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Arte literária: Uma ponte entre a cidadania e a leitura de mundo Raphaela Passos Bomtempo de Castro (Pós-graduada em Educação Ambiental – PUC/RJ e Profª Alfabetizadora da Escola Oga Mitá/ RJ) Formação do sujeito e responsabilidade social: o poder de transformação da leitura Ao reconhecermos o homem como um ser histórico e político, torna-se necessário, desde a Educação Infantil, buscarmos uma formação provocadora de diálogos e reflexões a respeito da sociedade e suas questões mais fundamentais. A escola pode e deve provocar essas reflexões. E cabe lembrar, de acordo com Soares (1996), que “a alfabetização não é imprescindível ao exercício da cidadania”. O que significa que a cidadania pode ser discutida, vivenciada e trabalhada com as crianças antes mesmo do 1º ano do Ensino Fundamental, onde ocorre de fato a sistematização da alfabetização em si, por entendermos que esse processo já está em andamento durante toda a vida social e cultural da criança. Para haver aprendizagem, é preciso que a organização do currículo seja pensada de forma significativa para os estudantes e também para os professores. Os conteúdos não podem mais ser abordados à base da repetição, como um adestramento, não importando quem os ouça, quem os observa ou o que se aprende. O docente deve perceber o conhecimento como algo transitório e incompleto, em constante pesquisa, e não como uma verdade absoluta. O caminho dos projetos abre a possibilidade de se aprender os diferentes conhecimentos construídos na história da humanidade de modo relacional e não-linear. Se todos os atores do processo de aprendizagem estiverem envolvidos com a questão, com o tema ou o problema colocado para estudo, a transformação deixa de ser utopia. Construir um currículo a partir de uma visão articulada de conhecimento e sociedade é fundamental. Nesse percurso, todos estão simultaneamente aprendendo e compartilhando saberes. Cabe ao professor, conhecer o grupo com quem trabalha, o ambiente que este

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Arte literária: Uma ponte entre a cidadania e a leitura de mundo

Raphaela Passos Bomtempo de Castro (Pós-graduada em Educação Ambiental – PUC/RJ e Profª Alfabetizadora da Escola Oga Mitá/ RJ)

Formação do sujeito e responsabilidade social: o poder de transformação da

leitura

Ao reconhecermos o homem como um ser histórico e político, torna-se

necessário, desde a Educação Infantil, buscarmos uma formação provocadora de

diálogos e reflexões a respeito da sociedade e suas questões mais fundamentais.

A escola pode e deve provocar essas reflexões. E cabe lembrar, de acordo com

Soares (1996), que “a alfabetização não é imprescindível ao exercício da cidadania”. O

que significa que a cidadania pode ser discutida, vivenciada e trabalhada com as

crianças antes mesmo do 1º ano do Ensino Fundamental, onde ocorre de fato a

sistematização da alfabetização em si, por entendermos que esse processo já está em

andamento durante toda a vida social e cultural da criança.

Para haver aprendizagem, é preciso que a organização do currículo seja pensada

de forma significativa para os estudantes e também para os professores. Os conteúdos

não podem mais ser abordados à base da repetição, como um adestramento, não

importando quem os ouça, quem os observa ou o que se aprende. O docente deve

perceber o conhecimento como algo transitório e incompleto, em constante pesquisa, e

não como uma verdade absoluta.

O caminho dos projetos abre a possibilidade de se aprender os diferentes

conhecimentos construídos na história da humanidade de modo relacional e não-linear.

Se todos os atores do processo de aprendizagem estiverem envolvidos com a questão,

com o tema ou o problema colocado para estudo, a transformação deixa de ser utopia.

Construir um currículo a partir de uma visão articulada de conhecimento e sociedade é

fundamental.

Nesse percurso, todos estão simultaneamente aprendendo e compartilhando

saberes. Cabe ao professor, conhecer o grupo com quem trabalha, o ambiente que este

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grupo está inserido e principalmente, partir do que os estudantes já sabem. Valorizar

seus conhecimentos prévios e hipóteses, sejam elas incompletas, verdadeiras ou falsas,

diante do tema a ser trabalhado, também precisa ser uma característica básica de sua

prática.

Para ALBUQUERQUE in ALVES (2001:84), “não há projetos de roteiro

imposto”. E acrescenta:

“A educação não é asséptica. Uma educação de pinças e bisturi, máscara e luvas, de livro de estante catalogado e empoeirado e de laboratório fechado e bolorento não se enquadra no que hoje pode ser a escola. Se incutirmos valores – de democracia, participação e cidadania – que não são vividos na escola, de que servem? O projeto educativo das escolas é também uma forma de mostrar aos alunos como a escola se posiciona diante da vida. Para isso tem haver vida nas escolas.”

A escola que abre espaço para um trabalho interdiscilplinar precisa incorporar a

sua prática princípios que valorizam uma educação na vida e não fora dela, respeitando

cada indivíduo como sujeito político capaz de pensar sobre a sociedade e seu meio,

assim como em suas próprias ações e consequências para a sua comunidade em esfera

local e global. Um sujeito que se percebe como parte do mundo e que se preocupa com

ele.

Figura 1: Onde está o mundo

(TONUCCI, 1997:35)

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Em todo o processo de formação do sujeito, a leitura tem papel fundamental.

Não apenas no que diz respeito à decodificação do código escrito, mas primordialmente

a leitura como possibilidade de compreensão e interpretação do mundo.

Entretanto encontramos cada vez mais práticas mecânicas e pouco criativas de

aprendizagem da leitura, descontextualizadas das histórias dos estudantes. A

decodificação da escrita, das letras, fica em primeiro plano, abrindo mão da busca pelo

sentido do que se está lendo. Com isso, é comum encontrarmos leitores com a

dificuldade de utilizar a língua escrita como forma de expressão.

A formação dos pequenos e futuros leitores deve ser pensada cuidadosamente

pelo professor que a media e a escolha das primeiras histórias é um ponto de grande

importância nesse processo. Os temas dos livros devem interessar às crianças. O livro

precisa ser atraente, tocante e uma ilustração criativa, rica em cores e detalhes, fará a

diferença, já que a leitura se dá para além das palavras, mas também através das

imagens.

A literatura vai além da busca pela informação, embora muitas vezes permita um

mergulho pelo mundo do conhecimento. Os livros enriquecem todo e qualquer projeto e

foi isso que aconteceu no projeto “Princesas ou fadas, eu prefiro ser menina”, vivido por

uma turma de Educação Infantil da Escola Oga Mitá, no Rio de Janeiro.

A literatura como fio condutor de um projeto: os entrelaces da cidadania com a

fantasia

Em 2011 recebi uma turma inusitada. Era o Mynky Manhã. Para explicar melhor,

nesta escola cada turma tem o nome de uma tribo indígena diferente, que a acompanha

durante toda a trajetória escolar. Neste caso, por exemplo, as crianças são do Mynky

desde que entraram na escola, período em que conhecemos comumente como maternal,

e seguirão com este nome até o 9º ano do Ensino Fundamental.

A ilustração a seguir mostra uma fotografia da turma Mynky Manhã reunida em

uma aula passeio. Esse grupo é constituído por nove estudantes. O curioso é que são

todas meninas. Uma grande coincidência, formadora de um grupo singular.

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Figura 2: Turma Mynky Manhã – Educação Infantil

Foi um desafio. Como trabalhar apenas com meninas? E a riqueza das trocas que

acontecem entre meninas e meninos dentro de um mesmo espaço, como se daria esse

processo? Entre outros questionamentos, fui aos poucos aprendendo a lidar com a

situação. Precisávamos começar o trabalho e elaborar um projeto que encantasse nossas

estudantes, atingindo os objetivos que havíamos traçado para o grupo, a partir da

Proposta Curricular.

Devido à unânime presença feminina, o grupo a que nos referimos no sub-

capítulo anterior, valorizava apenas brincadeiras com as bonecas “Barbies” e

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demonstravam um interesse quase exclusivo por histórias de princesas. Percebemos

logo no início do ano que, ao sugerirmos outras propostas de brincadeiras ou enredos

diferentes para as histórias contadas, essas ideias não eram bem recebidas e o repertório

das crianças pouco a pouco, havia se tornado massificado e minimizado pelo apelo da

mídia. Brincadeiras populares, jogos corporais e outras atividades interessantes

perderam o espaço para o que era apresentado principalmente na televisão e nos filmes

convencionais.

Branca de Neve, Cinderela, Rapunzel, Aurora e outras famosas princesas de

Walt Disney eram as favoritas. Muitas crianças não sabiam que grande parte desses

Contos de Fadas havia sido recontado e adaptado por outros autores, e que seus enredos

não foram criados pela corporação Disney. Entendemos que este grupo precisava

conhecer outros personagens e brincadeiras, vivenciar novas explorações. Nossa

intenção foi chamar a atenção das crianças para possibilidades ainda desconhecidas,

permitindo-as imaginar e se encantar com outras histórias e processos culturais, sem

abrir mão da fantasia, tão importante nessa fase.

Um fato que também nos incomodava bastante, era a variedade de brinquedos

que as crianças levavam para a escola e a competitividade que estava relacionada a este

processo. Percebemos o valor que era dado a cada brinquedo e consequentemente, à

criança que o levava.

Como ponto de partida para o trabalho, aproveitamos os efeitos encantadores da

literatura e escolhemos a obra infantil “Nove novos contos de fadas e princesas”, escrito

por Didier Lévy. Esse recurso foi fundamental na desconstrução do estereótipo das

princesas belas da Disney, que vivem “felizes para sempre”.

O tom lúdico ganhou forte espaço, apoiado na criatividade e curiosidade das

crianças, que foram se encantando e se envolvendo com as novas propostas.

Apresentamos às estudantes mais uma história de princesa, “Valentina”, de

Maurício Vassalo. Este enredo retrata a vida de uma menina que era chamada de

“princesa” pelos pais e que não entendia por que eles saíam todos os dias de seu castelo

para trabalhar, se eram reis, portanto, ricos. No desenrolar da história, as crianças

descobriram que a “princesa” era uma menina comum, que era chamada pelos pais

dessa maneira, apenas de uma forma carinhosa. O cenário da trama é uma favela do Rio

de Janeiro, o que enriqueceu ainda mais o projeto. A maioria das crianças, por ser de

classe média alta, não sabia o que era uma “favela” e, se acordo com FREINET (2004),

“a vida acontece para além dos muros da escola”, lá fomos nós em busca da vida.

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Fizemos um passeio de carro (van) até a comunidade do Morro do Borel,

próxima a uma das unidades da escola. Nesse percurso as crianças observaram as casas

e as pessoas que transitavam pela comunidade. Todo esse processo fortaleceu as nossas

discussões em sala sobre a questão do consumo e o mundo encantado das princesas.

Tratamos de assuntos como moradia, pobreza, saneamento básico, saúde, luxo,

desigualdade, necessidades básicas e supérfluos.

Começamos a questionar as crianças: será que temos tempo de brincar com

todos os brinquedos que temos em casa? Será que gostamos de todos esses brinquedos?

Será que precisamos de tantos brinquedos? Todas as crianças têm os brinquedos que

querem? A partir dessas perguntas, houve uma grande mobilização. Apesar da faixa

etária baixa (crianças de 5 e 6 anos), as conversas somadas às histórias que lemos e o

passeio pelo Morro do Borel, mexeram com o coração das crianças. Foi aqui que surgiu

a idéia de fazermos na escola uma campanha de doação de brinquedos e o resultado foi

maravilhoso!

Figura 3: Criança da turma Mynky entregando às educadoras da brinquedoteca os brinquedos arrecadados na campanha.

A idéia partiu das próprias crianças da turma e a campanha ganhou repercussão

em toda a escola. Aproveitando as demandas do processo de escrita do grupo,

elaboramos cartazes que foram espalhados pelos corredores, banheiros, salas e cozinha.

Foi estipulado um prazo de entrega dos brinquedos e um local. Fizemos uma contagem

regressiva no calendário para acompanhar quantos dias faltavam para o final da

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campanha. No final, recebemos mais brinquedos que o esperado. Todos se mobilizaram.

As crianças ajudaram na organização do que recebemos e classificaram o que era jogo,

boneca, carrinhos e outros tipos de brinquedos. Nesse processo foi feita uma integração

da educação ambiental com a Matemática, Língua Portuguesa e Interação Social.

Muitos objetivos da grade curricular foram trabalhados e conquistados pelo grupo e as

aprendizagens não pararam por aí.

“Qual é a única maneira de permitir a alguém – criança ou adulto – que aprenda algo a respeito de certo objeto do conhecimento? Permitir-lhe que entre em contato, que interaja com esse objeto.” (FERREIRO,2000:97)

Continuamos nossas investigações sobre as princesas de verdade. Foi o

momento de mostrarmos às estudantes que as princesas existem na vida real e nem

sempre vivem uma vida perfeita. Pesquisamos sobre as princesas de diferentes lugares

do mundo e chegamos à Princesa Isabel e as crianças conheceram uma pequena parte da

história do nosso país. Falamos dos escravos e das diferenças sociais existentes desde a

época do Império. Visitamos a Ilha Fiscal e descobrimos muitas curiosidades sobre este

local, dentre elas, que o castelo foi o palco do último baile do Império, antes da ida de

D. Pedro II para Portugal. A ida de barco favoreceu também a observação da Baía de

Guanabara e as aprendizagens do campo das Ciências Naturais, onde abordamos os

efeitos da poluição neste ambiente.

Figura 4: Aula-passeio à Ilha Fiscal. Pelo caminho, observamos e discutimos a poluição da Baía de Guanabara.

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Inspirados no salão real, resolvemos fazer na escola uma “festa-baile” com

direito a Lanche Coletivo com frutas brasileiras. O Brasil é um país rico em alimentos,

como frutas, legumes e outros vegetais. Entretanto, fica sempre a dúvida sobre o que é

nativo do Brasil e o que veio de fora e depois de tantas explorações, essa foi mais uma

pesquisa do Mynky.

Figura 5: Lanche Coletivo com torta de queijo e suco de frutas nativas do Brasil.

Com o compromisso de enriquecer o repertório artístico do grupo, apresentamos

o grupo musical maranhense “Cacuriá” com suas danças populares, a poesia de Vinicius

de Moraes, as esculturas de Krajcberg e as gravuras e desenhos de Escher.

De nada valeria esse trabalho sem a participação dos pais. Organizamos um

encontro com os responsáveis para discutirmos sobre o consumo. Conversamos sobre

programas de televisão, propagandas publicitárias, limites e educação. Trabalhamos

nesta reunião com dois filmes: “Lap Top da Xuxa” e “Criança, a alma do negócio”,

ambos retirados da internet. O encontro foi bastante produtivo e todos saíram da escola

como parceiros, buscando novas intervenções diante das ofertas televisivas e a vontade

de seus filhos.

Escrevemos mais uma página da nossa história quando aconteceu a atividade de

integração. Nos encontramos em Petrópolis, no Museu Imperial numa manhã de outono,

para explorarmos as curiosidades de um museu que revela parte da história do Brasil,

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com objetos e memórias da Família Real. A ideia desse encontro foi que todos

pudessem se envolver no projeto em andamento na turma e, além disso, que

pudéssemos nos conhecer melhor, passando a manhã juntos.

Figura 6: Encontro entre as estudantes, professora e pais da turma Mynky Manhã no Museu Imperial de Petrópolis

Foi assim, no dia a dia, que “costuramos” um cotidiano repleto de encantamento

e significado. As histórias, passeio ao Morro do Borel, visita à Ilha Fiscal, preparação

do Lanche Coletivo, “Festa-Baile” na sala e outros pequenos detalhes fizeram este

projeto e todas as vivências e aprendizagens na escola inesquecíveis para todos nós,

estudantes, professores e pais!

A literatura aqui, proporcionou a todos a possibilidade de adentrar em novos

universos, conhecer personagens diferentes e de se emocionar a partir dos variados

enredos apresentados. Além do conhecimento, o grupo viveu com prazer e sentido o

mundo incrível da leitura, que abre as portas do imaginário a partir das surpresas, cores,

imagens, emoções e palavras que um livro pode conter.

Considerações finais

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“A educação não é uma fórmula de escola, mas sim uma obra de vida.”

(FREINET, 2004:13)

Diante das reflexões realizadas ao longo do estudo, percebemos a necessidade da

educação ambiental acontecer de forma interdisciplinar, assim como a importância de se

atribuir à literatura um sentido mais amplo, que é percebida no presente trabalho como

um tipo específico de leitura rica de sentidos.

Todos nós, que partilhamos a vida neste planeta, temos responsabilidades e

direitos. MORIN (2000) aponta para necessidade de um pensamento ecológico que leve

em consideração a ligação vital de todos os sistemas vivos ao seu ambiente, onde

ocorrem as relações naturais e sociais. Essas relações precisam ser abordadas nas

escolas desde a Educação Infantil, espaço onde muitas vezes, são banalizadas.

Os estudantes frequentadores das séries iniciais já elegem com o que querem

brincar, o que irão comer, vestir e ganhar. Por que não aproveitar toda essa autonomia a

favor da transformação dos padrões estabelecidos, chegando ao cerne dos valores

primordiais dessas crianças?

A escola que incorpora em sua proposta pedagógica uma prática que busca

formar crianças e jovens interessados pelo respeito, cuidado e preservação da vida, será

a escola que promove educação no seu sentido legítimo.

A educação também vive um momento turbulento, em consequência,

principalmente, da crise social contemporânea. As exigências que recaem sobre a

escola, sendo esta responsável pela formação de indivíduos/cidadãos capazes de

acompanhar a evolução e a transformação pela qual passa o mundo inteiro, são

desmedidas. São poucas as escolas que estimulam a criatividade e a reflexão de seus

estudantes, preocupando-se com o desenvolvimento cognitivo e com a formação de

sujeitos sociopolíticos.

A escola contemporânea dominante reproduz demandas equivocadas de uma

sociedade historicamente injusta ao não garantir uma educação de qualidade, de

construção do conhecimento, da ética, de valorização do outro e do ambiente comum.

As instituições de ensino ainda são vistas por pais/responsáveis, alguns

profissionais da educação e até mesmo pelas crianças e jovens, como um lugar onde se

prepara para o mercado de trabalho, para servir ao sistema capitalista e obter sucesso. A

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palavra sucesso nesse caso, representa acumular dinheiro, e não valores e virtudes

éticos.

A educação precisa ser a redenção para os novos paradigmas e o trabalho com a

literatura pode ser a possibilidade mais adequada à prática interdisciplinar da educação

em busca dessa transformação. Os temas ambientais precisam ser abordados pelas

diferentes áreas do conhecimento de forma contextualizada aos interesses e

necessidades do grupo com que se trabalha.

Relatamos uma experiência em que a problemática do consumo foi abordada

numa classe que está no último ano da Educação Infantil. Encontramos um grupo de

crianças que, apesar da pouca idade, já sofre influências de um mercado que as

bombardeia com propagandas abusivas, utilizando-se de técnicas desenvolvidas por

psicólogos com a finalidade de encantar os pequenos consumidores, LINN (2006).

Diante desta realidade, entendemos que o nosso papel seria o de provocar uma

reflexão em todos os envolvidos (estudantes, pais e também crianças e adultos de outras

turmas da escola), relacionada ao consumo infantil.

Através de um projeto que priorizou a linguagem literária, investimos nas

explorações de um mundo mais encantado que o mundo “Disney”, um mundo

contextualizado ao das nossas crianças. Nosso maior interesse foi proporcionar uma

aprendizagem rica de significados, visando à transformação e emancipação deste grupo

aos apelos predominantes no sistema capitalista.

Em nenhum momento, abandonamos a fantasia e as brincadeiras, pelo contrário,

nossos maiores recursos foram a riqueza da imaginação das crianças e o encantamento

proporcionado pela literatura, instrumento fundamental em nossa prática.

Referências

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