al-ter-relacional não tem que corresponder um

propósito subversivo (De Bruyne, P. e Gielen, P., 2011, p.21). Isto complexifica a questão, mas traz simultaneamente à luz a importân-cia de se identificar o carácter intencional da prática artística, considerando os propósitos políticos da mesma como uma característica essencial a investigar.

Gielen afirma que a estética auto-relacional digestiva está tradicionalmente afecta à arte em espaços públicos onde o artista, embora possa ter a participação da comunidade lo-cal, de instituições públicas ou de empresas locais (ao nível do patrocínio, por exemplo), segue a sua assinatura artística (De Bruyne, P. e Gielen, P., 2011, p.23). É frequente nest-es casos o artista trabalhar com organi-zações focadas em Arte no Espaço Público (comuns nos EUA e em alguns países euro-peus) que servem de intermediárias neste processo, a fim de encontrar consensos, ou de instituições ligadas ao Poder local ou central. Este posicionamento é aquele que mais directamente se associa ao âmbito da escultura e da edificação objectual, embo-ra possam existir projectos fora desse con-texto. Por seu turno, a estética alter-rela-cional digestiva prima por procurar atingir resultados sociais, colocando num plano se-cundário a assinatura artística (De Bruyne, P. e Gielen, P., 2011, p.25). Nela, podem inclu-ir-se todos os projectos onde acreditar “in the healing effects of the arts is remarkably strong” (De Bruyne, P. e Gielen, P., 2011, p.25) e cujo objectivo artístico passa pela integração social de determinados elemen-tos da comunidade.

Um exemplo que se julga paradigmático deste posicionamento é o projecto‚ 'mega-

– C R I S T I N A P R A T A S C R U Z E I R O

Page 9: Arte Pública e Política1 por Cristina Pratas Cruzeirorepositorio.ul.pt/bitstream/10451/27738/2/Convocarte_1_p.200-214.pdf · nero de arte pública’ a questões de ordem social,

– C

ON

VO

CA

RT

E N

.º1

| A

RT

E P

ÚB

LIC

A

<<

fone.net'6 dirigido entre 2004 e 2014 pelo artista es-panhol Antoni Abad. O pro-jecto consiste em convidar grupos de pessoas em risco de exclusão social a expres-sarem-se na primeira pes-soa. Escolhido o grupo é cedido a cada participante um telemóvel com câmara para que registe episódios do seu quotidiano e os publique directamente no sítio da Internet7. O ‘mega-fone.net’ caracteriza-se in-equivocamente por encon-trar na arte uma plataforma de sociabilidade que neste caso se traduz por dar voz a determinadas comuni-dades fragilizadas. Como o próprio website do projec-to refere, a intenção é que o dispositivo tecnológico en-tregue a cada participante possa actuar como um megafone, amplificando a voz de indivíduos e grupos

frequentemente ignorados e incompreendi-dos pelos meios de comunicação principais (Megafone.net, 2013). Aqui, o artista fala em discurso indirecto, cedendo o espaço que lhe é concedido enquanto artista a outros que em condições regulares não o teriam, pelo que se trata de uma prática alter-rel-acional. Considera-se que a mesma é ‘di-gestiva’ por duas razões: em primeiro lugar porque o projecto advoga o objectivo de deixar falar o outro, impedido pelos média de o fazer. Acaba portanto por se substitu-

Antoni Abad, 'Megafone.net', 2003 - Mapa com a sinalização dos locais onde o projecto se desenvolveu até ao momento. Página de rosto do sítio

da Internet do Projecto(Apud http://www.megafone.net/site/index)

Vista da exposição 'Antoni Abad. megafone.net/2004-2014'. MACBA

Foto: Miquel Coll (Apud http://www.macba.cat/es/10-anyos-de-megafone-net)

Page 10: Arte Pública e Política1 por Cristina Pratas Cruzeirorepositorio.ul.pt/bitstream/10451/27738/2/Convocarte_1_p.200-214.pdf · nero de arte pública’ a questões de ordem social,

2 0 9

ir aos mesmos, transferindo a responsabili-dade de serviço público para si mesmo sem que isso se traduza em qualquer alteração na atitude dos referidos meios de comuni-cação social. Não existe neste trabalho a in-tenção de ir mais longe a este nível, exigin-do por exemplo que os média cumprissem a sua função, mas antes substituir-se a eles numa função que diríamos ser protésica. A outra razão, mais evidente, prende-se com o suporte financeiro do projecto, dado por instituições sociais, culturais ou artísticas e também por empresas privadas, especial-mente as dirigidas às telecomunicações8. O artista coloca-se numa posição de facilitador das políticas financeiras empresariais que primam com frequência pelo apoio a iniciati-vas de cariz social com o objectivo de ganhar estatuto social e em simultâneo benefícios fiscais, pelo que de certa forma, sendo al-ter-relacional, este projecto colabora mais na manutenção do sistema social e político em vigor do que na sua alteração profunda.

A estética auto-relacional subversiva acon-tece quando o artista potencia a sua própria assinatura artística, o que resulta num tra-balho indiscutivelmente aceite nas institu-ições artísticas (De Bruyne, P. e Gielen, P., 2011, p.25). Um exemplo que se conside-ra clarificador deste posicionamento é o do artista Francis Alÿs. De nacionalidade belga, escolheu o México como residência desde meados dos anos oitenta, desenvolvendo um percurso artístico dirigido à exploração da urbanidade, à relação entre a política e a poética artística e à esfera pública. Pode-se dizer que a sua base de trabalho é a per-formance, no sentido em que procura criar eventos que envolvem um reconhecimen-

Francis Alÿs, 'Turista', 1994 – Fotografia, 9.9 x 15.1 cm. (Apud http://www.stedelijk.nl/en/artwork/82250-turista)

– C R I S T I N A P R A T A S C R U Z E I R O

Page 11: Arte Pública e Política1 por Cristina Pratas Cruzeirorepositorio.ul.pt/bitstream/10451/27738/2/Convocarte_1_p.200-214.pdf · nero de arte pública’ a questões de ordem social,

– C

ON

VO

CA

RT

E N

.º1

| A

RT

E P

ÚB

LIC

A

<<

to do espaço e da esfera pública e onde a análise política concreta se interliga com uma linguagem poética individualizada. Es-tes eventos são registados maioritariamente em vídeo e fotografia e depois trabalhados em meios muito distintos.

‘Turista’, uma fotografia de 1994 é disso ex-emplo. Quando se muda para o México, Alÿs apercebe-se que a sua condição de es-trangeiro envolve um forte sentimento de exclusão social e cultural. Para o reiterar, co-loca-se lado a lado com trabalhadores de diferentes actividades que, numa situação de precariedade laboral sem direitos, ofere-cem diariamente os seus serviços de canali-zador, pintor ou electricista na praça Zócalo, no centro da Cidade do México. Na fotogra-fia, vemo-lo junto aos demais, oferecendo--se para trabalhar enquanto turista. O ques-tionamento político do artista não implica a renúncia à presença autoral mas o conteú-do subversivo da obra é explícito. Outros trabalhos do artista partilham das mesmas características, como ‘When Faith Moves Mountains’, realizado no Peru em 2002, que implicou inclusive a colaboração de Cu-auhtémoc Medina e Rafael Ortega, para além de cerca de quinhentas outras pes-soas da comunidade local. Aqui, a dimensão política, ainda que metaforizada, instala-se no domínio da esfera pública, onde precis-amente as causas da exclusão social devem ser debatidas na sua relação com o poder económico, social e político.

Por último, a estética alter-relacional subver-siva acontece quando a prática artística se dilui em movimentos e organizações políti-cas e sociais. Aliás, a prática pode até nunca

ser pensada como artística, ainda que recor-ra à estética. Pascal Gielen utiliza a Parada do Orgulho Gay como exemplo. Segundo o autor, neste posicionamento, a estética é utilizada para servir a intervenção e luta so-cial e a lógica da sua utilização pode ser eq-uiparada à que Mikhail Bakhtin atribuiu ao carnavalesco: produzir uma inversão sim-bólica. Pode-se por isso dizer que o posi-cionamento compreendido na estética alter-relacional subversiva se encontra pre-sente de forma veemente em diversos mov-imentos e associações de carácter social criados nos últimos anos com o propósi-to central de resistência ao capitalismo e política neoliberal, designados comum-mente nos meios de comunicação social como movimentos anti-globalização.

Embora com antecedentes, trata-se de um fenómeno recente. O seu crescimento re-monta ao início da década de noventa e embora no seu âmago existam profundas distinções ideológicas e operativas – des-de as mais claras às mais dispersas e difusas – como caracterização essencial pode ser apontada a dimensão global “en sus efectos y en el alcance del mensaje que lanzan (...), en la escala de sus redes y en la dimensión de los problemas sobre los que trabajan (...) y en la movilidad y circulación de sus com-portamientos rebeldes (...).” (Fernández-Sa-vater, A. et al, 2004, p.206). Essa dimensão global pode ser explicada de variadas for-mas. Embora se possa ver nela reminiscên-cias de ideologias internacionalistas, o que move a sua existência são fundamental-mente os processos de globalização inten-sificados no decorrer da década de noven-ta. Para além disso, a influência filosófica de

Page 12: Arte Pública e Política1 por Cristina Pratas Cruzeirorepositorio.ul.pt/bitstream/10451/27738/2/Convocarte_1_p.200-214.pdf · nero de arte pública’ a questões de ordem social,

2 1 1

determinadas orientações de esquerda que promulgariam a designada ‘crise da repre-sentação’ está também presente, traduzin-do-se na rejeição por todas as formas de or-ganização política ‘institucional’ e no apelo à auto-organização.

Destes movimentos, destacam-se aqueles que se centram na acção directa, utilizan-do-a como método primordial de inter-venção política. A acção directa, mantida por vários movimentos anti-globalização organizados fora das instituições políticas, tem um vínculo expresso aos movimentos anarquistas e a algumas correntes de au-to-organização, como o Operaísmo italia-no protagonizado por Toni Negri. Mas do ponto de vista do entendimento da estética tem uma clara relação com formas de per-formatividade criadas no decorrer dos anos setenta, entre as quais se destaca o Teatro do Oprimido, um sistema de exercícios, jo-gos e técnicas teatrais, criado por Augusto Boal em 1971.

O colectivo londrino ‘Reclaim the Streets’ (1991-2002) integra um dos primeiros ex-emplos em matéria de actuação integra-da em movimentos sociais. Caracterizado pela organização de raves e festas ilegais de carácter político, o colectivo esteve ini-cialmente centrado na questão da ecolo-gia, tendo organizado alguns protestos an-ti-rodoviários, como a pintura de ciclovias nas estradas ou a sua ocupação por breves períodos por forma a interromper o tráfego rodoviário. Após um período de interreg-no na sua actividade – que durou sensivel-mente cerca de três anos – o Reclaim the Streets voltou a reunir-se e depressa alar-

Reclaim the streets, Cartaz, 1995(Apud http://rts.gn.apc.org/poster1.htm)

Reclaim the streets, Cartaz, 1995(Apud http://rts.gn.apc.org/poster1.htm)

– C R I S T I N A P R A T A S C R U Z E I R O

Page 13: Arte Pública e Política1 por Cristina Pratas Cruzeirorepositorio.ul.pt/bitstream/10451/27738/2/Convocarte_1_p.200-214.pdf · nero de arte pública’ a questões de ordem social,

– C

ON

VO

CA

RT

E N

.º1

| A

RT

E P

ÚB

LIC

A

<<

gou o seu foco de contestação para o siste-ma capitalista.

Uma das questões mais marcantes da ac-tuação deste colectivo foi sempre, desde o início, a forte componente estética utilizada nos protestos, facto que levou a historiado-ra de arte Julia Ramírez Blanco a afirmar que “What makes its events fascinating is that they occupy the ambiguous meeting space between aesthetic creativity, social imagina-tion and political action. Their discourse and praxis borrow something from each of these three fields while simultaneously belonging to all of them.” (2013).

A estética alter-relacional subversiva, aqui incluída em práticas artísticas comunitárias, parte de uma inversão da questão arte/política, ou seja, considera que não é no seio de movimentos artísticos, por mais politiza-dos que sejam, que a intervenção política da arte se torna relevante. Ela torna-se rel-evante quando os movimentos sociais e políticos a utilizam enquanto ferramenta de acção. Assim, a centralidade do problema não é estético, é social. Não obstante, a es-tética funde-se num campo expandido de práticas diversas com um só objectivo: a al-teração social. Em boa verdade, a questão que aqui é colocada centra-se na articu-lação entre a arte e a produção e não en-tre a arte e a recepção, como acontece com muitas das práticas descendentes do ‘novo género de arte pública’, pelo que o seu perímetro de actuação se encontra simulta-neamente no âmbito do activismo artístico.

A veiculação da Arte Pública a questões de ordem social e política é pois uma questão

que merere reflexão aprofundada. Se do ponto de vista metodológico, conceptual, estrutural, imagético e poético existem dif-erenças que substanciam a identificação e caracterização de tipologias distintas den-tro do mesmo tecto, também do ponto de vista político isso acontece. Por norma, a noção de Arte Pública tem estado afecta a noções de especificidade espacial. Mesmo depois das suas sucessivas redefinições, ocorridas a partir da década de noventa do século XX, esta alocação à problematização espacial manteve-se determinante, tanto ao nível do delineamento genealógico e histórico como ao nível da sua delimitação conceptual. Mas a afectação à Política e à in-tervenção social aconteceu desde o início. Importa por isso, na análise crítica que se faz destas práticas artísticas, equacionar os efeitos sociais e políticos e neles, a relação mantida com a sociedade capitalista e com o neoliberalismo global, reflectindo de que forma as mesmas contribuem para a ma-nutenção ou derrube do mesmo.

Page 14: Arte Pública e Política1 por Cristina Pratas Cruzeirorepositorio.ul.pt/bitstream/10451/27738/2/Convocarte_1_p.200-214.pdf · nero de arte pública’ a questões de ordem social,

2 1 3

– Bibliografia

Bidet, J. e Kouvelakis, S. (Ed.)

(2008) Critical Companion to

Contemporary Marxism. Leiden,

Boston: Brill. ISBN: 978-90-04-

14598-6.

Bishop, C. (2004) ‘Antagonism

and Relational Aesthetics’.

October. ISSN 0162-2870. N.º 110

pp. 51–79.

Blanco, Julia Ramírez (2013)

‘Reclaim The Streets! From Local

to Global Party Protest’. In Third

Text: Critical perspectiveson

contemporary art and culture.

[Consult. 2015-09-01] Disponível

em <URL:http://thirdtext.org/

reclaim-the-streets>.

Bourriaud, N. (2008) Estética

relacional. Buenos Aires: Adriana

Hidalgo Editora S.A. ISBN: 978-

987-1156-56-6.

De Bruyne, P. e Gielen, P. (Ed.)

(2011) Community Art: The Politics

of Trespassing. Netherlands: Valiz

Antennae. ISBN: 978-90-78088-

50-9.

De Cauter, L. e De Roo, R. et al.

(Ed.) (2011) Art and Activism

in the Age of Globalization.

Rotterdam: NAi Publishers. ISBN:

978-90-5662-779-9.

Fernández-Savater, A. et al.

(2004) ‘Ingredientes de una onda

global’. In Universidad Nómada.

[Consult. 2013-11-29] Disponível

em <URL:http://www.universi-

dadnomada.net/spip.php?ar-

ticle188&varrecherche=Ingre-

dientes%20de%20una%20

onda%20global>.

Foster, H. (1985) Recodings: Art,

Spectacle, Cultural Politics. New

York: The New Press. ISBN:1-

56584-464-5.

Foster, H. (1999) The Return of the

real. London: The Mit Press. ISBN:

0-262-06187-2.

Holmes, B. (2007) ‘Do-it-yourself

geopolitics: Cartographies of

art in the world’. In Stimson, B.

e Sholette, G. (Ed.) Collectivism

after Modernism: The art of

social imagination after 1945.

Minneapolis, London: University

of Minnesotta Press. ISBN: 978-0-

8166-4461-2, pp.273-294.

Jordan, J. (1997) ‘The Art

of necessity: the subversive

imagination of anti-road protest

and Reclaim the Streets’. In Mckay,

G. (Ed.) DIY Culture: Party and

Protest in 90’s Britain, London /

New York: Verso. ISBN: 1-85984-

878-8, p.129-151.

Kravagna, C. (1998) ‘Working

on the Community Models

of Participatory Practice’. In

republicart [Consult. 2013-08-

26]. Weblog. Disponível em

<URL:http://republicart.net/disc/

aap/kravagna01_en.htm>.

Laclau, E. e Mouffe, C. (1987)

Hegemonía y estrategia socialista:

Hacia una radicalización de

la democracia. Madrid: Siglo

Veintiuno. ISBN: 8432306193.

Lacy, S. (Ed.) (1995) Mapping the

terrain: New Genre Public Art.

Washington: Bay Press. ISBN:

0-941920-30-5.

Lippard, L. (1995) ‘Looking

around: Where we are, where

we could be’. In Lacy, S. (Ed.)

Mapping the terrain: new genre

Public Art. Washington: Bay Press.

ISBN: 0-941920-30-5.

Megafone.net (2013) [Consult.

2013-10-04] Weblog. Disponível

em <URL:http://www.megafone.

net/>.

Sholette, G. (2011) Dark Matter:

Art and Politics in the Age of

Enterprise Culture. London and

NY: Pluto Press. ISBN: 978-0-

7453-2752-5.

– Notas

1Este texto resulta de parte da

investigação realizada para o

Doutoramento em Ciências da

Arte, disponível para consulta na

totalidade em http://repositorio.

ul.pt/handle/10451/15799.2 Ligação manifesta nas próprias

designações de político –

derivada do grego ‘politikós’, ou

seja, relativo aos cidadãos – e de

política – derivada de ‘politiká’,

ou seja, referente aos assuntos

públicos.3 Os termos, não sendo

coincidentes, reiteram alterações

substanciais ao pensamento

e influência marxista e

veiculam uma série de autores

que desenvolveram o seu

pensamento à luz das novas

– C R I S T I N A P R A T A S C R U Z E I R O

Page 15: Arte Pública e Política1 por Cristina Pratas Cruzeirorepositorio.ul.pt/bitstream/10451/27738/2/Convocarte_1_p.200-214.pdf · nero de arte pública’ a questões de ordem social,

– C

ON

VO

CA

RT

E N

.º1

| A

RT

E P

ÚB

LIC

A

<<

tendências surgidas após os anos

oitenta. Jacques Bidet e Stathis

Kouvelakis distinguem os termos

da seguinte forma:4 Although it is not always easy

to distinguish between the two,

they are differentiated in principle

in as much as the one seems to

proclaim the exhaustion of the

Marxist paradigm, whereas the

other introduces problematics

which, while maintaining a special

relationship with certain ideas

derived from Marx, reinterpret

them in new contexts or combine

them with different traditions.

(Bidet e Kouvelakis, 2008, p.XIII).5 A este respeito ver por exemplo

os textos ‘Evictions: Art and

spatial politics’ (1996), ‘Men in

Space’ (1989) e ‘Agoraphofia’

(1996).6 Como Miwon Kwon fez em ‘One

Place After Another: Site-Specific

Art and Locational Identity’,

publicado em 2002, propondo

que as diversas noções surgidas

nas últimas quatro décadas em

relação à arte pública fossem

organizadas em três distintos

paradigmas: arte em espaços

públicos, arte como espaço

público e arte como interesse

público.6 É possível acompanhar todo o

projecto no website http://www.

megafone.net/site/index7 Até ao momento foram

desenvolvidos treze trabalhos:

com taxistas (México, 2004-

2014), com ciganos (Lleida e

Léon, 2005), com prostitutas

e prostitutos (Madrid, 2005),

com imigrantes nicaraguenses

(Costa Rica, 2006-2007), com

motociclistas (motoboy) (São

Paulo, 2007-2015), com pessoas

com mobilidade limitada

(Genebra, 2008), com pessoas

desmobilizadas ou deslocadas

(Colômbia, 2009-2010), com

saharauis em campos de

refugiados (Argélia, 2009-2011),

com pessoas com deficiência

visual (Barcelona, 2010-2011),

com imigrantes em Nova Iorque

(2011-2013) e com pessoas com

mobilidade reduzida (Montréal,

2012-2014).8 No website do projecto (http://

www.megafone.net) é possível

aceder aos patrocínios e apoios

financeiros de cada trabalho.