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ARTE, ATUALIDADE E ENSINO ARTE, ATUALIDADE E ENSINO Daiane Solange Stoeberl da Cunha (Organizadora)

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ARTE, ATUALIDADE E ENSINO

ARTE, ATUALIDADE E ENSINODaiane Solange Stoeberl da Cunha

(Organizadora)

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PRESIDENTE DA REPÚBLICA: Dilma Vana RousseffMINISTRO DA EDUCAÇÃO: Aloizio Mercadante

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CENTRO-OESTE / UNICENTROREITOR: Aldo Nelson Bona

VICE-REITOR: Osmar Ambrósio de SouzaPRÓ-REITORA DE ENSINO: Márcia Tembil

CONSELHO EDITORIAL UNICENTROMarcos Ventura Faria (Presidente do COED)

Beatriz Anselmo OlintoCarlos Alberto Marçal Gonzaga

Emerson CarraroOséias de OliveiraFrancisco Morozini

Jeanette Beber de SouzaLuiz Gilberto Bertotti

Maria José de P. CastanhoMárcio R. Santos Fernandes

Marquiana de Freitas Vilas Boas GomesMauricio Rigo

Ruth Rieth LeonhardtSidnei Osmar Jadoski

Marquiana de Freitas Vilas Boas GomesMárcia Tembil

Márcio Fernandes

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTESDIRETOR: Carlos Eduardo SchipanskiVICE-DIRETOR: Adnilson José da Silva

PROJETO GRÁFICO:Juliane Gotlieb - Arte do evento

Equipe Multidisciplinar NEAD - Arte e diagramação do livro

Gráfica Unicentro - 500 exemplares

Catalogação na Publicação

Biblioteca da UNICENTRO, Campus CEDETEG

Fabiano de Queiroz Jucá (CRB 9/1249)

A786 ARTE, atualidade e ensino / organizado por Daiane Solange Stoeberl da

Cunha. – – Guarapuava: Unicentro, 2013.

149 p. : il.ISBN 978-85-7891-142-3

Bibliografia

1. Arte - estudo e ensino. I. Título.

CDD 707

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ARTE, ATUALIDADE E ENSINO

SUMÁRIOAPRESENTAÇÃO ...................................................................................................................................... 5

PREFÁCIO ................................................................................................................................................ 9

SEÇÃO 1 - ARTE E ENSINO .................................................................................................................... 11

ARTES, ATUALIDADE E ENSINO ............................................................................................................. 11

Irene Tourinho

A EDUCAÇÃO DO SENSÍVEL ................................................................................................................... 23

Ana Laura Rolim da Frota

A TOTALIDADE E A APRENDIZAGEM MUSICAL, CONFORME A PEDAGOGIA MUSICAL ATIVA DE JOS WUYTACK ............................................................................................................................................... 29

Luís Bourscheidt

EDUCAÇÃO MUSICAL NA DISCIPLINA DE ARTE .................................................................................... 37

Daiane Solange Stoeberl da Cunha

AMPLIANDO O SENTIDO DA ARTE NA EDUCAÇÃO POR MEIO DA AFETIVIDADE ............................... 53

René Simonato Sant’Ana

Márcia Cristina Cebulski

Helga Loos

A MULTIPLICIDADE DE CAMINHOS, ATRAVESSAMENTOS E SENTIDOS DAS AÇÕES DE DANÇA .......... 73

Lígia Losada Tourinho

SEÇÃO 2 - PROCESSOS CRIATIVOS ......................................................................................................... 87

LIVE-ELECTRONICS ................................................................................................................................. 87

Rael B. Gimenes Toffolo

INSTALAÇÕES E INTERATIVIDADE, PORTA ABERTA AO PÚBLICO ....................................................... 103

Adriana Vaz

ENTRELAÇA, DISTENDE, DIALOGA, REGISTRA .................................................................................... 113

Elisa Abrão

Mizael Luis Vitor

ROSALIND KRAUSS E O EQUIVALENTE VISUAL DA ARTE ABSTRATA DE JACKSON POLLOCK E HELENA WONG .................................................................................................................................................. 121

Clediane Lourenço

A REIMPLANTAÇÃO DA EDUCAÇÃO MUSICAL NO ENSINO FUNDAMENTAL E MÉDIO: ..................... 129

L.C.Csekö

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ARTE, ATUALIDADE E ENSINO

APRESENTAÇÃOEste livro é resultado do evento anual promovido pelo Departamento de Arte-

Educação da UNICENTRO- Universidade Estadual do Centro-Oeste, o “Simpósio de Arte-Educação” realizado nos dias 04 a 08 de outubro de 2010, no campus Santa Cruz, em Guarapuava-Pr.

Em sua oitava edição, o evento teve como tema as discussões sobre “Arte, Atualidade e Ensino”, sendo este o foco das palestras, mesas-redondas e comunicações realizadas durante toda a programação.

Com o objetivo de possibilitar aos acadêmicos do curso de Arte-educação/UNICENTRO, aos professores de Arte da região de Guarapuava, aos pesquisadores, artistas e à comunidade em geral a vivência em processos criativos e em arte e ensino, o Simpósio de Arte-educação é um dos principais eventos da área na região e possibilita complementação extracurricular de estudos na área de Arte em contato com pesquisadores do Brasil e do exterior. Neste evento promove-se ainda, a disseminação de conhecimentos científicos em Arte e Ensino e Processos Criativos em Arte e que são apresentados neste livro, efetivando ainda mais a interação entre pesquisadores, estudantes, professores e artistas locais e nacionais. A compilação e publicação destes textos, na forma de livro, sistematiza as ações realizadas no VIII Simpósio de Arte-Educação.

Pelo conteúdo desta obra, é possível compreender a importância da disseminação das discussões e embates teóricos presentes neste evento. As Seções “Arte e Ensino” e “Processo Criativos” trazem duas linhas de pesquisa em Arte e sobre Arte, fundamentais para quaisquer práticas em Arte-Educação. Os autores de cada capítulo, apresentam de forma sistematizada as conferências proferidas no evento, assim, o conhecimento disseminado entre os participantes e ouvintes, agora torna-se acessível àqueles que não foram privilegiados com a presença real de cada autor, suas falas estão vivas nesta obra!

A seção 1 compreende seis capítulos que abordam diferentes aspectos relativos a Arte e Ensino, de forma abrangente as linguagens artísticas são contempladas diante da realidade educacional. Reflexões e análises compõem um conjunto de textos que são norteados pela busca de possibilidades educacionais na contemporaneidade.

No capítulo um apresenta-se o texto “Arte, atualidade e ensino”, palestra de abertura

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do evento realizada por Irene Tourinho, no qual algumas temáticas que representam demandas para pensar a educação são apresentadas juntamente com pistas de reflexão para orientar o fazer docente em artes. A autora suscita a reflexão sobre temáticas que “[...] podem gerar e produzir experiências artísticas que aguçam nossa sensibilidade e nos estimulam para propor formas de estar no mundo, de negociar alternativas de envolvimento pessoal em nossas comunidades de pertencimento e de criar práticas que questionem e perturbem versões injustas e hegemônicas da realidade através da educação, do ensino, e da arte.”

No capítulo dois, Ana Laura Rolim da Frota reflete sobre “A Educação do Sensível”, tema este abordado na programação do evento em forma de palestra e de oficina, apontando para o papel da escola e do educador diante das possibilidades de experimentção e sensibilização do aluno. Partindo da compreensão de que “[...] a arte é um veículo extremamente importante porque ensina a ver, ouvir, tocar, sentir, fruir.”, a autora discorre sobre as linguagens musicais, visuais e corporais e como estas se articulam com os nossos sentidos.

A participação de Luís Bourscheidt em mesa-redonda é descrita no capitulo intitulado “A totalidade e a aprendizagem musical, conforme a pedagogia musical ativa de Jos Wuytack” e relata parte da pesquisa que examina e avalia a aplicabilidade do sistema Orff/Wuytack, enquanto metodologia de ensino musical alicerçada no conceito de totalidade. Partindo de dois pontos de vista, o do próprio sistema e o das crianças, o autor apresenta os desafios e possibilidades da utilização deste método, o que contribui positivamente para discussões contemporâneas sobre a educação musical.

No capitulo quatro Daiane Solange Stoeberl da Cunha aborda a temática “Educação Musical na Disciplina de Arte: perspectivas curriculares paranaenses.” É relatada a pesquisa realizada junto à professores de arte sobre a relação sonoro-visual-corporal em sala de aula. A fundamentação teórica, legal e curricular é complementada pela análise do discurso docente, sendo possível compreender melhor a realidade do ensino da arte no Estado do Paraná.

O capítulo cinco “A Arte, a Afetividade e o Sistema Educacional: ensaio acerca de convergências e divergências nas concepções de desenvolvimento humano” escrito por René Simonato Sant’Ana, Márcia Cristina Cebulski e Helga Loos, mostra o conteúdo abordado na participação destes pesquisadores em uma das mesas-redondas realizadas no Simpósio. Este texto anima o debate sobre o melhor caminho a se traçar para o bom desenvolvimento dos educandos, o humano integral: cognitivo e afetivo. Discute ainda a compreensão da Arte como uma das bases para a construção de uma afetividade ampliada.

“A multiplicidade de caminhos, atravessamentos e sentidos das ações de dança: A arte de educar, a educação através da Arte e a formação do artista na contemporaneidade”, tema da participação da artista e pesquisadora Lígia Losada Tourinho em mesa-redonda é sistematizado e compõe o capítulo seis que aborda a complexidade da compreensão de dança contemporânea, alguns aspectos conceituais, históricos e educacionais. A autora

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ARTE, ATUALIDADE E ENSINO

foca principalmente a possibilidade de dança educação proposta pelo projeto O Jogo Coreográfico em suas vertentes performática e pedagógica.

O capítulo intitulado “Live-Electronics: obra enquanto processo dinâmico e interativo” reflete sobre aspectos relativos ao repertório apresentado pelo compositor e musicólogo Rael B. Gimenes Toffolo em seu concerto inserido na programação do evento. Partindo da compreensão histórica e filosófica de musicologia, para posteriormente tratar a música enquanto fenômeno por meio da apresentação do pensamento fenomenológico e por fim dos aspectos característicos da prática composicional denominada por live-electronics ou Interactive Computer Music e sua relação com a fenomenologia.

A artista visual Adriana Vaz apresenta em seu texto “Instalações e interatividade: porta aberta ao público” o conteúdo de sua fala na mesa-redonda acerca de processos criativos em arte na atualidade. Através da abordagem da Arte Contemporânea, de atos de comunicação e da exposição de vivências, encontros e relatos de experiência e da fundamentação em autores como Bourriaud, Cauquelin e Bourdieu a autora aborda temas relativos à mostra intitulada Instalações e Interatividade realizada por pós-graduando de Artes da UNICENTRO.

No capítulo nove “Entrelaça, distende, dialoga, registra: reflexões sobre dança e tecnologia” escrito por Elisa Abrão e Mizael Luis Vitor, são analisadas as relações da dança com as novas tecnologias e as implicações no corpo que dança diante do uso das novas tecnologias. Esta discussão insere-se na compreensão dos processos criativos na dança contemporânea revelando novos olhares e fazeres.

O último capítulo, e não menos importante, escrito pela arte-educadora Clediane Lourenço reflete sobre “Rosalind Krauss e o ‘equivalente visual’ da arte abstrata de Jackson Pollock e Helena Wong”. A temática das artes visuais é interpretada por meio da análise dos escritos de Rosalind Krauss frente à característica da produção de Jackson Pollock e Helena Wong.

Em anexo ao livro encontra-se um pequeno texto escrito pelo compositor e educador musical Luis Carlos Csekö. O texto apresenta a “Oficina e Linguagem Musical como uma possibilidade de pedagogia para o século 21”, oficina esta realizada de forma condensada no simpósio em questão. Não se constitui em um artigo mas, uma apresentação da Oficina, e os conteúdos abordados nessa atividade, que se repete em múltiplas ofertas, em diferentes ocasiões e eventos a que o autor comparece e que demonstra, de maneira altiva, o pensamento educativo musical do autor.

Convido a você leitor, realizar um mergulho nestes textos, ampliando seu conhecimento e análise sobre questões da arte e do ensino atuais.

Ms. Daiane Solange Stoeberl da Cunha

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ARTE, ATUALIDADE E ENSINO

PREFÁCIO

O conjunto de produções intelectuais aqui reunidas – saberes da arte - trazem intrínsecas as discussões entre ciência, pesquisa, experiência sensível e cognitiva e metodologias, atendendo concretamente às necessidades da formação do profissional que atua com o ensino da arte, estando todas as explanações atreladas às nossas linhas de pesquisas do curso pois articulam processos de ensino e processos criativos.

Os artigos iniciam com as questões de arte e ensino, voltadas para a formação de professores e do currículo articulado com a práxis pedagógica. Especialmente evidencia-se a área de música, legitimada recentemente na realidade educacional, cujos estudos aqui apresentados contemplam a construção do conhecimento nesta área, de forma significativa, nas suas relações entre educação e arte, possibilitando a ampliação de fazeres pedagógicos. Na abordagem de pesquisas em processos criativos, percebe-se que os elementos do fazer, da técnica, da elaboração e da reflexão estruturam-se a partir de um espírito investigativo sistemático que oportuniza a ampliação da sensibilidade e da criatividade.

De uma maneira geral os artigos constituem-se em reflexões acerca da relação entre arte e educação, arte e processos de ensino, resultando num eficiente aparato que subsidiará a docência de educadores no ensino da arte. Ressalta-se, em todas as produções, a relevância dos processos expressivos, vivenciados pelos pesquisadores, como situações autorais em que pode identificar-se enquanto ser no mundo, bem como seres resultantes de sua cultura.

Os diferentes estudos apresentam-se como elementos imprenscindíveis no contexto educacional por sua contribuição na investigação artística, estética, cognitiva, emocional e sobretudo, educacional. Pedagogicamente, através da criatividade, a arte oferece possibilidades diversificadas, enriquecendo o processo educacional. O livro estrutura-se em dois momentos, sendo que o primeiro posiciona os conhecimentos educacionais da atualidade, ao mesmo tempo em que destaca a importância do ensino para a disseminação dos saberes do homem. Na sequência, evidencia os processos criativos.

As discussões balizam-se entre os aspectos epistemológicos, sociológicos, educacionais e artísticos da arte e argumenta-se no pensamento de uma prática crítica e transformadora pautada nas relações multifacetadas do indivíduo, escola, arte e sociedade contemporânea. Entre as diferentes abordagens metodológicas utilizadas, o que se destaca é a

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metodologia dialógica. Como pressuposto na compreensão da Arte e de suas variantes, evidencia a expressão e o pensar criativo dando significatividade aos processos de ensino-aprendizagem, enriquecendo estudos na área, dando uma abrangência a sua apreciação de forma sensível e crítica, desencadeando um pensamento multidimensional, nos seus aspectos críticos e criativos resultando num enriquecedor diálogo entre saberes que subsidiam encaminhamentos a futuras pesquisas e processos criativos e/ou educativos. Percebe-se que a arte realizada no ambiente educativo transforma-se em fundamental desenvolvimento humano, resgatando sua inteireza enquanto ser no mundo, pois dialoga razão e emoção, fantasia e realidade, os autores desta coletânea foram muito felizes na forma com que disseminaram suas experiências em arte através de suas proposições, produções, apropriações artísticas, pois estimulam a autonomia intelectual, a independência e compreensão da contemporaneidade numa consistente construção de exercício estético voltado para uma educação realmente emancipadora.

Profª. Ms. Eglecy do Rocio Lippmann

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ARTE, ATUALIDADE E ENSINO

SEÇÃO 1

ARTE E ENSINO

ARTES, ATUALIDADE E ENSINOIrene Tourinho1

Foi com muito prazer que recebi o convite para participar do VIII Simpósio de Arte Educação promovido pelo Departamento de Arte-Educação da Universidade Estadual do Centro-Oeste, em Guarapuava, Paraná. Prazer e susto, posso dizer. O susto veio com o tema, bastante abrangente para ser tratado apenas numa única fala para abrir o evento. Mas a organização do Simpósio foi convincente acerca da escolha do tema. Daiane Cunha, coordenadora geral e pessoa de muita garra, competência e amabilidade, me persuadiu a cometer o risco de abordá-lo. Agora, passado aquele primeiro susto, encaro este segundo que é traduzir a fala em texto. Muitos de nós sabemos das dificuldades dessa operação. Ao falar, temos a liberdade de buscar, em voz alta, palavras mais adequadas ou atraentes; podemos rechear os pensamentos com parêntesis imaginários que esclarecem ou exemplificam nossas ideias, além de podermos re-dizer coisas e contar com a contribuição gestual, sonora, corporal e visual. Mais que isso, os olhares que nos olham e as expressões que percebemos, ajudam a reforçar alguns pontos estimulando determinadas ênfases e dando vida àquilo que falamos. Porém, o convite para publicar aquelas ideias que compartilhamos no evento também foi irrecusável, o que não significa redução do susto. Pelo contrário. É um susto, outra provocação que enfrento. Assim, minha intenção é tocar em algumas teclas, insinuar algumas temáticas e explicitar preocupações que vieram à tona na caminhada que me levou até a apresentação e participação no evento. Certamente ficarão de fora muitos pensamentos que me ocorreram e foram manifestados durante a fala, mas, principalmente, não incluo várias reflexões que ampliaram, aprofundaram e geraram questionamentos fundamentais para o tema, trazidas pelo público que, sem demonstrar cansaço, permaneceu contribuindo com a discussão muito tempo depois de esgotadas minhas anotações. O caminho que escolhi para abordar o tema começa com uma rápida revisão

1 Irene Tourinho é Professora Titular da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás, docente e coordenadora (2009/2013) do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual – Mestrado/Doutorado, mestre pela Universidade de Iowa, doutora pela Universidade de Wisconsin – Madison (EUA) e pós-doutora pela Universidade de Barcelona, Espanha. Foi professora visitante na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona e na Universidade Ambedkar, em Nova Delhi, Índia.

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sobre algumas questões insistentes da atualidade. Questões insistentes da atualidade nos perturbam, inquietam e instigam. Dizer não ao presente é loucura e futilidade porque o agora não é um inimigo ou uma limitação. É, antes de tudo, um desafio. Atravessado esse primeiro trecho da caminhada, concentro-me em algumas temáticas que representam demandas para pensar a educação e, ao mesmo tempo, apontam para universos de experimentações a partir dos quais diversas propostas artísticas têm derivado. Ao final, levanto algumas ideias que percebo como pistas de reflexão para orientar o fazer docente em artes. Optei por não fazer referências a autores, a não ser quando os cito diretamente. Guardo, assim, um gosto de fala que não se interrompe para dizer quem inspirou a ideia. Porém, está claro, tudo que sei e que escrevo aprendi com alguém, seja diretamente ou através de suas produções. Questões insistentes

Escolhi um recorte de um trabalho de Brower Hatcher, um estadunidense formado em design industrial, como imagem alusiva de questões insistentes que caracterizam a atualidade. Três motivos me incitaram para a escolha desta imagem, sem contar os gracejos que caberiam aqui em relação ao título do trabalho – Profecia dos Antigos2 – e o uso que faço dela para pensar questões insistentes da atualidade. Primeiramente, a imagem evoca um imaginário preenchido com inúmeras possibilidades de conexão, de entrecruzamentos, de interterritorialidades que constroem e afagam os campos de saber e das práticas. É um visual rizomático e, nesse sentido, nos fala da atualidade. Através dessas evocações, somos chamados a pensar o presente a partir de ênfases que recaem sobre a multisensorialidade dos processos que experimentamos, sobre a transdisciplinaridade – ou antidisciplinaridade – que tem impulsionado projetos e demandas artísticas e culturais e, além disso, aberto múltiplos espaços e formas de ver o mundo, compreendê-lo e transformá-lo. Em segundo lugar, a imagem serve para aludir à ideia de agilidade, de pontos de encontro fugazes, efêmeros, transitórios, multidirecionais. A atualidade é sentida, com ferocidade, a partir de seus ritmos acelerados que nos impõem envolvimentos em projetos somente a curto prazo. Estamos quase que impedidos de projetar a longo prazo. Antes de terminar um projeto já estamos envolvidos em outro e cada um parece viver apenas um tempo mínimo, nascendo com data de validade quase vencida. É intensa a sensação de vivermos a ditadura da velocidade, como muitos apontaram. Arrastados de um projeto a outro, de uma demanda a outra, “varejizamos” nossa vida intelectual, emocional e profissional. Não temos tempo para acompanhar o ritmo das informações e inovações e, ainda menos, para avaliá-las. Este ritmo incessante de vida tem sido um lamento constante em diversas profissões, resultando em stress, falta de motivação,

2 Profecia dos Antigos, 1988, Brower Hatcher – Walker Art Center – Minneapolis Sculputre Garden. Imagem disponível em http://www.flickr.com/photos/27316171@N05/page2/ Acesso em: 15 nov 2012.

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ARTE, ATUALIDADE E ENSINO

depressão... A quantidade de informação disponível gera o que já foi denominado de ansiedade da informação, uma doença que nos acomete sem deixar chances de virar o jogo. A oferta suplanta, em muito, nossa capacidade de apreensão. Este caráter efêmero das experiências nos faz viver o instante, mesmo quando tentamos reter as horas. O terceiro motivo de ter escolhido essa imagem para vislumbrar questões insistentes da atualidade diz respeito ao fato de que ela nos permite pensar – juntando a ampliação de possibilidades de agenciamentos e interpretações que a atualidade oferece e estimula, e o caráter transitório que qualifica nossas experiências contemporâneas – na idéia de incertezas, de paradoxos, de contradições que nos assolam cotidianamente. Tais incertezas e contradições se apresentam junto com o surgimento de novas formas de controle e de dominação: atualmente estamos sendo vistos e acompanhados, vigiados, regulados e controlados a todo momento. Essa ideia de incerteza guarda afinidades com o texto do filósofo espanhol José Maria Marina (2004), em Crônicas da Ultramodernidade, que sintetiza de maneira extraordinária os paradoxos que caracterizam a atualidade. Não há necessidade de explicá-los, pois nossa experiência fornece exemplos suficientes para compreendê-los e senti-los na pele: (1) “O mundo se globaliza e se nacionaliza simultâneamente”; (2) “Aumenta a produção de bens, mas diminui o trabalho”; (3) “Vivemos em uma sociedade tecnológica, mas desconfiamos da tecnologia”; (4) “Confiamos parte de nossa liberdade aos políticos, mas desconfiamos deles”; (5) “Não sabemos se estamos progredindo ou retrocedendo”, e (6) “Cremos que o conhecimento é importante, mas são os sentimentos que nos fazem felizes ou desgraçados.” (p. 24-27). Este panorama das muitas questões que nos marcam não esgotam, certamente, os impasses, embates e disputas que enfrentamos cotidianamente. Porém, quero destacar mais uma, já analisada como uma nova forma de escravidão que hoje nos atinge e confronta. A imagem de Hatcher tem menos impacto aqui, apesar de que as tramas que ela constrói podem também aludir a limites e, principalmente, a espaços que nos demarcam. Refiro-me à sensação, esta forte impressão de que ter vale mais do que ser e, mais grave do que isso, a sensação de que aparecer, vale ainda mais do que ter. Assim, não apenas nossas intimidades são invadidas, mas muitos se esforçam para que haja esta invasão: paga-se para aparecer, para revelar as intimidades e para estar exposto, de preferência, em todas as circunstâncias. Um exemplo que li recentemente, ilustra bem a situação atual: quando nos damos conta de que conhecemos melhor a imagem de alguém que nunca vimos, como a de Gisele Bündchen, por exemplo, do que a do nosso próprio vizinho, algo mudou profundamente na nossa relação com o mundo, na nossa vida diária. Algo profundamente complexo alterou nossa existência. Sem querer reforçar a onda quantificadora reinante nas diversas esferas da vida institucional, social e cultural – na qual os números muitas vezes falam mais alto resultando no apagamento de questões qualitativas - aponto algumas estatísticas atuais que se

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entrelaçam com paradoxos e complexidades com os quais convivemos.

Uma pesquisa feita pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas,

denominada Motivos da Evasão Escolar (NERI, 2012) destacou que 40% dos jovens não

estão interessados na escola que temos. Não estão interessados porque se sentem fora dela,

se percebem desconsiderados ali. Ambiente? Conteúdos? Métodos? Recursos? Propostas?

Não há resposta fácil e estas esferas não podem ser separadas. Tendemos a pensar que as

novas tecnologias solucionarão os problemas. Porém, apesar de sabermos que a internet

facilita, e muito, o intercâmbio de conhecimentos e a circulação de ideias, ela não possui

traços menos ambivalentes que qualquer outra inovação tecnológica. Não nos cabe, nesse

sentido, subestimá-la nem supervalorizá-la.

Outros dados também contribuem para refletirmos sobre questões insistentes

que nos atordoam ao mesmo tempo que incitam nossas possibilidades de agir para

romper, para transformar o mundo em que vivemos. Carlos Fuentes (2010) nos apresenta

macroestatísticas mostrando que se, por um lado, onze bilhões de dólares financiam as

necessidades fundamentais do terceiro mundo na área da educação, este montante é o

que os EUA gastam por ano em produtos de beleza. Mais ainda: se treze bilhões de dólares

satisfazem as necessidades fundamentais do terceiro mundo na área da saúde, é isso o que

a Europa gasta por ano com seus sorvetes. Agravando este contexto, abala-nos a informação

de que atualmente, 850 milhões de seres humanos passam fome.

São dados que mostram diversas formas de precariedade cultural, de aberração

social, sintomas de uma globalização discriminatória e de uma emergência disparatada

do capitalismo cultural eletrônico. Entretanto, sem dúvidas, há também esperanças neste

cenário: reconhecemos que ganhos e beneficícios têm sido gerados para nossa vida, para

prolongá-la com mais qualidade. A facilidade na circulação do pensamento, como disse

anteriormente, favorece possibilidades de comunicação e interação – não para todos,

sabemos - sem empecilhos de espaço e tempo e, fundamentalmente, a chance de fraturar

a solidez das nossas convicções. Em razão destas condições, vivemos uma era que não

admite exclusões e, sim, reconfigurações e redirecionamentos de práticas, de ideias e de

perspectivas.

Para enfrentar estas questões insistentes não como ameaças, mas como possíveis

recursos para a nossa atuação docente, uma postura que me agrada muito é a do cientista

Stephen Jay Gould. Ele disse, em algum lugar que não registrei: “[...] não sou um pessimista,

sou mais um otimista trágico”. Assim, talvez possamos nos concentrar em pensar sobre

temas - não sobre conteúdos, criando alternativas para deslocar o conhecimento e investir

na centralidade da cultura como eixo organizador das nossas experiências. Pensar sobre as

temáticas que caracterizam a atualidade é respeitar a fragmentação que configura nossa

existência e que não é disciplinar, mas justamente temática, como nos ensinou Boaventura

de Souza Santos.

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ARTE, ATUALIDADE E ENSINO

zAlgumas temáticas contemporâneas

Colocar-nos diante de temáticas que desenham nosso viver contemporâneo nos ajuda a criar propostas para lidar com questões fundamentais, enfrentando-as e problematizando-as. A produção, circulação e socialização de saberes e práticas culturais depende dessa possibilidade de tematização e problematização, tarefas que são responsabilidades do ensino, da formação, das formas interativas de experimentarmos a nós mesmos, aos outros e ao mundo. Aponto, de maneira breve, quatro dessas temáticas, sem a ambição de me aprofundar em cada uma, mas com o intuito de enriquecer este panorama sobre a atualidade em que nos inserimos. Especialmente, vejo estas temáticas como acionadoras potentes de novos modos de produção artística na educação, eixos que podem privilegiar a imaginação e a criação de uma multiplicidade de projetos e reflexões. Utilizo a barra (/) na indicação de cada temática com o propósito de evidenciar complementaridades, diálogos e afinidades sobre as quais nos cabe refletir, e não com a intenção de apontar binarismos ou antagonismos. (1) globalização/localização: entendemos que essa relação é, acima de tudo, um fenômeno de comunicação, que significa não apenas o domínio da economia de mercado – ou seja, não pode significar apenas globalização do mercado -, mas nos leva a pensar sobre “[...]como reagimos a uma sociedade em formação, genuinamente nova e cosmopolita.” (GIDDENS, 2008, p. 16). A localização nos remete à ideia de pertencimento, não para celebrar um local, uma cultura, mas para evidenciar a ausência de fronteiras entre questões globais e existenciais. É nesse sentido que entendo uma reflexão que li, não sei onde, que diz que “[...] é o fato de um indivíduo pertencer a muitos grupos que o faz livre.” Nossa época interconecta, então, de maneira intensa e veloz, questões globais e disposições pessoais, como também assinalou Giddens (2008). Achei significativo um e-mail que andou circulando com uma definição de globalização bastante concreta, atual, e engraçada até. Diz o seguinte:

Pergunta: Qual é a mais correta definição de Globalização? Resposta: A Morte da Princesa Diana. Pergunta: Por quê? Resposta: Uma princesa inglesa com um namorado egípcio, tem um acidente de carro dentro de um túnel francês, num carro alemão com motor holandês, conduzido por um belga, bêbado de whisky escocês, que era seguido por paparazzis italianos, em motos japonesas. A princesa foi tratada por um médico canadense, que usou medicamentos americanos. E isto é enviado a você por um brasileiro, usando tecnologia americana (Bill Gates) e provavelmente, você está lendo isso em um computador genérico que usa chips feitos em Taiwan e um monitor coreano montado por trabalhadores de Bangladesh, numa fábrica de Singapura, transportado em caminhões conduzidos por indianos, roubados por indonésios, descarregados por pescadores sicilianos, reempacotados por mexicanos e, finalmente, vendido a você por chineses, através de uma conexão paraguaia. Isto é *GLOBALIZAÇÃO!!!*

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O relato demonstra bem o que Lipovetsky e Serroy (2011) denominam como cultura-mundo, uma reconfiguração que evidencia

Não mais as oposições alta cultura/baixa cultura, cultura antropológica/cultura estética, cultura material/cultura ideológica, mas uma constelação planetária em que se cruzam cultura tecnocientífica, cultura de mercado, cultura do indivíduo, cultura midiática, cultura das redes, cultura ecologista: uns tantos polos que constituem as ‘estruturas elementares da cultura-mundo.’ (p.15)

(2) vida cotidiana/vida extra-ordinária: aqui encontramos questões relacionadas à vida do dia a dia, às mudanças que estão ocorrendo na vida íntima das pessoas, no ritmo acelerado de trabalho, na pulverização e justaposição de conhecimentos. Lembramos, ainda, da varejização de nossos fazeres, saberes e amores, das múltiplas identidades e papéis que vão nos constituindo, das obsessões que configuram “[...] uma cultura tendencialmente narcística” (LIPOVESTSKY e SERROY, 2001, p. 48). Ao lado disso, vivemos o sonho e a sedução das grandes estrelas e riquezas, das festas, das celebrações, dos divertimentos, dos espetáculos. Continuamos valorizando os rituais que nos congregam, as quebras de rotinas, as redes sociais abarrotadas de amigos e, também, dos fundamentalismos religiosos, do crescimento e segmentação de crenças... O entretenimento ocupa, assim, um espaço considerável nesta temática. O prazer, aliado à alegria, ao estabelecimento de redes sociais está, cada vez mais, sendo analisado como objeto que produz e discrimina identidades, grupos, sociedades. (3) meio ambiente/tempo e espaço: a questão do aquecimento global, já denominada de enlouquecimento global, cria a necessidade de iniciativas ligadas à urbanização, à arte pública, a projetos coletivos. As transformações nas noções de espaço e tempo que, de maneira drástica, expandiram e reduziram as vivências cotidianas, também instalaram a itinerância como necessidade e valor. Viajar, deslocar-se, fazer turismo passa a representar capital cultural ambicionado por muitos. Ainda assim, o trânsito de pessoas nas suas próprias cidades se vê restrito a diferentes ritmos que caracterizam o dia a dia de cada segmento socioeconômico da população, limitando, para muitos, o acesso e a possibilidade de viver a cidade. As relações tempo-espaço não são as mesmas para qualquer indivíduo e um impacto disso é a necessidade de compreender como a construção social das noções e vivências dessas relações institui mundos e reinventa, constantemente, novas formas de comunicação e novos ambientes sociais. São muitas as questões que nos rodeiam em relação a essa temática e que não cabem nessa fala/texto, desde a dissolução/renovação do meio ambiente privado, familiar, até as transformações geopolíticas e geoeconômicas que criam cicatrizes e, também, ferramentas para nossas vivências. (4) Consumo/desperdício: este último tema que trago para compor este quadro da atualidade e, ao mesmo tempo, de possibilidades produtivas para o ensino de arte é, assim como os outros, bastante complexo. Porém, trazê-lo aqui significa considerar uma esfera poderosa

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de ação e de instituição de identidades que tem não apenas marcado, mas regulado e desorientado os sujeitos. O tema me faz lembrar a síntese proposta pelo trabalho da artista Barbara Kruger que, ironicamente disparava: “Compro, logo existo”. Lipovetsky e Serroy (2011) analisam com profundidade as consequências do que vem sendo chamado de hiperconsumo e declaram que

O enfraquecimento dos controles coletivos, as estimulações hedonistas, a superescolha de consumo, tudo isso contribui para criar um indivíduo frequentemente pouco armado para resistir tanto às solicitações de fora quanto aos impulsos internos. A cultura de livre disposição dos indivíduos no supermercado contemporâneo dos hábitos de vida é também a que vê crescer a tendência ao autodesregulamento. Na sociedade do hiperconsumo, afirmam-se ao mesmo tempo, o princípio do pleno poder sobre a condução de si próprio e as manifestações de dependência e de impotência subjetivas. (LIPOVETSKY; SERROY, 2011, p. 59)

A relação entre consumo e privação e entre consumo e desperdício também

coloca importantes questões para nossa reflexão. Seus efeitos podem ser sentidos pela

desigualdade decorrente da má distribuição de renda que faz o Brasil figurar na terceira

pior posição entre os países do mundo, ao lado do Equador e abaixo de Uganda, conforme

noticiaram amplamente os jornais, com base em estudo da ONU, de julho de 2010.

Também é importante pensar não apenas no consumo voluntário, fruto de escolhas,

mas, ainda, no consumo imposto: a cada dia, consumimos quase 18.000 imagens somente

percorrendo nossos trajetos cotidianos, rotineiros, que perfazem nossas obrigações e

compromissos diários. Mas, como nos diz Bourriaud (2009), “[...] ao contrário do que se

costuma pensar, não estamos saturados de imagens; estamos submetidos à escassez de

certas imagens, que têm de ser produzidas contra a censura.” (p. 59) Precisamos pensar,

então, nas práticas de consumo acelerado, estimuladas em todas as faixas etárias, e nos

impactos desse consumo que coisifica a felicidade e a alegria, fincados em estereótipos que

materializam o prazer, o poder, a satisfação.

Destaquei estas poucas, mas abrangentes temáticas, não para sugerir que elas sejam

as únicas ou as mais significativas para exprimir as tensões e transformações da atualidade.

Porém, estes são, certamente, temas que podem gerar e produzir experiências artísticas

que aguçam nossa sensibilidade e nos estimulam para propor formas de estar no mundo, de

negociar alternativas de envolvimento pessoal em nossas comunidades de pertencimento e

de criar práticas que questionem e perturbem versões injustas e hegemônicas da realidade

através da educação, do ensino e da arte.

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Que ideias podem orientar nosso fazer docente em artes?

Tenho usado a imagem abaixo para enfatizar o quanto conhecemos sobre este espaço. De tão conhecido, ele às vezes nos satura. Descreveríamos de maneiras semelhantes estes espaços e teríamos lembranças similares sobre o que ocorre nesses lugares.

Imagem – Corredor de escola3

Em muitos lugares do mundo podemos encontrar escolas com esta mesma aparência. Talvez isso possa nos dizer que nossas necessidades, desejos e sonhos são diferentes, mas também guardam proximidades com aqueles de professores que vivem em outros países. O descaso em relação a prédios escolares também é visível em vários lugares. Pensando sobre o que nos une e agrega nesta profissão e mantendo esta imagem na cabeça, aponto uma primeira ideia que oferece pistas para orientar nosso fazer docente em artes. Refiro-me à desconstrução da noção de escola como espaço privilegiado de aprendizagem. Os espaços de aprendizagem se expandiram, perderam limites, derrubaram fronteiras. As escolas, hoje, precisam fazer parcerias, encontrar interlocutores e ampliar suas formas de atuação. É a partir da década de 60 que a escola começa a ser posta em causa como instituição intocável, sublinhando-se a importância do aprender para além da escola e de pensar a educação numa perspectiva social e cultural. Entretanto, apesar de parecer consenso que as paredes das salas de aula e os muros das escolas precisam cair, na prática, muitas escolas estão reestruturando seus horários – diminuindo o tempo de recreio, por exemplo – para manter o aluno mais tempo (seguro?!?) na sala. Discutir questões relativas às condições sociais e culturais que envolvem professores e alunos neste esforço para fortalecer pontes entre experiências internas e externas às escolas pode contribuir para maior efetividade de políticas de compromisso social e parcerias, caso as instituições queiram se ajudar para

3 Fotografia produzida pela autora do capítulo.

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enfrentar os desafios e paradoxos contemporâneos. A ideia de cultura, ou melhor, de culturas, no plural, passa, então, a ser central e deflagradora de nossas ações de ensinar e, certamente, de aprender, pois nesse binômio inseparável, aprender-ensinar, é a aprendizagem que encabeça a ação, é ela que institui, reconstrói e transforma o ensino. Juntamente com a primeira pista de reflexão – a desconstrução da noção de escola como espaço privilegiado de aprender – a cultura afirma-se como alavanca para nos incitar a refletir sobre o ensino de arte. Já sabemos que a escola é, hoje, lugar de aprender, mais que ensinar. Porém, é importante, em relação à cultura, como um princípio determinante, compreender que “Não se pode estabelecer uma hierarquia entre as culturas humanas, pois todas as culturas são epistemológica e antropologicamente equivalentes” (SILVA, 2002, p. 86). Dessa ideia resulta nosso entendimento de que “Não é possível estabelecer nenhum critério transcendente pelo qual uma determinada cultura possa ser julgada superior a outra” (SILVA, 2002, p. 86). A des-hierarquização de fazeres e saberes, a des-fronteirização e a desterritorialização de práticas e reflexões são características da contemporaneidade que a centralidade da cultura enfatiza, chamando-nos para deslocamentos perceptivos e conceituais sobre a natureza do ensino, as funções da escolarização e as possibilidades de abordagem do mundo e da cultura estética que nos rodeia. Sob a perspectiva da cultura aprendemos que saberes e fazeres são circulantes e circulam, sem se fixar em lugar algum. As ideias de que não aprendemos apenas na escola, de que as práticas culturais e sociais ensinam e nos formam e de que não há critérios possíveis para hierarquizar culturas, saberes ou práticas, colocam em pauta outra dimensão que fundamenta e pode orientar nosso fazer docente em artes na atualidade. Refiro-me às questões das identidades. Assim como o conceito de cultura, o conceito de identidade é múltiplo, complexo, mutante. Ambos se referem a construções sociais. Falar de construção de identidades é reconhecer, primeiro, que as identidades não são únicas, são instáveis, vulneráveis e lábeis, sujeitas a escorregões. Identidades vivem mancomunadas com subjetividades, num contexto cultural, rabiscando experiências culturais e sociais que podem, ou não, tornarem-se afetivamente significativas. Subjetividades, identidades, alteridades, contextos, culturas, afetos, significados: essa mistura de interagentes resulta numa porção de vida que conhecemos, porém, cada elo entre esses conceitos deve ser continuamente reconstruído, pesquisado, experimentado. É através dos elos e continuidades que conseguimos dar a estas noções - subjetividades, identidades, alteridades, contextos, culturas, afetos, significados – força para impulsionar propostas de instituir e reconstruir saberes e fazeres estéticos e artísticos na escola. Vale ressaltar, mesmo repetindo, que a identidade é relacional, marcada pela diferença e construída tanto simbólica quanto social e culturalmente. Sintetizando essa ideia podemos falar, com Woodward (2000), que “[...]a identidade não é oposto da diferença: a identidade depende da diferença.” (p. 40) É ainda essa autora que enfatiza:

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“toda identidade [...] depende, para existir, de algo fora dela.” (p. 9) Os espaços descuidados, sujos e quebrados que encontramos em muitas escolas nos oferecem, através de vazamentos e rachaduras tão comuns, metáforas de circunstâncias que nos instituem cultural e socialmente. É uma maneira de pensar sobre esse algo que vaza, que racha, para além de nós, para além do que pensamos que somos – esse algo que nos marca pela ausência e pelas formas híbridas de se fazer presente. Com essa imagem de rachaduras e vazamentos também trago a ideia de diferença, conceito tão importante para pensar as culturas, as identidades, as formas de interpretar o mundo e de ensinar. Ao marcarmos nossas identidades como professores de arte, que outras diferenças podemos obscurecer? Como me diferencio enquanto professora de arte? Penso que, para relacionar arte, ensino e atualidade, talvez precisemos reavivar em nós as histórias que nos formaram e os desejos que nos animam para entender por que assumimos certas identidades e, especificamente, o que nos faz professores de arte e quê significados isso tem para nós hoje. Esse exercício de reconstruir, revisitar nossa formação identitária como profissionais professores de arte visa mudanças, negociações de identidades e transformação. Stuart Hall (2000, p. 109) nos diz que “[...] as identidades têm a ver não tanto com as questões ‘quem nós somos’ ou ‘de onde viemos’, mas muito mais com as questões ‘quem nós podemos nos tornar’, ‘como nós temos sido representados’ e ‘como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios.” Assim, o que ensinamos e a forma como abordamos objetos e manifestações culturais, em contextos específicos, têm impacto na maneira como produzimos e reagimos a significados e interpretações, na maneira como nos envolvemos com os processos de criação e de transformação das realidades pedagógicas e artísticas. Definir a abordagem de determinados trabalhos, conceitos e temas na prática pedagógica solicita não apenas estar antenado para os entrecruzamentos culturais e processos de construção de identidade que eles podem desencadear. Solicita, também, enxergar estes objetos e manifestações, assim como os diferentes contextos onde eles se encontram, para além de sua materialidade, encontrando, através da experiência, conexões com realidades temáticas que nos formam e inquietam. Isso exige uma capacidade de agregar ao trabalho educativo experiências de vida que possibilitem um sentido de pertencimento, de reconhecimento individual e cultural, social e coletivo, simbólico e afetivo.

Referências

BOURRIAUD, N. Pós-produção: Como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

FUENTES, C. A Odisseia crioula ou o drama da América Latina e as mitologias do Futuro. In: Constantin von Barloewen (Organizador/Entrevistador). Livro dos Saberes: Diálogos com grandes intelectuais de nosso tempo. Osasco, SP: Novo Século, 2010.

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GIDDENS, A. Entrevista a William Waack. Grandes Entrevistas do Milênio: O olhar de grandes pensadores sobre o mundo atual e suas perspectivas. São Paulo: Globo, 2008.

HALL, S. Quem precisa da Identidade? In: SILVA, T. T. (org) Identidade e diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.

LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. A cultura-mundo: Resposta a uma sociedade desorientada. (Trad.: Maria Lucia Machado). São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

MARINA, J. A. Cronicas de la ultramodernidad. Barcelona: Anagrama, 2004.

NERI, M. Motivos da Evasão Escolar. Disponível em: http://www.ufgd.edu.br/faed/nefope/publicacoes/pesquisa-motivos-da-evasao-escolar. Acesso em:13 set 2012.

SILVA, T. T. Documentos de identidade: Uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, T. T. (org) Identidade e diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.

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A EDUCAÇÃO DO SENSÍVELAna Laura Rolim da Frota4

Para iniciar uma reflexão sobre a Educação do Sensível deve-se antes buscar a significação da palavra sensível. No dicionário Aurélio Século XXI encontra-se, para esse vocábulo, inúmeros significados que se relacionam com as capacidades sensitivas do indivíduo como:

[Do lat. sensibile.]Adj. 2 g. 1. Que sente; dotado de sensibilidade: 2. Que recebe facilmente as sensações externas: 3. Que pode ser percebido pelos sentidos: 4. Que, ao menor contato, se torna dolorido ou faz sofrer: 2 5. Capaz de sentimento em grau incomum: dotado de uma vida afetiva intensa; apto a sentir em profundidade as impressões, fazendo que delas participe toda a sua pessoa; emotivo. 6. Que se deixa impressionar, tocar, comover. 7. Que se ofende ou melindra com facilidade; suscetível, sensitivo, sentido. 8. Claro, evidente, manifesto. [Sin., p. us., nessa acepção: sensivo.] 9. Fisiol. Que é conhecido pela sensibilidade. [Nesta acepção., opõe-se a inteligível.]

Partindo dos significados expostos acima, vamos enfocar nossas reflexões nas impressões humanas, nas percepções corporais, nas emoções e, principalmente, nos sentidos que são a base da educação da sensibilidade. Maurice Merleau-Ponty, filósofo moderno que atuou entre 1942 e 1961, fala da relação do homem com a natureza e com os seus pares, afirmando: “[...]a consciência é percepção, e percepção é consciência” (1999), para ele nosso corpo é o meio através do qual conhecemos o mundo. Assim afirma, ainda

A percepção abre-me o mundo como o cirurgião abre um corpo, percebendo, pela janela que fez órgãos em pleno funcionamento, vistos na sua atividade, vistos de lado. É assim que o sensível me inicia no mundo, como a linguagem me inicia no outro: por lenta justaposição.(MERLEAU-PONTY, 1984, p. 202):

Assim, podemos afirmar que ao perceber as coisas, o corpo nelas se envolve, deixando-se também envolver por elas. Ao experimentarmos o mundo em todas as suas nuances, ele nos deixa marcas que passam a constituir-se em partes significativas de nós.

4 Ana Laura Rolim da Frota é Mestre em Educação pela UFRGS, especialista em Artes Visuais Arte Educação: Ensino da Artes/FEEVALE e licenciada em Educação Artística e Artes Plásticas pela UFRGS, é vinculada ao GEARTE/UFRGS.

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Atuamos e conhecemos no decorrer de nossa vida a partir dos sentidos da visão, audição, tato, gustação e olfato. A nossa primeira experiência do mundo se dá através do olhar de nossa mãe. Começa na ligação do corpo e olhar entre mãe e filho a grande aventura do saber e do conhecer. Como diz Duarte Jr. (2001, p. 120):

[...] há um saber sensível, inelutável, primitivo, fundador de todos os demais conhecimentos, por mais abstratos que estes sejam; um saber direto, corporal, anterior às representações simbólicas que permitem os nossos processos de raciocínio e reflexão.

O viver nos ensina na medida em que nossa sensibilidade e percepção captam as qualidades do real que se apresentam em torno de nós: sons, cores, sabores, texturas e odores. Nosso corpo vai ordenando essas muitas impressões, dispondo-as de forma a construir um sentido primeiro, básico, que nos dota da capacidade significativa de interação com os outros sujeitos e ambiente. O sensível é o que pode ser percebido pelos sentidos, enquanto que o inteligível é o objeto próprio do conhecimento intelectivo. Ambos se completam e permitem, a partir de sua conjunção, a compreensão e atribuição de sentido a tudo que nos cerca. Fazemos aqui uso da expressão ‘saber sensível’, em detrimento de conhecimento sensível, por ser o verbo saber, no nosso entender, mais abrangente do que conhecer. A sabedoria implica uma infinidade de habilidades que se apresentam unidas entre si e ao viver dos sujeitos, estando incorporadas a ele. O sujeito sabe a partir das experiências vividas.

Duarte Jr. (2001, p. 14) traz-nos o significado primeiro da palavra saber:Sendo ainda importante relembrar as acepções mais antigas do saber enquanto verbo, que indicam ‘ter o sabor de’ ou ‘agradar ao paladar’; [...] isto é: o saber carrega um sabor, fala aos sentidos, agrada ao corpo, integrando-se, feito um alimento, à nossa existência.

Como educadores temos por ideal formar um sábio – detentor de um entendimento abrangente e integrado – e não um especialista que detém conhecimentos fracionados e parciais que, na quase totalidade das vezes, não se liga às ações do cotidiano. Como então fazer para formar um sábio? Cabe aqui perguntar que oportunidades a escola propõe para o corpo perceptivo do bebê (aluno)? A escola não pode permitir apenas o desenvolvimento da visão intelectiva, pois correrá o risco de oferecer apenas desafios que trabalhem o sujeito cognitivo. É preciso criar situações em que o olhar e o ouvir, junto com o olfato, o tato e o paladar, possam ser anteparos sensíveis no contato com o mundo. Trata-se aqui, portanto, de provocar a sensibilidade através da cor, promover a exploração da percussão de sons, proporcionar a exploração do corpo no espaço e manipulá-lo prazerosamente, vivenciando-o de forma expressiva. Se partirmos da premissa que a arte é uma experiência sensível em que o nosso corpo perceptivo participa, possibilitar situações de aprendizagem em arte implica pulsar nesse corpo a fascinação pelo mundo e estimular a magia da

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descoberta. Imaginar é também uma forma de saber. De acordo com Mirian Celeste Martins, quando a criança projeta seu pensamento ao manejar a matéria – lápis, tinta, papéis, massinha, roupas, brinquedos, sons e até mesmo o seu próprio corpo – e no contato com ela cria, a imaginação se revela e é capaz de antecipar, antever, pois o ato de imaginar é também ter hipóteses para agir. Ao exercitar o pensamento imaginativo, encontramos soluções inovadoras e ousadas, seja no campo da ciência, seja no campo da arte. Grandes cientistas e artistas como Einstein e Picasso anteviram intrincadas descobertas e criações a partir da imaginação, e só após as registraram sob a forma de enunciado ou produção plástica. Portanto, valorizar o repertório pessoal criativo e imaginativo das crianças como falas, gestos, sons e imagens, respeitando os ritmos individuais nos seus despertares íntimos, são atitudes que não podem ser desconsideradas pelo mestre que trabalha com a arte. O conjunto dessas ações abre uma janela para o imaginário transformando-o em um importante passaporte sensível, tanto no mundo da arte como no mundo humano. No processo de ensinar/aprender, a magia certamente pode ser facilitada pelo ambiente convidativo da sala de aula ou, no caso dos bebês, pelos espaços onde convivem. O educador, como um prestidigitador, seguidamente subordinado às dificuldades do dia a dia, precisa abrir caminhos na busca constante de ações verdadeiramente significativas. O mistério de seu trabalho consiste na trama entre os conteúdos que necessita ensinar e os conhecimentos das crianças – o que elas trazem como bagagem de saber construído em seus lares e nas interações com o meio. É importante que o ensinante de arte projete situações onde possam ser vivenciadas experiências gratificantes e enriquecedoras. Faz-se necessário destacar que é de extrema relevância que as crianças sejam impulsionadas a explorar e comunicar suas idéias, pensamentos e sentimentos. Não podemos desejar que apenas repitam as experiências de outros, ignorando sua própria expressão e sentimentos. Há que se abrir espaço para a escuta, para o diálogo com a criança no seu processo de sentir e criar. É preciso possibilitar momentos para a experimentação, ampliando a percepção que futuramente será o suporte de uma compreensão significativa de si, dos outros e do mundo. Nesse contexto, a arte é um veículo extremamente importante porque ensina a ver, ouvir, tocar, sentir, fruir. Como diz Merleau-Ponty (1975, p. 360-1) sobre o que há de importante na arte:

Que contenha, melhor do que idéias, matrizes de idéias, que nos forneçam emblemas cujo sentido não cessará jamais de se desenvolver, que precisamente por nos instalar em um mundo do qual não temos a chave, nos ensine a ver e nos propicie enfim o pensamento como nenhuma obra analítica o pode fazer, pois que a análise só revela no objeto o que nele já está [...] Nada veríamos se não tivéssemos, em nossos olhos, um meio de surpreender, interrogar e formar configurações de espaço e cor em número indefinido.

A arte tem linguagens que se articulam com os nossos sentidos:• Linguagem musical;• Linguagem visual;

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• Linguagem corporal (a dança e o teatro). A audição é o primeiro sentido que o feto aos dois meses tem. O coração e vibrações internas do corpo da mãe, além das águas que o envolvem, formam, quem sabe, uma sinfonia, em primeiro lugar para a sua pele, depois para seus ouvidos – ainda não inteiramente formados. Nunca mais ele deixará de escutar. A gênese do pensamento musical acontece quando a criança ainda nem aprendeu a falar. É de vital importância para as crianças, mais especificamente para os bebês, o contato com a música. Na audição dos sons, a criança imagina, relaciona e os junta aos silêncios, na sequência espaço-tempo, organizando a prática do pensamento musical. Musicalizar o cotidiano é essencial. O verbo musicalizar na verdade não existe, porém é utilizado por musicistas e professores, que ensinam música para bebês, com o significado de introduzir música na vida das crianças. Muitas vezes as mães musicalizam o cotidiano de seus bebês sem senti-lo. Ao cantar uma cantiga de ninar ou fazer brincadeiras com a voz, as mulheres estão desenvolvendo musicalmente seus filhos.

A voz da mãe, com suas melodias e seus toques, é pura música, ou é aquilo que depois continuaremos para sempre a ouvir na música: uma linguagem onde se percebe o horizonte de um sentido que, no entanto não se discrimina em signos isolados, mas que só intui como uma globalidade em perpétuo recuo, não verbal, intraduzível, mas à sua maneira, transparente. (WISNIK, 1989, p.27).

Mais tarde, quando a música entra em cena, as crianças aprendem rápido, desenvolvem habilidades motoras e expressam estruturas musicais mesmo antes de falar seu nome. Crianças que recebem estímulos musicais adequados – sem excesso ou escassez – aprendem a escrever facilmente, têm maior equilíbrio emocional e mais importante que tudo, são sensíveis e felizes. Sem sombra de dúvida, a criança que brinca com objetos sonoros experimentando-os, não só satisfaz sua curiosidade como alimenta sua sensibilidade. Mirian Celeste Martins afirma (1998, p.101):

Os modos de percepção e expressão por meio de instrumentos musicais ou objetos sonoros se atêm às questões referentes ao som como material bruto, com suas características diferenciais, seus parâmetros. O modo de a criança perceber e se expressar é caracterizado pela ‘imprecisão’. Toca um xilofone, ou mesmo um piano, não se importando com as notas musicais e sua localização, por exemplo. Para a criança importa explorar sons graves e agudos, geralmente em blocos, muito fortes ou bem suaves, curtos ou longos, mas sem preocupação de identificar sons ou ritmos medidos, e sim com o ‘gesto sonoro’, com a própria ação de tocar, assim se expressando.

• Linguagem Visual

No que se refere à linguagem visual, as cores mais do que as formas, atraem o olhar das crianças e as estimulam enquanto muito pequenas. Um ambiente bem iluminado e rico em cores incentiva o prazer de brincar, influenciando no humor e na capacidade de

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perceber. A arte-educadora Susana Rangel Vieira da Cunha diz (2004, p. 43):

A ausência da cor nos priva da mais eficiente dimensão de discriminação qualitativa por ser um modo sensorial de interpretar a luz. [...] a cor torna-se o elo de ligação entre nós e o mundo através do sentir, sendo as formas de expressar este estímulo sensorial o próprio modo de constituir a interpretação do que está fora de nós.

Possibilitar às crianças o encontro com a cor é abrir-lhes uma plenitude de possibilidades criativas, é dar-lhes a chave para expressar suas sensações e sentimentos. Algumas crianças pequenas relacionam a cor com elementos da natureza. O sol é amarelo, a árvore é verde, o céu é azul e assim por diante. Esta busca de correspondência entre a natureza e sua representação são modos de conhecer e diferenciar os elementos que constituem o mundo. No entanto, nem todas as crianças estabelecem esse tipo de relação. Algumas se expressam com tamanha liberdade que usam as cores de forma indiscriminada, pelo simples prazer da experiência. O fato de uma criança preferir usar cores escuras ou o preto, não significa que ela esteja assombrada por sentimentos pouco felizes. O preto é para ela como qualquer outra cor, ela o experimenta e o usa por pura curiosidade ou preferência no momento. No tocante às imagens da arte, colocar as crianças em contato com elas, significa dar espaço para operações que envolvam o agir e o pensar. O pensamento ocorre na ação, na sensação experimentada frente às imagens e na percepção das mesmas, sempre junto com os sentimentos. A criança convive, identifica e reproduz símbolos de seu entorno, porém, ainda não os cria intencionalmente. As sucessivas experiências expressivas vão construindo um repertório pessoal que será de grande significação mais tarde, no processo criativo intencional, nas leituras de arte e mundo.

• Linguagem corporal

O teatro, pelo seu modo de ser, faz aflorar a imaginação, o faz de conta. O encantamento do fazer de conta conduz as crianças a experiências pessoais e coletivas de grande significação, nas quais projetam suas fantasias, desejos e temores. Quando as situações apresentam-se de forma coletiva, propiciam a interação e a socialização. No faz de conta estabelece-se um jogo fictício que envolve a abstração, a qual será importantíssima para a formação de um ser criativo. No jogo, as crianças podem ser o que quiserem, podem exercitar potencialidades, hipóteses e desempenhar papéis que mais tarde serão vitais para o seu interagir no mundo. Incluída também na linguagem corporal temos a dança. Dançar desenvolve o pensamento sinestésico, ou seja, como diz Mirian Celeste (1998, p. 138): “[...]é um pensar em termos de movimento, que se executa como emoção física, impulsionado pelas sensações musculares e articulações do corpo.” A criança que dança se expressa poeticamente

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por meio dos movimentos corporais, conhecendo melhor suas potencialidades físicas, entendendo como funcionam as suas articulações, estabelecendo relação com o espaço ao experimentar-se nele e comunicando-se pelo movimento. Ao evoluir a partir da dança, as crianças desenvolvem a noção do ritmo e vivenciam a alegria de usarem o corpo como forma de expressão. Mover-se corporalmente é muito importante principalmente para os bebês, que estão iniciando suas primeiras experiências físicas no mundo. Enfim, a educação do sensível não contempla um ensino dirigido, rígido e estruturado sobre modelos prontos, mas sim um trabalho centrado no despertar das potencialidades e na preparação de seres para uma efetiva, alegre e significativa interação consigo mesmo e com o seu mundo. Atualmente vivemos uma rotina em que somos cada vez mais entorpecidos pela pressa, falta de tempo, superficialidade das relações e pela racionalização da tecnologia. Assim, idealizar e colocar em execução uma educação voltada para o sensível torna-se uma necessidade a fim de instigar, impulsionar e ampliar os referenciais e potencialidades de nossas crianças no enfrentamento dos desafios da contemporaneidade. Essa tarefa, com certeza, pertence aos educadores e não pode ser iniciada em anos tardios sob pena de não alcançar êxito pleno. Quanto mais cedo cultivarmos a sensibilidade maiores serão os ganhos para os sujeitos. Educar nesse mundo pós-moderno pressupõe despertar e alimentar a sensibilidade das crianças, tornando-as capazes de reconhecer e valorizar as mensagens de seu próprio corpo, utilizando esse saber em sua interação com o mundo, pois como nos diz Fernando Pessoa “O que em mim sente está pensando.”

Referências

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ARTE, ATUALIDADE E ENSINO

A TOTALIDADE E A APRENDIZAGEM MUSICAL, CONFORME A PEDAGOGIA MUSICAL ATIVA DE JOS WUYTACK

Luís Bourscheidt 5

Introdução

A utilização de métodos estrangeiros de ensino musical por educadores brasileiros é divulgada no Brasil especialmente, de acordo com Fonterrada (2005), a partir da segunda metade do século XX. O uso de diferentes metodologias para o ensino musical é uma forma de favorecer aos docentes a utilização de novas possibilidades pedagógicas. Assim, focalizando a análise de um método relativamente novo no país, busca-se, na presente pesquisa, examinar e avaliar a aplicabilidade do sistema Orff/Wuytack, enquanto metodologia de ensino musical alicerçada no conceito de totalidade, com crianças entre 06 e 08 anos de idade e sob o ponto de vista do seu desenvolvimento musical. Por meio deste estudo, procura-se, portanto, refletir acerca das qualidades deste sistema enquanto proposta de ensino da música, no âmbito da prática docente em educação musical.

O sistema Orff/Wuytack é um método de educação musical desenvolvido pelo compositor e educador musical belga Jos Wuytack. Partindo das idéias e da obra escolar de Carl Orff, a Orff-Schulwerk, este sistema de ensino coletivo de música pode ser considerado a continuação da pedagogia musical da Schulwerk na atualidade, tendo em vista a sua ampla utilização em diversos países do mundo, a citar Portugal, Espanha, França, Canadá e Estados Unidos (BOAL PALHEIROS, 1998). No Brasil, no entanto, poucos têm conhecimento desta pedagogia, já que a sua adaptação à realidade brasileira requer, a priori, um entendimento das suas principais características.

Como objeto de análise para esta investigação, foram aplicadas as atividades presentes no sistema Orff/Wuytack, em diversos níveis e com diferentes conteúdos musicais, tendo como enfoque principal um dos quatro conceitos fundamentais para o método, o conceito de totalidade. Juntamente com a criatividade, a comunidade e a atividade – pois as crianças são naturalmente ativas e, no trabalho em grupo, podem e devem ser estimuladas a desenvolver a sua criatividade (WUYTACK, 1993; WUYTACK & SILLS, 1994; BOAL PALHEIROS,

5 É formado em Educação Musical - licenciatura em Música (2006) e em Produção Sonora bacharelado (2008) pela Universidade Federal do Paraná e é Mestre em Música - Cognição e Filosofia da Música (2008), também pela UFPR. Participa do programa de Musicalização Infantil da mesma instituição desde 2004, atuando em turmas com crianças entre 0 e 10 anos de idade. Lançou em 2007 o livro Música elementar para crianças: arranjos de canções infantis brasileiras para instrumentos Orff , pela editora do Departamento de Artes da UFPR. Além de professor, é percussionista de diversos grupos musicais de Curitiba, e realizou a sonoplastia e compôs a trilha sonora de diversas peças do teatro paranaense. Tem experiência na área de Educação Musical, com ênfase em Musicalização Infantil, atuando principalmente com os seguintes temas: educação musical (método Orff e sistema Orff/Wuytack), arranjo e prática instrumental (percussão) e psicologia da música. É professor efetivo do Instituto Federal do Parana - IFPR - no Campus Curitiba.

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1998) –, a totalidade é um componente essencial para o trabalho musical com as crianças. Amparado pelo conceito de uma música elementar pregada por Carl Orff, o sistema Orff/Wuytack estabelece, como aspecto fundamental, o princípio da totalidade. Esta se refere à maneira como se estabelece a relação entre as partes e o todo dentro do processo de ensino e aprendizagem musicais. É possível, no entanto, entender este conceito sob dois pontos de vista. O primeiro, mais abrangente, estabelece que a experiência musical é composta invariavelmente da totalidade de três formas de expressão: a expressão verbal, a expressão musical e a expressão corporal. Esta idéia está baseada no conceito da expressão Musikae, da antiguidade grega, em que a expressão musical representava a totalidade entre a palavra, o som e o movimento. Para o sistema, portanto, a expressão artística da criança está baseada na inter-relação entre a expressão verbal – através do canto, da fala, da poesia e do folclore infantil –, a expressão musical – no que se refere a todos os elementos que compreendem a experiência musical, – e, finalmente, a expressão corporal – caracterizada principalmente pelo movimento, pelo gesto e pela dança.

Uma segunda análise, mais pontual, diz respeito à adequação da totalidade à aula de música, seja na sua elaboração, seja na sua aplicação. Nesse sentido, o conteúdo oferecido em uma determinada aula é apresentado de maneira integral – com início, meio e fim –envolvendo também as três formas de expressão descritas acima. Para exemplificar este aspecto, tomaremos como referência o aprendizado de uma determinada canção. Conforme a metodologia abordada, não é possível que as partes da canção, isto é, melodia, letra e acompanhamento, por exemplo, sejam aprendidas em aulas diferentes. Os elementos são apresentados separadamente, mas numa mesma aula, e sempre estabelecendo relações com o todo – ou com a totalidade – da canção. Assim, é mais conveniente que seja aprendida uma canção mais curta ou mais simples do que a não compreensão da sua totalidade. Conforme sugere o próprio Wuytack (2005; 2007), esse tipo de metodologia implica em uma satisfação por parte da criança, já que a sua tomada de consciência musical representa, dentro do conceito de totalidade, a realização de um bom trabalho musical.

Por fim, a hipótese deste estudo é que, a partir das atividades musicais presentes neste sistema, e tomando como referência o princípio da totalidade na aplicação destas atividades em uma aula de musicalização infantil, há uma significativa melhora na aprendizagem musical, principalmente com relação à aquisição melódica. O presente estudo tem como foco, portanto, o relato da aquisição de habilidades melódicas das crianças observadas. Dessa forma, presume-se que o princípio da totalidade pode ser adotado como proposta de ensino de música, dentro de uma aula de musicalização infantil.

Este trabalho investiga a aplicação do sistema Orff/Wuytack enquanto metodologia de ensino musical, com crianças entre 06 e 08 anos de idade e sob o ponto de vista do seu desenvolvimento musical.

Além disso, pretende-se refletir acerca das qualidades deste sistema enquanto proposta de ensino da música, tendo como foco o princípio da totalidade. Ademais, busca-se descrever os processos de aprendizagem nos quais as crianças que fizeram parte

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do estudo estiveram envolvidas, relatando de que maneira a metodologia do sistema é utilizada na aplicação das atividades propostas e de que maneira este aspecto influencia no seu desenvolvimento musical.

Para esta investigação, foram planejadas 06 (seis) aulas de musicalização infantil, com crianças brasileiras entre 06 e 08 anos de idade. A pesquisa tem como delineamento metodológico a pesquisa quase-experimental. Assim, o recorte deste trabalho busca verificar a aplicação deste sistema, de acordo com dois pontos de vista: 1) com o foco no próprio sistema e 2) com o foco nas crianças.

O primeiro aspecto abordado fixa-se em atividades que compreendem o sistema e a sua metodologia, nas quais busca-se responder às questões: quais atividades utilizar com as crianças observadas e como utilizá-las no contexto de uma aula de musicalização infantil. Nesse caso, os dados coletados são apresentados no trabalho de maneira qualitativa e descritiva, pois envolvem a observação direta não participante dos vídeos das aulas.

O segundo ponto de vista abordado é a aprendizagem musical das crianças seu desenvolvimento cognitivo/musical. Nessa etapa, durante a observação das 06 aulas nas quais os conteúdos foram aplicados por um professor especialista, procura-se avaliar a performance e o desempenho das crianças enquanto participantes ativas das aulas observadas, de acordo com as variáveis dependentes desta investigação. Como forma de validação destas observações, foram convidados três juizes externos especialistas, que, também por meio da observação direta dos vídeos das aulas 01 e 06 – o teste A e o teste B do estudo – responderam a um questionário em que valoram os mesmos aspectos observados nas variáveis dependentes do estudo.

A investigação pretende responder algumas perguntas, a citar: a) Quais as vantagens e desvantagens de se utilizar a metodologia do sistema Orff/Wuytack para o ensino dos conteúdos musicais tais como a aquisição melódica e rítmica? b) Como se dá a relação entre o ensino e a aprendizagem musical através do princípio de totalidade presente no sistema Orff/Wuytack? c) É possível estabelecer critérios que possibilitem compreender a relação entre o aprendizado musical e o desenvolvimento musical das crianças observadas? d) De que maneira o sistema Orff/Wuytack entende a questão do desenvolvimento e da aprendizagem musicais?

Ao final desta investigação, é possível a descrição de algumas conclusões referentes às análises dos vídeos, e que certamente podem contribuir de forma direta à prática docente em educação musical.

Com relação ao conceito de totalidade, fica claro, na análise dos vídeos, que a consciência do todo é um aspecto muito importante para o processo de aprendizagem musical, já que é através dela que o aluno desenvolve-se musical e cognitivamente. Da mesma forma, a inter-relação entre as formas de expressão parece favorecer o aprendizado tanto rítmico quanto melódico. A utilização da expressão corporal, por meio das diferentes possibilidades de expressão facial, do jogo de substituição das palavras por gestos corporais ou até mesmo da simples movimentação corporal, contribui tanto para a aquisição das

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atividades propostas quanto para o desenvolvimento de uma memória musical. Igualmente, a utilização da expressão verbal - falando ou cantando um determinado ritmo, por exemplo – parece contribuir não apenas na memorização de uma determinada letra, mas também na aquisição de outros elementos da música, como o ritmo e a dinâmica.

Por sua vez, é evidente que a totalidade pode ser uma boa estratégia para atrair a atenção das crianças, já que fica visível, nas análises dos vídeos, que as crianças demonstraram um especial interesse quanto à exploração do próprio corpo – no ato de virar e girar da aula 03, por exemplo – e da própria voz.

Por outro lado, é possível concluir que as atividades mais bem sucedidas correspondem àquelas que apresentaram um resultado musical concreto ao seu final, sugerindo aos alunos uma sensação de dever musical cumprido. Entretanto o que interessa ao sistema aqui estudado é o processo e não os efeitos, apesar do fato de que os alunos perceberam o processo ao final da atividade, juntamente com o resultado da mesma.

Outra reflexão acerca das análises dos vídeos demonstra que a natureza lúdica e bem humorada das aulas é um aspecto pertinente à educação musical e que, de acordo com o sistema aqui estudado, deve ser considerado na aplicação de determinada atividade musical.

Com relação aos processos de aprendizagem e desenvolvimento musical, fica evidente que há uma força colaborativa do grupo para a aprendizagem coletiva de música e que esta influencia diretamente no processo de aquisição de um determinado aspecto musical. Daí a importância de um envolvimento ativo dos alunos frente ao seu aprendizado musical, já que tudo pode ser ensinado a todos, e todos colaboram entre si para a aprendizagem do grupo.

Apesar de não ser o foco da presente investigação, há algumas conclusões também com relação à postura do professor em sala de aula. Destaca-se, nesse sentido, a importância de uma correta instrução, principalmente com relação ao espelhamento (lateralidade), e, portanto, de uma coerência entre a instrução verbal e instrução visual. Notou-se que atividades mais simétricas também são mais eficientes para a assimilação de um determinado conteúdo. Por outro lado, uma aula de música não pode ter um caráter diretivo o tempo todo. O professor deve deixar claras as instruções – principalmente quando na imitação – mas deve saber permitir que o aluno se expresse através do seu corpo, da sua voz e da música.

Do ponto de vista do comprometimento dos alunos com a aula de musicalização, o desafio pode ser uma boa estratégia de motivar as crianças, tornando-se muito importante, na medida em que aumenta a atenção e o interesse dos alunos para a realização de uma determinada atividade.

Com relação à aquisição de habilidades musicais, ficou claro na análise dos vídeos que os aspectos rítmicos foram mais acessíveis às crianças, se comparados aos aspectos melódicos. Com relação à aquisição melódica, observou-se uma grande dificuldade com relação à afinação precisa das notas de uma determinada canção. Entretanto, ficou

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evidente que na maioria das atividades trabalhadas, os alunos conseguiram perceber o contorno melódico das canções, já que se trata de “[...] um dos elementos mais óbvios de uma melodia a se manter invariável em todas as instâncias.” (DOWLING apud HARGREAVES & ZIMMERMAN, 2004, p.256). Portanto, na aplicação do sistema aqui estudado, há uma valorização do contorno melódico muito antes de uma precisão quanto à afinação da melodia.

Com relação à performance instrumental à imitação, foi possível destacar, após a análise dos vídeos, três conclusões: 1) os instrumentos Orff são fascinantes para as crianças. Nesse sentido, permite-se a livre experimentação dos mesmos para que os alunos possam habituar-se com a prática instrumental, com o correto manuseio das baquetas e com uma boa postura frente ao instrumento. Esse processo ocorre anteriormente à imitação, que visivelmente exige das crianças um grau de concentração muito maior; 2) o espaço físico utilizado pelos instrumentos não pode comprometer o espaço destinado ao movimento, aspecto bastante observado nas análises dos vídeos; 3) tanto na performance instrumental quanto nos processos de imitação, há a necessidade de um pulso bem definido, podendo este ser executado pelo professor por meio de um instrumento harmônico (violão ou piano, por exemplo).

Ao final dessa análise, fica claro que na prática instrumental/vocal, a maior dificuldade encontrada pelos alunos é com relação à performance simultânea de duas ou mais tarefas complexas. Nesse sentido, o professor poderá encontrar duas possibilidades para resolver este impasse: a) adaptar a atividade às possibilidades da turma que está trabalhando, subtraindo elementos, ou b) após todos aprenderem tudo, dividir a turma em grupos para que cada grupo execute uma parte da atividade – melodia, acompanhamento instrumental, gesto, movimento, etc.

Estabelecendo uma relação entre a análise dos dados e a fundamentação teórica deste estudo, afirma-se que o desempenho musical das crianças também pode ser aprimorado de acordo com as qualidades dos estímulos externos mediados pelo professor, e pelo ambiente de aprendizagem (físico/social) no qual a criança está inserida. Dessa forma, o princípio da totalidade pode contribuir para a aquisição de habilidades musicais, já que este compreende aspectos extramusicais para a aprendizagem, como a voz falada e o movimento corporal. Ao final desta investigação, concluiu-se que a relação ensino/aprendizagem musical pode ser mais eficiente quando relacionada também à outras formas de expressão não puramente musicais.

Do ponto de vista da aprendizagem, ficou claro que as crianças aprendem quando estão ativas no processo de aprendizagem. As interações e as forças colaborativas entre os alunos demonstram que, conforme a revisão e a análise desta investigação, a função do professor, muito mais do que ensinar é motivar e desafiar os alunos a alcançar os seus próprios objetivos musicais, tornando-os autossuficientes para a música e para o fazer musical. A pesquisa aqui apresentada possibilita o entendimento das características de um sistema de educação musical – o sistema Orff/Wuytack – cuja proposta pretende que se

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aprenda música fazendo música. E fazer música, como pudemos observar, é expressar-se também através dos nossos principais e primeiros instrumentos: o nosso corpo e a nossa voz. Aprender música, portanto, não pode ser analisado apenas da perspectiva musical. Deve propor, em primeira instância, o desenvolvimento geral do ser humano e das suas capacidades artísticas. Ao final desse estudo, sugerimos ao docente em educação musical e ao leitor uma reflexão acerca destes aspectos, aqui discutidos.

Paralelamente, é possível evidenciar algumas correlações entre os tipos de expressões presentes na totalidade e o desenvolvimento de outros tipos de habilidades. Gardner (1997) cita o desenvolvimento motor, o desenvolvimento verbal e, finalmente, desenvolvimento musical.

Enfim, conclui-se que o resultado desta investigação poderá apoiar estudos posteriores, frente à necessidade da criação de uma bibliografia em língua portuguesa, que discorra sobre a psicologia do desenvolvimento cognitivo e da aprendizagem musical. Ademais, este estudo também divulga o sistema aqui apresentado, na tentativa de apresentá-lo à comunidade acadêmica brasileira e, principalmente, aos professores de música interessados em refletir acerca das questões aqui apresentadas. Dessa forma, o texto acima possivelmente beneficiará a prática docente em educação musical, bem como aos demais interessados em pesquisar e estudar fenômenos relativos à psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem musical infantil. Acredita-se, por fim, que este trabalho não encerra o assunto aqui abordado, mas traz à discussão inúmeros aspectos que podem – e devem – continuar sendo discutidos e aprofundados em investigações posteriores.

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ARTE, ATUALIDADE E ENSINO

EDUCAÇÃO MUSICAL NA DISCIPLINA DE ARTEPerspectivas curriculares paranaenses

Daiane Solange Stoeberl da Cunha6

Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade. (Paulo Freire)

É sempre pertinente a persistência em pesquisar, analisar e discutir caminhos

para o ensino de arte. A busca de uma compreensão sobre este campo de atuação

docente e artística exige a constante autocrítica e a reflexão sobre as práticas docentes

em Arte, paralelamente às suas implicações e perspectivas, permitindo um olhar crítico e

transformador, de tal forma que, o que se realiza nem sempre é considerado o melhor, ou

ainda a única possibilidade de ação. A flexibilidade da ação educativa é resultado de uma

prática docente democrática.

Assim, os desafios para compreensão da relação sonoro-visual-corporal em

sala de aula, pretendida neste trabalho, suscitam reflexões a partir da própria trajetória

da pesquisadora, que tem se proposto a discutir a educação musical escolar, focando

principalmente nas práticas docentes. Esta discussão é emergente tanto no conhecimento

artístico quanto no pedagógico. Assim, esta pesquisa busca caminhos para o fazer

pedagógico em Arte na escola, focando as questões relativas ao currículo.

De acordo com QUEIROZ (2008, p. 34):

[...] diferentes pesquisas da área de educação musical, principalmente as que se inter-relacionam com abordagens da etnomusicologia, da antropologia e afins, têm demonstrado que cada cultura modela os seus processos de ensino e aprendizagem de acordo com os seus próprios ideais e valores, consolidando situações e contextos múltiplos para a transmissão dos saberes relacionados ao fenômeno musical.

6 Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná (2006), graduação em Pedagogia pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (2003) Docente de música no Departamento de Arte-Educação da Universidade Estadual do Centro-Oeste - UNICENTRO desde 2008. Bolsista Cnpq como coordenadora do PIBID-Arte. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Musical, atuando principalmente nos seguintes temas: educação musical, formação e práticas docentes e teoria crítica.

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Uma afirmação em comum entre as diferentes propostas de ensino de Arte do século XX e XXI, é a de que a experiência se dá a todo instante e que o tipo de vivência artística, formal e/ou informal, proporcionada ao aluno será fundamental para o seu desenvolvimento, pois a aprendizagem perpassa a experiência, na qual o sujeito é multisensorial, de forma que, tanto a sonoridade quanto a visualidade e a corporeidade são simultaneamente percebidas.

Pesquisas realizadas no Brasil mostram a diversidade de olhares em relação à arte na escola, diferentes percepções sobre o ensino específico de cada linguagem artística e/ou concepções integradoras das artes. Outras pesquisas revelam a diversidade de olhares em relação à arte nas escolas, em relação ao específico da educação musical: ARROYO, 2004; BEINEKE, 2000; DEL BEN, 2001; PENNA, 2005, FONTERRADA, 2005; SOUZA, 1995; LOUREIRO, 2003; SWANWICK, 1999.

Toda reflexão sobre práticas pedagógicas envolve também fatores sociais e políticos. Em relação ao ensino de Arte, é imprescindível que tenhamos em vista o que apresenta a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) Lei nº 9.394/96 - na qual educação artística foi substituída pelo ensino de arte, que, de acordo com o Artigo 26, parágrafo 2º da referida Lei, passa a ser considerado obrigatório: “O ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos.” Ainda que, com a inclusão do 6º parágrafo a partir de agosto de 2008, esta mesma lei assegure que “A música deverá ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do componente curricular de que trata o § 2º deste artigo” (BRASIL, 2009) a arte continua sendo considerada uma área de conhecimento única a ser incorporada obrigatoriamente no currículo brasileiro em todos os níveis da Educação Básica.

Na LDBEN anterior nº 5.692/71, a arte havia sido incluída no currículo escolar com o título de Educação Artística, considerada, porém, como atividade educativa e não como disciplina, ou área de conhecimento. Sem que houvesse maiores direcionamentos para estas atividades, dentro de uma perspectiva tecnicista, enfatizou-se o ensino das artes visuais em detrimento da dança, da música e do teatro. A consequência foi a perda da qualidade dos saberes específicos das diversas formas de arte, dando lugar a uma aprendizagem reprodutiva. “Com a constituição do movimento arte-educação, multiplicaram-se os encontros, os professores se organizaram em entidades, buscando nova orientação para o ensino da arte.” (FONSECA, 2010, p.15).

A atual LDBEN, n. 9394/96, significou um avanço para a área. Em primeiro lugar, pôs fim a discussões sobre o eventual caráter de não obrigatoriedade. Em segundo lugar, a denominação de Educação Artística é substituída por Ensino da Arte ficando assim, pavimentado o caminho para se identificar a área por Arte, não mais entendida como uma atividade, um mero fazer por fazer, como acontecia no tecnicismo, mas como uma forma de conhecimento. Em terceiro lugar, há a responsabilibdade estatal em relação ao curriculo: cita-se o Art. 8º, inciso 4, da referida Lei “A União incumbir-se-á estabelecer, em

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colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum.” (BRASIL, 2009).

Outro documento, componente curricular nacional de grande importância para os encaminhamentos teórico/pedagógicos, foi os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL, 1998), por sua vez, contemplam a área de arte, dando-lhe mais abrangência e complexidade. Embora não façam parte do currículo prescritivo, pois não apresentam caráter de obrigatoriedade, os Parâmetros Curriculares Nacionais servem como pressuposto norteador na elaboração de planos e projetos pedagógicos nas escolas das redes pública e privada, em todos os níveis de ensino.

As tendências pedagógicas que estabeleceram a história da educação, não só no Brasil, influenciaram diretamente na educação musical. As políticas governamentais estabelecem a educação a ser realizada. Como exemplo disso estão em uso os PCN, Parâmetros Curriculares Nacionais, e o Referencial Curricular para a Educação Infantil - RCNEI (BRASIL, 1997), que trazem a fundamentação do trabalho pedagógico e orientam a práxis educativa, inclusive na música.

O Ministério da Educação, em 1998, editou e distribuiu para as escolas de nível fundamental os PCN’s, Parâmetros Curriculares Nacionais, os quais, orientam cada área do conhecimento nas oito séries do ensino fundamental: língua portuguesa, matemática, conhecimentos históricos e geográficos, ciência, língua estrangeira, educação física e artes. Além disso, são apresentados os temas transversais que se articulam com as disciplinas e são: ética, saúde, meio ambiente, pluralidade cultural e orientação sexual.

Os objetivos desse documento são muito amplos, pois abrangem desde orientações para as escolas, de como montar seus currículos e ensinar seus alunos, até a elaboração de projetos educativos, a formação continuada do professor, sugestões de atividades práticas de aula, os conteúdos e a produção de material didático, as avaliações das escolas e dos alunos. Para que esses objetivos se tornem viáveis, é preciso considerar a realidade concreta, que se caracteriza por desigualdades sociais. Contudo, por se constituírem uma referência de abrangência nacional e oferecer parâmetros a serem observados em todos os fazeres escolares, cabe, tanto ao PCN quanto ao RCNEI, a válida crítica de SOUZA (1995, p. 28) “Isso sugere que o governo federal parece não abrir mão de uma proposta centralizadora, através da qual poderá gerenciar as ações educativas nas escolas e salas de aula, os conteúdos de livros didáticos e a formação de professores”.

Dentre as oito áreas abrangidas pelos PCN’s, está a Arte, que inclui a Música como uma das quatro linguagens artísticas, assim como o teatro e a dança. Os PCN’s relatam a história da arte na educação brasileira e caracterizam o fazer artístico, além de explicitarem a concepção de arte e de cultura subjacente a tal proposta. Neles, são apontados os conteúdos da música divididos em três eixos norteadores: experiências do fazer artístico (a expressão e comunicação, improvisação, composição e interpretação), experiências de fruição (a apreciação) e a reflexão.

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É importante ressaltar que a presença da música como conteúdo curricular não garante, obrigatoriamente, uma mudança de atitude, como afirma Loureiro:

Apesar de todas essas dificuldades, o momento é de mudanças, sendo propícia a retomada da música nas escolas, em virtude da filosofia humanística que orienta os Parâmetros. Ao lado disso, tanto a escola quanto a sociedade brasileira caminham nessa direção. (LOUREIRO, 2003, p. 77)

A Pedagogia Musical Contemporânea é muito diversificada: a música está em toda parte, a diversidade de estilos e gêneros musicais é vasta, há um grande número de pesquisadores nessa área, o ensino musical não possui uma característica única e concretiza-se pela variedade de métodos e processos empregados. Já na década de 80 a percepção de síntese já perpassava as análises. Para GAINZA (1988, p. 112)

Se tivesse que sintetizar, empregando apenas uma palavra, a essência desse rico e interessante período que atravessa a pedagogia musical elegeria o conceito de INTEGRAÇÃO, pois no meu entender o momento que estamos vivendo é de adição e de síntese, mais que de descoberta; música e sociedade, música e tecnologia, música e ambiente acústico, música e educação artística, educação geral, educação pré-escolar, educação permanente. (grifo no original)

Em todo o Brasil, atitudes transformadoras acontecem lentamente, cada atitude,

mesmo que isolada, contribui para que iniciativas sejam tomadas, portanto, são ações de

caráter político e também pedagógico.

As ações em prol de uma educação musical, que objetivem a formação mais humana,

mais crítica e atuante, não podem distinguir-se como política ou pedagógica isoladamente,

elas abrangem os planejamentos curriculares em âmbitos maiores e também os planos

de atividade em cada sala de aula: as leis, os projetos governamentais, os referenciais e

parâmetros, a formação do professor, os recursos materiais, o espaço e, também, a prática

docente e discente, a relação professor-aluno, o acompanhamento pedagógico, etc. Isso

tudo faz parte do processo formativo no qual o aluno é inserido.

O encaminhamento dado em cada um dos aspectos do processo formativo é o

que mais difere entre cada realidade educativa, e é o que determina o tipo de formação

que se oferece ao educando. Dessa forma, pode-se dizer que a prática educativa, em seus

inúmeros aspectos, caracteriza-se como formação reprodutiva ou emancipatória.

O que se quer focalizar aqui é a prática docente. Nota-se que, na história da educação

musical do Brasil, algumas iniciativas abrangeram a formação docente, contudo, ela sempre

esteve relegada ao segundo plano. A prática docente determina a qualidade da educação e,

para que haja bons educadores, é necessário investir-se na formação docente, de tal forma

que, mesmo em condições desfavoráveis à educação musical emancipatória, o professor

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seja capaz de intervir na sociedade e formar pessoas críticas e conscientes. Como observa Paz (2000, p. 11):

[...] as mudanças na pedagogia musical eclodiram rapidamente, implicando o repensar e a revisão de toda uma prática musical até então desenvolvida. Não é possível reformular a prática musical sem conhecer bem as novas descobertas e aquisições. Em música, poderíamos dizer que não há reformulação sem uma grande vivência e experiência do novo, sem um sério questionamento das idéias. Infelizmente, não é o que vem acontecendo por aí: basta observar-se os currículos dos cursos de música para se verificar o descompasso em que as coisas se dão.

No âmbito curricular nacional, analisamos a iniciativa de alguns Estados em produzir referenciais curriculares próprios como é o caso do Paraná que entre os anos de 2004 a 2008 realizou diferentes ações num longo processo de discussão coletiva, que envolveu os professores da Rede Estadual de Ensino e, assim, foram construídas as Diretrizes Curriculares da Educação Básica do Paraná (DCE) as quais se apresentam como fundamento para o trabalho pedagógico nas escolas deste estado. Como se pode ler:

Assumir um currículo disciplinar significa dar ênfase à escola como lugar de socialização do conhecimento, pois essa função da instituição escolar é especialmente importante para os estudantes das classes menos favorecidas, que têm nela uma oportunidade, algumas vezes a única, de acesso ao mundo letrado, do conhecimento científico, da reflexão filosófica e do contato com a arte [...] currículo como configurador da prática, produto de ampla discussão entre os sujeitos da educação, fundamentado nas teorias críticas e com organização disciplinar é a proposta destas Diretrizes para a rede estadual de ensino do Paraná, no atual contexto histórico (PARANÁ, 2008, p.14, 19).

As Diretrizes (DCE) compõem 14 cadernos diferenciados abordando separadamente as disciplinas curriculares: Arte, Biologia, Ciências, Educação Física, Ensino Religioso, Filosofia, Física, Geografia, História, Língua Estrangeira Moderna, Língua Portuguesa, Matemática, Química e Sociologia. Nestes cadernos estão contemplados o texto “Educação Básica” e a opção pelo currículo disciplinar, que discorre principalmente sobre a concepção de currículo para a Educação Básica paranaense. A DCE específica para cada disciplina e, no anexo ao final do caderno, os conteúdos básicos construídos e sistematizados pelas equipes disciplinares do Departamento de Educação Básica. Nesta tabela os conteúdos são organizados por séries e devem ser tomados como ponto de partida para a organização da proposta pedagógica curricular das escolas.

Se a presente pesquisa considerasse somente os documentos legais e os aportes teóricos como única fonte para a análise do ensino da Arte e da Música, seria um estudo parcial. Acreditando que a compreensão da realidade é muito mais eficaz quando os sujeitos são ouvidos, passamos para os dados coletados realizadas por meio de questionários e entrevistas. Pois

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[…] a intencionalidade e o sentido de toda investigação educativa é a transformação e o aperfeiçoamento da prática. […] Dessa forma, o conhecimento que se pretende elaborar neste modelo de investigação encontra-se incorporado ao pensamento e à ação dos que intervêm na prática, o que determina a origem dos problemas, a forma de estudá-los e a maneira de oferecer a informação. (GOMEZ; SACRISTÁN, 2000, p. 101).

Buscamos, por meio desta análise qualitativa dos dados, apresentar os encaminhamentos teóricos e práticos, apresentados na fala dos sujeitos da educação formal em Arte.

Com a palavra: os sujeitos do ensino da Arte

A fim de compreender de forma real o desenvolvimento da disciplina de Arte no Estado do Paraná, mais especificamente no município de Guarapuava-Pr, tomou-se como foco de investigação o ensino de Arte nas escolas Estaduais, as quais oferecem a segunda fase do Ensino Fundamental e o Ensino Médio. Paralelamente, apresentamos as informações fornecidas em entrevista semi-estruturada realizada com a professora Coordenadora Pedagógica e Coordenadora da área de Arte do Núcleo de Guarapuava (NRE-Guarapuava) como também os dados coletados na aplicação de questionários, à 15 (quinze) professores de Arte atuantes no NRE-Guarapuava, contendo seis questões discursivas sobre a temática da pesquisa.

Primeiramente, a necessidade de entrevistar a referida coordenadora, veio pelo vislumbramento da possibilidade de abordar o ensino da Arte pelo olhar de quem organiza, acompanha e participa de todas as transformações pedagógicas advindas tanto da Secretaria Estadual de Educação quanto dos próprios professores de Arte. Assim, a entrevista conteve questões que possibilitaram compreender o processo de implementação das DCE no NRE-Guarapuava, a partir do olhar que esta professora adquiriu frente ao trabalho na coordenação da área de Arte. De acordo com GOMEZ; SACRISTAN (1998, p. 109) uma das formas de coletar dados é pela “[...] entrevista com diferentes segmentos ou grupos diferenciados que participam na vida da escola. Seu objetivo prioritário é captar as representações e impressões subjetivas, mais ou menos elaboradas dos participantes, a partir de sua própria perspectiva”.

A entrevista realizada no ano de 2010, apresentou como eixo as seguintes temáticas: implementação das DCE; posicionamento dos professores frente a este currículo; planejamento; reuniões pedagógicas; utilização do livro didático público; formação continuada, as quais serão apresentadas e analisadas na sequência, juntamente com os dados coletados nos questionários respondidos pelos professores.

Os questionários que compõem os instrumentos de coleta de dados da presente pesquisa, complementam a compreensão sobre as práticas educativas, principalmente no

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que se refere às representações destes professores à respeito da educação musical presente, ou ausente, no ensino da Arte. Tais questionários foram enviados, por correio eletrônico, como também pela Coordenadora Pedagógica do NRE- Guarapuava, a aproxidamente, 80 (oitenta) professores de arte deste núcleo, os quais foram convidados a responder este instrumento. Entretanto, apenas 15 (quinze) professores responderam e enviaram o questionário para análise. Considerou-se este número de questionários suficiente para a análise proposta, pois sendo esta pesquisa de cunho qualitativo têm-se os dados coletados em cada questionamento como manifestação pessoal em relação às práticas educativas, não havendo a intenção de generalizar os dados e nem realizar análises estatísticas. Assim, foca-se no posicionamento pessoal dos professores frente as seguintes temáticas: ensino de Arte versus ensino específico das linguagens; a organização dos conteúdos nas Diretrizes Curriculares Estaduais; planejamento pedagógico frente aos conteúdos específicos da Arte; perspectiva sonoro-visual-corporal no ensino musical.

Em relação ao perfil dos sujeitos que participaram da pesquisa tem-se os dados do cabeçalho do questionário. Primeiramente em relação à formação acadêmica: dentre os 15 professores que responderam o questionário, 2 (dois) são formados em Pedagogia, 7 (sete) em Arte-Educação, 1 (um) em Educação Artística- Desenho Geométrico, 1 (um) em Letras e 4 (quatro) são graduandos de Arte-Educação. Sobre a atuação docente no ano de 2010: todos os 15 (quinze) atuam nos níveis de Ensino Médio e na segunda fase do Ensino Fundamental (5ª a 8ª séries), dentre eles apenas 3 (três) atuam também na Primeira Fase do Ensino Fundamental (1ª a 4ª séries) e 1 (um) também é professor de Dança em academia especializada.

Para as análises que se seguem, toma-se como eixo norteador as temáticas abordadas em ambos os instrumentos de coleta de dados: a entrevista com a coordenadora de Arte e os quinze questionários respondidos por professores de Arte do NRE-Guarapuava, sendo que as falas dos sujeitos quando citadas na íntegra são nomeadas simbolicamente pela letra P (abreviando a palavra professor) juntamente com a numeração dos questionários de 1 a15, respectivamente aos 15 questionários respondidos.

As Diretrizes Curriculares do Paraná

No Estado do Paraná, como visto anteriormente, a educação básica possui pressupostos curriculares específicos, diferenciando-se de outros estados nacionais que sem possuírem um documento estadual organizam suas práticas a partir do PCN. Em relação ao ensino da Arte, nesta perspectiva curricular estadual, faremos algumas reflexões importantes, primeiramente em relação à construção e implementação desta diretriz.

A produção e implementação das DCE ocorreu de forma coletiva, como nos informou a Coordenadora de Arte entrevistada, os professores participaram da construção das Diretrizes, desde 2003, assim, quando chegou às escolas em 2008 para ser aplicada teve boa aceitação.

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Nota-se, na entrevista realizada com a coordenadora de arte, que o processo de elaboração das Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná, da forma como ocorreu, promoveu o envolvimento dos professores a ponto de eles compreenderem que este documento não é impositivo, e sim colaborativo. A própria Diretriz expõe o processo de elaboração coletivo:

Agradecemos de modo especial aos professores das escolas da Rede Estadual de Ensino que desde 2003 participaram dos eventos promovidos pela Secretaria de Estado da Educação, contribuindo com a elaboração dos textos das Diretrizes Curriculares. Esses professores enriqueceram as discussões sobre teoria e ensino da sua disciplina, fizeram leituras críticas das diversas versões preliminares das DCE enviadas às escolas nas semanas pedagógicas e enviaram seus pareceres para que os textos pudessem ser aprimorados. Da mesma forma agradecemos o trabalho dos professores dos Núcleos Regionais de Educação e dos departamentos pedagógicos da SEED que ao longo deste processo coordenaram as discussões e sistematizaram os textos até chegarmos a estas Diretrizes Curriculares, agora oficialmente publicadas. (PARANÁ, 2008).

A Diretriz facilitou a construção do Plano de Trabalho Docente (PTD), na metodologia, nos conteúdos na avaliação, por ter informações claras, pois a diretriz norteia o Plano de Trabalho Docente, os Programas e as Propostas. (Coordenadora de Arte)

A organização curricular no Paraná ocorre em diferentes etapas: primeiramente em âmbito nacional e de forma prescritiva a LDB 9394/96 e suas alterações, revogações; na sequência em âmbito estadual como currículo norteador as Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná; no âmbito escolar Projeto Político Pedagógico e a Proposta Pedagógica Curricular; no âmbito docente como Currículo Planejado o Plano de Trabalho Docente, ressalta-se, portanto, que conforme afirma SACRISTÁN (2000) ainda há o currículo em ação, o qual ocorre efetivamente na sala de aula, e será melhor compreendido nesta pesquisa ao analisarmos os dados coletados nos questionários junto aos professores de Arte em relação às suas práticas docentes. Ainda há o currículo avaliado concretizado nas Provinhas Brasil e no ENEM, que são mecanismos de avaliação nacional do desenvolvimento da educação básica, os únicos que contemplam os conteúdos de Arte. E, por fim, não se pode ignorar o currículo oculto, na definição de Apple como um conjunto de normas e valores implícitos e efetivamente transmitidos pela escola, embora não constem dos fins e objetivos programados pelos professores. (APPLE, 1982).

Partindo desta compreensão teórica sobre a organização do currículo escolar, ressalta-se que o planejamento curricular em muito influencia nas práticas de ensino efetivadas em sala de aula, pois, estas partem do planejamento. Sendo assim, é positivo o fato de haver aceitação por parte dos professores no que se refere à utilização dos pressupostos teórico-metodológicos apresentados nas Diretrizes.

A boa aceitação das Diretrizes pelos professores de Arte do Estado do Paraná, se

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deve principalmente à carência de livros e propostas pedagógicas que os orientem de forma prática. “Agora, tanto a metodologia, quanto os conteúdos são abordados enquanto disciplina curricular.” (Coordenadora de Arte).

Ao se analisar as respostas dos quinze professores na questão “Qual a sua opinião em relação à organização dos conteúdos nas Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná – Arte?”, nota-se que há diferentes opiniões.

Expõe-se, primeiramente, as opiniões de cinco professores que apresentam aspectos negativos quanto às Diretrizes, como o desconhecimento dos conteúdos “Os professores deveriam ter mais contato com a organização dos conteúdos, não há cursos suficientes para que seja trabalhado como deveria ser.” (P3); inflexibilidade no planejamento “[…] penso que de certa forma acaba deixando o professor muito preso a um documento.” (P6); não compreensão da proposta “Considero a atual organização dos conteúdos da DCE do nosso estado confusa e sem a conexão de interdisciplinaridade entre as áreas da Arte.” (P11); falta de credibilidade “Elas são boas, porém por algumas vezes elas não funcionam quando aplicadas na prática.” (P14), “Não discordo dessa organização, mas acredito ser possível trabalhar a teoria de cada linguagem de maneira separada na prática juntas alcançamos o que a própria diretriz propõe sobre a diversidade de criação e desenvolvimento do pensamento crítico.” (P9).

Em relação à mesma questão observa-se posicionamentos positivos por parte de dez professores a respeito das diretrizes paranaenses: quanto à construção das DCE “As DCEs foram construídas com a participação dos professores da rede, trouxe uma nova organização pedagógica nas questões disciplinares.” (P5); quanto à organização dos conteúdos “Se todos os professores aplicassem o conteúdo descrito nas diretrizes, o processo de aprendizagem seria mais rápido e os benefícios estariam acontecendo. Sabemos que tudo leva tempo, é um processo de transformação no ensino brasileiro e que precisamos de professores com propósitos firmes para levar adiante estes conteúdos.” (P8), o Professor M faz uma observação em relação à utilização das DCE “[…] o professor não deverá limitar-se somente àquela tabela, pois ela vem a ser um auxílio na organização dos conteúdos e não a aula em si, visto que, quem encaminha e prepara a aula é o professor.” pensamento este que vai ao encontro do que afirma o professor N “[…]o professor precisa pensar para além das DCE, para que o ensino-aprendizagem torne-se significativo.”; quanto à flexibilização “[…] desde que eu entrei no corpo docente do Estado, já passou por diversas modificações, […] abertura a cerca das opiniões e críticas a ela.” (P10).

Plano de Trabalho Docente

O Plano de Trabalho Docente (PTD) é o planejamento individual dos professores, que deve ser elaborado por série, norteado pelas DCE. Em 2010, no NRE-Guarapuava, a pedido de vários professores, como comentou um dos professores questionados “[…] resolvemos expor a nossa preocupação à coordenadora de Arte do NRE-Guarapuava […]

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começamos a elaborar os novos conteúdos de Arte. Esta reestruturação se torna realmente necessária para a maior orientação dos professores de Arte.” (P 11) Para este planejamento foram realizadas três reuniões técnicas de Arte nas quais, discutiu-se sobre a organizar, dos conteúdos de Arte: “Houve a discussão, na qual pudemos organização sequencialmente, o plano de trabalho docente em nível de núcleo” (Coordenadora de Arte). Para estas reuniões foram convidados tanto os professores que fazem parte do quadro de efetivos (QPM - Quadro de Professores do Magistério), quanto os professores não concursados, contratados pelo processo Seletivo Simplificado (PSS). Dentre estas reuniões, duas foram destinadas às discussões sobre o Plano de Trabalho docente e a terceira teve como pauta inúmeros assuntos, tais como: conteúdos de Arte, eventos da SEED, formações continuadas e capacitações, planos de Trabalho Docente, matérias de Arte advindos da SEED, obrigatoriedade da música na escola, entre outros.

Como instrumento de coleta de dados, realizou-se observação da segunda reunião de planejamento do Plano de Trabalho docente, na qual se pode notar, o envolvimento dos professores e dedicação na busca de compreensão dos objetivos em comum, das diferentes metodologias adotadas por cada professor. Foi possível compreender, nesta observação, que há diferentes perspectivas de ensino da Arte, assim como há diferentes formações acadêmicas. Os professores posicionam-se de forma heterogênea, no entanto, este fato não impediu que chegassem a um único Plano de Trabalho Docente, no qual decidiram por selecionar e excluir conteúdos, organizando-os sequencialmente. Para a Coordenadora de Arte “Houve avanços em relação aos anos anteriores, as reuniões foram muito positivas, com reivindicações com propriedade, e em número de professores, lembro que éramos em 13, no ano de 2005 e em 2011 são cerca de 85. Isso só foi possível pela demanda de formação do Curso de Arte-Educação.”

Ao realizar a observação da reunião realizada pelos professores foi possível acompanhar a elaboração do PTD coletiva, notou-se que não houve um fator determinante na organização cronológica dos conteúdos. A partir da proposta das DCE, que em sua última versão (2008) apresenta uma tabela contendo os conteúdos estruturantes para cada série, foram eleitos ou excluídos aqueles conteúdos que o grupo considerava pertinente a cada série. Entretanto, sem haver uma justificativa plausível e comum a todos para cada escolha. Os posicionamentos a favor da exclusão de conteúdos tomavam como justificativa desde o fato de ser um conteúdo complexo para tal série, ou ainda simplista para outra, até justificativas como, por exemplo, o fato de alguns professores há anos trabalharem determinado conteúdo em uma determinada série e não quererem mudar a partir de agora.

Percebeu-se alguns aspectos positivos nesta elaboração coletiva do PTD, como a possibilidade de iniciar um processo de discussão e compreensão conjunta das práticas realizadas individualmente. Notou-se que em vários momentos houve comentários e observações sobre algumas práticas tradicionalistas realizadas nas escolas, e ainda, críticas em relação ao ensino reprodutivista na Arte. Apontaram-se aspectos que poderiam nortear o trabalho de Arte, como a escolha do ponto de partida ser a arte Contemporânea; a

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focalização dos conteúdos composicionais em detrimento de um ensino historicista da Arte; a relação entre os conteúdos da Arte, ou seja, os conteúdos estruturantes apontados pelas Diretrizes nas diferentes áreas artísticas, Música, Dança, Teatro e Artes Visuais, foi uma das preocupações dos professores, sendo que por vários momentos a organização dos conteúdos foi estabelecida a partir deste critério.

Ensino de Arte ou ensino das linguagens artísticas

Passa-se, agora, para uma reflexão sobre a dicotomia entre a compreensão do ensino de Arte e do ensino específico das linguagens ou áreas artísticas. Como apresentado anteriormente, os encaminhamentos propostos pelas Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná distinguem-se daqueles considerados em todo o Brasil. Tanto a interpretação da LDB, quanto a insubmissão ao PCN, levaram o ensino no Paraná a sua particularização. Primeiramente, destaca-se que nas escolas da rede estadual de ensino a disciplina de Arte, é componente curricular, tendo como conteúdo integrado as diferentes áreas da arte: a música a dança, as artes visuais e o teatro. Desta maneira, as DCE orientam quanto ao ensino das diferentes áreas:

Os conteúdos básicos para a disciplina de Arte estão organizados por área. Devido ao fato dessa disciplina ser composta por quatro áreas (artes visuais, música, teatro e dança), o professor fará o planejamento e o desenvolvimento de seu trabalho, tendo como referência a sua formação. A partir de sua formação e de pesquisas, estudos, capacitação e experiências artísticas, será possível a abordagem de conteúdos das outras áreas artísticas. [...] Neste sentido, pode-se afirmar que apesar da divisão do currículo em disciplinas e da existência de especializações no interior da disciplina de Arte, deve-se trabalhar na busca da totalidade do conhecimento, pois a compreensão profunda da parte e sua relação com as outras partes e a totalidade é o que possibilita uma real apropriação do conhecimento pelo aluno. A formação do professor dará sustentação para elaboração do plano de trabalho e para o desenvolvimento da prática docente, de modo a abordar outras áreas da disciplina de Arte, bem como outras disciplinas do currículo. (PARANÁ, 2008, p. 88).

Diante destes encaminhamentos curriculares, qual é a postura do professor da educação básica diante do ensino da arte, ou ainda, da música, das artes visuais, do teatro e da dança? Nos questionários aplicados aos quinze professores, uma das questões solicitou que estes se posicionassem em relação ao ensino de Arte versus o ensino específico das linguagens artísticas. As respostas versaram principalmente sobre o equilíbrio possível entre estas duas formas de se estabelecer o ensino (P1, P2, P7, P8, P9, P13 e P14). Sendo estes professores de posicionamento voltado mais às práticas de ensino que integram os diferentes conteúdos, ainda que sem ignorar as especificidades de cada área.

Alguns professores expressam que não é possível, ou ainda, positivo considerar os conteúdos como pertencentes a diferentes áreas, pois consideram que a Arte é uma área

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do conhecimento e que nela não se deve dicotomizar as diferentes subáreas. (P10, P11, P12)

Ainda há respostas a esta questão que apontam para a qualidade do ensino voltada para o específico de cada linguagem, apontam para uma maior dificuldade docente quando se trata do ensino interdisciplinar, sendo mais fácil ou correto trabalhar de forma específica.(P6 e P15) Quanto à questão sobre a formação docente, os professores P3 e P4 ressaltaram algumas necessidades para melhoria do ensino de Arte como a formação acadêmica em Arte, melhores condições de trabalho, mais interesse e mais investimento na área. O professor P5 ressalta a importância de os professores de arte possuir formação em licenciatura em Arte, e não uma formação específica em uma das áreas da Arte: “Os professores de arte com formação nas quatro áreas têm proporcionado grandes avanços nas aulas de arte, oportunizando um entendimento ampliado. Mesmo os professores com habilitação específica elogiam a nova proposta de ter na formação as quatro áreas.” Procura-se focalizar as práticas pedagógicas em Arte, tendo em vista os conteúdos específicos de cada área artística, ou seja, busca-se compreender a forma pela qual os professores afirmam organizar suas práticas de ensino da Arte considerando as especificidades de cada conteúdo artístico, e ainda as possíveis relações entre eles. Ao realizar a análise das respostas descritivas dos quinze professores, foi possível estabelecer categorias de análise quanto ao ensino das quatro áreas da arte, música, artes visuais, teatro e dança, são elas: 1) ensino de uma área preferencialmente, 2)ensino das quatro áreas separadamente, 3) ensino da arte buscando a inter-relação das áreas artísticas. A primeira categoria aborda a compreensão de que a disciplina de Arte na educação básica contempla o ensino de uma área preferencialmente, a qual se diferencia da compreensão de ensino de apenas uma das áreas no que tange à preocupação em abordar, ainda que raramente, conteúdos de outras áreas. A segunda categoria permeia o ensino das quatro áreas artísticas separadamente. Este encaminhamento curricular reflete a abertura encontrada nas Diretrizes do Estado quanto à organização cronológica dos conteúdos em cada série. Pois, mesmo havendo o direcionamento da organização dos conteúdos por série, há a possibilidade de flexibilização da organização sequencial destes conteúdos por bimestre, ou ainda de forma simultânea. Assim, ao definir esta categoria identificaram-se as respostas que contemplam a organização do ensino sequencial dos conteúdos de cada área artística separadamente, o que se exemplifica principalmente pela organização bimestral das áreas, sendo respectivamente destinado um bimestre para cada área. A mais ocorrente das categorias, é a que contempla o ensino da arte buscando a inter-relação das áreas artísticas. Ao contrário da organização bimestral dos conteúdos das áreas artísticas separadamente, esta categoria contempla a organização dos conteúdos das diferentes áreas simultaneamente. A coordenadora de Arte, em entrevista relatou:

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A SEED e o NRE orientam que o professor de arte organize seu PTD nas quatro áreas artísticas e desenvolva-as de forma que articule em si os conteúdos programados Assim sendo o desempenho das práticas se dá com a interação das áreas de música, dança, artes visuais e teatro.

Exemplificando este posicionamento dos docentes, optou-se por citar algumas frases destes docentes:

[...] as especificidades dos conteúdos são relativas, encontramos, por exemplo, textura em visuais, música, dança e teatro, assim as práticas pedagógicas se tornam englobadoras (P7).[...] só consegui separar as linguagens dentro da parte teórica, mas na prática isso não funciona. (P9)[...] sempre procuro fazer a conexão entre as áreas da Arte, com outras áreas do conhecimento humano, com os desafios contemporâneos, com a Arte indígena e a Africana, visando e respeitando a vivência cultural e social do educando. (P11)Tentei trabalhar com as linguagens integradas [...] Porém creio que esta prática nem sempre foi compreendida pelos alunos (P13).Trabalho com poéticas de artistas e como essas poéticas se relacionam com os conteúdos específicos das quatro linguagens. (P15)

Ainda na observação da reunião de planejamento do Plano de Trabalho Docente, notou-se que esta foi a padronização construída pelos docentes de Arte do NRE - Guarapuava, no ano de 2010, na qual são organizados simultaneamente os conteúdos das quatro áreas artísticas, de tal forma que se evite o ensino de uma das áreas por bimestre, como antes era realizado.

Considerações Finais

A intenção desta pesquisa, surgiu a partir de questionamentos pessoais sobre as práticas pedagógicas na disciplina de Arte, considerando a atuação da pesquisadora como docente do curso de Arte-Educação na Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO. Há uma emergente necessidade de um olhar sobre a realidade educacional na educação básica e principalmente o foco na postura docente. O desenvolvimento deu-se, primeiramente, pela abordagem documental de aspectos legais e curriculares a respeito do ensino da Arte na Educação Básica, posteriormente realizou-se a aproximação ao campo efetivada pela pesquisa etnográfica e de cunho qualitativo, sendo que os dados coletados nos questionários e na entrevista foram de suma importância para a compreensão da temática pelo viés dos sujeitos do ensino da Arte. Apesar de a pesquisa não ser de cunho quantitativo, algumas análises foram possíveis por meio da categorização das respostas. Uma compreensão sobre os caminhos que educação musical tem percorrido ao longo

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dos anos no Brasil. Principalmente a partir do olhar focado nas leis educacionais, é possível concluir que não é por acaso que professores de arte se deparam com desafios em relação à organização da prática docente frente aos conteúdos de Arte. As práticas docentes estão permeadas, e, são estabelecidas por aspectos teóricos, políticos, econômicos e pedagógicos. Nota-se, com isso, a importância da reflexão e da experiência para a construção do saber profissional numa perspectiva que rompa com as barreiras existentes entre a universidade e a escola, possibilitando a maior reflexão sobre a prática. Muitos dos apontamentos conclusivos foram apresentados no decorrer das análises, portanto ressalta-se que quanto ao ensino das áreas específicas da arte, observou-se que o posicionamento da maioria dos professores questionados é voltado para o ensino geral da Arte, abrangendo assim a música, as artes visuais, a dança e o teatro. Pode-se compreender que há concordância entre o que é proposto pelas diretrizes curriculares estaduais e o posicionamento dos professores. De certa forma, isso revela que dentre os sujeitos questionados não há oposição quanto aos encaminhamentos curriculares dados pela SEED, contudo, por não se tratar de uma pesquisa de amostragem não é possível generalizar estes dados. Entretanto, é possível perceber a influência do caráter da formação docente em relação aos encaminhamentos pedagógicos pois, no perfil dos questionados, dentre os quinze docentes, sete são graduados e quatro são graduandos do curso de Arte-Educação da Universidade Estadual do Centro-Oeste, que em sua estrutura curricular contempla as quatro áreas artísticas. É possível compreender que tanto a formação acadêmica, quanto os encaminhamentos curriculares são determinantes da formação e das práticas docentes, o fator mais relevante na construção do pensamento e das práticas docentes relatadas, diante dos questionamentos sobre o ensino da Arte ou ainda das linguagens artísticas. Os docentes apresentam-se de forma muito mais favorável ao ensino que integre as diferentes áreas das artes, e ainda, posicionam-se de forma positiva quanto a sua atuação na educação musical. Este quadro vem se contrapondo ao apresentado por Liane Hentschke e Alda Oliveira (2000), quando estas afirmam que o fato da maioria dos professores da disciplina de arte ter sua formação concentrada nas artes visuais e tender a manter-se dentro de sua área de conhecimento, é uma das razões para que o ensino de música seja pouco comum no ensino formal. Acredita-se, que a principal contribuição desta pesquisa se efetivou no relato e análise dos discursos dos professores de Arte, e ainda, na reflexão efetivada por estes sujeitos necessária à formulação das respostas. Isso foi possível perceber por meio do item “Avaliação do Questionário” inserido ao final do questionário e respondido em apenas 5 deles, sendo que 1 avaliou o questionário negativamente, apontando para a dificuldade em compreender as perguntas, o que revela falta de conhecimento do docente sobre a temática, sendo que os outros 4 apontaram para aspectos positivos relativos à temática e à estruturação das questões, dentre estas avaliações do questionário optou-se por citar: “O questionário foi de máxima importância para mim, pois fez com que eu revisse meu posicionamento didático, fez com que percebesse de maneira mais profunda a questão das

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linguagens e da música como conteúdo obrigatório e o mais importante fez com que revisse minha postura com atenção.” (P9) Finalizando, ressalta-se que as contribuições desta pesquisa apontam para a necessidade de um posicionamento docente autorreflexivo, além da necessidade de constante estudo sobre o ensino da arte em suas relações teóricas, pedagógicas e políticas e da importante aproximação entre escola e universidade, promovendo o pensar e refletir criticamente sobre as práticas educacionais.

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AMPLIANDO O SENTIDO DA ARTE NA EDUCAÇÃO POR MEIO DA AFETIVIDADE

Ensaio acerca de convergências e divergências nas concepções de desenvolvimento humano

René Simonato Sant’Ana7

Márcia Cristina Cebulski8

Helga Loos9

Conte-me e eu esqueço. Mostre-me e eu apenas me lembro.

Envolva-me e eu compreendo.(Confúcio)

Introdução

Basicamente, intenta-se tratar neste texto a relevância da Arte para a Educação. Contudo, lidar com tal assunto já anuncia, ao se observar as características mais marcantes dessa forma de manifestação humana, certos aspectos capitais para o adequado funcionamento da Arte na Educação. Nesse sentido, a tese que emerge é a de que a Arte se infiltra dinâmica e sub-repticiamente no desenlace do desenvolvimento humano, ao incrementar conexões com os aspectos afetivos e emocionais da condição humana, a qual, por sua vez, reveste-se externamente (realidade concreta) da instrumentalização cognitiva. Defende-se, desta feita, o uso mais apropriado da Arte na Educação, o que exige das formas atuais de ensino uma revisão tanto em nível de convergência da Arte com outras disciplinas – a interdisciplinaridade, o que a eleva aos meandros do desenvolvimento cognitivo do educando – quanto na dimensão de provocadora de expansão da sensibilidade – por exemplo, com a instituição de exercícios catárticos, ou seja, com a promoção da prática artística, a qual comporta igualmente o ensaio do exercício humano de existir, logo promovendo a ética

7 Graduado em Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Educação pelo PPGE/UFPR, linha de pesquisa: Saberes, Cultura e Práticas Escolares. Doutorando em Educação, linha de pesquisa: Cognição, Aprendizagem e Desenvolvimento Humano, como bolsista CAPES. 8 Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e em Educação Artística com habilitação em Artes Cênicas pela Faculdade de Artes do Paraná. Mestre em Educação pelo PPGE/UFPR, linha de pesquisa: Saberes, Cultura e Práticas Escolares. Doutoranda em Educação, linha de pesquisa: Cognição, Aprendizagem e Desenvolvimento Humano, como bolsista REUNI. 9 Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco, linha de pesquisa: Psicologia Cognitiva. Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, área: Psicologia, Desenvolvimento Humano e Educação. Professora do Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação e da Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná.

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e a afetividade num sentido mais amplo: com toda a realidade das coisas, não somente humana. Nessa prática artística sugerida como instrumento de ensino e de desenvolvimento humano, sugere-se aqui, como exemplo, o uso do teatro na Educação. Assim posto o mote deste trabalho, coloca-se como ponto de desenvolvimento das ideias o questionamento da justeza do atual modo de se conduzir a Educação: de fato, vem ocorrendo como objetivo do ensino escolar o desenvolvimento humano integral, como todas as facetas que compõem a condição humana? Não teria a Arte, e exemplos como o teatro na Educação, papel amplamente relevante no desenvolvimento dos educandos, tanto em nível cognitivo quanto de afetividade, o que engloba a ética? Assim, o texto desenvolve-se em uma breve análise do objetivo central do sistema educacional, num primeiro momento, do que se segue a consideração de certa crise nesse sistema e, logo, no próprio ideal de Educação que se converge na contemporaneidade. Na busca de respostas para as aflições expostas, sugere-se rever as noções comuns sobre o papel das emoções e da afetividade, o que convergiria decisivamente para uma igualmente renovada imagem do papel da Arte na Educação. Por fim, adentra-se em perspectivas pontuais da Arte, verificando-se uma de suas peculiaridades mais marcantes, a promoção da catarse, e como isso poderia vir a ser mais bem utilizado como instrumento de desenvolvimento humano. Nesse sentido, amplia-se tal aspecto instrumental com o exemplo do teatro, como arte, na Educação. Espera-se com a exposição de tais reflexões, não exatamente contrapor o atual sistema educacional, mas se colocar em evidência possibilidades que talvez possam ser coerentes e adequadas e que notoriamente vem sendo negligenciadas. Sobretudo busca-se, desse modo, animar o debate sobre o melhor caminho a se traçar para o bom desenvolvimento dos educandos, o humano integral: cognitivo e afetivo.

1 O desenvolvimento humano como objetivo do sistema educacional

A escola é, atualmente, uma das instituições mais importantes do contexto cultural, ao menos no que se refere à forma ocidental de se pensar a cultura. Diferentes governos apontam como uma de suas grandes metas a erradicação do analfabetismo, por exemplo, por meio da frequência às instituições educativas por parte de todos os membros da sociedade.

Conforme Saviani (1992), dentre os principais objetivos da escola estão a formação e socialização dos sujeitos, a difusão da cultura, do conhecimento sistematizado e do pensamento científico. Aqui, salienta-se o primeiro objetivo mencionado pelo autor, a saber, o da formação. O ato de formar ou dar forma está intrinsecamente ligado a um termo que, surpreendentemente, mostra-se pouco presente ou pouco consciente entre a maioria dos educadores quando se trata de definir os propósitos da educação: o desenvolvimento humano.

Nesse sentido, há de se ter em conta o fato de que, entre dar forma a algo e

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desenvolver este algo é imprescindível uma ideia de referência, um ponto de partida: tanto da

forma a se construir quanto do que se quer desenvolver e como. Isto é, torna-se importante

formularem-se bases sólidas para formar e desenvolver os jovens (educandos), bases que se

reportem ao sentido humano existencial: fundamentalmente suas características racionais

e emocionais – predicados para a representação e apresentação de si no e com o mundo.

Por isso, formar e desenvolver sempre tem como mote a preparação para se poder estar

e ser no mundo em condições plenas, autônomas, conscientemente. Afinal, estamos, em

última instância, lidando com a maravilhosa arte de aprender a viver, como já diziam os

Antigos Gregos.

Assim, pode-se avançar e assumir a íntima relação entre educação, formação e

desenvolvimento, conforme pode ser observada nas palavras de Oliveira (2010, p. 74):

A educação escolarizada é uma das instituições sociais mais ativas na formação humana. Sua colaboração no processo de crescimento humano implica em propiciar o desenvolvimento da pessoa integralmente de maneira que ela se torne apta a participar ativamente na sociedade, criando, se relacionando, conhecendo, pensando, sentindo, construindo sua felicidade e contribuindo para a dos demais.

Já a perspectiva de Vygotsky (2004), no que diz respeito às finalidades da educação

formal, corrobora as posições apresentadas acima. Para ele, educar é criar situações nas

quais o indivíduo possa, na interação com outras crianças e adultos, agir sobre o meio para

desenvolver sua inteligência, sua autonomia, sua personalidade, sua afetividade, ou seja,

desenvolver-se em sua unidade/totalidade.

Segundo este autor, o desenvolvimento geral humano se relaciona ao

desenvolvimento das funções psicológicas superiores nos indivíduos. O papel do professor

é, assim, organizar e intermediar a relação do aluno com o meio social, preparando e

orientando as experiências às quais se expõe o aluno. O objetivo da escola, diz ainda,

“[...] não é inocular méritos escolares especiais, seja de que espécie for, mas comunicar

habilidades e hábitos para a vida, que a iniciação à vida é nosso objetivo final.” (VIGOTSKI,

2004, p.68). E sempre aspirando a uma vida excelente, completa o autor.

No fim das contas só a vida educa, e quanto mais amplamente ela irromper na escola mais dinâmico e rico será o processo educativo. [...] Por isso o trabalho educativo do pedagogo deve estar necessariamente vinculado ao seu trabalho criador, social e vital. (VIGOTSKI, 2004, p. 456).

Assim sendo, se o sistema educacional pretende, de fato, contribuir para o

desenvolvimento dos indivíduos que nele adentram, não é por certo somente por meio da

transmissão pura e simples de conteúdos – como frequentemente se vê ocorrer – que tal

objetivo se cumprirá, conforme descrito a seguir.

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1.1 Crise no sistema educacional

Educar, que etimologicamente, significa pôr-se a conduzir, deve levar quem é educado a se conduzir desenvolver num caminho que o torne pleno enquanto o que é: humano – tanto cognitivamente quanto afetivamente. Afinal, o homem nasce necessitado de cuidados, já que, biologicamente, demora a desenvolver suas potencialidades, só vindo mesmo a efetivá-las se for conduzido por alguém: inicialmente pelos pais, depois pelos mecanismos vigentes da sociedade em que está inserido, como as instituições escolares, religiosas, etc.

Contemporaneamente, porém, a Educação, que é feita em grande parte pelas instituições escolares, não atenta a isso como deveria, conforme o que já se anunciou. Prova disso é o disparate entre o anunciado nas leis e políticas educacionais e o que se verifica na tradução desses mecanismos de regulamentação das ações educativas e que se entende como um desenvolvimento integral, abarcando todas as instâncias da vida humana, como a razão e a emoção:

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional/LDBEN (BRASIL, 1996), além de instituir a obrigatoriedade do Ensino Fundamental, estabelece que a educação ‘tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania’ (Art. 2º.). Portanto, para propiciar o desenvolvimento pleno a escola precisa contemplar os aspectos cognitivos, afetivos e sociais do educando, bem como ter objetivo a autonomia do sujeito, sua capacidade crítica, a compreensão de si como agente capaz de transformar a realidade. Contudo, na prática, as escolas tendem a focar o desenvolvimento cognitivo dos educandos e, de certo modo, ignoram os demais aspectos, entre os quais o afetivo. (OLIVEIRA, 2010, p.7).

Isso ocorre, sobretudo, porque vivenciamos um paradigma de privilégio ao conceito de desenvolvimento humano para questões essencialmente materialistas como o mercado de trabalho, a economia e as ciências, em detrimento das questões relacionais e da sensibilidade humana, no que se enquadram, por exemplo, a ética e a arte.

Desse modo, a Educação assume rotinas de encaminhamento do desenvolvimento humano baseada em demandas de apenas certo aspecto da vida: a subsistência material. Disso decorre a condução dos educandos por pedagogias que assumem a meta de inserção no mercado de trabalho, sobretudo, o que culmina no privilégio das ciências e apenas do desenvolvimento cognitivo. Esquece-se, com isso, a importância de se dar o mesmo valor ao desenvolvimento ético, afetivo e sensível dos educandos.

Com esse panorama criado no âmbito educacional, é logicamente discernível que algum tipo de crise assolará o sistema que organiza e projeta a Educação. No caso, o que é o mais plausível, ter-se-á desenvolvido indivíduos defasados quanto ao seu horizonte de desenvolvimento pleno: terão avançado cognitivamente, rumo às ciências e logo no mercado de trabalho, por exemplo, mas deixarão de potencializar suas outras dimensões existenciais, e presentes cotidianamente, como a sensibilidade à grandiosidade da beleza

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das coisas do mundo e das suas relações sociais, no que se necessita, impreterivelmente, de uma noção adequada de ética.

Não se tem isso em adequada conta, podendo-se verificar na realidade social atual grande falta de sensibilidade das pessoas quanto à ética e ao belo e ao que essas facetas que as pessoas e as coisas apresentam significam: a verdadeira dimensão das propriedades de interação e movimento que possuem. Logo, perde-se de vista a criatividade e o discernimento de como o mundo, em sua amplitude maior, num hiperespaço, funciona; o que leva as pessoas, mesmo vivendo com problemas e ranços de hábitos, a não saberem modificar a realidade.

Eis, então, um quadro de crise no sistema educacional, pois este não consegue promulgar o que dele se espera: o desenvolvimento humano integral. Para se buscar resolver tal realidade, então, é preciso revisar alguns valores vigentes dentro do campo da Educação, e, nesse sentido, revisar o que, por exemplo, as disciplinas escolares realmente significam. Uma, em especial, deveria ter maior atenção, conforme essa concepção de necessidade de se subverter o atual estado dos hábitos de ensino. Trata-se da Arte, a qual abarca todos os mecanismos para fazer parte ativa do objetivo bem delineado da Educação: o desenvolvimento humano integral.

2 A Arte como aporte ao desenvolvimento humano integral

A Arte está presente na vida e no desenvolvimento humano há tanto tempo quanto a ideia de instrumentalização, da qual decorre a necessidade de se buscar conhecer o que são as coisas e como fundamentalmente funcionam, ou seja, da premência de se filosofar e, por conseguinte, de se fazer ciência. Assim, tanto a Arte quanto as ciências que perfazem esse caminho de evolução da espécie humana devem ser, em conjunto, o aporte ao desenvolvimento humano integral.

Por isso, podemos inferir que a Arte, com suas representações, suas imagens que nos atingem na consciência ou mesmo inconscientemente, funciona como contraponto daquilo que já se sabe, cientificamente, configurado em técnicas e procedimentos pontuais. Pois, afinal, a realidade é dinâmica, construída de maneira interligada à narrativa histórica, crítica, tornando-se, assim, dramática por definição. Daí que essas imagens que povoam o repertório artístico humano dimensionem o sentido de nossa formação a cada instante de nosso conduzir histórico e, igualmente, a base de nosso desenvolvimento enquanto humanos, seres cognitivos e ao mesmo tempo emotivos, dramáticos por excelência, conforme bem ilustra Debray (1993):

Quer as imagens tenham um efeito de alívio ou venham a provocar selvageria, maravilhem ou enfeiticem, sejam manuais ou mecânicas, fixas, animadas, em preto e branco, em cores, mudas, falantes – é um fato comprovado, desde há algumas dezenas de milhares de anos, que elas fazem agir e reagir. Algumas, que chamamos ‘obra de arte’, oferecem-se complacentemente a contemplar, mas essa contemplação não desvincula do ‘drama da vontade’, como pretendia Schopenhauer, porque os efeitos da imagem são, quase sempre, dramáticos.

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Mas se nossas imagens nos dominam, se, por natureza, são em potência de algo diferente de uma simples percepção, sua capacidade – aura, prestígio ou irradiação – muda com o tempo. Gostaríamos de interrogar esse poder, localizar suas metamorfoses e pontos de ruptura. A história da ‘arte’, aqui, deve apagar-se perante a história do que se tornou possível: o olhar que lançamos sobre as coisas que representam outras coisas. História repleta de ruído e furor, por vezes, relatada por idiotas, mas sempre carregada de sentido. Aí, nada está decidido antecipadamente porque a influência que nossas figuras exercem sobre nós varia com o campo inconsciente partilhado que modifica suas projeções ao sabor de nossas técnicas de representação. (DEBRAY, 1993, p. 15).

Assim a história humana, em seu desenvolvimento, também está contida no

desenvolvimento de cada um nós. Se racionalmente conseguimos discernir sentido e crítica no contexto integral da espécie, sobretudo afetivamente, podemos distinguir significado e vazão na situação subjetiva da erradicação dos indivíduos no mundo, na realidade claramente cheia de interações que nos cerca.

Desse modo, a Arte se torna aporte fundamental para se buscar essas significações e movimentos que dizem respeito ao desenvolvimento humano perante o impacto que a interação com a realidade provoca. Somente um manual pronto sobre como agir e reagir no mundo não funciona, já que, como bem o dizem os físicos, o universo está em constante expansão e criação; logo há, a cada instante, novos dramas a serem perscrutados pelos sentimentos humanos. Igualmente, a cada momento, é preciso adaptar-se e compreender o curso de como devemos nos desenvolver.

E a Arte pode, mesmo deve, preparar-nos em bases que auxiliarão, dinamicamente, no almejado desenvolvimento integral que tanto necessitamos, se o que temos em mente é saber enfrentar os dramas existenciais inerentes a uma realidade tão intensa, tão surpreendente. Claro, nesse sentido, temos de admitir que, sim, estamos numa realidade que é admirável, que espanta; enfim, que necessita da Arte para melhor conduzir, ou seja, educar plenamente.

2.1 A Arte e o sistema educacional

Conforme discutido por Cebulski (2007), Ponce (1995) analisa a extensão da educação pública como uma necessidade do modo de produção capitalista de proporcionar à grande massa a formação mínima para atender à demanda da sociedade industrial e às necessidades que dela derivam: um conhecimento técnico para manejar aparelhos e invenções cada vez mais sofisticados e a prestação de serviços cada vez mais complexos, o que passou a exigir do trabalhador, mais do que um simples fazer mecânico e pontual, alguma criatividade para se desembaraçar e contribuir, até certo ponto, para o incremento das atividades desenvolvidas, ao menos no início e na consolidação da industrialização.

Para o autor, a laicização da educação é explicada no quadro da revolução burguesa, como decorrência do modo de produção capitalista, sistema que passou a vigorar com força total no ocidente desde a Revolução Industrial e que perdura, em sua essência, nos tempos

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atuais (PONCE, 1995). Desta maneira, no que diz respeito ao ensino da Arte, salientou-se a necessidade do ensino do desenho geométrico, como preparação do operariado para o trabalho nas indústrias, fato que no Brasil consolidou-se no decorrer do século XX.

Assim, a partir da Revolução Industrial, influenciaram o pensamento educacional, primeiramente, os princípios herdados da Revolução Francesa, como o liberalismo, que exalta a liberdade e as habilidades individuais e a escola positivista, fundada por Augusto Comte, baseada no racionalismo e na exatidão científica (FERRAZ, 1993). No caso das ciências humanas, tal tendência pôde ser observada em várias áreas emergentes, como a Psicologia por exemplo, personificada principalmente pelas teorias comportamentalistas e cognitivistas.

Desde então, acirrados discursos ideológicos, fundamentados principalmente na Filosofia, Psicologia e Sociologia se sucederam no intuito de justificar e fundamentar a presença da arte na educação escolar. Courtney, no livro Jogo, teatro & pensamento: as bases intelectuais do teatro na educação, faz um longo estudo sobre as principais teorias extraídas daqueles campos das ciências humanas que colaboraram para a compreensão e a criação de novas práticas pedagógicas no que se refere ao teatro na Educação (COURTNEY, 2001).

No Brasil, outros determinantes para a presença das Artes no currículo escolar foram apontadas por Ferraz (1993): a grande celeuma provocada pela implantação da Educação Artística no currículo das escolas brasileiras pela Lei de Diretrizes e Bases 5692/71, fortemente marcada pelo tecnicismo e pela dependência cultural, o que gerou desordem e conflitos na área; a retomada dos movimentos organizados pelos educadores brasileiros a partir da década de 80, principalmente dos professores de Artes, na luta pela obrigatoriedade do ensino de Artes, após a promulgação da Constituição Brasileira de 198810; os novos impulsos gerados pelas pesquisas e experiências acadêmicas no campo da arte, em especial no nível da pós-graduação; a influência da arte contemporânea no que diz respeito às novas tendências e concepções estéticas; e, por último, “[...] os debates sobre conceitos e metodologias do ensino de arte, realizados em caráter nacional e internacional, a partir dos anos 80.” (1993, p. 28-29).

Depreende-se desta enumeração feita pela autora uma preocupação em destacar os elementos que determinaram a presença da Arte na escola, enfatizando, no último item, a questão dos conceitos e metodologias. Tal fato, de inquestionável relevância, na verdade antecipa-se a uma discussão que deveria antecedê-la: a dos fundamentos que regem a Arte na escola. No sentido de contribuir, então, para esse importante debate – sobre a inserção da Arte na Educação –, deve-se esclarecer e tomar uma posição quanto a uma questão de fundo: privilegiar a questão educacional ao transmitir conhecimentos e valores, quer dizer, dando ênfase ao seu caráter instrumental, ou visar, na relação do educando com a Arte, o valor intrínseco que possui enquanto manifestação artística?10 Tal luta obteve êxito com a obrigatoriedade da disciplina de Artes no Ensino Fundamental e Médio somente oito anos após, a partir da promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/96.

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Explicitando a questão, para Elliot Eisner o ensino da Arte pode seguir, então, duas posições. A primeira delas e a mais difundida entre os profissionais da educação é a contextualista, na qual o ensino de conteúdos artísticos é posto com o objetivo pedagógico de difundir outros saberes, desenvolver um ou outro aspecto psicológico ou corporal ou então contextualizar conflitos subjetivos ou sociais estimulando a compreensão do homem enquanto ser político, que não só pode como deve fazer uso da liberdade para atuar/transformar o meio em que vive. (EISNER apud KOUDELA, 1992).

A segunda vertente para o autor é a essencialista que vê na Arte – e no teatro – um campo específico do conhecimento humano que possibilita ao aluno, visto como indivíduo, experiências únicas de caráter estético, que podem auxiliar na condução e na construção de sua formação educacional.

Argumentar que a justificativa para a arte-educação reside nas contribuições que pode dar para a utilização do lazer, que auxilia o desenvolvimento da coordenação motora da criança pequena, que fornece liberação de emoções é algo que pode ser realizado por uma série de outros campos de estudo da mesma forma. O valor primeiro da arte reside, a meu ver, na contribuição única que traz para a experiência individual e para a compreensão do homem. As artes visuais lidam com um aspecto da consciência humana a que nenhum outro campo se refere: a contemplação estética da forma visual. As outras artes lidam com outras modalidades sensoriais diferentes, enquanto a ciência e as artes práticas têm outros objetivos. (EISNER apud KOUDELA, 1992, p. 18).

A abordagem essencialista apregoa, por exemplo, o ensino do teatro enquanto uma forma de educação estética, mediante a qual o aluno, através de estímulos advindos de diversas experiências expressivas (corporal, vocal, por exemplo), pode melhor expressar sua imaginação criativa: “Na visão tradicional, o teatro tinha apenas a função de preparar o espetáculo, não cuidando de formar o indivíduo.” (KOUDELA, 1992, p.18).

Assim, seja por motivações paradigmáticas, de um cenário contemporâneo voltado ao consumo e à produção, seja por deslocamentos pragmáticos, provocados por um sistema educacional mal elaborado no que diz respeito ao sentido de educação voltada ao desenvolvimento humano integral, o certo é que a Arte tem sofrido distorções e derivações quanto ao seu verdadeiro papel na Educação. No mínimo, tem recebido pouco destaque, sendo colocada, na construção dos planos e projetos pedagógicos, marginalmente ou até mesmo sendo deixada de lado.

3 A questão do ensino e da aprendizagem

A ciência que se dedica a estudar os processos, principalmente os cognitivos, pelos quais as pessoas aprendem – ou apreendem o mundo – é a Psicologia, mais especificamente as áreas da Psicologia Cognitiva, da Psicologia Educacional, da Psicologia da Aprendizagem e da Psicologia do Desenvolvimento. Busca-se em diversos autores e perspectivas teóricas aportes para o entendimento de como se dá a interação entre os elementos do ambiente e

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o conjunto de recursos internos que cada indivíduo vai, ao longo de sua vida, construindo, e que lhe servem como instrumentos para lidar com as situações em que se vê envolvido no dia na dia.

Do ponto de vista dos processos cognitivos, tem sido apontada a existência de dois tipos básicos de mecanismos que determinam a aprendizagem: fala-se de aprendizagem por associação e de aprendizagem por reestruturação (POZO, 2002), sendo que ambos os tipos obedecem a condições ou contingências específicas que determinam sua ocorrência e se desdobram em subprocessos que se complementam entre si.

A aprendizagem por associação é aquela em que um elemento é associado a outro mediante os princípios da semelhança, da continuidade espacial e/ou temporal e da causalidade, sendo que o ambiente desempenha um papel determinante – no sentido não somente de fornecer os conteúdos a serem aprendidos, mas também de impulsionar, desencadear o processo. Nesse sentido, as leis da aprendizagem por associação são aplicáveis a todas as espécies e indivíduos. O que varia é a complexidade do ambiente ao qual cada indivíduo responde. A simples memorização e a aprendizagem por condicionamento, por exemplo, seguem os princípios associacionistas, na medida em que privilegiam o processo de formar e reforçar associações.

Já a aprendizagem por reestruturação pressupõe a construção gradativa de estruturas organizadas, nas quais os elementos não apenas se associam, mas se modificam qualitativamente ao entrar em contato com outros, deixando-se afetar por eles. No decorrer desse processo a composição como um todo, isto é, o conjunto de estruturas, é constantemente transformado, tornando-se cada vez mais complexa, o que dá subsídios para a compreensão, para a apreensão de significados. Tal tipo de aprendizagem exige uma postura mais ativa do indivíduo que está aprendendo, que tem o papel de organizador de suas estruturas, embora não tenha sempre completa consciência de como isso ocorre. Observa-se ainda que, no caso da reestruturação, o tipo de conteúdo a ser aprendido tem grande relevância, pois as estruturas pré-existentes podem ser capazes de assimilar um conteúdo e outro não, dependendo do nível de desenvolvimento em que se encontram ou do significado, ou interesse despertado no indivíduo. É, portanto, mais dependente das questões relacionadas à afetividade.

Até a algumas décadas atrás, as diferentes correntes teóricas que subsidiam a Psicologia dividiam-se ao defender a associação ou a reestruturação, geralmente excluindo a possibilidade de ambas ocorrerem de maneira concomitante. Como principais referências ligadas ao estruturalismo têm-se as teorias de Piaget (construtivismo), de Vygotsky (sócio-interacionismo), de Ausubel (teoria da aprendizagem significativa) e a Gestalt, que estuda o fenômeno da percepção humana. Ligadas ao associacionismo têm-se a teoria behaviorista e as primeiras manifestações da ciência cognitiva, vinculada às teorias do processamento da informação. Aos poucos, porém, com a evolução das pesquisas empíricas, tornou-se evidente a insuficiência do associacionismo puro. A tendência mais atual é a de se considerar a coexistência de ambos os tipos, que são exigidos em momentos diferentes de nossas

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vivências ou que, até mesmo, se complementam em algumas situações.Intimamente ligado a como se concebe o funcionamento da aprendizagem está a

escolha de como se deve ensinar, ou seja, como fazer o educando colocar-se em signos: ‘en-signo’. Decorar ou essencialmente compreender? No primeiro caso, noções e conceitos estão em conta para serem apreendidos e no segundo a habilidade de compreensão de mecanismos internos às ideias. E, por fim, nunca se deve perder de vista que a aprendizagem só se faz eficaz quando inserida num grau de compreensão da aplicabilidade dos conteúdos envolvidos.

Contudo, para não se perder em um mundo com tanto conhecimento, como é o tema de vários mitos e alegorias que discutem o agir humano, é preciso também perscrutar uma base de aferição para a relação saber – aplicar – agir – bem viver, ou seja, como saber qual conhecimento é mais apropriado e se o seu resultado, não só aparente e imediato, é adequado? Nesse sentido, por mais que embasemos o ideal humano na racionalidade, somente o sentimento de bem estar e de correspondência podem dar alguma dimensão disso.

Por isso, alerta-se para a preocupação com o desenvolvimento afetivo – que não é nem associativo nem de reestruturação exclusivamente, aportes fundamentalmente cognitivos, mas significativamente implantador. Ou seja, a dimensão de afetividade envolvida na aprendizagem fixa o que é realmente importante e substancial para a existência de quem aprende. Logo é imprescindível que haja, numa educação que almeje ser integral, a presença de aportes de afetividade na aprendizagem.

3.1 O movimento e a emoção: a afetividade participando do conhecimento

De um lado, de forma simples e lógica, é possível pensar a ideia de integralidade de duas formas básicas. A primeira, dimensionando-se a noção de modo uno; sem fendas (interrupções, falhas, etc.), sem fases (níveis, metamorfoses, etc.) e sem junção de estruturas (criações com vida própria que se juntam para fazer algo maior, unindo-se para produzir alguma coisa mais adequada, opulenta ou coisa do gênero). A segunda, considerando-se o contrário: a integralidade só se manifesta na dinâmica da interação entre as coisas – reagrupando as interrupções, corrigindo as falhas, ou seja, subtraindo as fendas (vãos) entre os produtos da realidade; procedendo às exigências das passagens de nível (como que galgando conquistas), aceitando e redimensionando-se as metamorfoses (transformações). Ou seja, integralizando por meio do assentimento da existência de fases na construção de algo; somando estruturas aparentemente diferentes (até mesmo divergentes) para formar alguma coisa superior, mais aprimorada, como pode ser visto o caso do ser humano, que é a união de, por exemplo, razão e emoção, integralizando-se em um único ser, de modo dinâmico, coexistindo as estruturas.

Por outro lado, pode ser que as duas formas expostas de se ver o conceito de

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integralidade sejam, em verdade, a mesma. Visto dessa maneira, apenas significa que do primeiro modo se esteja fazendo uma leitura sintética da realidade integral de algo e na segunda perspectiva se veja analiticamente. Em qualquer caso, a realidade dinâmica do mundo não se modifica pela escolha que se faça para ver como ela funciona: o mundo é mundo por ele mesmo, a despeito do conhecimento (ou do modo científico adotado) que dele é erigido. Daí que, talvez devido a erros que são cometidos, por vezes não se avance no conhecimento ao não se distinguir identidade entre as conexões da realidade; e outras vezes, ao se considerar exageradamente a divisão (ou fragmentação) que dá suporte à construção de conceitos (identidade) das coisas, dá-se demasiado valor a um ponto em detrimento de outro naquilo que deveria ser considerado um mecanismo único, coexistente e interdependente; tal viés pode comprometer a validade do conhecimento sobre algo. No que interessa aqui, o que pode ficar empenhado é o próprio entendimento da natureza e da condição humana, o que pode ser visto no caso da celeuma razão X emoção (cognição X afetividade), conforme expressou Bruner, que é recuperado por Leme (2003):

Segundo Bruner, a tradicional distinção conceitual entre afetividade e cognição, traçada tanto na filosofia quanto na psicologia, delimita regiões e fronteiras sobre o funcionamento psicológico, pouco úteis, na medida em que nos obriga a criar pontes conceituais para relacionar o que, talvez, nunca deveria ter sido separado. Pensamento, razão ou cognição, assim como emoção, afeto ou paixão são abstrações formuladas para contrastar estados mentais construídos na interação com o mundo. (LEME, 2003, p. 92-93).

Pelo que se põe como possibilidade de problema na condução do entendimento do humano e, logo, do comprometimento da condução dos instrumentos (educação) de desenvolvimento deste, é que o presente ensaio busca incitar à reflexão acerca dos riscos que distorções sobre a ciência das coisas humanas pode acarretar até mesmo para a sobrevivência da espécie. Afinal, o conhecimento deve mobilizar quem o detiver para efetivar sua principal função: o bem viver, ou seja, a de melhorar a vida humana.

Assim, independentemente de a sociedade atual se basear na racionalidade, o fator de aferição de como as coisas realmente nos afetam sobrevém das emoções. E a interação entre a cognição e a afetividade é que, ao fim, dá a base real do que se vivencia. Pode-se até calcular que se vive bem, mas somente o sentimento, a emoção podem aferir essa condição. Isso se torna notório ao se verificar, mesmo em pesquisas científicas, a opinião, ou o sentimento das pessoas sobre o funcionamento da sociedade atual.

Portanto, para uma educação integral, é fundamental a asserção da afetividade, esta entendida numa acepção mais ampla. E qual seria um sentido ampliado para se observar melhor a afetividade e o seu papel no desenvolvimento humano? Primeiramente, considera-se o movimento existencial completo das coisas. Depois, observa-se o que é que põe a coisa considerada em movimento. A afetividade ampliada seria, então, o discernimento de como as coisas que envolvem o movimento existencial das coisas afetam e são afetados. De como elas afetam e são afetadas emergem mais e outros movimentos que se impulsionam a

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outros instantes de afetar e ser afetado.

O núcleo da propulsão desses vários movimentos interconectados é propriamente

aquilo que coloca as coisas em movimento, incluindo-se seus desvios, derivações,

reagrupamentos e escolhas posteriores (diferentes das iniciais) para novos objetivos ou

direções. Nesse caso, e até se utilizando da definição etimológica do termo, tal cerne de

ignição do movimento, das ações, no caso humano, seriam as emoções: o prefixo e significa

pôr-se em ou colocar-se em (relação a algo); e moção significa movimento. Ou seja, emoção

é aquilo que nos coloca em movimento (DEBRAY, 1993).

Então, há sempre algo de emocional contido na dinâmica da existência das coisas,

ou seja, há sempre um sentido resultante de como as coisas afetam e são afetadas pela

realidade que as leva, de um modo ou de outro, a fazerem o que estão fazendo e de serem

(tornando-se) o que são. Logo é relevante dar atenção, no caso humano especificamente,

ao funcionamento das emoções e ao entendimento do que vem a ser a afetividade, tanto

nas relações humanas quanto na interação do homem com o mundo.

Por isso, em última análise, poder-se-ia dizer que todas as ciências, todas as disciplinas

escolares, buscam compreender as interações entre as coisas, que são seus objetos de

estudo. Saber sobre a interação entre as coisas nada mais é do que compreender como as

coisas se afetam mutuamente e até mais, no hiperespaço, na realidade mais ampla. Assim,

pode-se pensar a afetividade em um plano mais amplo, não somente restrita às relações

íntimas entre as pessoas, nas quais as paixões humanas são as mais visadas.

Enfim, o conhecimento é o resultado das interações, da compreensão da qualidade

como as coisas se afetam, ou seja, do sentido de afetividade envolvido nas relações, tanto

de coisas quanto de pessoas. Logo o conhecimento está intimamente ligado à compreensão

da afetividade (qualidade dos afetos) envolvida num determinado contexto em que há algo

a aprender. No caso humano, de suas relações intrínsecas – e isso pode efetivamente ser

traduzido no conceito de ética.Conforme Abbagnano (2003, p. 380), ética é,

[...] em geral, ciência da conduta. Existem duas concepções fundamentais: primeiro, a que considera como ciência do fim para o qual a conduta dos homens deve ser orientada e dos meios para atingir tal fim, deduzindo tanto o fim quanto os meios da natureza do homem; segundo, a que a considera como ciência do móvel da conduta humana e procura determinar tal móvel com vistas a dirigir ou disciplinar essa conduta.

No primeiro caso, a ética seria a base para o homem almejar a eudaimonía (felicidade como fim último; o viver bem como sentido existencial); no segundo caso, a ética seria encontrada naquilo que dá prazer (conformidade) à existência; em ambos os casos, o que está em questão é o fato de que a ética engendra a ideia de bem, isso como causa àquilo

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que resulta no bem viver.

3.2 A Arte como agente semeador de ideias e sentimentos (ou a Arte como uma das bases para a construção de uma Afetividade Ampliada)

A Arte pode ser o agente implantador, no desenvolvimento humano, de mecanismos que ajudem o educando a aprender a depurar seus sentimentos, sua afetividade, para o melhor uso do conhecimento acerca das coisas humanas. Ela engendra o fim e os meios existenciais a que o humano se propõe criar e recriar como intuito de vida. Logo, é um agente de inserção à ética, à busca da felicidade humana, a qual não tem sentido sem as perspectivas afetivas e emocionais que caracterizam o viver da espécie. Tais aspectos, na Arte, denotam-se na e pela prática da produção e da apreciação artística, o que se destaca na emergência do fenômeno catártico inerente à Arte.

3.2.1A questão da catarse

A catarse é a “[...] libertação do que é estranho à essência ou à natureza de uma coisa e que, por isso, a perturba ou corrompe.” (ABBAGNANO, 2003, p. 120). Nesse sentido, a catarse pode vir a ser educativa ao desenvolver em quem a perscruta subsídios de entendimento do que a afeta de modo inadequado, perturbador. Seria o enfrentamento e a depuração dos sentidos que devem margear as relações humanas, tanto entre as pessoas como também considerando-se as coisas do mundo – como a própria natureza; haja vista, por exemplo, a crise ecológica enfrentada na contemporaneidade.

Contudo, essa conotação positiva, educativa até, que se poderia convergir à catarse, tem sido historicamente combatida, pois a catarse e seu sentido purgativo que lhe é inerente são utilizados por agentes dominadores (no âmbito político, principalmente) para explorar as massas em benefício próprio e, por vezes, ilícito. Assim, a crítica à catarse pode se resumir ao seguinte: ao se libertar do que é estranho, mesmo prejudicial, ao sentido humano existencial, o indivíduo muitas vezes não se mobiliza para alterar essa realidade que lhe é estranha e que necessita de mudança, de revolução.

Contudo, o que se quer aqui ensaiar é que a catarse, vista assim isoladamente, perde seu sentido, aquele que inerentemente se vincula à Arte. Ela deixa, desse modo, de ser um agente participante do desenvolvimento humano se não for alocada juntamente com outro item educativo importante: o desenvolvimento socioemocional dos indivíduos – ou seja, o desenvolvimento do sentimento de pertença às coisas vividas em sociedade; o que inclui aspectos de afetividade e de discernimento ético referente às relações humanas.

Assim, defende-se que a catarse associada a um desenvolvimento socioemocional adequado (ético e imbuído de afetividade) pode construir a mobilização e a participação na vida (sociedade) humana. Ou seja, desenvolver a habilitação para que o homem possa fazer parte da realidade, modificando-a – logicamente, na perspectiva de que o que realmente

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deve ser alterado é aquilo que está inadequado e que, por conseguinte é angustiante – a partir da transformação de seus próprios sentimentos e afetos.

[...] as emoções angustiantes e desagradáveis são submetidas [na catarse] a certa descarga, à sua destruição e transformação em contrários, e de que a reação estética como tal se reduz, no fundo, a essa catarse, ou seja, à complexa transformação dos sentimentos. (VIGOTSKI, 1999, p. 270).

Por fim, ainda é importante salientar que a catarse, vista dessa forma, constitui-se um instrumento (um canal) de desenvolvimento, dando subsídios para o indivíduo (educando) se autoconhecer, se autorregular, se autoconceituar, etc. E, como todo instrumento, ele não é nada se não se souber o seu manejo eficaz. Por exemplo, do que vale querer se autoconhecer, se o óbvio a se constatar é que se é “um animal político, logo social”, como dizia Aristóteles, e se continuar a ignorar o que de fato significa agir politicamente e socialmente – o que inclui as esferas ética e afetiva? Sabe-se o que se é mas não o que fazer com o que se é. Por isso, frisa-se, é igualmente imprescindível o desenvolvimento de habilidades socioemocionais para o autoconhecimento mais genérico de humanidade: a condição de zoon politikon.

Ainda, é preciso colocar em destaque a crítica que se faz acerca das questões emocionais, sentimentais e de afetividade dentro do ambiente de apreensão do conhecimento, ou seja, a academia e afins. Invariavelmente, aqueles que reclamam da presença de paixões humanas nesse nicho parecem ser justamente aqueles que possuem esse aspecto mal resolvido em suas próprias vidas. Isso nem é tão dramático, visto que a sociedade contemporânea quase que completamente assim o está. Mas, ao se observar o contrário, pode-se comprovar a tese: aqueles que têm suas emoções bem conduzidas geralmente não reclamam ou difamam a presença dos sentimentos e da própria sensibilidade na atmosfera da ciência; até mesmo são simpatizantes e agregadores de suas manifestações – incluindo nelas a Arte.

Nesse mesmo movimento, denota-se que somente aqueles que são frágeis, mal desenvolvidos, é que são explorados e conduzidos por aqueles que propriamente a história tem classificado como dominadores, tiranos, déspotas, etc. Por acaso, seriam igualmente oprimidos aqueles que possuem um desenvolvimento humano integral bem erigido, por exemplo, com os sentidos socioemocional e cognitivo de suas vidas bem constituído?!

4 O Teatro, como arte, na educação

Pode-se ver em Cebulski (2007) que o teatro como trabalho humano de criação artística é o espaço em que o próprio homem em toda a sua extensão se desvela, como indivíduo – ser histórico e social. Pertencente ao campo da Arte, acolhe a realidade para conhecê-la, interpretá-la e recriá-la por meio de símbolos. Neste sentido, são tomadas por emprés timo formas de expressões de outras modalidades das artes, como a literatura, a música, a dança e as artes plásticas, para compor ou sobrepor o foco em

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questão da realidade, conferindo-lhe um caráter particular. Por exprimir o homem do seu tempo nas suas relações com a realidade, o teatro acaba por realizar uma função crítica, pois, ao pôr em cena as ações e as relações humanas, bem como os valores que lhes subjazem, promove uma visão objetiva da realidade, uma reflexão e abre possibilidades para o redirecionamento das suas práticas no âmbito da sociedade.

Para artistas, teóricos, educadores e pesquisadores que trabalham questões relativas à Arte e, especificadamente, do teatro na educação, grande tem sido o esforço em estabelecer os fundamentos que permeiam e, talvez, unifiquem esses dois campos do saber, cada qual com uma vasta área a ser compreendida e posta em prática. Segundo Barbosa (1995), os estudos e a reflexão a respeito avolumaram-se após a obrigatoriedade da inclusão das artes no currículo escolar em países como os Estados Unidos e o Brasil (neste, a partir da última reforma de ensino, ao final do século XX).

A importância de se estabelecer as determinantes histórico-sócio-culturais do ensino da Arte, e por consequência, do teatro, reside em compreender a sua evolução, situar a atual prática pedagógica teatral para proceder à sua crítica, no sentido de constituir novas bases teórico-práticas que fundamentem a presença do teatro na escola.

Para Japiassu (2003), embora o ensino do teatro, para fins de estudo e delimitação científica, esteja dividido em duas vertentes, a contextualista e a essencialista, no plano da prática pedagógica essas duas dimensões estão presentes, ora com fronteiras bem definidas, ora se interpondo, interpenetrando-se, de modo a ampliar ao máximo as possibilidades educativas.

Contudo, o que se quer aqui defender é que não se deve restringir o ensino do teatro somente a uma das concepções vigentes – contextualista ou essencialista –, e sim promover uma aliança entre ambas, cujo efeito imediato é o de resgatar a totalidade das possibilidades estéticas e pedagógicas do teatro, tendo-se em vista a educação do homem pleno, o que pode ser pensado como uma terceira vertente de função do teatro como instrumento educacional, de conscientização da amplitude maior da realidade. E mais: não se deve igualmente restringir o papel do teatro na educação, na formação do cidadão.

Dessa forma o teatro, como manifestação cultural que intenta tratar da complexidade e da completude do homem, pode promover ações em que se ressalte o seu caráter humano, em todas as dimensões trabalhadas pela práxis artística. A práxis teatral como atividade artística livre (não alienada) pode auxiliar no processo de humanização conquanto crie algo inédito (cada representação é única!), a partir da realidade concreta, histórica, superando-a, ao criar uma nova realidade, que traduza e transcenda seu criador (PEIXOTO, 2001).

A práxis teatral, ao representar o homem em sua totalidade, passa a efetivar a admiração do homem pelo próprio homem, pela natureza, pela infinidade dos objetos e das formas artísticas criadas e pelas diferentes formas de criação que a sociedade apresenta. A admiração, o espanto, a indignação, a surpresa, a confusão, etc., emoções provocadas pela e na teatralização, estão imbuídos da necessidade de compreender o homem enquanto ser afetivo, cognitivo, histórico e social, o que o leva ao comprometimento com o entendimento

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e a crítica do seu processo formativo. Para Vieira (1999), é desta maneira que deve ser vista a máxima socrática “Conhece-

te a ti mesmo”, pois “[...] fazer esse inventário é, segundo Gramsci, o primeiro passo para uma eficaz ação sobre a questão da formação humana.” (p. 235). Pois a ação humana é propulsionada pelas emoções e estas permeiam e movem o pensamento e a reflexão num movimento próprio, dialético, cuja síntese é o estímulo à curiosidade que pode gerar ações no sentido da busca da aprendizagem, uma vontade de aprender movida pela necessidade de sobreviver e de dominar as circunstâncias para prover sua existência material, e assim sucessivamente. Desse modo, a práxis e as emoções são o fomento da ação, do pensamento filosófico, da Educação, da Arte e das Ciências. Ou seja, de tudo aquilo que fomenta a peculiaridade enquanto espécie, que também vê o mundo racionalmente, logo com o conhecimento de suas interações com as coisas do mundo e com a afetividade que toda relação envolve – de forma subjetiva ou objetiva, com as pessoas ou com os objetos, entre os humanos ou com a natureza, ou como se queira indicar.

Por fim, não se pode esquecer: o teatro proporciona de forma significativa a experiência com a catarse; o que, de modo relevante, fez parte da educação e do desenvolvimento do cidadão grego na Antiguidade. Naquele período fundante da história do ocidente, a catarse era explorada com muito vigor para sensibilizar e fazer entender o cidadão sobre sua humanidade, a qual, vista coletivamente, nos grandes anfiteatros, contagiava e mobilizava.

Se a crítica contemporânea, conforme se anuncia, contesta o papel formativo da catarse, ocasião em que ocorre a purgação dos incômodos humanos, mas não mobiliza em torno destes, o mesmo não era o caso na Grécia Antiga. O teatro naquele contexto, como elemento formativo, propiciava ao povo grego alerta às mazelas e perigos com os quais se deparavam em seu cotidiano.

E qual é a diferença entre os períodos Antigo e Contemporâneo? Indica-se como possível diagnóstico que o povo grego se provia de um desenvolvimento socioemocional mais apurado; isto é, compreendia melhor o sentido interacional que povoa as relações humanas, ética e politicamente. Já o homem de hoje se aliena da participação da história – não sendo politizado – e comunga valores que tendem a afastar os homens do convívio da amizade, que é um princípio ético fundamental para toda e qualquer sociedade funcionar; em sua precariedade se vê crescerem posturas como, por exemplo, a extrema competitividade, o consumismo, etc., que destoam de um sentido ético de vida em sociedade.

Assim a catarse, também na contemporaneidade, pode funcionar como uma semeadora de autoconhecimento sobre a humanidade – sobre suas nuanças existenciais – em quem a experimenta. Porém esta parece não germinar, não mobilizar o indivíduo a agir no mundo, logo, a se desenvolver rumo às coisas humanas que lhe são inerentes. Isso porque não é regada com o necessário sentimento de pertença a uma sociedade que é, ou procura ser, humana por excelência. A crítica de que a catarse pode não funcionar, e até mesmo iludir quem a experimenta de que é um humano que se sensibiliza com as

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coisas humanas (mas que não o é integralmente, pois nada faz com o que sente – não se põe em movimento, não se emociona verdadeiramente, apenas fugazmente), pode ser pertinente. Contudo, isso só é assim porque, por um motivo ou outro, foi esquecido que nada é colocado sozinho para bem funcionar: tudo no universo só verdadeiramente tem serventia quando acoplado, ao interagir com outras coisas.

Enfim, a catarse por ela mesma não terá sentido se outros procedimentos formativos, como a afetividade, vista num sentido mais amplo, não a acompanharem. Do mesmo modo, o teatro, que pode promover catarse e também agir formativamente rumo à afetividade, não terá nenhum sentido na educação se for apresentado isoladamente, esporadicamente, deslocado do contexto escolar, social e mesmo das outras disciplinas e interesses sociais, como a formação para o trabalho. Defende-se aqui que o teatro, assim melhor dimensionado, pode ser resgatado como um instrumento fundamental na formação dos cidadãos do amanhã deste país emergente e que sonha ser um exemplo de prosperidade, a qual, espera-se, não seja apenas econômica, mas fundamentalmente humana.

Considerações finais

Buscou-se apresentar um breve ensaio sobre as divergências e convergências no que diz respeito ao ensino de Arte e seu papel no sistema educacional. As divergências giram principalmente em torno de uma leitura da realidade prática da Educação, o que se pode verificar comparando-se os propósitos educacionais e o funcionamento do sistema educacional. As convergências, na verdade, aparecem mais em forma dos objetivos que se deve almejar do que propriamente do que se pode observar como uma ideia de bem conduzir o desenvolvimento humano, ou seja, o ensino adequado das coisas humanas.

Tal intento objetivou incitar os pensadores e pesquisadores da área da Educação, sobretudo, a refletirem acerca da eminente necessidade de se renovar os pressupostos sobre os procedimentos pedagógicos na Educação, principalmente no que se refere à inserção significativa da Arte no desenvolvimento dos educandos rumo à construção de suas cidadanias. Tal desígnio é exposto de maneira bastante evidente, já que tal disciplina carregaria de roldão a perspectiva de um desenvolvimento ético e afetivo num sentido mais amplo: mostrar os motes característicos da condição humana que todos participam; instigar o desenvolvimento dos aportes relacionais que compõem a base da vida em sociedade; e, acima de tudo, converge para a construção de uma sensibilidade mais apurada, tornando aptos os homens a apreciarem com maior retidão a afetividade envolvida em todas as interconexões das quais os seres e as coisas participam por fazerem parte de uma realidade altamente dinâmica.

Para a execução desses propósitos, traçou-se primeiramente que a base fundamental dos objetivos pedagógicos gira em torno do eixo da noção de desenvolvimento humano integral, o qual necessita, para ser justo, apreciar todas as esferas componentes do que

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dá identidade ao humano. Essa identidade se particulariza na cognição – que permite a racionalidade, qualidade distintiva do homem – mas também abrange a universalidade da afetividade, a qual carrega fenômenos universais, heurísticos – intuição, sensibilidade, criatividade –, que comungam com os elementos constitutivos da Arte, sobretudo.

Assim, em um segundo momento deste trabalho, ensaiou-se o projeto de que a afetividade ampliada – a que reconhece os elementos e os movimentos que fazem as relações, as interações reagirem adequada e funcionalmente – é parte essencial de qualquer instituição (social) que almeje promover o desenvolvimento humano integral, como é o caso da Educação. E que a Arte pode vir a ser um aporte decisivo na condução de tal perspectiva, haja vista sua capacidade de apresentar, refletir, sentir e criar e recriar a realidade em que os indivíduos e sua sociedade se inserem. Tal proposta se apoia na ideia de que o ser humano é basicamente impelido por substratos mentais da ordem das emoções, a despeito de se constituir uma espécie que se instrumentaliza por meio da cognição.

Para garantir esse intento relativo ao papel da Arte, em um terceiro passo ensaístico, procurou-se mapear possibilidades tanto funcionais como pedagógicas sobre a inserção e o exercício dos educandos (iniciantes – em certa medida – no desenvolvimento humano) nos meandros artísticos. No que diz respeito à Arte, foi colocada em discussão a questão da catarse, a qual tem sido, devido a problemas na exploração desse fenômeno por certos teóricos, relegada quase que a um sentido nocivo, já que por meio dela seria possível se aproveitar (quase como num transe) moral e psicologicamente dos indivíduos menos preparados – acertadamente, poder-se-ia classificá-los com problemas no desenvolvimento (humano), principalmente no plano socioemocional. Precisamente aí é que a reflexão aqui exposta defende a possibilidade de se rever a qualidade pedagógica da catarse, pois se o desenvolvimento socioemocional dos indivíduos receber o devido suporte, concomitantemente à presença da emoção artística – catártica –, o resultado logicamente será diferenciado do que comumente se tem visto: poder-se-á incrementar nos educandos dimensões psicológicas fundamentais para o seu adequado movimento existencial – autoconhecimento, autoestima, autorregulação, etc.

Por fim, realizou-se, como exemplo, um convite à participação pedagógica do teatro, como Arte, na educação. Nesse sentido, buscou-se denotar o papel primordial, notório desde os Antigos, dessa dimensão artística como provocadora da catarse positiva, a que incita o indivíduo a participar de sua realidade humana, logo social. E isso não apenas num sentido revolucionário, modificador, que também é necessário, mas, sobretudo, levando o educando a aprender a necessidade da afetividade nas interações; preferencialmente de modo ampliado, percebendo as nuanças e características das coisas do mundo: pessoas e natureza. Ensinando-se, por conseguinte, a se desenvolver adequada e integralmente humano.

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A MULTIPLICIDADE DE CAMINHOS, ATRAVESSAMENTOS E SENTIDOS DAS AÇÕES DE DANÇA

A arte de educar, a educação através da Arte e a formação do artista na contemporaneidade.

Lígia Losada Tourinho11

Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar a possibilidade para a sua produção ou construção (Paulo Freire).

Este artigo introduz e discute algumas provocações reflexivas sobre as relações entre arte da dança e a educação, em especial a relação com a dança contemporânea a partir do tema “Arte, atualidade e ensino”. Possivelmente nossa primeira provocação seria compreender o que denominamos dança contemporânea, ou, até mesmo, o significado de contemporâneo - do mesmo tempo; da época atual; do tempo em que se fala. Mas do que falamos hoje? Sobre o que são as falas das Artes de hoje? O entendimento sobre o conceito de dança contemporânea ainda está em construção e recebe diversas definições, dependendo do contexto em que está inserido. Alguns definem como um tipo de dança que dialogue com a Arte Contemporânea, porém, há uma multiplicidade de danças feitas nos dias de hoje que estabelecem esse diálogo e outras que não tem a Arte Contemporânea como princípio, meio ou fim. O próprio conceito de Arte Contemporânea é poroso - a arte que se faz do meio do século XX até os dias de hoje. A obra Tudo sobre Arte, de direção geral de Stephen Farthing (2011) enuncia uma série de categorias presentes nesse período espaço-temporal: expressionismo abstrato, pintura figurativa europeia, abstracionismo lírico europeu, arte africana, arte da Ásia oriental, pop art, fotografia, novo realismo, arte conceitual, instalações, arte latino-americana, arte performática, arte povera, minimalismo, op art, videoarte, lang art, hiper-realismo, arte nativa australiana, neoexpressionismo, arte digital, arte urbana... O contemporâneo possui muitas vozes. A arte da dança dos dias de hoje apresenta uma multiplicidade de falas e possibilidades, os modos de fazer dança variam tanto quanto os artistas forem capazes de inventar e criar, passam a ser particulares de cada obra, de cada criador e seu contexto. Essas possibilidades múltiplas de dramaturgias e danças são protocolos de criação dos processos artísticos que se enunciam em cena: o artista diante do mundo, suas idéias, 11 Possui graduação em Artes cênicas pela Universidade Estadual de Campinas (2001) e mestrado em Artes pela Universidade Estadual de Campinas (2004). Atualmente é professora assistente - Departamento de Arte Corporal/ UFRJ e Doutoranda em Artes/ Unicamp. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Artes Cênicas, atuando principalmente nos seguintes temas: teatro, dança, movimento (encenação), cultura popular brasileira e performance.

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questões, provocações e as muitas possibilidades de estruturações cênicas, de falar para e sobre o mundo. Laban (2001) já previa essa diversidade de possibilidades criativas para a dança dos dias de hoje, na primeira metade do século XX:

Embora tenham adotado muitos elementos de nossas obras de movimento, todavia não logram compreender que o espírito das novas artes cênicas deve estar fundamentado principalmente na expressão dos movimentos dos artistas. Só então as qualidades internas dos personagens se farão evidentes com toda sua energia e beleza, só então tanto o horror como a beleza incitarão as emoções e também se converterão em símbolos de valores mais profundos. (LABAN, 2001, p. 150).

“Mesmo que nenhuma de suas obras tenha sobrevivido a ponto de serem totalmente reproduzidas, sua abordagem coreográfica é precisamente como os artistas contemporâneos do século XXI trabalham suas danças.” (BRADLEY, 2009, p. 79). Em sua obra Uma Vida para a Dança, Laban (2001) já vaticinava sobre a importância de pesquisas em dança a partir das pulsões individuais de cada artista e sobre poéticas e temas diversos. Para ele a dança possuía três campos de atividade: Uma dança teatral, que pode aparecer tanto na ópera quanto em trabalhos de dança teatral. Uma dança festiva, como obras de poema-dança, seu caráter está determinado pela expressão visual que produz e seu conteúdo de movimento geralmente revela a razão para a ocasião. E uma última, que denominava Reigenwerk, uma forma de dança como arte independente, relacionada com a sinfonia e oratórios, como uma celebração da arte da Dança. Nessa categoria estão contidas as danças nacionais e todas as obras, frutos da imaginação livre dos artistas da dança, que são distintas das danças com espírito histórico e dramático do teatro. A essência desse tipo de dança está nas pulsões interiores dos personagens sem uma preocupação com a narração e com os acontecimentos externos. Esses são alguns aspectos geradores da dança teatro e da dança como campo de pesquisa complexo e diverso.

Uma de minhas principais preocupações consistia em encontrar novos conteúdos para obras de dança cênica. Além das obras de fantasia, contos de fadas e obras de movimento que criei, produzi novas versões de famosos balés operísticos que se preocupavam com que a dança acessasse as profundezas do ser. Também tive várias oportunidades, em produções de óperas e operetas, de desenvolver a dança e o potencial de movimento que existe nestas formas de arte, até um nível que em minha opinião é essencial para a cena do futuro. (LABAN, 2001. p. 151 e 152).

A complexidade de pensamentos e possibilidades da dança contemporânea do século XXI também sofreu determinante influência dos estudos de Delsarte e Dalcrose. Isto porque entendemos que o fenômeno da dança contemporânea não exclui os propósitos da dança pós-moderna e nem os fundamentos da dança moderna, muito pelo contrário, inclui e amplia possibilidades expressivas e poéticas da arte do movimento. A dança contemporânea apresenta-se como parte desse fluxo em transformação. Delsarte dedicou-se à observação do corpo humano a fim de compreender a relação

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entre a linguagem gestual humana e seus possíveis significados emocionais. Estabelece em seus estudos o Princípio da Correspondência, partindo da ideia de que para todo movimento existe uma intenção correspondente. Desenvolveu também a Lei da Trindade, derivada da trindade Pai-Filho-Espirito Santo, estabelecendo outra trindade vida-alma-espírito (sensações-sentimentos-pensamentos). Dalcroze era compositor e professor de música, percebendo a falta de mecanismos técnicos para a compreensão do delsartismo, por parte de seus alunos, desenvolveu um sistema de preparação muscular e rítmica denominado Euritmia. Euritmia significa literalmente bom ritmo (de eu = bom, rhythm = fluxo, rio ou movimento). A euritmia de Dalcroze estuda todos os elementos da música através do movimento, é um meio para se atingir a plena musicalidade. Parte dos pressupostos básicos a seguir: todos os elementos da música podem ser experimentados (vivenciados) através do movimento; todo som musical começa com um movimento - portanto o corpo, que faz os sons, é o primeiro instrumento musical a ser treinado; há um gesto para cada som, e um som para cada gesto. Cada um dos elementos musicais - acentuação, fraseado, dinâmica, pulso, andamento, métrica - pode ser estudado através do movimento.

Os estudos destes pesquisadores estabeleceram bases filosóficas e subsídios técnicos para a dança moderna e mais à frente o que chamamos de dança pós-moderna e para a própria dança contemporânea. A dança moderna tem como um dos princípios, romper com a formalidade do balé clássico e resgatar o sentido emotivo do movimento. Os precursores da dança moderna, tanto na escola americana quanto na alemã - Isadora Duncan, Ruth Saint-Denis, Ted Shaw, Rudolf Laban, Mary Wigman, dentre outros – foram influenciados pelos princípios de Delsarte e Dalcrose. Preocupava-se, nesta fase, não apenas com os aspectos formais do movimento, mas dava-se uma atenção especial a sua respectiva intencionalidade.

Contudo, as escolas modernas ainda formalizavam suas expressões artísticas através de codificações dos movimentos. Em outras palavras, a dança moderna nasce contestando a limitação de um sistema codificado, porém não superou esta forma de sistematização, ao criar seus próprios códigos. Isto fica claro tanto na primeira geração citada, quanto na segunda – Martha Graham, Doris Humprey, Hanya Holm, dentre outros. As grandes técnicas da dança moderna surgiram durante os processos de construção dos espetáculos marcados por uma necessidade de individualidade de expressão (talvez a exceção seja Laban, uma vez que propõe um sistema ao invés de uma técnica). As técnicas modernas surgiram para estruturar caminhos pedagógicos de incorporação dos movimentos codificados para os espetáculos criados.

Com o início da dança pós-moderna inaugura-se uma investigação das possibilidades poéticas impressas na materialidade do movimento e no entendimento de que a matéria da dança pode ser encontrada também em gestos do cotidiano. A integração desierarquizada entre os aspectos constitutivos do humano (corpo-mente-espírito) já não estava sob prova. A materialidade do movimento continha todos esses aspectos. O movimento não precisava mais narrar um estado emotivo. Neste período destacam-se artistas como Lester

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Horton, Mercê Cunningham. Yvonne Rainer, Trisha Brown e demais artistas envolvidos no movimento da Judson Church, etc.

A dança contemporânea surge como parte deste processo de enfatização das

questões apresentadas, radicalizando na ideia do corpo como tema e potência poética.

Considera que qualquer movimento pode ser material para dança, qualquer corpo pode

dançar, qualquer procedimento pode ser um instrumento válido para a composição

- assume-se uma maneira libertadora de lidar com a forma e dramaturgia na dança.

Importante ressaltar que qualquer material pode ser conteúdo de dança, porém a dança

não se reduz à qualquer material de movimento, não se reduz à qualquer coisa.

Ao considerar todas as possibilidades expressivas como material para a dança,

ela assume uma atitude transdisciplinar, abrindo espaço para diversas possibilidades de

atuação. O intérprete da dança ganha nova característica e novas designações - intérprete

criador, ator/dançarino, ator/bailarino, atuante, etc. O coreógrafo assume uma função que

podemos chamar de compositor, diretor, orquestrador do material criado, etc. O processo

ganha mais relevância do que o produto e a ideia de técnica acaba se construindo ao longo

do desenvolvimento da obra. Quebra-se a fronteira dicotômica entre técnica e poética.

A formação dos artistas da dança contemporânea começa a se construir a partir da

multiplicidade de experiências e da hibridização de linguagens. Com isso, o ensino da arte

da dança, começa a visar experiências que potencializem as artes do corpo e a construção

poética da dança, ao invés da formatação corporal e disciplinar dentro de padrões de corpo

e movimentos pré-estabelecidos.

O século XX é mobilizado por um movimento de descoberta do corpo e suas

potencialidades, impulsionado por uma busca pela liberdade corporal e pelo estado de

plenitude. O corpo, a situação, o acontecimento passam a ser os aspectos em voga nas Artes

da Cena e em especial da dança. O corpo é o lugar de onde os conteúdos são originados

e para onde esses aspectos são direcionados; para a relação corporeidades dos artistas –

corporeidades do público. O corpo é destino, produto e território (CT), Corpo sem Lugar (CsL)

das cenas contemporâneas, no mesmo sentido metafórico proposto por Miranda (2008)

em Espaço sem Lugar (EsL), como uma analogia espacial ao conceito deleuziano artaudiano

Corpo-sem-órgãos evidenciando suas características de renovação e continuidade.

Esse é o campo do artista, daquele que se dispõe a com-viver com seu CT/ CsL-EsL. Se posso parecer estar fazendo a apologia do contexto cênico e do artista que o torna vivo, pergunto quem mais teria a coragem de voluntariamente disponibilizar o corpo para a entrada de seus múltiplos e se jogar nos abismos do outro, sair de si e assumir os personagens mais díspares e os movimentos mais abismais e perigosos. Mas seria este apenas o corpo dos artistas oficiais? Não. É o corpo do ser humano na arte de viver e se recriar a cada momento. Esse corpo sempre artístico recria a sua possibilidade de sobrevivência, permanentemente. Como? Com a imaginação e sua potência de criação. (MIRANDA, 2008, p. 83).

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Por outro lado, esse processo de legitimação do corpo caminhou paralelamente ao início da revolução industrial, em meio às grandes guerras, ao capitalismo em máxima potência e a um processo de globalização e fortificação de uma economia baseada no consumo. O consumo não privilegia a experiência (ser), valoriza a aquisição de coisas (ter). Adquirir é tido como mais importante que experimentar. Por mais que exista um movimento em contrafluxo a essa ordem sistemática mundial, o conceito de sustentabilidade é recente e ainda predomina como uma fala politicamente correta e está muito longe de se tornar uma prática global. O modelo de nossa educação está inserido nessa ordem mundial, segue o modelo das fábricas. As crianças são separadas por grupos e categorias para facilitar o acúmulo de informação. Valoriza-se a quantidade de informação adquirida pelo grupo, medido em coeficientes de aproveitamento, que são as notas. As crianças se adequam a essas informações e aos grupos e não o contrário. O processo é informativo. O educativo acontece à medida que for possível. Não há uma cultura de estímulo ao desenvolvimento de um processo individual, criativo, em coletivo, tornando o grupo um espaço possível para se tecer uma experiência de aprendizado, transformadora, educativa e estimuladora das subjetividades.

Estamos diante de um modelo de educação construtor de massas e gênios, afinal de contas, a sociedade do espetáculo precisa continuar a produzir suas celebridades. A criação deixa de ser atributo da existência e passa a ser tida como dom de poucos. Portanto, grande parte de nossas crianças são informadas para ser operárias e algumas para ser gerentes. Claro, o Brasil é enorme, temos muitas realidades em nosso país... E felizmente existem as exceções. Porém, infelizmente o modelo industrial de educação se aplica a maioria das escolas de ensino formal e informal de nosso país. E essas não são questões de classe, são ideológicas. Esse modelo também é predominante nas classes altas, a diferença está no fato de que essas crianças são preparadas para ser gerentes e não operários, mas continuam inseridas em um modelo industrial de educação.

O MEC insiste em implementar modelos de educação que criam falsos discursos em prol do desenvolvimento do ser, do processo educativo e humano em oposição ao modelo industrial. Porém esses modelos são inseridos nas escolas sem condições de aplicabilidade e acabam servindo ao modelo anterior, o industrial e ao discurso do politicamente correto. Esse modo industrial também está enraizado em ações simples do cotidiano, da educação familiar e informal e essa é uma das nossas grandes problemáticas existenciais atuais.

Em minha opinião o verdadeiro propósito do homem é criar uma existência que tenha ocasiões festivas. Não festiva no sentido de luxos e ócio, e sim como uma forma de desenvolver uma personalidade firme e de elevar-se a essas esferas que distinguem o homem do animal. Os grandes festivais da vida, assim como os momentos festivos cotidianos, devem ser completados por uma atitude espiritual centrada no aprofundamento do sentido da mutualidade e valorização da identidade pessoal de cada indivíduo. Por esta razão, e não por um desprezo aos bens e prazeres

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mundanos, considero o estilo de vida simples como uma das fontes mais importantes de felicidade humana. Uma pessoa que dedica demasiado tempo e energia cuidar dos detalhes materiais da existência, de sua casa, roupas, alimentos e outras necessidades, não dispõe nem de tempo nem de energia para participar de maneira criativa desta grande ideia comunitária e do espírito festivo que deveria ser a meta e a inspiração suprema de toda cultura. (LABAN, 2001, p. 75).

As relações entre arte e educação atravessam e são atravessadas por esse contexto. O ensino da Arte ainda é uma prática jovem no Brasil. Segundo Strazzacappa (2006), a história da dança educação é recente. Esta autora propõe em suas reflexões uma separação entre o ensino da arte e a formação do artista. A arte e a docência são experiências que às vezes se fundem, apesar das especificidades para cada uma dessas ações. Existem arte-educadores-artistas, arte-educadores que não são artistas, artistas que não exercitam a arte-educação.... Não há uma obrigatoriedade de relação entre as funções de artista e arte-educador na dança. Essas atividades, apesar de possuírem especificidades, dialogam. O importante é percebermos que não há dicotomia entre elas e encaminharmos nossas ações dentro do direcionamento a que se destinam, seja educação através da arte ou produção artística. É fundamental termos consciência do destino de nossas ações. Neste sentido é importante constantemente nos perguntarmos sobre: Quem detém o poder da arte? Qual a motivação? Qual o destino desta ação artística? Qual o público alvo?

Arte, dança, vida são poéticas, pois aparição, aparecem da ação, verdade – velamento e desvelamento. Este aparecer não é qualquer aparecer, qualquer coisa que se mostra e que se põe, é afeto por ser força, energia, movimento gesto – a própria dança se dando enquanto operar da verdade sendo obra-de-arte, vida. Ela (a dança) não representa nada, não é cópia ou reprodução de um já dado ou exigido, ela é, se apresenta, se mostra num vigor próprio. Como não representa, não significa, apenas existe – experiencia-se, presentifica-se. Porém como a dança se dá? Dançando! É na experiência, no exercício do fazer, só no fazer que a dança se manifesta. Ela se dá na maneira que se revela na presença e se reserva num retrair-se – ausência. (GROSS: 2010, p. 83).

Ambas as circunstâncias, a do artista ou a do arte-educador, quando dedicadas à arte da dança, têm como pré-requisito a materialidade e a experiência. Talvez este seja um dos aspectos mais relevantes para a ação dos artistas da dança no campo da educação. Importante refletirmos sobre o fato de que a experiência dessa materialidade é imprescindível ao arte-educador que se utiliza do universo da dança. A compreensão sobre a prática da dança auxilia no processo questionador das ações em dança e seus desdobramentos. Só pela experiência é possível perguntar-se sobre os fazeres – o que nos move a fazer dança e a que se destina – e o destino não precisa ter uma funcionalidade utilitária. As relações entre a dança e a educação não precisam ser submetidas ao modelo utilitário industrial de produção de informações e padrões. A prática artística não está atrelada a esta relação de funcionalidade. Gross (2010) atenta para a importância de um discurso ontológico sobre a inutilidade da dança. A dança não tem a função de produzir

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modelos de corpo, de movimento, cenas, espetáculos ou apresentações de final de ano.

Esta noção de inutilidade, constituinte da ação que caracteriza um processo de criação, não tem sua força geradora e motora exteriormente à sua própria criação. Ou seja, a ação criadora não coloca o fim ou a meta fora dela mesma. É o caminho de dentro para dentro. Sua ação se põe, se coloca, revigorando-se em si mesma, desde si mesma. Uma ação sendo ação, pura e simplesmente ato de fazer-se, sendo em si mesma. Ela tem interesse em si, não é interesseira; que se interessa em algo fora, exterior a ela própria. A ação criadora, sem obrigação de esperar ou buscar algo final (de finalidade) ou fora de si, traz a idéia, princípio, fundamento da inutilidade. A ação inútil é em si necessária, pois nasce e cresce de si para si mesma. (GROSS, 2010, p. 35).

A prática da dança seja ela num contexto de produção artística, formação do artista, formação de público, ensino da arte ou educação através da arte, apresenta-se dentro desta lógica de existência. A arte da dança, experienciada na universidade e realizada dentro da academia, também não foge dessa essência. A função da Arte na Universidade assume a tríade de ensino, pesquisa e extensão e possui como função primeira a viabilização de ações que respeitem a natureza da própria dança. Gostaria de, a partir dessas indagações, propor reflexões e ações por uma arte não utilitária, militarista e funcional e sim, por uma arte contra a barbárie humana, capaz de gerar saberes e experiências baseada no processo individual de construção de autonomia e reflexão.

Na verdade, seria incompreensível se a consciência de minha presença no mundo não significasse já a impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença. Como presença consciente no mundo não posso escapar à responsabilidade ética no meu mover-me no mundo. Se sou puro produto da determinação genética ou cultural ou de classe, sou irresponsável pelo que faço no mover-me no mundo e se careço de responsabilidade não posso falar em ética. Isto não significa negar os condicionamentos genéticos, culturais, sociais a que estamos submetidos. Significa reconhecer que somos seres condicionados mas não determinados. Reconhecer que a História é tempo de possibilidade e não de determinismo, que o futuro, permita-se me reiterar, é problemático e não inexorável. (FREIRE, 2009, p. 19).

Uma experiência em dança desvinculada da obrigação de servir a outro fim que não ela mesma, livre de uma função utilitária, de formatações de modelos de existência ancorados em uma falsa ideia de perfeição, saúde e bem estar, é uma experiência em arte geradora de autonomia e desveladora das potências singulares de cada indivíduo. Promove os saberes do corpo e suas potencialidades poéticas, construtoras de falas e discursos, formadora de indivíduos e opiniões. A meu ver esta é a grande potência da Arte seja num contexto de produção artística, formação do artista, formação de público, ensino da arte ou educação através da arte.

Neste sentido apresento o Projeto Jogo Coreográfico como uma possibilidade artística e pedagógica desenvolvida dentro dessas perspectivas discutidas. O Projeto Jogo Coreográfico surgiu em 2005 e desde então trilhou uma trajetória de ações que transitam entre Arte e Educação no campo da dança. É uma proposta interativa e divertida sob estrutura e forma de jogo com o objetivo de construir danças e que compartilha com o

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público a autoria da obra. A ideia surgiu como metodologia para a composição coreográfica. Hoje o projeto mantém uma vertente performática; que reúne espetáculos, performances e intervenções urbanas; e outra vertente artístico-pedagógica que reúne workshops, oficinas e residências coreográficas.

O Jogo Coreográfico surgiu a partir das experiências em sala de aula com os alunos do curso de Bacharelado em dança da UFRJ. O objetivo era de possibilitar aos alunos experiências de improvisação e composição a partir de conteúdos diversos. Era evidente a dificuldade por parte dos alunos de perceber o outro e se relacionar com o entorno durante as danças. Estavam muito preocupados em como realizavam os movimentos e em suas imagens no espelho da sala de aula. Sequer pensavam sobre a cena como tríade do fenômeno cênico: artistas de dentro da cena, artistas de fora da cena e público. Estar em relação é a condição primeira da improvisação e composição. A arte de compor danças tem sua origem na comunhão do homem em coletivo com o universo, não é a habilidade em articular conteúdos, é a arte de criar relações.

O agrupamento de atores no palco se dá através do movimento, cuja expressividade difere da do movimento individual. Os membros de um grupo se movem a fim de demonstrar seu desejo de entrar em contato uns com os outros. [...] O ator individual empregará por vezes a sua movimentação como se seus membros fossem os componentes de um grupo e esta é provavelmente a solução do enigma intrínseco à expressividade da gesticulação. (LABAN, 1978, p. 21 e 22).

Desde então foram estruturadas distintas maneiras de se organizar esse Jogo. A primeira estrutura criada para o acontecimento do jogo ainda é utilizada pelo projeto e funciona da seguinte maneira: o espaço cênico é delimitado por um linóleo, ou por uma fita crepe ou colorida. Todos os jogadores se posicionam fora dele para iniciar o jogo. Há três tipos de jogadores: Jogador Intérprete, Jogador Coreógrafo e Jogador Público. O modo de jogar é de rápida captação. Os Jogadores Intérpretes estão preparados para realizar algumas funções como: transitar pelas estruturas de caminhadas, pausas e desenhos livres pelo espaço. Realizar ações simples como sentar, levantar, olhar um ponto, dentre outras. Cada Jogador Intérprete possui uma partitura coreográfica. Estão preparados para imitar uns aos outros. O Jogador Coreógrafo pode combinar livremente as possibilidades de movimento dos Jogadores Intérpretes. Na frente do espaço cênico há uma mesa repleta de CDs variados e um som à disposição do Jogador Coreógrafo, que pode usar livremente os conteúdos musicais, podendo também usar CDs pessoais, ipod, músicas do celular, se quiser. À frente, também existem dois microfones que determinam o espaço que deve ser ocupado pelo Jogador Coreógrafo e também servem para informar suas indicações aos demais Jogadores. O Público, que também é um jogador, é posicionado de frente para o espaço cênico, após a mesa de CDs e os microfones. Os Jogadores Intérpretes ficam nas laterais do espaço cênico ou acima dele, prontos para entrar no espaço de cena, quando

solicitados pelos Coreógrafos.

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O Jogo Coreográfico surgiu como um jogo de aula para proporcionar uma reflexão sobre a complexidade dos aspectos apresentados. Ele apresenta uma estrutura de interação semiaberta, que permite que o grupo de pessoas que esteja jogando lide com os aspectos constitutivos da dança sob a perspectiva de princípios e, não de passos e formas pré-estabelecidas. Coreografia é entendida como as leis que determinam a inscrição dos movimentos no espaço e o Jogador Coreógrafo é aquele que rege essas leis no espaço cênico dentro de um limite de tempo. Ou seja, coreografia é a criação de relações. O Jogador Intérprete é aquele que realiza a proposta do Coreógrafo. Ele não é uma marionete, é sujeito de suas ações. Os artistas e alunos quando experimentam esta função, vivenciam a complexidade que é agir dentro de uma proposta estabelecida (a proposta do coreógrafo). Vivenciam a ambivalência entre ser sujeito e objeto da cena: enquanto sujeito, agem dentro das indicações estabelecidas e preenchem as lacunas existentes na proposta coreográfica estabelecida; enquanto objeto, agem dentro das indicações do Coreógrafo.

A estrutura de jogo faz com que a proposta coreográfica exista sempre enquanto acontecimento. Faz com que o imprevisível esteja sempre em voga e, com que a experimentação coreográfica seja sempre situação, desvinculando-se da perspectiva da cena enquanto repetição de formas e passos. Faz com que o jogador compreenda alguns aspectos das encenações pós-modernas a partir da vivência e não só através de leituras e observações. “Assim, o teatro se afirma como processo e não como resultado pronto, como atividade de produção e ação e não como produto, como força atuante (energeia) e não como obra (egon).” (LEHMANN, 2007, p. 170).

As possibilidades de atuações do Intérprete também são estruturadas dentro desta perspectiva semiaberta. Elas se desenvolvem a partir de um dos aspectos primordiais da dança contemporânea, de que todo o movimento pode ser conteúdo de dança. Parte dos princípios fundantes do pensamento labaniano do movimento como mudança e transformação e do corpo em movimento como linguagem complexa e passível de infinitas experimentações e desdobramentos.

O Jogo Coreográfico é uma experiência democrática de exploração da dança, acessível a todos os indivíduos e suas histórias corporais. Não há legitimação de um modelo de corpo, tão pouco privilegia alguma técnica ou estética para a dança. É uma estrutura de exploração investigativa, conectada às pulsões individuais de cada artista. É um tipo de performance experiência pós-dramática de produção de danças independentes, Reigenwerk, como já anunciava Laban (2001). Propõe uma democratização da dança através de investigações sobre seus conteúdos; pesquisa, improvisação, composição, interatividade e autoria. É uma possibilidade de abordar a dança tanto num contexto de produção artística, formação do artista, formação de público, ensino da Arte e Educação através da Arte.

Aos artistas e aspirantes à profissionalização em arte, o Jogo oferece a oportunidade de vivenciar uma proposta laboratorial de criação e refletir sobre uma ou mais propostas coreográficas a partir de diferentes pontos de vista: o do Coreógrafo/encenador, o do Intérprete e o do Público. Tem a oportunidade de lidar com as responsabilidades, prazeres,

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desprazeres e lacunas das diferentes funções que constituem a tríade fenomenal das Artes da Cena.

Na vertente pedagógica o aluno artista exercita e experimenta as funções de

Intérprete Coreógrafo e Público. Consegue experimentar os diversos aspectos da tríade que

constitui as artes da cena em uma estrutura de jogo capaz de respeitar as individualidades

e diversidades e experimentar a arte da dança a partir de sua própria fisicalidade e não de

uma formatação de habilidades e padrões de movimentos.

Na vertente performática o Público é colocado como autor e divide a

responsabilidade do espetáculo, estabelecendo uma comunicação ativa. Temos percebido

com o caminho percorrido deste Projeto que esta interatividade tem acontecido em um

ambiente de descontração e diversão e de que esta proposta também atinge o campo do

entretenimento através da dança. Os praticantes do Jogo se divertem construindo danças,

compreendem algumas das ferramentas da composição coreográfica, experimentam suas

próprias poéticas e vivenciam um fluxo grande de ideias coreográficas e possibilidades. Este

projeto também possui a função de disseminação do conteúdo da dança enquanto área de

conhecimento, respeitando as individualidades dos intérpretes e do público, bem como

valorizando uma cultura de pesquisa de movimento e não de passos, códigos e modelos,

além de contribuir para a formação de público para a dança. Acredito que esta também seja

uma ação educativa.

As vertentes performáticas do Jogo Coreográfico apresentam sempre como subtexto

a ideia de que somos indivíduos jogando juntos: São pessoas (bailarinos e público) com

desejos, habilidades e fragilidades, reunidos para fazer danças. A dança não é apresentada

como uma entidade especial que só pode ser usufruída por uma minoria privilegiada dentro

de um padrão específico. O corpo, com todas as suas belezas extraordinárias e imperfeições,

é tema de base. Os bailarinos não são seres sublimes, são seres humanos.

O corpo, sem prolongar uma existência como significante, pode ser agente provocador de uma experiência livre de sentido, que não consiste na atualização de um real e de um significado, mas é experiência do potencial. [...] teatro do corpo é o teatro do potencial, que na, situação teatral, se volta para o imprevisível entre-os corpos e valoriza o potencial como situação ameaçadora. (LEHMANN, 2007, p. 336).(grifos no original)

A participação do público é espontânea, por isso estamos sempre diante do risco de ninguém ir ao microfone jogar durante o segundo tempo, porém isso nunca ocorreu. Acredito que o Público jogou em todas as apresentações porque construímos um ambiente favorável e convidativo à interatividade. Criamos um ambiente propício e convidativo para a instauração da celebração, para que o público se sentisse parte do coletivo, para que o Jogo Coreográfico acontecesse fosse um acontecimento festivo. Temos percebido que, a situação de jogo durante o Jogo Coreográfico acontece de fato e no sentido apresentado

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por Huizinga (1995), estabelecendo uma evasão da vida real para uma esfera temporária de atividade capaz de absorver inteiramente os jogadores.

Também à coreografia advém, de novo, obrigações de caráter realista. É um equívoco afirmar, como se tem feito ultimamente, que a coreografia não é chamada para a reprodução dos ‘homens tal como são na realidade’. Arte, quando espelha a vida, o faz com espelhos especiais. A arte não deixa de ser realista por alterar as proporções, deixa sim, quando as altera de tal modo que o público, ao utilizar as reproduções, na prática, em ideias e impulsos, naufraga na realidade. Evidentemente, é necessário que a estilização não suprima a naturalidade do objeto, mas, sim, que a intensifique. Porém, seja qual for o caso, a verdade é que um teatro que tudo extrai do gesto não pode prescindir a coreografia. A elegância de um movimento e a graça de determinada disposição coreográfica são, já em si, efeitos de distanciamento, e a invenção pantomímica é um pretensioso auxiliar da fábula. (BRECHT, 1978, p.132).

Ao colocar como principal tema das ações performáticas a construção de danças a partir das relações entre Jogadores Intérpretes, Jogadores Coreógrafos e Jogador Público, problematizamos o paradoxo ceder e propor, trazemos como tema relações de controle e poder. O maior embate das relações humanas está sempre nesse paradoxo, as relações são negociações de desejos, mutantes e transitórias. Nessa tensão está uma das nossas principais questões existenciais: tudo é perecível.

As artes populares, que evocam o lazer, divertimento e entretenimento, geralmente são espaços em que o público coloca o seu desejo com grande naturalidade. Na origem da história das Artes no ocidente, quando a arte ainda era associada ao ritual, eram comuns as manifestações diretas do público, tecendo comentários, lançando objetos e alimentos no espaço de cena. Os Teatros Medieval e Elizabetano também preservaram esse tipo de comunicação direta e espontânea. O Teatro Épico, também teve como proposta uma relação direta com o público, capaz de romper com o voyerismo da 4ª. parede e de assumir o empenho das artes em divertir, como algo que lhes confere uma dignidade especial. Afinal, já dizia Brecht (1978):

[...] o espectador poderá recrear-se, como se tratasse de uma diversão, com as tremendas e infindáveis canseiras que lhe hão de dar a subsistência, e com o pavor que lhe inspira a sua interminável transformação. Num teatro deste tipo o espectador tem a possibilidade de formar a si próprio da maneira mais simples, pois a forma mais simples de existência é a arte que no-lo proporciona. (BRECHT, 1978, p. 134).

Intervenções dessa natureza trazem como proposição a importância de ações em coletivo capazes de apontar a dialética das relações humanas e de potencializar o respeito aos diferentes pontos de vista. A interatividade humana é uma questão importante hoje, num mundo em que grande parte das discussões gira em torno da interatividade digital, que propõe uma qualidade líquida e porosa às relações. Essa liquidez é tão poética, necessária

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e interessante, quanto mórbida. O Jogo propõe a aceitação de dualidades como essa, como paradoxos, entendendo a complexidade da existência no sentido dado por Artaud em seu Corpo sem órgãos, que sugere uma desterritorialização de valores capaz de construir uma dança às avessas a partir das potências dos impulsos de morte e vida, aceitando a crueldade e o devir e reconhecendo que nas pontas de cetim existem calos. Estamos falando de um bailarino, Jogador Intérprete, sujeito, constituído por mistérios, pensamento e um corpo estrutura com onze sistemas corporais. Nossa proposta é em direção a essa dança feita de pensamento, ação, mistérios, para além de uma articulação entre os sistemas ósseo e muscular. A corporeidade, com todas as suas belezas extraordinárias e imperfeições, é tema de base. Os bailarinos não são seres sublimes, são seres humanos.

O propósito da vida, tal como concebo, é o cultivo da essência humana em oposição à robotização, é um chamado para salvar a humanidade de uma confusão terrível. As imagens de um festival do futuro, um conglomerado de vida em que todos os celebrantes estejam em comunhão de pensamento, sentimento e ação, é o de alcançar uma meta comum bem definida: a de enriquecer sua própria luz interior. Poderá tudo isso ser expresso por meio da dança? Unicamente se os participantes acreditarem que a dança é uma ética de vida, e somente quando forem capazes de permitir que esta experiência se infiltre em sua forma de vida, em seus impulsos até chegar a seus movimentos. (LABAN, 2001, p.120).

Referências

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BAUMAN, Z. Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

BRADLEY, K. Rudolf Laban. London and New York: Routledge, 2009.

BRECHT, B. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

COHEN, R. Work in Progress na Cena Contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2004.

FARTHING, S. Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários á prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.

GROSS, J. Dança: Poética do repouso. Dissertação de Mestrado, 2010. Pós-graduação em Ciência da Literatura, UFRJ, Rio de Janeiro, 2010.

HUIZINGA, J. Homo ludens. O Jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 1995.

LABAN R. Una vida para la danza. México: Ríos y raíces, 2001

________. Dança educativa moderna. São Paulo: Ícone, 1990.

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________. O Domínio do movimento. São Paulo: Summus, 1978.

LEHMANN, H. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

MIRANDA, R. Corpo-Espaço: Aspectos de uma geofilosofia do movimento. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008.

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______. Dramaturgias do corpo: Protocolos de criação das Artes da Cena. Tese de Doutorado, 2009. Instituto de Artes, UNICAMP, Campinas, 2009.

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SEÇÃO 2

PROCESSOS CRIATIVOS

LIVE-ELECTRONICS Obra enquanto processo dinâmico e interativo

Rael B. Gimenes Toffolo12

Introdução

A arte na contemporaneidade, através de diversos desdobramentos na forma de pensar seus problemas atuais decorrentes de mudanças paradigmáticas provenientes de praticamente todas as áreas do conhecimento, tem buscado formas de propor realizações artísticas que se apoiem na construção de significações emergentes da inter-relação mais direta dos conteúdos artísticos com os conteúdos interpessoais do fruidor. Processos artísticos apoiados nos conceitos de interatividade ou interação, ou em preceitos mais fenomenológicos, se considerarmos principalmente as fenomenologias de linhagem pontyana e pós-pontyana, têm se refletido em diversas formas do fazer artístico, como ocorre também na música.

Nesse sentido, pretendemos demonstrar aqui como esses conceitos e processos relacionam-se ou reverberam na prática musical contemporânea, em especial na prática composicional denominada por live-electronics ou Interactive Computer Music. Porém, antes de iniciarmos as discussões acerca de tal práxis composicional, permito-me apresentar um breve percurso de como a musicologia ao longo da história do ocidente, relaciona-se com o pensamento filosófico. Tal histórico pode parecer um pouco extenso para a discussão mais específica sobre o live-electronics, porém, acredito que a compreensão da força que as 12 Rael B. Gimenes Toffolo é bacharel em Música com Habilitação em Composição e Regência pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) tendo estudado com Edson S. Zampronha e Flo Menezes Filho. Mestre em Musicologia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) com pesquisa na área de Epistemologia e Práxis do Processo Criativo em Música. Doutorando em Música pela Unesp sob orientação de Florivaldo Menezes Filho com pesquisa na área de Composição Musical. Atua como pesquisador nas áreas de cognição musical, rede neurais artificiais aplicadas à percepção auditiva, Psicologia Ecológica e Historiografia Musical. Como compositor dedica-se à música instrumental, mista e eletroacúsitica com obras premiadas no Ogólnopolski Osrodek Sztuki dla Dzieci i Mlodziezy - Polônia, no Concurso nacional Rítmo e Som e no 1st. International Electroacoustic Composition e no Prêmio Funarte de Composição Clássica (2010). É professor de Composição e Matérias teóricas do Curso de Graduação em Música da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e regente da Orquestra da Universidade Estadual de Maringá.

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transformações epistemológicas oriundas de visões fenomenológicas têm desempenhado na forma de pensar e agir na atualidade pode ficar mais clara quando confrontada com a história das transformações do pensamento humano, logicamente em um recorte musicológico tal como se faz aqui, além de fomentar um panorama salutar para críticas e contribuições posteriores.

Trazendo a discussão para um âmbito um pouco mais pessoal, vale ressaltar que a insistência em realizar um panorama sobre a história da musicologia para se falar da prática do live-electronics é decorrente da minha prática de professor de Composição Musical.

Atualmente, devido ao barateamento dos aparatos tecnológicos, o live-electronics passou a ser uma vertente composicional amplamente praticada, principalmente por compositores iniciantes. Essa prática, por muitas vezes, devido a um certo fetichismo tecnológico como aponta Menezes (1998), vem acompanhada de certo grau de ingenuidade - acredito que principalmente pelo fato de que há uma parcela de propostas composicionais que acaba por desconsiderar os feitos musicais do passado acarretando em um certo niilismo musical. Nesse sentido que, aqui, propus demonstrar como o live-electronics pode ser considerado dentro de uma visão fenomenológica, mas somente após entendermos o que esse paradigma pretende por em discussão quando comparado com a longa trajetória de discussões sobre o fazer e o pensar musical. É, logicamente, um visão mais didática que tem sido efetiva com meus alunos de composição que vão invariavelmente atuar no campo do live-electronics, mas que poderão fazer isso de forma mais consciente e preparada.

2 Percursos musicológicos13

Historicamente, a Musicologia apresenta definições distintas decorrentes de diferentes embasamentos teórico-filosóficos. Inicialmente tal disciplina foi considerada como o estudo acadêmico sobre música. Depois, tal definição amplia-se para o campo de conhecimento que tem como objetivo a investigação musical como um fenômeno físico, psicológico, estético e cultural. Mais recentemente, passa a incluir, em seu campo de atuação, estudos que se relacionam com aspectos ainda mais gerais, aproximando-se da Sociologia e da Antropologia. Assim, por diferentes movimentos ou correntes, sempre se apresenta a musicologia como disciplina dependente, relacionada, mas não reduzida à história da música, à análise musical, à crítica musical, ou ainda à etnomusicologia. Nossa intenção é tratar musicologia em seu sentido mais amplo, como área formada por diferentes conjuntos de estudos sobre música.

O interesse no estudo de aspectos envolvidos com a experiência musical acompanha a história do desenvolvimento da humanidade, considerando aqui o mundo ocidental. Em várias culturas da antiguidade a música está relacionada mais ou menos à funções sociais específicas. O historiador Roland de Candé (1994) apresenta a música como um tipo de sabedoria coletiva desenvolvida em sociedades antigas como as da Índia, Mesopotâmia,

13 Há nesse texto extratos de artigos do autor escritos em parceria com os colegas pesquisadores Luis Felipe de Oliveira (UFMS) e André Luiz Gonçalves de Oliveira (UNOESTE).

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China, Egito, Ásia Menor, Fenícia e Mediterrâneas. Em tais sociedades a música desempenhou vários papéis em diferentes etapas de seu desenvolvimento. Apesar da grande variedade musical todas as formas de música da antiguidade tiveram forte caráter funcional, sempre aparecendo associada à outras atividades sociais como outras práticas artísticas e religiosas, por exemplo. De outra forma podemos dizer que a música era apenas uma parte de uma estrutura maior de manifestação cultural, ou rito social.

Dentro da tradição criada na sociedade greco-latina a música também ocupou um importante espaço na vida social. Desde Pitágoras, a música era considerada como parte de uma cosmologia fundada no conceito de número enquanto unidade, conceito este que se aplicava às várias instâncias do cosmos; através do número é que se entendiam as proporções dos corpos sonoros, sua relação com o nível humano e com o movimento das esferas celestes. Pode-se mesmo dizer que a música estava presente na fundação do que é denominado Filosofia no mundo ocidental. O interesse em estudar fenômenos que envolvem música pode ser notado em diversas passagens dos autores da Grécia Antiga.

Como argumenta Aristófanes (séc. IV a.C.) na obra As rãs, houve uma decadência musical na Grécia a partir do momento em que os sofistas opuseram-se a possibilidade de uma sabedoria acusmática, classificando-a como inferior com relação à artes mais referenciais e autores como Sófocles, Ésquilo e Eurípedes diminuíam o uso de recurso musical em suas tragédias. Platão, quando critica a música instrumental ganhando independência com relação à palavra, indica aspectos decadentes na prática musical de sua época e a sentencia à exclusão da República. Para Platão a prática musical de seu tempo é decadente porque a música está perdendo sua função, seu ethos. Aristóteles apresenta um posicionamento distinto e considera a música como a mais mimética das artes. Para ele a obra musical é a que melhor consegue imitar caracteres, paixões e ações. A decadência e desvalorização da música é mantida por todo o tempo do Império Romano (Cf. Candé, 1994). Foi com o desenvolvimento do cristianismo que a música encontrou novamente espaço para desenvolvimento.

Durante a Idade Média, a música foi utilizada pela Igreja com importante instrumento na construção de sua própria identidade, o que, de certa forma, a coloca diretamente na origem da identidade cultural do ocidente. O Canto Gregoriano, como filho do canto cristão primitivo e de certas diretrizes históricas, foi o primeiro tipo de música própria da cultura ocidental. Por um lado, essa prática musical foi tomada como forte instrumento doutrinador da ética e da política cristã-romana. Por outro lado, tratadistas medievais como Agostinho de Hipona e Boécio preocuparam-se muito mais com aspectos metafísicos, apoiados num sistema Platônico, e pouco relacionaram-se com problemas de ordem prática. Além disso, é necessário considerar que a cosmologia pitagórica é mantida na Idade Média, permanecendo nos estudos sobre música dentro de um sistema que organizava o conhecimento como sete artes liberais, formadas pelo Trivium e pelo Quadrivium14. 14 O Trivium compreendia a Gramática, a Retórica e a Lógica, enquanto que o Quadrivium a Geometria, a Aritmética, a Música, e a Astronomia. Vale salientar que o estudo da música, como parte do Quadrivium não se referia ao estudo técnico de aspectos musicais, tais como os procedimentos composicionais ou questões de

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Nesse sentido, pode-se observar que em torno do século X a teoria teve um caráter bastante metafísico e pouco se relacionou com a prática. Desse período em diante, ao contrário, a teoria concentrou-se em aspectos mais práticos, visando muito mais o desenvolvimento composicional do que o de teses filosóficas. Um indício dessa mudança de paradigma é o caráter essencialmente prático de tratados como o Micrologus de Guido d´Arezzo.

O período que marca o fim da Idade Média tem início quando o desenvolvimento e cultivo do conhecimento começa a sair da guarda estrita da Igreja. A partir do século XII esse movimento ganhou força e teve como consequência o que ficará conhecido como Renascimento. O aparecimento das universidade como unidades produtoras do conhecimento acentua o processo humanista que dá suporte ao Renascimento (Hauser, 1995). O século XVI assiste a uma das maiores mudanças na história do pensamento ocidental, chamada revolução copernicana, que não apenas substituiu a teoria geocêntrica que se mantinha desde Aristóteles, mas também destruiu qualquer vestígio da antiga cosmologia de origem pitagórica. Nasce a ciência moderna, e com ela uma nova era. No que diz respeito à teoria musical, a Renascença amplia o desenvolvimento de tratados teóricos que lidam cada vez mais com aspectos da prática composicional. Desde Vitry até Rameau, passando por Tinctoris e Zarlino, entre outros, os tratadistas da Idade Moderna estavam principalmente ocupados com o desenvolvimento de regras e padrões práticos. Com isso, a composição polifônica pôde entrar em uma outra época, pós-Machaut, já preparando o caminho e desenhando os primeiros esboços do sistema tonal.

O Renascimento é um movimento de grande desenvolvimento em todas as áreas do conhecimento. Além de um marco na passagem entre Idade Média e Idade Moderna, e por isso de grande importância para toda a cultura ocidental, esse movimento se caracteriza por grandes mudanças funcionais da música na sociedade, devido às transformações políticas e também por fortes mudanças técnicas em diferentes modalidades artísticas. Na pintura, por exemplo, o advento da perspectiva, a volta de figuras humanas e de animais, elementos mais naturais do que religiosos, indicam um tempo de aproximação com a natureza. Na arquitetura, o uso das colunas e da luz que entra pelas grandes janelas, ou iluminam os grandes vitrais, são indícios de uma postura arquitetônica oposta aos padrões medievais. Em suma, não é apenas a música que ganha novo fôlego e um novo período de desenvolvimento com o Renascimento, mas todo o conjunto de possibilidades artísticas.

A influência de Descartes na filosofia e na ciência europeia do século XVII foi tão significativa que podemos considerar a Idade Moderna como a era do pensamento cartesiano, caracterizado por duas principais doutrinas: o racionalismo, inclusive enquanto metodologia científica, e o dualismo mente-corpo, também chamado de dualismo cartesiano. Obviamente, tanto a nova cosmologia, possibilitada pela revolução copernicana, quanto as novas práticas científicas e filosóficas, decorrentes do pensamento cartesiano,

execução instrumental, mas ao estudo das proporções harmônicas num amplo sentido do termo, conforme prescrevia a doutrina pitagórica. Sobre música e Pitágoras, cf. (Tomás, 2002).

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alteraram as formas de como se fazer, experimentar e falar sobre música.No século XVIII, influenciados pelo Iluminismo e pelos enciclopedistas, os estudos

musicais encaminham-se à procura de seus fundamentos objetivos. Assiste-se ao crescimento do interesse por aspectos acústicos e físicos do som que foram amplamente explorados pelos matemáticos Joseph Sauveur (1653-1716) e Leonhard Euler (1707-1783) e pelo físico Ernst Chladni (1756-1827). Por outro lado, também se observa um renascimento da Estética Musical, com o surgimento de várias obras na França e na Alemanha que buscavam classificar e comparar as várias formas de artes, assim como sugerir hipóteses sobre as suas origens e fundamentos primordiais. Se a busca pelo objeto da música estava em andamento na física, o sujeito que percebe e interpreta música vai ser tema central da estética nascente no período. O grande modelo estético era a arte poética e as artes eram comparadas principalmente segundo o critério da mímesis - a capacidade de representar a natureza, ou as paixões. Talvez uma das mais fortes manifestações do princípio da imitação, da mímesis, seja a chamada Doutrina dos Afetos, que apesar de não se constituir em uma prática sistemática, chega a estabelecer quase que um léxico musical, principalmente na Alemanha. Mesmo em tratados de caráter mais científico e racionalista, como é o caso do Traité de Rameau (1971), o princípio de imitação está presente como elemento primordial, sendo a harmonia tonal redutível a princípios naturais justamente pela imitação que aquela é da série harmônica.

No século XIX, os estudos relacionados com a percepção alcançam os trabalhos de Hermann von Helmholtz (1821-1894) e de Carl Stumpf (1848-1936), ambos interessados em elucidar aspectos psicológicos da audição, procurando explicações para os fenômenos estéticos considerados intangíveis até o momento. Ao mesmo tempo, a Estética Romântica abandona definitivamente o princípio da imitação para assumir a música como um fenômeno que está além da natureza e do descritível, seja por sons seja por palavras. A estética romântica pode ser então descrita, de certa forma, como a estética do inefável, da música como uma linguagem do inexprimível. Não é por coincidência que nesse período, na perspectiva de Schopenhauer (1988), a música atinge sua maior independência perante as demais artes, especialmente a poesia, e é colocada como a forma de arte mais valorizada, justamente por sua expressividade não mimética e sua independência dos conceitos.

De certa forma, existe uma contraposição entre as pesquisas de caráter fisicalista de Helmholtz e Stumpf e a filosofia metafísica de Schopenhauer. Essa oposição também pode ser encontrada entre Hanslick, de um lado, e Wagner, de outro; entre a música entendida como representação de nada além de si mesma e a música servindo a um ideal máximo e sintético da obra de arte total, da Gesamtkunstwerk, que Wagner retirou da tragédia clássica. Tal dicotomia é fruto específico do posicionamento cartesiano assumido pela ciência moderna. Áreas como a psicologia15 não surgiriam descoladas da física não fosse o rumo cartesiano da história da ciência. Há como consenso uma posição distinta entre os

15 Apesar do termo único, entendemos que a Psicologia abarca áreas distintas e nossa crítica encaminha-se especificamente àquelas mais ligadas à metafísica dualista.

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assuntos chamados de ciências humanas e os chamados de ciências naturais. Tal distinção é tão carente de fundamento que, sem querer aprofundar a crítica, poder-se-ia questionar se o próprio homem não faz parte da natureza. No entanto, para retornar ao ramo central do nosso interesse, a musicologia do início do século XX é fruto de uma ciência objetivista e de uma filosofia e psicologia metafísicas, que se entendem como distintas, quando não como excludentes.

O século XX permitiu uma pluralidade de ideias e teorias como nunca se encontrou anteriormente. Não somente no campo teórico e estético, mas entre compositores e escolas composicionais. Neste século também se fortaleceram inúmeras dicotomias, todas elas espécies de derivações da grande carga dualista cartesiana própria da era moderna, nos domínios musicais práticos e teóricos: música erudita (ou clássica) e popular; música séria e música de entretenimento; música antiga e música contemporânea; música conservadora e música de vanguarda, entre outras.

Foi no século XIX e principalmente no XX que, apesar desse multifacetamento, a área de musicologia se estabeleceu de maneira sólida e definitiva. Anteriormente não era possível a musicologia se colocar como área de conhecimento, com objetivos e metodologias específicas, apesar de tentativas de se classificar tal ciência desde o século XVIII; mesmo porque as áreas de atuação da musicologia se transformaram muito ao longo da história, como demonstramos até o momento.

Framery, no século XVIII, apresenta uma das primeiras divisões que demarcaram o escopo da musicologia. Tal autor criou uma árvore de disciplinas e áreas de atuação que tem como raiz a Acústica subdividida em ciências quantitativas e ciências metafísicas, a Prática Musical subdividida em composição e interpretação e a História da Música que engloba os fatos presentes e passados, a história da música e dos músicos e a música dos nativos e estrangeiros. Ainda no século XVIII, Forkel apresenta uma divisão diferenciada que se caracteriza pelos estudos da física do som, da matemática do som, da gramática musical, da retórica musical e da crítica musical. A preocupação com a música não ocidental tem início nos trabalhos de Fétis, no século XIX, que pode ser considerado como o formador das bases para o surgimento da Musicologia Comparada ou Etnomusicologia. Guido Adler, em 1855, foi o responsável pela distinção entre musicologia histórica e musicologia sistemática, que amplia a área de estudos musicológicos para além daqueles de natureza histórica, incluindo aspectos teóricos e analíticos, sociológicos e culturais, estéticos e educacionais. De fato, o termo musicologia, ou Musikwissenschaft, que significa ciência da música, surge como título do trabalho de Johann Bernhard Logier, em 1827 - apesar de que os termos musikalische Wissenschaft e tonwissenschaft remontam a textos do século XVIII, e significam ciência musical e ciência do som, respectivamente.

No entanto, quando se fala em musicologia enquanto ciência, tradicionalmente o que se tem em mente são as áreas das ciências humanas, principalmente as ciências sociais e a filosofia. No século XX inclusive, existe uma grande ênfase em aspectos sociológicos, antropológicos e etnológicos, talvez mesmo até em detrimento de questões filosóficas

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(epistemológicas e mais ainda ontológicas). Dentro dessa linha, alguns musicólogos do século XX sugeriram que a etnomusicologia deixasse de ser uma subárea da musicologia para, na verdade, ser ela própria a visão de musicologia a ser praticada. Segundo tal visão, a musicologia deve englobar, estudar e se relacionar com aspectos estruturais e estéticos, porém sempre dentro de uma visão sociológica, não eurocentrada, que substituísse a musicologia essencialmente histórica feita até então. Dessa forma a musicologia tradicional deveria adotar a metodologia aplicada aos estudos etnomusicológicos como afirmam Harrison et al. (1963): “É função de toda musicologia ser na verdade etnomusicologia.” Essa visão recuperada e revisitada a partir da década de 1980, recebe o nome de Nova Musicologia e foi protagonizada por trabalhos influenciados pela Nouvelle Historie, pela Antropologia Cultural, pela Sociologia, pela Crítica Literária e pelos trabalhos da Escola de Frankfurt. Kramer (2003), em sua Musicologia Cultural afirma que suas preocupações centram-se, antes de mais nada, em questões do significado musical amplamente elaboradas em um contexto antropológico. A tendência geral na musicologia pós década de 80 caracteriza-se pela investigação dos fenômenos musicais a partir dos aspectos sociológicos, significações de tais manifestações em grupos sociais, não considerando questões que se afastem disso.

A partir dos anos de 1990, surge um outro tipo de musicologia que se concentrou não sobre aspectos sociais e antropológicos, mas sobre aspectos psicológicos e cognitivos da experiência musical. Tal área, chamada de Musicologia Cognitiva, caracteriza-se em primeiro lugar, por uma reformulação da agenda de pesquisa da psicologia da música e em segundo lugar por apoiar-se nos desenvolvimentos da chamada Revolução Cognitiva dos anos de 1970. Huron (1999) aponta que a Musicologia Cognitiva se opõe à Psicologia da Música, porque esta última se apoia fortemente no positivismo devido a seus protocolos behavioristas sendo, dessa forma, impedida de responder questões ligadas à experiência musical num sentido amplo. A Musicologia Cognitiva possui, também, um forte apelo computacional, decorrente das modelagens da Inteligência Artificial e do Conexionismo surgidos com a Revolução Cognitiva.

Parncutt (2007) busca destrinchar o conceito guarda-chuva de musicologia, estipulando duas grandes categorias nos estudos sobre música da atualidade: musicologia sistemática e musicologia histórica e etnológica. Por sua vez, a musicologia sistemática se divide em dois sub-grupos. O primeiro é a musicologia sistemática científica, incluindo a relação entre a música e áreas como a psicologia, as ciências sociais, a acústica, a fisiologia, a neurociência e a ciência cognitiva. A segunda, a musicologia sistemática humanística, inclui a filosofia estética, a sociologia, a semiótica, a hermenêutica, a crítica musical e os estudos culturais e de gêneros.

Nos últimos anos, temos visto a manifestação de uma área que se autodenomina Musicologia Interdisciplinar que tem como principal fundamento a aproximação entre as duas vertentes da Musicologia Sistemática, segundo o entendimento de autores como Parncutt. De qualquer forma, a delimitação das ciências que constituem uma área como a musicologia sempre será limitada, mesmo porque a prática de pesquisa, principalmente

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dentro das perspectivas multi ou interdisciplinares, que têm se destacado na atualidade, parece escapar a uma sistematização. Nesse sentido, parece mais fácil delimitar agendas de pesquisa e questões a serem estudadas do que áreas e metodologias que podem exercer tais investigações. Mesmo porque, nos parece, a Musicologia sempre teve, no mínimo, uma vocação interdisciplinar.

3 Música enquanto fenômeno

Até o momento nos concentramos em fazer uma reconstrução da história da Musicologia, ainda que bastante superficial e ligeira, evidenciando não uma linearidade histórica mas sim apresentando as distintas caracterizações que o estudo da música apresentou. Porém, agora passamos a considerar que a partir dessas questões e preocupações formuladas pela musicologia nos encontramos em um universo extremamente plural de hipóteses a cerca do fazer musical e de seus processos de fruição. Nesse sentido, a fenomenologia, com especial ênfase à fenomenologia de linhagem merleau-pontiana, propõe formas que superem os paradigmas dualistas cartesianos sobre os quais tanto discorremos acima.

Durante o século XX, quando Schaeffer (1966) busca alternativas para o futuro da música, encontra nos escritos do alemão E. Husserl uma maneira nova de abordar a composição musical fundada na percepção anterior à estruturação musical que, não intencionalmente, abriu um campo de possibilidades para a possível superação do dualismo tipicamente cartesiano presente na musicologia tradicional. No entanto, não é apenas no título de uma das obras de Husserl, as Meditações Cartesianas, que fica clara a marca cartesiana, principalmente no que se refere ao dualismo de substâncias. Alguns leitores de Husserl, como Merleau-Ponty, Varela, Maturana e mesmo Heidegger, também apontaram certa proximidade dele com uma perspectiva idealista, sobretudo na descrição da redução fenomenológica, ou ainda em sua ansiedade pela descoberta da essência da experiência.

De qualquer forma, a obra de Schaeffer, ainda que problemática em vários aspectos, pôde abrir caminho para outras formulações de uma musicologia menos cartesiana. Entre os problemas que identificamos no tratado de Schaeffer é o suporte conceitual husserliano, sobretudo em sua descrição da redução fenomenológica como eficaz para encontrar a essência da experiência. Esse problema da essência no centro da explicação sobre a experiência é apontada por Merleau-Ponty, aluno de Husserl, logo no início da Fenomenologia da Percepção. Mas se dissemos que a fenomenologia exclusivamente husserliana não é suficiente para escaparmos efetivamente dos problemas decorrentes do dualismo cartesiano, entre eles a distinção entre o mundo da ciência e o mundo metafísico, ou entre o mundo da atividade mental e o mundo da atividade física, podemos esboçar aqui algumas direções que consideramos adequadas para nossos propósitos.

Fenomenologia tem sido um termo empregado por diferentes filósofos com certa variedade de significados. Na atualidade acadêmica, o termo tem sido bastante empregado

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para designar uma tradição filosófica que se intitula husserliana, que tem ligação direta com as proposições de Brentano relacionadas ao pensamento de Tomás de Aquino e Artistóteles. Essa fenomenologia foi tema de estudos e comentários de uma série de autores durante todo o século XX, sobretudo através de escritos de alunos de Edmund Husserl, como Heiddeger, Merleau-Ponty e Sartre, por exemplo. Em suas obras escritas em meados do séculos XX, Merleau-Ponty apresentou um caminho para a ontologia que passa por uma nova descrição do papel do corpo e da interação entre tal corpo e seu meio. Esse autor propõe, em suma, uma ontologia fenomênica. Afirma em Fenomenologia da Percepção que sua intenção é colocar a experiência, no centro do estudo da própria experiência, e não substituí-la por uma suposta essência encontrada através de sobrevôos de um sujeito sobre um objeto.

Há outras proposições acerca do termo fenomenologia que também terão nossa atenção. Husserl pode ser considerado fundador de uma fenomenologia que se pretende como fundamento de toda a filosofia, em oposição àquilo que a metafísica representava até então. Mas, de certa forma, quando filósofos anteriores tratavam de aspectos perceptivos, da aparência das coisas e como as percebemos, já se pode ver um gérmen de fenomenologia — o termo fenômeno vem de phainomenon, em grego, que significa aparência. A fenomenologia kantiana, por exemplo, postulou as categorias do entendimento como as formas intuitivas e conceituais anteriores a toda e qualquer experiência; o mundo só pode ser conhecido por meio dessas categorias, e elas determinam, logicamente, como os fenômenos nos são apresentados.

A fenomenologia kantiana, que pressupõe uma metafísica apriorística, tem forte apoio nas categorias Aristótélicas e pode ser considerada como as bases sobre as quais C. S. Peirce fundou a sua fenomenologia triádica Aristóteles postulou dez categorias, em Kant elas são doze e em Peirce se reduzem a três. As categorias de Peirce diferenciam-se daquelas de Aristóteles e Kant ao deixarem de ser exclusivamente descritivas, proposicionais, modos específicos de se descrever a realidade para alcançarem uma universalidade por “[...] sua correspondência aos modos elementares pelos quais se articulam e se combinam os fenômenos que povoam o universo total e irrestrito da experiência.” (SILVEIRA, 2007). Aqui é interessante notar a aproximação conceitual com a proposição de Merleau-Ponty ao buscar uma fenomenologia que coloca a experiência no centro do estudo da própria experiência. Também há semelhança com a proposta de Varela et al. (2003) que apresentam uma ciência cognitiva que esteja no centro de uma circularidade fundamental entre o mundo e os corpos dos percebedores que agem nesse mundo, entre o pensamento reflexivo e a experiência direta.

Desde a última década do século XX, bem como no início do XXI, é crescente o número de pesquisadores na área de ciência cognitiva que apontam uma espécie de naturalização da fenomenologia de tradição husserliana. O objetivo de autores como Petitot et al. (1999), Varela et al. (2003), ou Roy et al. (1999) é aproximar a filosofia, epistemologia e ontologia, de ciências como a biologia, por exemplo, para o desenvolvimento de explicações sobre a

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cognição sobre bases alternativas às do dualismo cartesiano. Por naturalização, Roy et al. (1999) entendem a adoção de uma estrutura conceitual comum entre explicações sobre os fenômenos e propriedades admitidas pelas ciências naturais. Com isso, tais autores esperam aproveitar melhor os conceitos trazidos por Husserl, fugindo dos problemas que sua inclinação a certo idealismo traz.

Após esse breve histórico de como a musicologia abordou questões centrais relacionadas ao fazer e fruir musical, podemos considerar algumas formas de criação musical que se inserem nesse paradigma fenomenológico que se coloca a partir do século XX. Não pretendemos afirmar que esse é o único paradigma possível à criação musical, porém, em diversas áreas da produção artística cada vez mais temos visto emergir preocupações ou realizações estéticas que consideram a arte como ocorrendo na inter-relação entre obra e fruidor. Conceitos como arte interativa, estética relacional, significação emocional, entre outros, são cada vez mais abordados por artistas, filósofos, neurocientistas ou psicólogos, conceitos estes que demonstram como a superação dos dualismos cartesianos, propostos pela fenomenologia, possibilitou o surgimento de diversas práticas artísticas.

Passamos então a considerar mais especificamente a vertente composicional denominada por live-electronics para verificarmos como ela se insere nessa mudança de paradigma que se considera fenomenológico.

4 Live-electronics

Desde o surgimento da música eletroacústica em meados dos anos de 1940, os compositores têm buscado formas diferentes de abordar questões como: diferentes organizações discursivas, pressuposições estéticas, conceitos de obra musical, relação ouvinte x obra, entre outros. A partir da produção inicial da música eletroacústica, comumente denominada por tape solo procurou-se formas de relacionar os ganhos poéticos advindos do universo eletrônico à prática musical instrumental, dando origem à chamada música mista. A preocupação em formas de relacionar esses dois universos, ou dimensões, ficou tão evidente que a primeira realização composicional nesse sentido recebeu o nome de Musica su due dimensione, composta por Bruno Maderna, em 1952.

Luciano Berio, ao discutir formas de inter-relação da significação textual em obras eletroacústicas, aponta questões que superam tal relação inclusive considerando aspectos da interação entre ouvinte e obra.

O ouvinte será posto cada vez menos na condição de dever fechar os olhos a fim de se entregar aos sonhos musicais: ele será convidado pela própria situação a participar conscientemente da ação. Para que o sentido desta se torne inteligível, o ouvinte deverá seguir as transformações e as proliferações imprevisíveis dos sons vocais e instrumentais através dos vários tipos de manifestações práticas, tendo em vista a presença mais ou menos efetiva de uma ação visível por parte dos intérpretes. Uma densa rede de relação não cessará de estimular reações conscientes

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entre os compositores e intérpretes (e entre um público cada vez mais ‘participante’), capazes de purificar definitivamente os nossos costumes musicais de cada resíduo dualístico. (MENEZES, 1996, p. 128).

A citação de Berio é relevante ao demonstrar como as preocupações dos compositores do período - o texto é de 1959 - tendiam à busca de relacionamentos em diversos campos musicais, desde a relação compositor-intérprete, bem como do ouvinte e obra, além de apontar a inter-relação entre aspectos musicais, visuais e gestuais. Também vale ressaltar a afirmativa do compositor em considerar que todas essas transformações são necessárias para que se eliminassem os resíduos dualísticos de nossos costumes musicais, fortalecendo o que apontamos acima.

Berio continua:

Para que tudo isso se torne realidade, será decerto necessário que cada experiência seja conduzida pelo compositor e pelo intérprete por meio de um contato vivo e permanente com a matéria sonora, e não por meio de suas sugestões superficiais ou de divagações esquemáticas de qualquer equívoco pseudo-serial, já que, por si sós, os procedimentos seriais não garantem absolutamente nada: é sempre possível serializar péssimas idéias, da mesma forma como é possível versificar pensamentos estúpidos. (MENEZES, 1996, p. 128) (grifo no original).

Nota-se mais uma vez uma preocupação mais fenomenológica ou experiencial

ressaltando que os processos estruturalistas nem sempre são eficientes em promover a superação dos resíduos cartesianos pretendidos por Berio.

A busca por relacionamentos mais efetivos entre as dimensões eletroacústicas e instrumentais, bem como os estudos dos processos de significação que consideravam o contexto relacional entre obra e ouvinte, dentro de um paradigma claramente não dualista ou estruturalista, direciona a prática musical a horizontes diferentes.

Um dos primeiros desafios enfrentados pelos compositores foi o de desenvolver processos composicionais que pudessem diminuir a rigidez temporal da música eletroacústica mista principalmente engessada por um tape pré-determinado ou fixo. A discussão a cerca da rigidez temporal do tape foi feita tanto por defensores da ideia quanto por aqueles que acharam que essa rigidez temporal engessaria as possibilidades interpretativas do instrumentista16.

A despeito de tal querela temporal, tentativas de desenvolver discursos musicais que superassem tal rigidez influenciaram no surgimento de propostas composicionais mais interativas. É nesse panorama que o live-electronics se fortalece.

A produção de áudio em tempo real passa a ser explorada por praticamente todos os compositores que se dedicam à vertente eletroacústica. Tal desenvolvimento passou por inúmeras fases, mais ou menos associadas ao desenvolvimento da tecnologia do período

16 Para uma visão mais panorâmica sobre tal discussão ver Schulz (2010); Dias (2006); McNutt (2003).

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(MANNING, 2004), mas, o mais importante é que os processos desenvolvidos por essa vertente musical propiciaram cada vez mais a busca por relações de interação entre os diversos agentes musicais.

Como dissemos acima, uma das primeiras preocupações dos compositores que se dedicaram ao live-electronics foi a de criar formas de relação menos rígidas entre a dimensão instrumental e a eletroacústica, em especial no aspecto temporal. Processos de identificação de eventos musicais (trigger, score following, pitch detector, etc) foram amplamente desenvolvidos para tais finalidades e estão presentes em praticamente todas as ferramentas computacionais utilizadas no live-electronics.

Posteriormente, as possibilidades de interação foram ampliadas consideravelmente. A preocupação com formas de interatividade passam a ser discutidas por diversos autores como Rowe (1993, 2001), Paine (2002), Garnett (2001), entre outros. As discussões a respeito de interatividade são em muitos casos antagônicas. Rowe e Paine consideram que a interatividade ocorre na relação entre o homem e a máquina e buscam processos composicionais e computacionais que efetivem essa relação, principalmente considerando os estudos das áreas da inteligência artificial. A interação é definida e considerada, por tais autores, no contexto homem máquina, compartilhando a ideia de que ambos os participantes do processo, homem e máquina, têm que ter atitudes criativas e afirmam que a maioria dos processos de live-electronics falham nesse sentido - em não conceber o plano computacional de forma que este manifeste atitudes cognitivamente inteligentes. Propõem, dessa forma, processos que se utilizam de redes-neurais, ou outros tipos de modelagem computacional de processos inteligentes. Compositores de vertentes opostas, não consideram os agentes homem versus máquina como separados no processo composicional. Para autores dessa linha de pensamento a máquina no live-electronics é apenas uma extensão dos processos estruturais organizados pelo compositor, pois sua programação tem que ser idealizada e realizada pelo compositor, sendo parte integrante da obra e não um agente separado.

Uma das grandes linhas de criação dentro do live-electronics é aquela que busca utilizar o gesto instrumental como parâmetro de manipulação ou controle de processos computacionais. Machover (1992) documenta, em seu artigo, os principais avanços realizados no grupo de pesquisas de Hyperinstrument no MIT. O conceito de Hyperinstrument, desenvolvido pelos pesquisadores desse centro, consiste em considerar as possibilidades de manipulação sonora do live-electronics de forma a ampliar as possibilidades acústicas dos instrumentos. Inúmeros tipos de sensores são acoplados aos instrumentos e instrumentistas visando esse fim.

Considerando a questão pelo viés estético, Garnett (2001) aborda o live-electronics já em um contexto tecnológico mais atualizado, denominando tal prática por Interactive Computer Music. Para Garnett, o live-electronics ou Interactive Computer Music pode ser basicamente dividido em duas grandes vertentes complementares. A primeira é aquela em que a performance humana contribui de alguma forma com os processos computacionais e a segunda é aquela em que o resultado sonoro dos processos computacionais interfere

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ou contribui de alguma forma na performance do instrumentista. Tal interferência pode ser planejada e realizada de diversas formas, tanto no que se refere à captação de gestos do instrumentista ou do público, do próprio som produzido por este, quanto na determinação da escrita musical para incluir improvisação, tomada de decisão do que tocar por parte do instrumentista a partir do que for produzido pelo aparato computacional, entre outras.

De forma semelhante Emmerson (2007) propõe uma concepção de Living Electroacoustic Music, considerando questões também provenientes da fenomenologia, da cognição musical, da inteligência artificial, da psicologia ecológica, entre outras. Tal consideração aponta, mais uma vez, para uma preocupação constante por parte dos compositores em superar os conceitos tradicionais de obra, ouvinte, espaço, significação, entre outros. Emmerson passa em revista, como outros autores apontados acima, diversas transformações ocorridas nas formas de pensar conceitos como o corpo na música eletroacústica, formas de captação do som na performance, que não só captam o som para processamento, mas também buscam forma de capturar a ação corporal, e como esse corpo relaciona-se com o espaço. Tais visões só são possíveis a partir do momento em que o interesse pela relação, seja ela, entre homem x máquina – como postula Garnett – entre ser e mundo, público e obra, público e espaço, obra e significação, foram evidenciadas por um pensamento mais fenomenológico. A própria preocupação com a ideia de relação ou interação como aspecto a ser considerado na composição parecer ser, para todos os autores abordados aqui, o que demarca o conceito de live-electronics ou Living Electroacoustic Music.

Portanto, o live-electronics passa a incorporar a improvisação, o gesto instrumental, a movimentação do público, o espaço, a video-arte, a iluminação, e tudo o que mais puder ser explorado, estendendo os horizontes da obra, muitas vezes, para além da própria demarcação do campo musical, podendo em alguns casos ser considerado como uma instalação ou performance tal como nas artes visuais, como podemos ver em algumas obras nas quais o que ocorre sonoramente e visualmente no espaço é criado a partir da captação e processamento de dados provenientes da ação de músicos, bailarinos e do público que se movimentam pelo espaço. Há assim, uma consideração de um tipo de obra que se faz em vivo, se me permitem o barbarismo, naturalizada, que nasce do processo de atuação, enquanto parâmetro considerado composicionalmente, de diversos agentes presentes no ato da performance sendo eles humanos ou computacionais.

5 Considerações Finais

A partir do exposto até aqui, podemos erigir certas considerações que relacionem um pouco mais fortemente os panoramas tanto da musicologia quanto da prática do live-electronics.

Verificamos que ao longo da história do século XX, a vertente fenomenológica buscou a superação dos paradigmas da filosofia e ciência moderna, em especial a superação dos

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dualismos cartesianos. O trabalho de Merleu-Ponty apontou, como dissemos acima, para a busca da experiencia como explicação da própria experiência e do papel do corpo que experiência o mundo, em substituição a explicações subjetivistas ou objetivistas do mundo. Em música, acreditamos que o live-electronics pode ser considerado como decorrente dessa visão fundante e paradigmática sobre o viver, principalmente por considerar as diversas formas de relação, tal qual apresentado, como aspecto ou até parâmetro composicional. Práticas que coloquem essas relações em evidência, como procedimentos em que a ação corporal do instrumentista ou do público são levadas para dentro das fronteiras da obra, muitas vezes dilacerando tais limites, são fortemente decorrentes dessas visões fenomenológicas pois acarretam na criação de uma obra enquanto processo que emerge da relação entre todos os participantes. A obra musical que já desdo o começo do século XX tornou-se cada vez mais aberta, para usarmos o conceito de Eco (1990), torna-se mais aberta ainda, pois a abertura significativa passa para outras dimensões não possíveis de serem abarcadas se não em posturas mais fenomenológicas. Além do live-electronics se caracterizar como um tipo de obra em que o processo de interação faz parte do próprio discurso musical, podemos considerar que as discussões já presentes desde o início da música eletroacústica, no que se refere à significação musical, tornam-se ainda mais evidentes. A necessidade de considerar como se organiza o discurso musical, que não mais se estrutura de acordo com as regras do sistema tonal, ou sequer se organiza exclusivamente a partir do sons com altura definida, passa a ser ainda mais evidenciada em um tipo de obra em que o gestual do instrumentista, do público, manipulações de luz, de espaço, passam a ser parâmetros composicionais. Essas discussões não somente se restringem ao universo do compositor e de sua prática, mas passam a ser consideradas na relação com o intérprete e nas formas de significação que esse tipo de discurso faz emergir da relação entre obra e ouvinte. Todas, obviamente, questões que enfrentamos e enfrentaremos quando assumimos que a arte contemporânea pode ser considerada como um processo de significação dinâmico, naturalizado, dependente de todas as partes envolvidas no processo de fruição: artista, público, obra, espaço, corpo em ação, cultura e tudo o mais que for possível relacionar a tal processo.

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INSTALAÇÕES E INTERATIVIDADE, PORTA ABERTA AO PÚBLICOAdriana Vaz17

Introdução

O presente artigo foi dividido em três partes: Arte Contemporânea - Atos de Comunicação, Arte Contemporânea - Vivências e Encontros e Relato de Experiência - Porta Aberta ao Público. Nas duas primeiras, apresenta-se a discussão trazida por Anne Cauquelin e Nicolas Bourriaud a respeito dos paradigamas da arte contemporânea e a relação do público com esse tipo de produção. Um dos objetivos é compará-los com Pierre Bourdieu, que teoriza sobre as regras do campo artístico e, com isso, compreender o que permanece válido na apreciação da arte contemporânea. Na terceira, analisam-se algumas das obras da exposição Instalações e Interatividade, na qual participação do público era determinante na efetivação do processo criativo, com intuito de entender como o artista-consumidor interfere nesse processo. A mostra Instalações e Interatividade foi realizada na Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO-PR)18 e apresentava o trabalho desenvolvido pelos discentes durante o módulo de Composição Visual19 do curso de pós-graduação. Para a realização das obras que integram a mostra, os discentes fizeram a leitura dos autores Anne Cauquelin, Arthur Danto, Nicolas Bourriaud e Pierre Bourdieu. Esses autores já haviam sidos abordados no módulo Arte e Ciências Humanas, ministrado nos dias 23 e 24 de abril (12 horas) e 07 e 08 de maio (12 horas). O módulo de Composição Visual tinha como objetivo a criação de uma instalação artística interativa, tendo como embasamento teórico o conceito de apropriação ou pós-produção discutido por Nicolas Bourriaud. De cunho prático, o encaminhamento metodológico do módulo estava estruturado em duas etapas: a produção da obra e a montagem da exposição. Para a produção da obra, o aluno adotava o seguinte roteiro: a seleção do artista (obra), o elemento ou ideia apropriada, a descrição da obra criada, a apresentação do registro do processo criativo. Já, a segunda etapa incluia: a execução da obra propriamente dita, a escolha do espaço físico no qual a obra seria instalada na Universidade e a montagem da exposição. As regras do campo teorizadas por Bourdieu permanecem vigentes nas teorias apresentadas por Cauquelin e Bourriaud. Com a arte contemporânea, o artista e a obra são 17 Doutora e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná, especialista em História da Arte do Século XX pela EMBAP e graduada em Educação Artística com Habilitação em Desenho pela Universidade Federal do Paraná. Atualmente é professora da Universidade Federal do Paraná, no Departamento de Expressão Gráfica, em Curitiba.18 Durante o período de 21 a 25 de maio de 2010, no Campus Santa Cruz, em Guarapuava-PR. 19 Teve início nos dias 14 e 15 de maio e foi finalizado nos dias 21 e 22 de maio, ambos com 12 horas.

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valorizados num sistema que ocorre em rede e não sendo mais os pivôs, como acontecia na arte moderna. O público descrito por Cauquelin e Bourriaud é o público especializado, cuja participação no caso de obras interativas e relacionais, é essencial na caracterização da arte contemporânea.

Resultados e Discussão

Arte Contemporânea - Atos de Comunicação

A produção de Marcel Duchamp para muitos teóricos que problematizam a respeito da arte contemporânea continua sendo referência obrigatória, Anne Cauquelin no capítulo Os embreantes20 situa Marcel Duchamp, Andy Warhol e Leo Castelli como os representantes da arte contemporânea. A autora faz uma separação entre a arte moderna e a arte contemporânea, a primeira pertence ao consumo e a segunda, à comunicação. A arte contemporânea não abrange apenas a obra produzida, mas implica que o artista participe de uma rede de comunicação que o insere no campo artístico. O campo em funcionamento gera uma pluralidade de linguagens artísticas, essa variedade ocasiona uma multiplicidade de julgamentos e dilata os critérios de valor, o que permite indagar: todo tipo de produção pode ser considerada arte contemporânea? A avaliação da qualidade artística da arte contemporânea não se pauta apenas no conteúdo das obras ou no pertencimento do artista a determinado grupo de vanguarda, esses dois critérios são relativos.

O papel do público é outra discussão trazida por Cauquelin (2005, p.13), ao tratar do alheamento do público em presença da arte contemporânea. Com a difusão da arte contemporânea, o campo artístico além de ter uma demanda comercial se concretiza como um mercado simbólico, que é realimentado por um público especializado. “As obras, e se vê aí o paradoxo mal compreendido, são cada vez mais numerosas; os museus, as galerias crescem e se multiplicam, e a arte nunca esteve tão afastada do público.” As causas para esse distanciamento se explicam primeiro pelo posicionamento do marchand que difere daquele do público, o público não desmembra o valor monetário do artístico; segundo, pelo mal-estar gerado pelas pessoas em função do sentimento de não pertencimento ao mundo da arte. O não pertencimento é resultante da falta de informação, da perda de referência estética e da adoção de critérios errados na leitura da obra contemporânea. O público julga a obra de modo ideológico, ou seja, se prende “[...] a uma ideia convencionada do que devem ser a arte, o artista, o mercado e o aficionado.” (CAUQUELIN, 2005, p.13).

A arte contemporânea rompe com as “[...] ideias de arte [...]” (CAUQUELIN, 2005, p.17-18) vivenciadas e já cativadas pelo público: primeiro, a arte associada à ideia de progresso que é marcada pela inovação e linearidade temporal; segundo, a arte como ruptura do poder instituído que trata da transição do acadêmico para o moderno e de sua

20 O termo o embreante equivale ao quantum de capital artístico acumulado por eles no campo da arte.

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autonomia em relação à burguesia; e, terceiro, a arte como um valor em si.O público, mesmo confuso em relação a que tipo de arte merece sua apreciação, tem

consciência do sistema da arte, o conhecimento desse sistema é que permite apreender o conteúdo das obras. A produção é regulada pelo campo artístico, que condiciona os códigos de leitura. O sistema em seu estado contemporâneo ainda gera incompreensões pelo período recente que se instaura, já que as transformações artísticas ocorridas nas duas últimas décadas não permitem que o público em geral tenha clareza de quais são os códigos vigentes. Os dois fatos citados acima explicam o divórcio do público não especializado com a arte contemporânea, logo, “[...] o divórcio entre a arte contemporânea e seu público torna-se uma questão de Estado – em todos os sentidos do termo” (CAUQUELIN, 2005, p.15-16).

O sistema da arte não gera apenas obras para serem consumidas materialmente, e sim ideias, cujo consumo é simbólico. O mercado simbólico amplia tanto os tipos de abordagens teóricas, quanto a diversidade de obras produzidas. Por um lado, as ideias versam sobre a pluralidade de tendências artísticas que são concretizadas simbolicamente por meio de atos de comunicação; por outro lado, a arte contemporânea é consumida teoricamente com base em diferentes abordagens: a noção de modernidade, o mercado de arte e a recepção.

Mesmo com a modificação da arte moderna para contemporânea, o público que consome arte continua sendo especializado, denominado por Cauquelin de destinatário. O regime de comunicação proposto por Cauquelin é composto pelos subitens: rede, bloqueio, redundância e saturação, nominação e construção da realidade. Estar em rede provoca a substituição do consumo pela comunicação, somente quem está em rede participa do jogo21. “Em termos de comunicação, a rede é um sistema de ligações multipolar no qual pode ser conectado um número não definido de entradas, cada ponto da rede geral podendo servir de partida para outras microrredes.” (CAUQUELIN, 2005, p.59).

A rede tem vários polos de acesso, não é central e concêntrica. Diferente da arte moderna, na arte contemporânea não existe mais a figura central do artista ou do marchand, ambos estão conectados a outras microrredes, com isso “a noção de ‘sujeito’ comunicante apaga-se em favor de uma produção global de comunicações. É o que se designa também como interatividade [...]” (CAUQUELIN, 2005, p.59-60).

O bloqueio remete à questão da circularidade do dispositivo, ou melhor, a obra de arte contemporânea é analisada como produto da rede. “A rede de comunicação que carrega a arte contemporânea caracteriza-se por um bloqueio; em outras palavras, por uma circularidade total do dispositivo: vêem-se expostas à vista do público não tanto obras singulares, produzidas por autores, mas a imagem da rede propriamente dita.” (CAUQUELIN, 2005, p.74).

Na atualidade, a coexistência de microrredes caracteriza o funcionamento do campo. Segundo Pierre BOURDIEU (2007, p.149) o jogo continua e com ele, a disputa por capital

21 Segundo CAUQUELIN (2005, p.77), “[...] o artista que entra ou ‘é posto’ na rede é obrigado a aceitar suas regras se quiser permanecer nela. Ou seja, renovar-se e individualizar-se permanentemente, sob pena de desaparecer dentro do movimento perpétuo de nominação que mantém a rede em ondas”. (Grifo meu).

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simbólico 22. O capital simbólico é sinônimo de nominação que, de acordo com Cauquelin são os sujeitos dentro da rede com o poder de nomear. “A nominação permite, de um lado, o recambiamento entre partes e totalidade, e, de outro, escapar à ideia muito desagradável de não ser senão um ponto sem consistência dentro de uma rede cuja totalidade escapa a qualquer apreensão” (CAUQUELIN, 2005, p.62).

Na rede existem os produtores, os profissionais da circulação das obras, as obras e os artistas-objetos. Se a arte contemporânea ocorre em rede, indaga-se: qual o posicionamento do público e a quem se destina a comunicação posta em rede? O público é o destinatário, e ainda “[...] os destinatários são também gestores da rede.” (CAUQUELIN, 2005, p.78). A informação gerada mantém a rede em funcionamento, o público no sentido usual compartilha do espetáculo independente do seu julgamento, basta que saiba que se trata de arte contemporânea.

O que nós chamamos de ‘público’, ou seja, cidadãos comuns, é convidado ao

espetáculo e não tem como não aquiescer. Com seu julgamento estético posto

entre parênteses, a questão é antes de mais nada fazê-lo se dar conta de que se

trata de arte contemporânea, independente do que ele próprio possa pensar. O

preço e a cotação estão lá para lhe assegurar que o espetáculo tem valor. Que

é de fato arte, uma vez que as obras estão expostas em um local ad hoc, no

museu ou em galerias de arte contemporânea (CAUQUELIN, 2005, p.79). (grifos

no original).

O valor simbólico da obra está atrelado ao espaço expositivo, portanto o espaço define a obra. O preço, que seria o valor comercial da obra, também tem a função de atestar a qualidade artística da obra. Para Cauquelin (2005, p.79), “[...] é a ‘exposição’ que carrega a significação: ‘isto é arte’, e não as obras. É a rede que expõe sua própria mensagem: eis o mundo da arte contemporânea. E assim o público consome a rede, enquanto a rede consome a si própria.”

Em suma, Cauquelin aponta para dois perfis de público: o especializado e o não especializado. O distanciamento do público diante da arte contemporânea comprova que o mercado da arte que antes tinha apenas clientes comerciais, na atualidade já tem um público cativo. O público cativo participa da rede e conhece os códigos de leitura do sistema da arte.

22 Chamo de capital simbólico qualquer tipo de capital (econômico, cultural, escolar ou social) percebido de acordo com as categorias de percepção, os princípios de visão e de divisão, os sistemas de classificação, os esquemas classificatórios, os esquemas cognitivos, que são, em parte, produto da incorporação das estruturas objetivas do campo considerado, isto é, da estrutura de distribuição do capital no campo considerado.

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ARTE, ATUALIDADE E ENSINO

Arte Contemporânea - Vivências e Encontros

Nicolas Bourriaud também discorre sobre as mudanças de paradigmas entre a arte moderna e a contemporânea. A primeira trata da produção artística que em função da variedade de práticas não se constitui numa essência imutável, ou seja, o novo não é mais o critério. A segunda explicita que a arte não tem mais um compromisso ideológico e teleológico, a modernidade continua com outros padrões de análise. Colocações como o fim da arte ou o fim da história também não são mais válidos. A terceira alteração é que na arte contemporânea não existe uma única vanguarda, visto que antes “[...] a arte devia preparar ou anunciar um mundo futuro: hoje ela apresenta modelos de universos possíveis.” (BOURRIAUD, 2009, p. 17-18).

O postulado da arte moderna priorizava a relação entre o artista (comercial ou vanguarda) e sua produção (acadêmica ou moderna), o público não era o ponto principal. Na arte contemporânea, o público tem uma participação mais ativa, nesse sentido “[...] a possibilidade de uma arte relacional (uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado) atesta uma inversão radical dos objetivos estéticos, culturais e políticos postulados pela arte moderna” (BOURRIAUD, 2009, p.19-20). (grifo no original)

O foco recai sobre a relação do público com a obra e não mais sobre a produção ou o artista em si. Para Bourriaud (2009, p.20-21), a obra contemporânea “[...] se apresenta como uma duração a ser experimentada, como uma abertura para a discussão ilimitada.” A relação entre público e obra problematiza o estar juntos, o encontro entre observador e quadro, objetivando a elaboração coletiva de sentido. A exposição por ser realizada em espaços públicos (galerias, museus, etc.) possibilita o convívio entre as pessoas, diferente do consumo privado. O uso dos espaços privados em detrimento dos espaços públicos já havia sido apontado por Canclini23.

A arte contemporânea é importante por fazer uso desses espaços públicos, os quais se convertem em locais de convivência coletiva. “A arte é o lugar de produção de uma socialidade específica: resta ver qual é o estatuto desse espaço no conjunto dos estados de encontro fortuito propostos pela Cidade” (BOURRIAUD, 2009, p.21-22). Portanto, “[...] a exposição é o local privilegiado onde surgem essas coletividades instantâneas, regidas por outros princípios: uma exposição criará, segundo o grau de participação que o artista exige do espectador, a natureza das obras, os modelos de socialidade propostos ou representados, um ‘domínio de trocas’ particular” (BOURRIAUD, 2009, p.24).

Bourriaud dialoga com Bourdieu, ao citar que o mundo da arte se coloca como um

23 Na cidade do México, a diferença entre o uso dos espaços institucionalizados [...] em comparação ao consumo da televisão[...] revela uma reorganização dos hábitos culturais cada vez mais direcionados às mensagens audiovisuais que são recebidas em casa e expressam códigos internacionais de elaboração simbólica. (CANCLINI, 1997, p. 111).

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“[...] espaço de relações objetivas entre posições”, na luta entre os diversos produtores em conservar e/ou conquistar novas posições dentro do campo artístico, nesse sentido “[...] é a arte que faz a arte, não os artistas.” (BOURRIAUD, 2009, p.37-38). Sendo assim, “[...] a história da arte pode ser lida como a história dos sucessivos campos relacionais externos, que mudam de acordo com práticas determinadas por sua própria evolução interna: é a história da produção das relações com o mundo, intermediadas por uma classe de objetos e práticas específicas” (BOURRIAUD, 2009, p.39). Diante dos pressupostos da arte contemporânea elencados por Cauquelin e Bourriaud, as regras do campo artístico discutidas por Pierre Bourdieu não são mais veladas. Se antes a autonomia do campo e, com ele, a autonomia da produção estava centrada na relação da arte pela arte em oposição à arte comercial, hoje, a condição mercadológica dentro do campo já é aceita, justamente pela expansão de um mercado simbólico e pela mudança de paradigmas. Na arte contemporânea, a autonomia do campo não recai sobre o tipo de produção ou o estilo de obra produzida, mas na experiência única que o público vivenciará diante da obra, em função das suas possibilidades de compreensão. Bourriaud (2009, p.82) resgata o conceito de aura de Walter Benjamin aplicando-o ao público e não à produção. O público não é mais universal, mas captado pelo artista. A partir de 1960, com a prática da performance, a relação obra e público pressupõe um acordo que é definido pelo tempo de exibição e pela duração da obra. Nesse sentido, a arte contemporânea opera sob o signo da não-disponibilidade, ao pressupor um tempo determinado de visitação. Sendo assim, “[...] a obra de arte não é mais aberta a um público universal nem oferecida ao consumo numa temporalidade ‘monumental’; ela se desenrola no tempo do acontecimento para um público chamado pelo artista. Em suma, a obra suscita encontros casuais e fornece pontos de encontro, gerando sua própria temporalidade.” (BOURRIAUD, 2009, p.41). (grifo no original) Para Bourriaud (2009, p.46), os artistas que produzem seguindo a estética relacional propõem como obras de arte: “[...] a. momentos de socialidade e b. objetos produtores de socialidade.” Considerando a temática da obra, não existe nenhum estilo, tema ou iconografia que aglutine os artistas produtores de arte contemporânea, e sim “[...] o fato de operar num mesmo horizonte prático e teórico: a esfera das relações humanas.” (BOURRIAUD, 2009, p.60). E, por fim, “[...] suas obras lidam com os modos de intercâmbio social, a interação com o espectador dentro da experiência estética proposta, os processos de comunicação enquanto instrumentos concretos para interligar pessoas e grupos.” (BOURRIAUD, 2009, p.60). O público descrito por Bourriaud se assemelha ao da posição de Cauquelin, considerando-se que a sua presença diante da obra é propulsora do sistema de comunicação em rede proposto pela arte contemporânea. Constata-se também a aceitação de diferentes públicos, com posições e apreciações diversificadas – os gostos efetivados dependem das posições ocupadas, levando em consideração o espaço que o espectador ocupa tanto no

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âmbito social, quanto educacional.

Relato de experiência - Porta aberta ao público

Segundo BOURRIAUD (2009a, p.22), “[...] a apropriação é a primeira fase da pós-produção: não se trata mais de fabricar um objeto, mas de escolher entre os objetos existentes e utilizar ou modificar o item escolhido segundo uma intenção específica.” Outro autor que aborda o conceito de apropriação é Arthur Danto (2006, p.18-19):

A meu ver, a principal contribuição artística da década foi o surgimento da imagem apropriada – a apropriação de imagens com sentido e identidades estabelecidos, conferindo-lhes um sentido e uma identidade novos. Como qualquer imagem poderia ser apropriada, segue-se imediatamente que não poderia haver uniformidade estilística perceptual entre as imagens apropriadas.

Para criação das obras da exposição Instalações e Interatividade, os alunos aplicaram o conceito de apropriação de Bourriaud e escolheram como referência diferentes artistas e períodos da história da arte, os mais citados foram: Leonardo Da Vinci, Duchamp, Magritte, Nelson Leirner, Andy Warhol – artistas estudados durante os dois módulos da pós-graduação. Leonardo da Vinci com a obra Mona Lisa e também a Mônica Lisa de Maurício de Souza aparecem no trabalho de uma aluna, intitulado: Marias. Nesse caso, a interatividade foi percebida durante a apresentação dos alunos, já na última etapa do processo. O rosto da Mona Lisa é simbolizado pelo espelho oval. O espelho reflete a imagem de Jesus Cristo situada na parede contrária, em função da posição do observador demarcada no piso pelo contorno dos pés. O contorno do pé delimitando a posição do público, no lugar exato assinalado no chão, direcionava o olhar para enxergar a imagem do Cristo refletida, processo percebido depois da obra já exposta. A participação do público modificou o significado inicial proposto na leitura da obra que seria Maria(s) e João(s) refletidos, assumindo o papel da Mona Lisa. Ao demarcar o espaço físico: chão, observador e quadro, a obra mudou de dimensão, não era apenas o quadro em si.

Segundo BOURRIAUD (2009a, p. 16), “[...] a obra de arte contemporânea não se coloca como término do ‘processo criativo’ (um ‘produto acabado’ pronto para ser contemplado), mas como um local de manobras, um portal, um gerador de atividades. Bricolam-se os produtos, navega-se em redes de signos, inserem-se suas formas em linhas existentes.”

Outro trabalho que compõe a mostra utiliza Volpi, com a instalação intitulada Quadrilha. A obra era formada por um painel de bandeirinhas fixadas numa parede em branco, o movimento das mesmas era acionado pelo ventilador, segundo a vontade do público. Com o ventilador ligado a obra deixava de ser estática e o som das bandeiras em movimento também interferia na apreciação, portanto, ligar ou não o ventilador modificava

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a percepção do público e o sentido da proposta.Na obra Sonho, o espaço expositivo agregou valor à proposta e modificou sua leitura

inicial. Inicialmente, o título era o ponto principal e o elo com a produção do Surrealismo24, o público interagiria com o trabalho, continuando a trama de fios fixados no biombo. Durante o registro do processo criativo, modificou-se a forma de interação com o observador, a posição do observador foi demarcada pela silhueta da aluna desenhada no chão com giz escolar e a inscrição “Deite”. Ao deitar a trama de fio somada à estrutura metálica do telhado criou uma nova imagem.

Conclusões

A teorização sobre a arte contemporânea proposta por Bourriaud e Cauquelin condiz com a teoria da prática25 de Bourdieu, o que permite concluir que a arte contemporânea, como objeto de pesquisa, estreita a convergência entre os teóricos da arte e da sociologia. A comunicação em rede de Cauquelin, a estética relacional e a pós-produção de Bourriaud retomam a teoria da prática de Bourdieu.

Comparando Bourdieu com Cauquelin, a rede aparece como sinônimo de campo, a nomeação equivale ao quantum de capital adquirido pelo artista, crítico ou galerista. E a participação do público depende do habitus, que caracteriza o público especializado. A estética relacional de Bourriaud operacionaliza a teoria da prática de Bourdieu, que também é denominada de relacional. Para Bourriaud é o espectador quem dá sentido à obra, ou seja, sua teoria está fundamentada no habitus do espectador. Ampliando a percepção para além do seu aspecto ocular, o público participa por inteiro da obra, co-habita o espaço expositivo, pois, “[...] o espectador traz todo o seu corpo, sua história e seu comportamento, e não mais uma simples presença física abstrata.” (BOURRIAUD, 2009, p.83).

Segundo os paradigmas que regem a arte contemporânea, a análise da tríade: espaço, artista e público conduz à conclusão de que o artista pode assumir duas posições dentro do campo da arte em função do capital acumulado: o de embreante e o de consumidor. Como embreante, detém o poder de nomear, produzindo obras materialmente ou simbolicamente e gerenciando obras e ideias. Como consumidor, alimenta-se desse mercado simbólico gerado pela rede. E ainda, conforme a posição assumida na rede, pode desempenhar várias funções concomitantemente: artista-artista, artista-marchand, artista-colecionador, artista-empresário, artista-crítico e artista-consumidor. O objetivo é galgar novas posições dentro da rede. Os alunos ao realizarem essa mostra e vivenciarem todas as etapas do processo criativo ocuparam o papel de artistas-consumidores.

Outro ponto importante na caracterização da arte contemporânea é a valor simbólico agregado ao espaço expositivo. O espaço permite qualificar as obras produzidas,

24 Com base nas obras de Ingrid Wagner. 25 A adequação entre ação subjetiva e objetividade da sociedade é solucionada pela teoria da prática, “[...] a prática, conjunção do habitus, e da situação, ocorre desta forma no seio de um espaço que transcende a relação entre os atores. Toda a eficácia da ação se encontra assim prefigurada, o que implica dizer que o ator se realiza aquelas ações que ele pode efetivamente realizar” (ORTIZ, 1994, p.19).

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uma vez que o capital artístico do artista e da obra é recíproco ao espaço que o consagra. A obra em si aparece com peso mínimo. “A realidade da arte contemporânea se constrói fora das qualidades próprias da obra, na imagem que ela suscita dentro dos circuitos de comunicação.” (CAUQUELIN, 2005, p.81). Portanto, estar em rede implica em conhecer as regras do campo da arte e a nomeação faz o jogo permanecer em funcionamento.

Se, para Cauquelin, o espaço expositivo qualifica a produção, para Bourriaud, o diferencial da arte contemporânea em comparação à arte moderna é a relação do público com a obra. Tanto para Cauquelin quanto para Bourriaud o jogo da arte continua, a autonomia está em aceitar ou não que existe um público que está à margem do campo artístico. Enfim, o público não especializado participa de fora da rede, o que implica em duas definições para justificar a realidade contemporânea, a estética e a artística26. A primeira julga as obras e os artistas e a segunda remete ao campo de atividade da arte contemporânea. “A estética insiste em valores ditos ‘reais’, substanciais ou ainda essenciais, da arte.” (CAUQUELIN, 2005, p.82). (grifo no original)

Referências

BOURDIEU, Pierre. A procura de uma sociologia prática. In: ORTIZ, Renato. (org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1994, p.7-36.

______. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus, 2007.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins, 2009. (Coleção Todas as Artes)

______. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins, 2009a. (Coleção Todas as Artes)

CANCLINI, García Néstor. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.

CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins, 2005. (Coleção Todas as Artes)

DANTO, Arthur C. Introdução: moderno, pós-moderno e contemporâneo. In: DANTO, Arthur C. Após o fim da arte: A arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus, 2006. p.3-22.

26 “O termo insiste na denominação: será considerada artística qualquer obra que seja exibida no campo definido como domínio da ‘arte’” (CAUQUELIN, 2005, p.82).

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ENTRELAÇA, DISTENDE, DIALOGA, REGISTRAReflexões sobre dança e tecnologia

Elisa Abrão27

Mizael Luis Vitor28

O diálogo entre dança e tecnologia é identificado por muitos na dança contemporânea como dança híbrida, dança tecnológica ou como afirma Santana (2006): Dança na Cultura Digital. O contexto cultural que dá coerência a estas proposta é o da cultura digital, no qual linguagens tecnológicas como as do vídeo, da televisão, do cinema e da internet afloraram novos processos nas manifestações artísticas. Podem-se citar muitas propostas de dança que dialogam com as tecnologias, porém neste trabalho serão analisadas as relações da dança com as novas tecnologias, ou seja, as tecnologias digitais das quais emanam específicas construções de percepções, diferentes explorações para os movimentos, como também novas organizações para o corpo no espaço tempo.

O texto que segue é uma análise da influência das linguagens tecnológicas na dança contemporânea, configurando-se como uma pesquisa de cunho bibliográfico exploratório. Para tanto, esta hibridização é tratada percorrendo duas temáticas centrais. A primeira configura-se sobre as diferentes formas de apresentação social da dança em sua relação com a tecnologia. A segunda versa sobre o corpo que dança na relação com a tecnologia. Essas duas temáticas são tratadas separadamente no texto, ao mesmo tempo que são pensadas como imbricadas, pois mutuamente se impulsionam e nutrem olhares e percepções para a dança na cultura digital.

Dualismos e transgressões: alguns caminhos, processos e produtos da dança na

cultura digital.

Discutir a relação entre dança e tecnologia faz emergir preocupações e desejos dos humanos sobre a função, necessidade, possibilidade da tecnologia em nosso cotidiano. Muitas são as bibliografias que adentram e aprofundam tais discussões. Pode-se identificar e até mesmo ressaltar os extremos das compreensões sobre tecnologia, a que deteriora a sociedade ou a solução para desvendar os mistérios da sociedade. As duas compreensões

27 Professora do curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal de Goiás, integrante do Coletivo Desdobramentos de Dança. Possui graduação em Licenciatura em Educação Física pela Universidade Federal do Paraná (2003), Especialização em Educação Física Escolar na Universidade Federal de Santa Catarina (2004) e Mestrado em Educação Física na Universidade Federal de Santa Catarina (2007) com a dissertação intitulada: &quot;O corpo imperfeito: o Cena 11 e as relações entre Arte, Ciência e Tecnologia &quot;.

28 Graduado no curso em Arte Educação pela Universidade Estadual do Centro Oeste-Unicentro, professor atuante na rede publica de ensino e integrante do Coletivo Desdobramentos de Dança.

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não são os dois lados de uma mesma moeda, mas o “[...] ineditismo e a própria natureza do contexto tornam o ambíguo e confuso inspirando tanto anseio como horror de ambos os lados.” (SANTANA, 2006, p.21). Longe de pretender retirar as sombras e luzes que tais discussões geram, considera-se interessante refletir sobre algumas relações presentes em tais diálogos. E como aponta Santana (2006), os dualismos como natureza e cultura, os abismos existentes na compreensão do humano e sua capacidade de cognição, caso rompidas as barreiras, possibilitam o emergir de outra compreensão de tecnologia e o específico da dança em relação com a tecnologia. Assim, aponta-se como o olhar para o mundo de maneira dual tanto para a tecnologia como para o corpo e para a dança estão imbricados.

Sabe-se da dificuldade e tensão dessas relações sobre as quais é pautada nossa educação, que se funda na fragmentação dos conteúdos e da compreensão de ser humano. A arte e dança na contemporaneidade buscam discutir e também transgredir as compreensões dualistas sobre corpo e tecnologia. A dança contemporânea, em certa medida, é realizada em função das características do corpo, corpo esse que se entrelaça com o que está em sua volta e que permite e estimula a percepção das trocas com o mundo. Essa relação intensa provoca uma experiência e compreensão de contínua troca entre o dentro e o fora, desenhando o concreto dançar com o mundo.

Destas trocas e destes diálogos pode-se desocultar inúmeras possibilidades de criação. Para muitos, hoje, as produções relacionadas com a tecnologia na arte são como sistemas vivos que dependem de todos os envolvidos, ou seja, os dançarinos, os engenheiros, os videomaker etc... para a produção ocorrer. É da relação entre todos estes conhecimentos que emana a produção artística. Ou seja, a dança emana da relação com o que está a sua volta estabelecendo um estado em que as hierarquias são quebradas e as relações são estabelecidas entre o dançarino e o mundo.

Várias propostas configuram-se como colaborativas, ou seja, existe uma concepção em comum entre arte do corpo e arte tecnológica. Os indivíduos participam diferentemente da construção da proposta, pois existe o corpo que dança, ou seja, o dos dançarinos e o corpo na dança que é o dos artistas tecnológicos. (OLIVEIRA, s/data ). Ampliando a questão de quem produz dança e construindo uma proposta que dialoga com aspectos diferentes da cultura produzindo outras possibilidades de manifestações artísticas, essas manifestações talvez não se encaixem nas classificações até então utilizadas por alguns seres humanos para pensar a dança. Porém, elas trazem outras possibilidades para o ato de dançar e sua organização social. As relações colaborativas possibilitam o emergir de uma poética tecnológica na qual “[...] há uma necessidade de trânsito de conhecimento no processo criativo que realiza uma convergência nos caminhos tomados para o corpo biológico e para as outras mídias.” (SANTANA, 2006, p.158).

O corpo na dança estabelece relações com as tecnologias abarcando toda a complexidade de tal fenômeno. A função da tecnologia pode estar relacionada ao conceito

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distendido e não de extensão, como McLuhan utiliza, pois transita pela perspectiva do Embodiment, palavra inglesa que significa incorporação, personificação. Traduzir tal palavra pode implicar em compreensões distantes dos teóricos que a utilizam, pois carrega o entendimento de algo que não pertence ao corpo. A relação entre corpo e tecnologia permeia a perspectiva de não vincular as “[...] partes de um todo acoplada a outra, mas de uma troca de informação que modifica ambas as partes.” (SANTANA, 2006, p.24). E a tecnologia, nesta relação com a dança, para Santana, está pautada no entendimento “[...] de mundo onde todas essas informações faziam parte, não as via de forma desconexas (2006, p.10)”. Em suas propostas Santana aponta que as tecnologias da cultura digital são, portanto, discutidas “[...] com o intuito de despi-las da roupagem de super heroínas ou como estruturas nefastas e voltadas à destruição da humanidade.” (2006, p.10). E considera o contexto da cultura digital como “[...] processual de um inevitável trânsito entre corpo e cultura.” (2006, p.11).

As tecnologias permeiam a vida humana radicalmente e a arte neste contexto “[...] também tem encontrado na tecnologia uma nova fonte para indagações, critica ou auxilio.” (OLIVEIRA, p.53, s/data). O artista em relação com as tecnologias pode explorar seu potencial expressivo e os recursos como vídeo, cd-rom, DVD, dentre outras tecnologias. Elas são exploradas em seu potencial estético e aparecem frequentemente na cena contemporânea.

Várias são as inovações criativas da cena pela utilização das tecnologias. A tecnologia é mais um elemento complexificador da cena podendo contracenar com os intérpretes, assumir a função de cenário e/ou figurinos, potencializar ações interativas, apresentar ângulos inusitados ao público pela utilização de câmeras, apresentar ambientes externos por imagens, apresentar desdobramentos para a construção da cena os quais emanam da união de imagem, movimento e inúmeras dimensões da vida humana.

Considera-se importante ressaltar que, para além de complexificar a cena, a tecnologia cria outras maneiras de apresentação social para a dança, ampliando os espaços da dança, transformando a tela e a web em espaços de apresentação social da dança ampliando diálogos e possibilidades de criação para as artes do corpo.

Entre as inúmeras possibilidades, pode-se analisar as propostas de vídeo-dança nas quais estão imbricadas as relações de imagem e dança. Propostas estas que apresentam outra natureza para a coreografia, a qual é realizada na tela, como afirma Wosniak “[...] o palco se faz tela.” (2006, p.21). Vários autores consideram o vídeo-dança como uma linguagem híbrida. (WOSNIAK, 2006; OLIVEIRA, s/data), na qual novas relações são possíveis de se explorar sobre movimento, espaço e tempo por meio das experimentações com câmeras e edições. Tal linguagem reúne elementos da “[...] dança cênica e do cinema resultando em um produto diferente de ambos.” (OLIVEIRA, s/data, p.66). Na realização de um vídeo-dança estão atreladas estratégias estéticas e de composição perpassando o diretor, operador de câmera, dançarino, editor, coreógrafo entre outras funções.

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As screen coreography (coreografia em tela) é um processo carregado de transformações que constroem novos conceitos. O interessante é que a câmera dance com o dançarino, e que o bailarino se coloque no espaço e no tempo da câmera. Como cita Spanghero “[...] a câmera muda o olhar do coreógrafo, o corpo do cinegrafista, o olhar do cineasta, o corpo que dança e a sua reprodução.” (2003, p.35). A profusão nas produções de vídeo-dança, que iniciaram na década de setenta, vem consolidando espaços de discussão e mostras, como também seus próprios domínios estéticos. O vídeo-dança se configura como “[...] injunções tecnoculturais, como uma espécie de simulacro ou extensão do corpo que dança, o ‘olho’ ou olhar da câmera torna-se uma nova organização corporificada.” (WOSNIAK,2006, p.22).

As propostas de vídeo-dança podem ser pensadas diretamente para tela como exemplo da produção M3x3 de Analívia Cordeiro, considerada a primeira dançarina brasileira a produzir uma vídeo-dança. Analívia teve influência de seu pai, pioneiro de computer art e de Merce Cunningham de quem foi aluna em Nova York. Ainda a pesquisadora, durante seu mestrado na UNICAMP, elaborou sistema de notação eletrônica dos movimentos, em parceria com o engenheiro eletrônico Nilton Guedes. Esse sistema possibilita a escrita ou notação do movimento humano por meio de uma interface tecnológica, o Nota-Anna, que objetiva descrever a trajetória do movimento no espaço-tempo, sendo as imagens analisadas por um programa referente à descrição do corpo na ação. (WOSNIAK, 2006; SPANGHERO, 2003).

Já na relação de adaptação, ou seja, uma proposta que foi pensada para o palco e depois adaptada para a tela, podemos citar Rosas Danst Rosas da belga Anne Teresa de Keersmaeker. Esta proposta ficou, por dez anos, sendo realizada em palco e depois foi recriada pelo artista multimídia Peter Greenaway. Este certamente é um exemplo que possibilita extrapolar a questão de registro pela câmera, investigando suas possibilidades de diferentes ângulos e cortes, ritmos de edição, locação etc. Proposta essa em que a edição foi estruturada “[...] relacionando-a ao minimalismo da trilha sonora e aos movimentos.” (SPANGHERO, 2003, p.36). Pelo trabalho de captura e edição se apresentam detalhes da movimentação e ainda potencializam-se as qualidades de movimentos realizados. Em alguns momentos o espectador parece que pode acompanhar o percurso do movimento no espaço. O lugar onde o vídeo foi realizado é apresentado aos poucos permitindo um desocultar de entre-lugares, relevos e conexões da arquitetura escolhida para o vídeo-dança ser filmado. A iluminação acompanha o ciclo do dia sendo concluído no escurecer. O que se pode observar com a proposta é que ela tem suas qualidades especificas para a tela. Assim, o que se vê em tela não é possível ser visto no palco, pois o vídeo-dança apresenta as especificidades desta linguagem híbrida.

O caminho inverso desta adaptação fez Merce Cunnigham na proposta Points in space criada para a tela depois sendo adaptada para o palco. Esta proposta foi criada em 1986 sendo dirigido e filmado por Elliot Caplan. No processo de adaptação para o palco, foi

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excluído um solo que Cunnigham faz no vídeo. As produções de vídeo-dança engendram investigações pelas relações entre dança/movimento e câmera/tela sendo considerada uma linguagem híbrida que objetiva investigar “[...] modo de transgredir o uso cotidiano das imagens ou transcender sua leitura literal.” (OLIVEIRA, s/data, p. 65).

Outra função assumida pelo vídeo está relacionada com o registro de espetáculo, no qual a captura de imagens é utilizada para guardá-las como memória de trabalhos prontos ou em andamento. Mediante tal objetivo, a captura de imagem é empregada para ser “[...] ‘exatamente’ como são construídas no palco. O trabalho criativo em torno da linguagem do vídeo é deixado em segundo plano em detrimento do objetivo de tentar ser o mais fiel possível ao que passa no palco.” (OLIVEIRA, s/data, p.59). Trata da imagem como registro refletindo as alterações que a fotografia e depois o cinema ocasionaram na relação do ser humano com a realidade, o espaço e o tempo. Desta maneira a dança, que historicamente é uma arte efêmera, pode pelo registro em vídeo deixar registro de suas execuções, ou seja, o vídeo de captura de imagem “[...] é como instrumento de extensão da memória do espetáculo.”(OLIVEIRA, s/data, p.59) que pode ser utilizada por pesquisadores, intérpretes, críticos, enfim, por pessoas interessadas em tal produção.

Na sequência, são apresentadas algumas reflexões sobre as relações do corpo que dança com a tecnologia. Perpassando algumas modificações na figura do dançarino as que podem criar percepções, relações e interações específicas entre os dançarinos, entre os dançarinos e os espectadores e entre o dançarino e o produto/processo de dança.

Alguns desdobramentos do corpo que dança relacionado com a tecnologia

Com as possibilidades concretas do tempo atual os indivíduos de nossa cultura podem dançar de maneiras diferentes que as realizadas anteriormente. Criando outras maneiras do uso do corpo na dança. Em nossa sociedade atual, o corpo pode torna-se presença apenas pelo bombardeio de raios luminosos. Apesar de alguns já naturalizarem a ideia da presença do corpo ser pelo raios luminosos, vivenciadas cotidianamente por webcam e outros aparatos tecnológicos, ainda essa possibilidade não é sempre compreendida quando se fala de dança, pois se compreende que para dançar é preciso estar com o corpo presente para a dança acontecer. A presença do corpo se transformou e concomitantemente a efemeridade das artes do corpo.

O corpo presente em outras mídias realiza mudanças na figura do dançarino, o qual pode, em propostas como essa, mudar seu lugar, ou seja, ele pode assistir sua dança. Esta inversão em certa medida é ampla, pois coloca o próprio dançarino como espectador de si mesmo. Tal mudança está imbricada com a possibilidade da dança deixar de ser efêmera e se eternizar. Existe um trânsito no qual o corpo pode se desdobrar de múltiplas maneiras, como que um jogo entre bombardeio de raios luminosos e a permanência da possibilidade da materialidade corpórea (biológico) nas produções artísticas.

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Consideram-se significativas as produções do Grupo Corpos Informáticos de Brasília, que realiza propostas relacionadas com presença e telepresença na linguagem artística performance. Seus experimentos já utilizaram telefone e hoje utilizam entre outros recursos a rede mundial de computadores. Uma questão interessante nas produções do grupo Corpos Informáticos de performance em telepresença ou teleperformance são as discussões sobre a presença, ou seja, uma presença paradoxal, porquanto para acontecer exigem “alguma presença, pois de fato, há presença da imagem do outro, ainda que esteja ausente. Então, estamos falando de uma presença paradoxal, permitindo uma imensa tensão entre proximidade e ausência do pai do discurso.”(MEDEIROS, 2009, p.200)(grifo no original). A complexidade da produção gera discussões importantes para a produção artística como a questão da autoria que aponta como “[...] um coautor ausente, modificando as ações então realizadas” (2009, p.201). O grupo Corpos Informáticos ressalta a possibilidade da tecnologia ser utilizada potencializando a relação humano-máquina-humano, ou seja, o interesse está voltado para o diálogo, a relação entre os seres humanos no qual a tecnologia vem como uma possibilidade de ampliar essas ações ou como maneiras outras dessas relações acontecerem. O corpo dialoga com imagens de corpos e nessa relação a performance é feita.

O grupo extrapola a questão da imagem e tem como foco a rede mundial de computadores como meio para a arte performance que engendra a geração de subjetividade por meio da arte. Ou seja, objetiva a partir de um trabalho colaborativo “[...] a transmissão em tempo real de imagens em movimento e de sons, gravados ao vivo e transmitidos, simultaneamente, para diversos pontos da rede, podendo ser assistidos nestes pontos, mas também podendo receber de cada um deles ao mesmo tempo.” (MEDEIROS, 2009, p.202). Dessa troca de informação, dessa busca pelo outro, dessa ausência presença emerge desdobramentos para o corpo. A tecnologia transforma a arte e a figura do corpo nessa arte, possibilitando o desocultar de outras poéticas. O corpo se transforma, reorganiza-se, reconhece-se e se olha pelas possibilidades tecnológicas.

Transitando por estes desdobramentos do corpo e as potências da imagem do corpo na relação com tecnologia, cita-se a proposta Ghostcatching, considerada uma instalação virtual de dança. Este certamente é um trabalho importante que marca as relações entre dança e computação gráfica. Para a realização da proposta foi utilizada a captura de movimento, a motion capture, que foi organizada por Paul Kaiser e Shelley Eshkar- artistas digitais da Riverbed Group - e o dançarino Bill T. Jones, que dançou no escuro: “[...] oito câmeras capturavam o sinal de sensores de luz (light-sensitives) atachados em 22 pontos de seu corpo. Foram 40 sequências de movimento, inspiradas em pinturas do artista plástico Keith Haring.” (SPANGHERO, 2003, p.44).

No computador as imagens foram convertidas em arquivo tridimensional e “[...] transformadas numa figura bípede através do Biped […] uma ferramenta sofisticada para traduzir o movimento humano. A anatomia é então recriada por formas geométricas

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modeladas no computador. Renderizados, os corpos de Ghostcatching se situam entre rabisco e raio X.” (SPANGHERO, 2003, p.44). Em Ghostcatching parece que se dilui a imagem de corpo que estamos acostumados a ver, sendo essa ampliada em sua compreensão, pois em sua dança os movimentos deixam rastros de permanência no espaço, “[...] linhas e densidades sozinhas são indicadores de músculos e ritmo. Como se toda a tecnologia pudesse revelar as pinceladas que o corpo humana fabrica ao dançar.” (SPANGHERO, 2003, p.44). A efemeridade da dança é transformada até mesmo na ideia do movimento do dançarino. Com a tecnologia, materializa-se a potência de pensar o corpo interagindo no espaço criando seus rastros. Em alguns momentos a quantidade de rastros é tão grande que espectador é convidado a adentrar nestes rastros, como que procurando o que está acontecendo, naquele instante, na dança apresentada.

Parece existir um jogo entre o aparecer e o desaparecer dos corpos. A relação com a computação gráfica possibilita que o corpo se multiplique e se amplie. Alguns momentos o deslocamentos por linhas deixam a ideia de movimentos, como se o rabisco materializasse o movimento e deixasse o espectador atento ao deslocamento e desenhos do corpo no espaço. Os sons dos rabiscos e o som da respiração convidam o espectador a perceber o esforço do dançarino em cena. O uso da tecnologia aproxima o espectador do bailarino, como se o espectador em alguns momentos estivesse muito perto do dançarino, já que materializa o esforço, a relação com espaço, a respiração, os sons do dançarino. O espectador procura o dançarino frente a seus rabiscos no ar e sente sua presença ao escutar sua respiração. A tecnologia transforma a relação do espectador com o corpo que dança aproximando-o de outra maneira. Tal relação pode ressaltar características que nem sempre são alcançadas pelo espectador ao assistir as danças em palcos e outros espaços. A tecnologia convida para novas percepções pelas quais o corpo do espectador e do dançarino podem se transformar.

Algumas considerações

Na contemporaneidade existem modificações para a figura do dançarino e para a apresentação social da dança possibilitando aos seres humanos pelas dimensões sensíveis conectar-se e contaminar-se pelas tecnológicas hodiernas.

As tecnologias no universo da dança fazem compreender que as mesmas engendram a ampliação da memória, pelos mais diversos registros em imagens existentes atualmente. Emergindo assim novas possibilidades para a arte da dança marcada pela efemeridade, pois a tecnologia aponta a questão do registro histórico e o complemento no trabalho de notação da dança ampliando o campo documental da dança.

O campo da composição apresenta inúmeras formas para dialogar e entrelaçar de conhecimentos para produzir arte e o especifico da dança. A tecnologia aponta a questão de outros produtos de dança que podem transgredir a efemeridade na dança e podem

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funcionar como distensões do corpo. Tais relações possibilitam diferentes registros corporais dos dançarinos emergindo outras maneiras de abarcar suas relações com o espaço e com as qualidades de movimento.

A arte e o específico da dança, dialoga com o mundo a sua volta. Presentes, na cena contemporânea para além do corpo que dança há o corpo na dança que dialoga, relaciona-se e promove outras formas de manifestação artísticas.

Cada produção que se propõe a transitar pelas mediações tecnológicas traz diferentes possibilidades para este diálogo como também diferentes compreensões sobre tecnologia. Ivani Santana em suas propostas de dança com mediação tecnológica não compreende a tecnologia como algo espetacular, mas como mais uma possibilidade de investigação contemporânea. Já nas propostas do Grupo Corpos Informáticos se percebe que a tecnologia promove ampliar as relações de subjetividade entre os seres humanos.

Das relações com o cinema emana a utilização de vídeos na cena contemporânea como projeções sendo filmadas simultaneamente ou não, propostas de vídeo-dança que é uma linguagem híbrida em si. Muitos espaços hoje são habitados pela dança, novos produtos artísticos são criados e recriados engendrando investigações e conceitos que transitam pelo cinema, pela informática, pela engenharia, pela computação gráfica e pela dança. O palco da dança se modifica como apontam Wosniak, Spanghero e Oliveira sendo ele a internet, o vídeo, a televisão, a rede mundial de computadores, etc.

Nestas propostas a dança desoculta as possibilidades de relação do corpo com as tecnologias contemporâneas, fazendo aparecer novas linguagem, novas maneiras de registros, novas maneiras de compor enfim novas maneiras do dançarino se relacionar com o mundo.

Referências

MEDEIROS, M. B. Presença e telepresença na linguagem artística performance In Margarida Gandara Rauen. A interatividade, o controle da cena e o público como agente compositor. Salvador:EDUFBA, 2009. p. 195-208.

OLIVEIRA, D. A imagem na cena de dança contemporânea. Lições de dança 3. Rio de Janeiro: UniverCidade, s/data. p. 53-76.

SANTANA, I. Dança na cultura digital. Salvador: EDUFBA, 2006.

SPANGHERO, M. A dança dos encéfalos acesos. São Paulo, SP: Itaú Cultural, 2003.

VAZ, A. F.; SILVA, A. M.; ASSMANN, S. J. O corpo como limite. In: CARVALHO, Y. M. de; RÚBIO, K. (orgs). Educação física e ciências humanas. São Paulo: Hucitec, 2001, p. 77-88.

WOSNIAK, C. R. Dança, cine-dança, vídeo-dança, ciber-dança: dança, tecnologia e comunicação. Curitiba: UTP, 2006.

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ROSALIND KRAUSS E O ‘EQUIVALENTE VISUAL’ DA ARTE ABSTRATA DE JACKSON POLLOCK E HELENA WONG

Clediane Lourenço29

Rosalind Krauss é uma historiadora e crítica de arte americana que, em 1976, fundou a revista October, dedicada à publicação de ensaios no campo da teoria e história da arte. Em 1985 publicou uma compilação com alguns dos seus ensaios com o título: La originalidad de la vanguardia y otros mitos modernos. Um desses ensaios foi dedicado ao pintor Jackson Pollock, intitulado: Una lectura abstracta de Jackson Pollock. Neste ensaio, Krauss apresenta dois enfoques: o primeiro que se refere à existência de dois modelos interpretativos – críticos versus historiadores; e o segundo que põe em combate a temática versus abstração. Para se colocar diante desses temas, ela utiliza um ensaio escrito em 1982, por um conservador de arte do século XX da National Gallery of Art de Washington, E. A. Carmean, com o título “The Church Project: Pollock’s Passion Themes”.

O projeto da igreja ao qual se refere Carmean diz respeito ao ideal de Smith, de inserir obras abstratas de Jackson Pollock na igreja para se conectar com a arquitetura do espaço. Com isso, Carmean crê que as obras abstratas em branco e preto de Pollock, do período de 1951 e 1952, teriam sido pensadas para as janelas da igreja, portanto, figurativas porque foram concebidas para um espaço sagrado – a igreja. O método histórico, utilizado por Carmean, baseia-se na ideia de que os acontecimentos devem ser explicados por causas. Assim, para Carmean, o local arquitetônico é a causa, ou seja, foi pensada por Pollock antes de pintar as janelas.

Carmean cree que las obras figurativas en blanco y negro pueden explicarse en relación con una causa única – la iglesia -, y que sin esa causa resultarían completamente anómalas, inexplicables y peculiares en el conjunto de la obra de Pollock. El argumento de Carmean gira en torno a una única causa; y con mucho cuidado, lleva a escena su guion. (KRAUSS, 1996, p. 242).

Para Carmean, o ponto crucial para tal afirmação é quando Pollock assiste a projeção de um filme de Hans Namuth sobre a sua pintura Numero 29 (sua única obra sobre vidro). Então, segundo o script de Carmean “Pollock decide embarcarse durante un año en la realización de una serie de pinturas figurativas de temática religiosa, concebidas como cartones para vidrieras.” (KRAUSS, 1996, p. 242).

Rosalind Krauss, em seu texto, guia-nos pelo raciocínio do autor até que, em certo ponto, começa a mostrar as manobras desse autor para corrigir o equívoco da arte abstrata.

29 Arte-Educadora, Mestre em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, com especialização em História da Arte pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

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Com esses termos, é possível perceber certa ironia da parte de Krauss, porém, muito sutil. A leitura dos textos dessa autora, em sua maioria, parece-nos favorável ao argumento, seja de um crítico ou historiador de arte, até mostrar todos os fatores e conclusões sobre o que realmente acredita. Há que se admirar tanto os artistas que escolhe para o debate, neste caso Jackson Pollock, quanto a trama argumentativa que sustenta seu repertório. Como o que acontece desde o início desse texto.

Rosalind Krauss não acredita na distinção entre o historiador de arte e o crítico de arte:

[…] esta distinción entre El crítico y El historiador, sin embargo, es relativamente falsa. [...] No podemos afirmar, por tanto, que ‘temáticas’ diferentes separen dos funciones distintas, la del crítico y la del historiador, ambos comparten las mismas ‘herramientas’ en la medida en que las nociones fundamentales acerca de los fines de las obras de arte, de lo que significan, de las concepciones de significación y referencia en las que se basan, les afectan por igual y al mismo tiempo. (KRAUSS, 1996, p. 237-238).

Como primeiro argumento contrário a Carmean, sobre a ideia de figuração nas obras de Pollock, Krauss em um parágrafo resume e invalida o ensaio do autor:

A decir verdad, creo que esta interpretación de una serie de pinturas de 1951-52 falsifica los métodos de trabajo de Pollock. Creo además que la imagen de la colaboración entre Pollock y Smith que plantea Carmean también desvirtúa el arte de Smith – no sólo sus aspiraciones arquitectónicas, sino también su apasionado compromiso con la abstracción de sus colegas, compromiso que pronto se reflejaría en sus propias obras. Además, tengo la sensación de que la idea de método histórico que tiene Carmean – que los acontecimientos deben ser ‘explicados’ por ‘causas’ – es errónea, y que es necesario examinar este problema metodológico para comprender la inadecuación entre la forma del argumento y la forma en que se produjeron los hechos. Por último, creo que la noción de temática de Carmean tal como se desarrolla en su argumentación, contribuye – quizá sin pretenderlo – a aumentar la confusión que rodea al arte abstracto del siglo XX en general, y al expresionismo abstracto en particular. (KRAUSS, 1996, p. 240-241).

Como prova para sua argumentação, Krauss cita a carta de Pollock a Afonso Ossorio em 1951 (uma semana antes de Pollock ver o filme de Namuth), na qual o artista afirma já estar desenhando em preto, reelaborando suas primeiras imagens; além de ser também, uma resposta a três anos de acusação de suas obras como decorativas: “[...] una malinterpretación de su obra que irritaba especialmente al pintor, ya que la ‘temática’ había sido una preocupación constante a lo largo de su carrera.” (KRAUSS, 1996, p. 243).

Assim, sabendo que as pinturas em preto e branco de Pollock foram começadas antes que ele visse o filme e, também por não serem distantes ao restante de sua obra, já inviabiliza a teoria de Carmean. Ainda mais quando ele cita a respeito da maquete da igreja feita por Smith em que, segundo Krauss, não aparecem as tais janelas. A causa técnica

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de Carmean (as linhas negras formam a janela) e a causa temática (a imagem cristã) são

combatidas por Krauss, que usa as próprias palavras de Pollock para anular a ideia que

Carmean coloca: que as obras de Pollock foram influenciadas pelas obras de Picasso: “El

artista trabaja con el espacio y el tiempo, y expresa sus sentimientos en vez de ilustrarlos.

[…]. No a los bocetos.” (KRAUSS, 1996, p. 244-245).

Podemos perceber, ao observar a obra Crucificação30 de Picasso, ao lado da obra

Número 1431 de Pollock, chamada por Carmean de Lamentação, que a relação que esse

crítico levanta sobre a obra de Pollock vai ao encontro com o senso comum, ou como

Newman classificava, com a maioria das pessoas, que precisam de uma descrição da

imagem e entendem que a obra é o que se consegue descrever. Foi dessa maneira que

Pollock sofreu com as críticas que consideravam sua obra como uma mera decoração; e não

somente ele, mas vários artistas abstratos da época.

Na busca pela descrição da obra, Carmean usa como recurso encontrar imagens nos

contornos de Pollock e tenta relacionar seus traços, de forma visual, aos de Picasso. Porém,

Picasso não esconde as figuras em seus trabalhos, ao contrário de Pollock. Pela afirmação

de Carmean, poderíamos dizer que o artista estaria camuflando suas figuras, o que não

só seria contraditório ao objetivo dito como religioso, como também minimiza as leituras

possíveis das obras de arte.

Desta maneira, como exemplo da utilização do método histórico de Carmean,

poderia aqui mencionar a obra abstrata de Helena Wong, artista plástica de origem chinesa,

porém naturalizada brasileira, como tendo sido baseada na action paint de Jackson Pollock,

pela semelhança do traçado no resultado final. Isso limita o trabalho de Helena a um

determinado método, esvaziando toda a possibilidade interpretativa da obra em questão.

Da mesma forma, poderia dizer que, o fato de Helena Wong deixar de fazer pinturas

figurativas foi devido a um ideal abstrato baseado em Jackson Pollock, e também que seus

primeiros traços abstratos foram pensados a partir da obra Número 132 deste artista. Tudo

isso com o argumento, ou seja, causa única, baseada em uma entrevista da artista, cedida a

um jornal local, em que Helena Wong cita sua apreciação pelo trabalho de Pollock.

Para mim, o abstracionismo é como qualquer outro estilo de pintura. É bom quando é trabalho de real valor artístico. Sendo, contudo que, de um nível muito elevado é geralmente mal compreendido. Entre os artistas cujas pinturas admiro estão Jackson Pollock, George Rousaut e Degas. (WONG apud BENITEZ, 1960, p. 2)

30 Imagem disponível em: http://arteemerson.blogspot.com.br/2010/04/crucificacao.html31 Imagem disponível em: http://pt.wahooart.com/a55a04/w.nsf/Opra/BRUE-8EWJXB.32 Imagem disponível em: http://www.terraingallery.org/Pollock_LS.htm.

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Fig. 1 - Helena Wong, Primavera II, 1965. Óleo sobre tela, 100x120. Fonte: Acervo Museu de Arte Contemporânea do Paraná.

A comparação visual limita a uma abstração pela abstração. Quando Helena Wong fala da incompreensão da arte abstrata, já se refere, de certa maneira, a essa relação de descrição da obra; pois, o que dizer ao olhar a obra de Helena Wong? Tentar encontrar as flores, baseada no título da obra, Primavera II, ou dizer que é uma mimese da obra de Pollock? É possível confrontar esses dois trabalhos de alguma outra maneira?

A princípio, prosseguiremos com Krauss e com seus argumentos que vão contra a ideia de Carmean:

Pero la predisposición de Pollock a realizar una serie de grandes pinturas abstratas y contribuir con ellas a un futuro conjunto eclesiástico no justifica suficientemente la tesis de Carmean. De hecho, la idea que tenía Smith de una arquitectura basada específicamente en la particular luminosidad y espacialidad de las abstracciones clásicas va en contra del tipo de intervención figurativa que Carmean atribuye a Pollock. (KRAUSS, 1996, p. 249).

Ainda, segundo Krauss, a própria construção arquitetônica foi iniciativa de Sidney Janis, pelo fato da carência do espaço para guardar obras em grande formato. Assim, a autora finaliza seus desabafos trazendo à tona os verdadeiros ideais de Smith:

[…] revelan su deseo de acceder a la perfección de un lenguaje formal universal: la arquitectura como una apertura a la experiencia abstracta del Entendimiento.[…] no se trataba de la ‘habitación’ la que se refiere Carmean, sino una especie de recinto sagrado cuyo significado visual se haría eco, en otro registro, de las aspiraciones estéticos-religiosas de Smith respecto a su iglesia. No hay ninguna razón para creer que Smith modificara nunca esta visión. (KRAUSS, 1996, p. 252).

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Dessa forma, Krauss, tendo em vista o olhar de Carmean sobre as obras de Pollock, nas quais encontrou todo um equivalente visual para sua concepção, começa seu novo discurso a respeito da temática na arte abstrata. Primeiramente mostra o próprio incômodo que Pollock sofreu por, no ideal comum, parecer não ter a dita temática, levando assim, sua obra a ser considerada como pintura decorativa. O maior erro que Krauss aponta é que as pessoas reduzem a obra a uma descrição; e a temática ao que se descreve. Assim, para provar que abstração e temática não são vertentes contrárias, a autora explica que a obra abstrata pinta na verdade o nada, e este nada, como no caso de Malevich e Mondrian, que seguiam os passos de Hegel, era pintar o ser “[...] una vez desprovisto de toda cualidad que pudiera materializarlo o limitarlo de alguna manera” (KRAUSS, 1996, p. 253). Porém, a autora pergunta: como se pinta o nada? Ao que responde que isso é um jogo de oposições, uma estrutura binária que vai além da mera descrição. Portanto, na obra de Pollock a temática resultante “[…] es la unidad provisional de la identidad de los opuestos.” (KRAUSS, 1996, p. 255). Deste modo, a linha que se opõe à cor agora se converte em cor, e assim, com todos os elementos da obra.

Pollock hablaba de ‘hacer visible la energía y el movimiento’; […] No hay nada ‘formalista’ en esta aspiración. Su temática – la operación de una lógica abstracta – también tenía implicaciones psicológicas, aunque se trataba de implicaciones no especificas, como en el sueño cargado de sentimiento y desprovisto de imágenes.” (KRAUSS, 1996, p. 255).

Podemos perceber exatamente o que Krauss chama de confusão, quando Carmean estabelece uma ruptura nas obras de Pollock, ou seja, entre abstração e temática. Pois, o contorno utilizado por Pollock serviu especificamente para a oposição binária figura/ausência de figura, o que fortalece a presença da temática que sempre esteve nas obras de Pollock: “En este sentido, las pinturas rechazan explícitamente el dilema entre la abstracción sin temática – decoración – y la temática como descripción de algo objetivo.” (KRAUSS, 1996, p. 256).

Com isso, Krauss mostra que as interpretações feitas por Carmean, das obras de Pollock, esvaziam todas as outras possibilidades de leituras por uma causa única, além de criar uma confusão no entendimento do por que um artista, que tem um histórico de trabalhos abstratos, para e rompe com tudo, com o intuito de fazer uma série de painéis com temática religiosa e, ainda, inspirada em Picasso? Sendo que Pollock não é a favor nem mesmo de fazer esboços: “No trabajo a partir de dibujos, no convierto un apunte, un dibujo o un boceto en color en una pintura definitiva. Hoy en día, pintar ofrece la más inmediata, la más directa y la más grande posibilidad de […] afirmar algo.” (KRAUSS, 1996, p. 244).

Voltando à Helena Wong que, agora sim, semelhantemente a Pollock, sofreu com as classificações de seu trabalho em arte abstrata e arte figurativa, tendo em vista que seu trabalho artístico passou pelas chamadas fases: primeiro com a arte figurativa acadêmica ocidental; segundo com a arte abstrata e, por fim, retomando a figuração com uma paleta

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de cores mais vibrante e até mesmo violenta. Porém, reafirmou-se dizendo a respeito de seu trabalho: “Eu sou a mesma em qualquer fase [...]. quem conhece meus trabalhos, reconhece-me em qualquer fase, pelas linhas e ritmo que mantenho, tanto no figurativismo como no abstracionismo.” (WONG, apud MURÁ, 1968, p. 4).

Esse reconhecer-se que Helena cita - que no seu caso está no grafismo oriental e na obra de Pollock está nos contornos - é o gesto. E este gesto não se dilui, pode se reestruturar, mas diluir-se não. Retomando a questão acima, a respeito da obra de Helena em relação à obra de Pollock, tomemos como apoio outro texto de Rosalind Krauss, do livro El inconsciente óptico, no qual descreve procedimentos de Max Ernest, Marcel Duchamp, Eva Hesse, entre outros, como o caso, novamente de Jackson Pollock, que se aproximam de um certo ilusionismo. Uma arte que termina no olho, expressando, como diria Georges Bataille, a fetichização modernista da visão, uma experiência sem objetos e sem conteúdos. Nesta opção, antirretinal, o estímulo não está fora, mas dentro do corpo, no inconsciente óptico.

Dessa forma, pensando a respeito da ideia do inconsciente como lugar de onde resgatar a figura, a busca de Pollock, segundo Krauss, era encaminhada para exercer violência com a imagem, das quais são frutos os gotejamentos. Esse inconsciente está também no trabalho de Helena e faz certa analogia com a obra de Pollock, pois segundo Krauss, o emaranhado nas obras elimina a figura, porém, operando de maneira mais global sobre a ideia de organicidade da forma humana, “[...] sobre el modo en que la composición puede hacer análogas la totalidad de la forma humana y la coherencia arquitectónica de la pintura.” (KRAUSS, 1997, p. 277). Helena Wong, por meio de seus grafismos, vai sumindo com a imagem real cada vez mais, deixando vir à tona essa organicidade da forma humana.

Fig. 2 - Helena Wong, Desenho I, 1965. Desenho – nanquim sobre papel, 70x99,5 cm.

Acervo MAC. Arquivo Pessoal

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Fig. 3 - Helena Wong, Sem título, 1961. Gravura sobre papel. 47x66 cm.

Acervo: Coleção da autora. F Arquivo Pessoal

Observando as obras: Desenho I (fig. 2) e Sem Título (fig. 3), ambas de Helena Wong, nota-se o processo de diluição da forma. Creio que, da mesma forma que Pollock usou a numeração para seus títulos, para se livrar do equívoco da descrição, Wong usa esse recurso para denominar suas obras, a exemplo da obra intitulada Desenho I, que mostra a preocupação da artista com a descrição de seu trabalho. Isso porque, como observa Krauss, a par da opção visual em que se desenvolveu a via antióptica, assistimos a uma queda da preponderância da luz e da visão e ao aumento da importância de outros estímulos e respectivos sentidos, como é o caso da arte de ação de Pollock, que usa todo o corpo como estímulo para a produção da obra. Assim, podemos fazer novamente uma relação com a artista Helena Wong, que também com estímulos do corpo, engendrava sua obra empregando seu gesto todo singular, mesmo de maneira mais retraída devido à fragilidade física desenvolvida pela artrite reumatoide. E, se as obras dos gotejamentos de Pollock indicam como a obra foi pintada, segundo Krauss, indo contra a verticalidade da pintura, na obra de Helena é explicito o uso tradicional da pintura de cavalete, visto a sutileza do traço caligráfico, extrapolando, porém, os limites da arte acadêmica.

As obras de Helena Wong possuem uma leveza aparente, traços leves em grafismos ornamentais, um equilíbrio perfeito na composição e na gama de cores. As pinceladas são justas, sem hesitação, sem perda de ritmo, sem procuras vazias de matéria, e eis então que a preocupação da artista está em transmitir “[...] a poesia, a força, o mistério; enfim, toda a complexidade que encerra a alma humana.” (WONG apud VELLOSO, 2005, p. 05).

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Do mesmo modo transcendental da descrição, Pollock queria fazer visível “[...] la energia y el movimiento” e caracteriza sua obra como “recuerdos detenidos em el espacio.” (idem)

O que Rosalind Krauss realmente propõe em seus textos é o olhar para a obra, o confrontar-se com ela, e aí então o relacionar da obra, este que vai acontecer a partir da própria estrutura da pintura e não apenas de considerações biográficas do artista ou a causa única. Opondo-se a uma tendência que pode ser observada em textos de outros pensadores, como é o caso de Carmean, Rosalind Krauss não procura estabelecer o que é único, o específico da obra. Para a autora, a estrutura da obra é que permite a realização da descoberta, transformando-a em objeto teórico, por meio do qual podemos pensar a obra de arte de determinado artista em relação às outras obras.

Referências:

MURÁ, Aroldo. Helena Wong redescobre o romantismo no figurativo. Curitiba: Diário do Paraná, 04 de Janeiro de 1968.

BENITEZ, Aurélio. Abstracionismo de nível elevado é geralmente mal compreendido. Curitiba: O Estado do Paraná – Tablóide, 14 de Fevereiro de 1960.

KRAUSS, Rosalind. La originalidad de la vanguardia y otros mitos modernos. Madrid: Alianza, 1996.

KRAUSS, Rosalind. El inconsciente óptico. Madri: Rigorma, 1997.

VELLOSO, Fernando. Helena Wong trajetória de uma paixão. Curitiba: MON, 2005.

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ANEXO

A REIMPLANTAÇÃO DA EDUCAÇÃO MUSICAL NO ENSINO FUNDAMENTAL E MÉDIO:

A oficina e linguagem musical - Uma pedagogia para o século 21 L.C.Csekö33

A OFICINA DE LINGUAGEM MUSICAL (OLM), de autoria do educador/compositor Luiz Carlos Csekö, é um projeto de investigação continuada em Pedagogia, Processo de Criação, Música Experimental Atual.

Uma breve explanação do contexto de inserção da OLM: em 1970 a OLM é criada em contraponto ao alijamento do Processo de Criação, à ausência da linguagem, vocabulário e procedimentos contemporâneos experimentais, ao preconceito deformador e desinformador contra a produção artística experimental e à abordagem mecanicista encontradas no campo da Educação. Uma nova concepção de música e som musical foi delineada, durante o período de 1930 a 1950, pelos compositores que pesquisavam o som: a linguagem musical poderia ser composta com qualquer som e também com as tradicionais notas musicais; o som que fosse utilizado para criar uma linguagem musical seria, portanto, um som musical com o mesmo peso que o jogo melódico-harmônico tradicional. Estes parâmetros estéticos oferecem amplas perspectivas, desvelando inúmeras alternativas para a atualização da Educação Musical.

A OLM se alicerça na concepção de som musical atual, na estética da escassez, no desenvolvimento do Processo de Criação, em Escutas Diferenciadas e na elaboração de uma linguagem musical. A estrutura modular da OLM agrega sistemática e consistentemente o experimental ao tradicional, o fluxo hoje, ontem, impregnado do amanhã.

Embasada nesta concepção a OLM investe na criação/elaboração de uma linguagem musical experimental atrelada à tradicional, como ferramenta cognitiva ao abordar os tópicos programados para cada módulo empregando objetos sonoros e instrumentos musicais tradicionais, aleatoriedade/improvisação, multimeios, intervenção visual.

Com a melodia e a harmonia sendo apenas mais uma opção para a criação musical, a OLM, calçada na estética da escassez - menos é mais, do mínimo o máximo - trabalha o

33 Educador, Compositor, representante do Brasil em: Sonidos de las Américas: Brasil at Carnegie Hall/N.York; Pro Musica Festival/Bremen; Aspekte Festival /Salzburg; Saison Musicale, Radio France/Paris; Encontros Gulbenkian de Música Contemporânea/Lisboa. Membro fundador - diretor executivo do NÚCLEO DE MÚSICA EXPERIMENTAL & INTERMÍDIA DO RIO DE JANEIRO. Conduz a OFICINA DE LINGUAGEM MUSICAL em todo o Brasil, no circuito universitário e de instituitções culturais, rede pública de ensino para formação profissional, público leigo & infantil. Possui mestrado em Composição e Educação Musical pela Columbia University/NY e University of Colorado at Boulder / EUA. Professor: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Conservatório Brasileiro de Música, Funarte/Instituto Nacional de Música, Seminários de Música Pro-Arte.

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explorar, tocar, criar/improvisar com os sons produzidos por objetos sonoros/instrumentos: paredes, portas, janelas, mobília, cadernos e livros, bolsas/mochilas, papéis e plásticos, voz/aparato vocálico, sapatos, piso, chaves, canetas, etc.. A sala de aula, antes uma rígida ausência de instrumentos musicais, passa agora a apresentar uma insuspeitada, abundante gama de sons, um surpreendente espectro tímbrico, dinâmico, de duração e altura.

Agrega-se a esta criativa instrumentália a construção e coleta de objetos sonoros, parametrando-se rigorosamente esta proposta pelo princípio de que estes produzam as propriedades do som com versatilidade e um mínimo necessário de técnica de produção de som.

No estágio inicial de módulos da OLM a Acoplagem da Psicomotricidade ao Som é sistemática e ludicamente abordada. A linguagem corporal é acoplada às propriedades do som: diferentes gestos são deflagrados pelo timbre, dinâmica, altura, duração, segmentos, motivos e células. O corpo enquanto extensão aural.

A OLM investiga os processos de Escutas Diferenciadas no segundo estágio, um extenso trabalho com a Acuidade Auditiva, Memória Sonora, Imaginação Sonora, desenvolvendo o Ouvido Interno, estimulando concomitante o Processo de Criação.

Os participantes de uma OLM são convidados a exercer a sua Acuidade Auditiva: interagir/perscrutar auditivamente a Ambiência Sonora local – diversidade tímbrica, de dinâmica, duração e altura; volume, espacialidade; focar a escuta em sons – enquanto ouve o todo/focal, desfocar absorvendo o entorno/periférico, mapear horizontes sonoros de escuta; percepção musical.

A imersão na Memória Sonora é o próximo segmento: é sugerido lembrar-se de sons significativos, revisitando a memória afetiva sonora e sua temporalidade: vozes de amigos/parentes, eventos/momentos passados; sons de ambiências: residencial, trabalho, lazer, dia/noite; fragmentos de músicas, etc. – e então reescutá-los tão vividamente que eles se integram ao envelope sonoro presente.

A Imaginação Sonora abarca o imaginar sons do cotidiano – buzinas, passos, assovios, abrir e fechar de janelas e portas, etc. – e complexas formações/sequencias de sons e partituras – o som imaginário sempre tão nitidamente escutado que se mescla ao contexto sonoro local.

A Familiarização com a Produção Musical Atual complementa este estágio envolvendo a audição/escuta diferenciada de obras, debate, leitura de partituras. No nível básico da OLM são apresentadas obras com pesquisa de linguagem de compositores brasileiros; nos próximos níveis amplia-se o escopo, mesclando-se a produção estrangeira com a brasileira, outros períodos e vertentes.

O estágio intermediário aborda os tópicos programados para o nível do público: fontes sonoras da sala de aula, produção do som, ruído/som/silêncio/nota musical, propriedades do som, registros em notação oral/gráfica híbrida, etc. – são explorados experienciando o som, produzindo-o, improvisando e então refletindo, debatendo e conceituando sobre a prática.

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O Processo de Criação – último estágio - é elaborado por atividades desenvolvidas com os tópicos programados para cada OLM, resultando em sequências de sons que são engendradas/executadas coletiva e/ou individualmente, registradas com Notação Gráfica Híbrida (gráfica/textual/tradicional). Objetos sonoros e instrumentos tradicionais são as fontes sonoras utilizadas neste estágio.

O prazer de criar, explorar, fazer Arte, o emprego da interação espelhada na música de câmara, a construção da cidadania e civilidade compõem a intensa dinâmica de grupo que aglutina e propele o processo pedagógico da OFICINA DE LINGUAGEM MUSICAL.

A OLM é regularmente oferecida no Conservatório Brasileiro de Música/Rio de Janeiro, nas áreas de Educação Musical, Musicoterapia, Composição, nos Seminários de Música ProArte - formação de público (adulto e infantil) e professores e instrumentistas, bem como nos circuitos universitários e de instituições culturais em projetos de âmbito nacional.

A OLM se alicerça e extrai o seu contínuo espiralar do processo de Educação do princípio básico do experienciar o processo de criação, da firme e inabalável premissa da natureza humana ser criadora, da espécie humana ter como natureza o ato de criação.

Revisitando o sempre presente e sempre futuro poeta/visionário Marshall McLuhan que mergulha na mais radical mudança deste século - a era elétrica, eletrônica, a velocidade da luz - com uma visão tão profunda e pertinente que hoje em dia chega a tangenciar a clarividência: “[...] eu comecei a me dar conta que os grandes artistas deste século descobriram uma abordagem completamente diferente, embasada na identidade dos processos de cognição e criação. Eu me dei conta que a criação artística é o contínuo retorno e releitura da experiência comum, ordinária - da sucata para a obra de arte. Então deixei de ser um moralista e me tornei um estudante [...]”

Entendemos que ao propor o Processo de Criação da linguagem musical experimental e tradicional como mola mestra da sua abordagem a OLM realiza uma pedagogia que se embasa na produção artística do século 21, desenvolvendo e elaborando a invenção tão necessária nestes tempos de mecanicismo informático.

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