arruda campos - a justiça a serviço do crime (1959)

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Departamento Editorial; Rua Fortaleza, 53 - Fone, 32-1149 Oficinas Gráficas: Rua Sampsofl, 265 - Fone, 9-32.44 V Mejo: LIVRARIA ACADÍlMICA - Praça Ouvidor Pacheco e Silva, 28 - Fones: 32-1296 e ,32-0619 - Caixa Postal, 2362 End. Teleg.: AtwlêmJca - SÃO PAULO 1 ARRUDA CAMPOS A JUSTIÇA A SERVIÇO DO CRIME ttÍiyãt> Sã<> p-", 1959

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Page 1: Arruda Campos - A Justiça a Serviço do Crime (1959)

Departamento Editorial; Rua Fortaleza, 53 - Fone, 32-1149 Oficinas Gráficas: Rua Sampsofl, 265 - Fone, 9-32.44 V Mejo: LIVRARIA ACADÍlMICA - Praça Ouvidor Pacheco e Silva, 28 - Fones: 32-1296 e ,32-0619 - Caixa Postal, 2362

End. Teleg.: AtwlêmJca - SÃO PAULO

1

ARRUDA CAMPOS

A JUSTIÇA A SERVIÇO DO CRIME

ttÍiyãt> S~ Sã<> p-",

1959

Page 2: Arruda Campos - A Justiça a Serviço do Crime (1959)

Capitulo

fNDICE

I - INTRODUCAO '" ....... , .... , ,." ...... ' ..... . II - A LEI GERA 0 CRIME ........................ .

III - A JUSTICA APLICA A LEI ................... .

IV _ A PENA PERVERTE ........................... .

7

15

34

60 v - A LEI NAO E RESPEITADA .................... 83

VI - NOTAS AVULSAS

1) ,- Limites da a~a:o do /uizo das ExecW;6es ...... 107

2) ,- Trabalho de sentenciados ,....... R.emuneta~ao '" 112

3) ,...... Visita a um reformatorio ingles ."........... 115

4) ,...... Visita a Uniao SOtJietica •.... "............ 120

5) ,.- Uma prisao sovietica (2.1' Brau) ............ 126

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CAPITULO I

INTRODU<;;AO

1. 0 direito ainda e uma eristaliza;;ao da for;;a. :ill uma fie~ao sistematizada, que se eriou para que os ho­mens possmn viver em sociedade e defender sellS privi­legios, S8m choques e sem Illtas insoluveis. Constitui de cuto modo uma pTOjegaO da humanidade, que nao e fixa nem imutavel, nao tern p1'essnpostos dos quais pos­sam ser extraidas dedu<;oes 16gieas e exatas, invariaveis e unifol'mes, no tempo e no espa<;o. Snas regras nao sao eomo as da fisiea, que permanecem constantes e nao admitem progress os nem recuos. Diante delas, as leis dos indivicluos sao garatnjas hesitantes, grotescas e fre­qiientemcnte ate anti-sociais.

Teorias ocasionais ganham C01'1)0. Palavras adqui­rem sentido. Principios se solidificam, enquanto outros, confo1'me se altera 0 regime social se liquefazem ou se evapo1'am. Mas, enqnanto subsistem, tem 0 lmpeto das coisas reais. P1'ocluzem efeitos. C1'iam uma certeza efemel'a, adeqnada as conveniencias de determinaclo ins­tante, em cletel'minado lugar, durante determinado tempo.

Ridiculos sao os juristas, quando compaTados aos que se declicam as ciencias Jlositivas. Porqne allldem it lei cla SllCeSSaO hcreditaria e as inyen;;oes de Cal'nelutti e Chiovenda com a mesma cOl1vic<;ao com que 0 fisico se reporta a lei da graviclade e as teOl'ias de N 8\vton.

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8 Atmt:bA CAMPOS

Ignoram que uma simples lei - lei que atualmente vige, ou está sendo cogitada em mais ele metade do mundo - poderá acabar com a alegria dos mais reno­mados jurisconsultos, com os esquemas complicados pelos mais hábeis cultores do xadrez legislativo, dar fim a doutrinas, jurisprudências e seqüelas.

Basta uma lei que elimine a propriedade privada.

2. .A grande e ingênua ficção brasileira é a Consti­húção Federal, cujo cunho democrático é iniludível. Con­sidera que "todo poder emana do povo e em seu nome será exercido". Nas eleições supõe que é o povo quem decide soberanamente. Consagra o binômio - maioria e minoria - e autoriza o eleitorado a atuar na formação do poder, com liherdade e igualdade.

Eleições, liberdade e igualdade, não implicam, pela Constituição, em conceitos apriorísticos, definidores de uma determinada orientação política. A vontade livre é do povo, que vota de acôrdo com seus anseios. E essa vontade pode voltar-se para a direita, para o centro ou para a esquerda, pois, repita-se, o povo é soherano.

.A ficção se revela quando se verifica, na realidade, que o ponto de partida é falso. O povo não é soberano, não tem igualdade, que equivale a conhecimento, nem finalmente pode voltar-se, por exemplo, para a esquerda, ou mesmo, para a dÍTeita. Tal como a soberania da divindade, de "infinita" misericórdia, que pode tudo -InCHOS tirar a alma arrependida cIo Inferno.

3. Na técnica adotada pela Constituição, três são os poderes do lTIsfac1o: Legislativo, Executivo e JueliciáTio, independentes, mas harmônicos enhc si. O Legislativo elabora as leis, o Executivo as faz cumprir e o J ueliciário

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julga elas suas aplicações. Dos três, o que goza ele menor grau de autonomia é o Judiciário, de cujo poder só muito remotamente se pode dizer que emana do povo, dada a circunstância de que é eSCTG1VO da lei, até para a escolha de seus membros. Dos três, o que usufrui maior dose de amplitude, é o Legislativo, uma vez que lhe com­pete ditar as normas da vida da Nação. Dos três, o mais forte é o Executivo, porque tamhém guarda o di­llheiro e, conseqüentemente, tem duas fontes de energia: a que lhe vem elo POYO e a que lhe chega através do TesolU'o.

Excluído o Judiciário, cujos juízes são escolhidos por concursos orientados por outros juízes, o Legisla­tivo e o Executivo se organizam por delegação popular llas eleições.

Estas, porém, são falsificadas.

No rigor da técnica democrática deveriam os can­didatos agrupar-se em partidos, ele acôTdo com orien­tações expostas à escolha do povo. TeríanlOs, então, como sucede em alguns raros países, partidos do centro, da direita e ela esquerda, disputando a preferência do eleitorado. A maioria formaria o govêrno, até ser der­mtada na eleição seguinte, ou manter-se no pOdeI'. E assim por diante.

Como ficção que é a Constituição, esquematiza o regime, nessa base, consagranclo a obrigatoriedade do respeito às suas normas. Do contrário, se outros fôs­sem os alicerces constitucionais, o povo deixaria de ser soberallo, tornando-se vítima da tirania. Não sômente estipula a pel'iodiciclade das eleições, como fixa o tempo do mandato. Estabelecendo a época ela ronovação do govêrno, defere no povo n oportunidacle ele conigil' os

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iO ARReDA CAUPOS

desvios 011 assegurar a mesma orientação ideológica de seus representantes. E cria organismos de autodefesa, para que as suas regras seJam sempre acatadas, entre os quais o Exército Nacional é a expressão mais elevada, porque é a fôrça ao serviço do Direito.

Se um grupo empolga o poder e, derrotado nas eleições, recusa-se a abandoná-lo, ao J ndiciário compete eolocá-lo fora da lei. Ao Exército cumpre desalojá-lo da posição. Configura-se a usurpação.

Êsse é o esquema da Constituição Federal, sem dúvida magnífico. Contudo, corno estamos diante de uma simples ficção, verifica-se em certos casos que, seguindo o exemplo do Judiciário, as fôrças armadas se acumpliciam aos espoliadores, que dão golpes ele Estado. Homologam a tirania, prestigiando o ditador. E mandam espaldeirm o povo soberano.

4. Em meio do emaranhado dessa crise que asso ber­ba o mundo, envolvendo o Brasil no roldão, aúnica atitu­de que um cidadão pode tOlllm', com dignidade e respeito ao próximo, é o de bater-se para que, efetivamente cum­prida, deixe a Constituição Federal de ser uma ficção momentânea. Deve obedecê-la, mas deve também pug­naI' por ela, inclusive através da luta. Ê possível que o povo se torne realmente soberano e esmague um dia aquêles que, dizendo que vão salvá-lo, contra êle esta­beleeem a tirania, que condenam, lllas que lhes convém.

5. Por sm' democrática, a Constituição exige o plu­ripartidarismo; mas, por seI' uma ficção, permite que sejam extintos ou vivam partidos que inscrevam em seus programas a suhvel'são da ordem econômiea. O texto

.\ ,JUSTI(?. A SERVIÇO DO cnnn:: 11

llsa de um eufemismo vago - é vedada a organização, () registro ou o f'1lnâoncunento de qualquer pm·tido político ou associação cujo programa. 01. ação contrarie o regirnc democrático, ba,seado na pluralidade elos partidos e na gamntia dos direitos f!mdarnentais do homem. Graças a êsse dispositivo, são postos fora da lei todos os partidos que, em tese, contrariem os direitos fundamentais dos homens fortes. Inyersamente, não são molestados os que, como os monarquistas, querem a subversão do re­gime político sem a eliminação dos lJIivilégios dos poderosos.

6. O primeiro ponto a ser considerado, e que suple­menta os itens anteriores, é o de que a lei do Legislativo está longe de representar a vontade ela maioria do povo. O eleitorado constitui insignificante minoria e a vontade elos que votam é adulterada pelo emprêgo de fórmulas eleiçoeiras fraudulentas, desde o engano puro e simples, através da demagogia, até a corrupção. Os l)artidos, por sua vez, não têm programas definidos, tanto quc, Ullla vez eleitos, seus membros se bandeiam ele uns para outros impunemente. Alguns partidos existem, contra os quais não se exerce a vigilância das autoridades, que não passam de conjugado de letras, ou nomes, para rea­lização ele transações visando a inclusão ele candidatos em suas chapas.

Disso resulta que triunfam os mais fortes, que são, costumeiramente, os que econômi(;amente são mais po­derosos. Isso, apesar de inidôneos.

Por ser público e notório o fato dispensa compro­vação.

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ARRUDA CAMPOS

7. A Constituição Federal aceita como fundamen­tais certos princípios que, na prática, não são observados. Culpa não é dela, senão do POYO, que não é soberano. Que não tem sabido, ou não tem podido, valer-se dos direitos que lhe são outorgados. Contudo, não é aqui o lugar para a análise das causas clêsse clesajuste, uma vez que hem outro é o intuito dêste trabalho. Assinalada a falha pode-se passar adiante.

O poder que o povo aborta é o que conduz a Nação. Ê também o IJOnto de partida do presente ensaio: - um poder degenerado, mas poder.

Poder através do qual os grupos de homens fortes legitimam sua posição. Poder que, conforme se demons­trará acliante, é principalmente de ordem econômica, já que os vitoriosos nunca se cligladiam por cansa de idéias, senão apenas por motivo ele interêsses materiais. E ê8se poder traz atrelado aquêle terceiro, cujos mem­bros não são eleitos e que muito remotamente se ligam ao pü"l'O, em nome elo qual atuam: - O Poder ;r udiciário.

8. Resulta mais, insista-se, que o povo, privado da soberania, não pode tomar a orientação que bem entenda, porque, não tendo amadurecido politicamente, ignora o exato valor do voto. E, uma vez que uma eleição sagTou os eleitos, fica subordinado à Autoridaele, a qual, assumindo uma tutoria que não encontra raízes na Cons­tituição, passa a ditar as correntes doutrinárias que ao seu tutelado é vedado escolher, em nome dos direitos fundamentais dos homens.

9. Poder principalmente ele ordem econômica, dis­semos. lJOl'(jlle, efetivamente, êle só faz sentir sua pre- I

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.\ ,TC':i'1'IÇA A :)EIWIÇO DO CRIME 13

sellça no instante em que entram em jôgo os grandes inti'rêsses da coletividade.

Quando os repuhlicanos iniciaJ.'am aSila <:alllpanha eontra a monarquia, eram revolucionários que conspi­l'anUll conha o regime político e queTiam a subversão do govêrno, pela abolição do trono. Foram combatidos. lllas apenas no teneno das idéias, porque não preten~ dimn eliminar as vantagens das classes mais favorecidas. A prova ele que a luta foi bmnda e serena está em que, mesmo lJlantalldo cafezais, os líderes do movimento con­seguiram ganhar fÔl:ça política até alcançar a vitória, sem sang'ue, expulsando o Impel'adOl·.

Hoje, em que, ahás ela luta aparente, está em jôgo a subversão da estrutura econômica, apesar ele todos os lH'ogl'€SSOS ela humanidade e do culto das liberdades, a l'cação é mais violenta. As prisões ficam cheias. No unge do conflito cria-se, por exemplo, uma côrte espe­(·inl, como o rrl'ihunal ele Segurança Nacional, pois que os homens fortes não depositam suficiente confiança na .Justiça comum. Mesmo agora, quando o perigo parece llllJaillado, temos uma dupla polícia política; a policial pl'opl'imnente dita, opl'essora do pensamento, e a ouha, plpitol'al, senhora elas oportunidades eletiyas, que anula l'l'gishos de plU'tidm', cassa mandatos e nega inscrição aos candidatos que, ael'eclitanclo nas liberclades ins­critas lla Condituição Federal, professam icleolog'ias ([lle não ('ollvêm aos hOlnpllS fortes que 1ll011Oj)01izam as comodidades da vida. São obrigados l\ yotnr, ma, não têm o direito de seI' yoIaclos 1.

,. 1. Expressivo ê -,0, pal'ecer do pro(urador~g('r3.1 da Repúblicd, acolhido em 19:;16 pelo S:-,pr~mo ,1 nbUlwl Federal, no ca.so d~l denúncia formulada contra um ~el.ler<.d lOSUl)Ol~dlU~do, que manteve em custódia o legitimo Pl'cSidentc <In Republlc<'!, Sr. Cafe Filho, por ocasião do golpe de 11 de novembro de 1955,

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ARRUDA CAMPOS

10. Com êsscs al'gul1lentos pensamos haver comple­tado o círculo das noções elementares dc Direito Público que julgamos necessál'io incluir nesta introdução. Ocorre entre nós um processo degenerativo, em conseqüência do qual a Constituição, que teoricamente tem sólidas bases democráticas, perde a consistência normativa para se transformar em papel escrito, que certos homens rasgam e colam novamente, ou rasgam e fazem outra em subs­tituição, com absoluto desprêzo pela soberania do povo.

Diz o representante do Minístério Püblico Federal: ,..- "Ora, não há notícia nos anais forenses de terem sido submetidos a processo os que hajam tomado parte em golpes militares ou movimentos revoludonãrios vitoriosos, por não serem considerados criminosos os atos por êles praticados em tais ocasiões".

Arquivando a representação a que alude o parecer. confirmou o Supremo Tribunal Federal a tese de que o poder efetivamente não emana do povo, mas da fôrça triunfante, Se outro general chefiar um contragolpe que acabe ven~ cedor. não teremos também atos criminosos a ser punidos, e assim por diante, até que o último, peja fôrça da espada, torne bandidos todos os heróis seus antecessores ,- tal, aliás. _ como aconteceu em Nuremberg.

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CAPÍTULO II

A LEI GERA O CRIME

11. O dil'eito é uma ficção sistematizada que se cl'iou para que os homens fortes possam viver em socie­dade e defender seus privilégios. Quando os fortes se reduzem a um pequeno nlunero, que se subordinam a !un, temos a ditadura de Hitler, de Mussolini, de Stalin, de Salazar ou de Franco.

Por baixo da camada de superfície, na infra-estru­tura da sociedade, lavra, porém, a permanente revolução, que vai modificar êsse direito de um, para fazer o de cem, ou o de cem, mil, podendo-se imaginar que havel'á um só direito quando êle chegar a ser o direito de todos.

Por isso, porque as famílias das nações ainda vivem em estágios diferentes de cultura, há um direito sovié­tico, um direito francês, um direito norte-americano, um direito italiano, um direito brasileil'O, um dÍTeito holiviano, um direito paraguaio, um dil'eito abissÍnio, um direito saudita, cada qual exprimindo um instante social, sem que signifique que, mais amplo e mais justo, outro não esteja em ebulição.

Durante séculos apresentou-se o poder do Rei como uma expressão do direito de Deus. Sublevar-se contra o Rei, mais do que um cl'ime de lesa-majestade, cons­tituía um ato de lesa-divindade, uma insuportável he­resia que podia ser salva apenas pelo auto-de-fé em fo-

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guei:ra. Os gnlpos dominados, todavia, continuaram a fennentm' suas idéias o criannn a guilhotina.

Isso significa quo há um direito que nasce ao mesmo vasso em que há outro que morre. Ihering, muito antes, já havia chegado a conclusão semelhante.

12. Tôdas as estruturas econômico-sociais têm o seu princípio, fastígio e têrmo, como igualmente, na Natureza, os homens nascem, crescem e desaparecem. Illellltàvelmente, o direito acompanha a marcha da es­trutura à qual corresponde.

A sociedade organizada de um dado instante tem sempre uma crosta que não pode ser radicahnente rom­pida sem a ocoTI'ência de fenômenos igualmente ,iolentos ele repercussão. Deve ser reformada para o momento seg11Ínte, avançando, progressivamente, de acôrdo com os imlnllsos que recebe das camadas infeI'iores. Quando se haja ele suhstituir uma vig'a, faz-se mister que outra (',te,ja pronta, em condições de seI' utilizada, para que, "Olll o resultado espeTado, outro, inesperado, não so­brevenha.

A estrutura do chamado mundo ocidental, Coom a1-gmnm; alterações, é ainda a de Roma. Enquanto as (·iêneias se c1esenyolvcram, ao illl]JUlso das exigências fUll­eiouais, aleançanc10 as Nações mais ricas elcnlClos pa­drões de técnica, já o direito, sob um certo aspecto, peTmaneceu quase parado. rral se deve à cirCHllstàneia ele 'J11e, não tendo havido modificação profunda no re­gime eeonômico, iJlso-facto não precisou êle ser reajus­tado suhstaneialmente. Continuou atendendo os inte.rês­ses elas classes dominantes - e <lai fi razão pE'la (lHal tanto os .jm·i8tas se npóimn no DÚ'l'ito Romano,

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A JrSTrçA A SERVJÇO DO CRIME li

Numa YÍsão de profundidade percebe-se o vulto elas reformas. As vigas mestras, porém, são quase as mes­mas. Imensas e seculares, nos pontos de apoio escon­dem-se em bases perdidas no tempo: - a propriedade privada, a herança e a escravização do homem pelo dinheiro.

13. Dos romanos nos chegou a noção de que não há crime sem uma lei anterior que o defina: - poena nonirrogatur, nisi quae qtwque lege veZ quo alio jure specialiter h!LÍe delicto únpositn est. Êsse foi o ponto de partida da fórmula nnlZnm eri1nen, mtlln poena, SÚM

7ege, celebrizada por Feuerbach. Então, traçando os limites da figura delituosa, para enquadrar nêles aquê­les determinados atos que aos fortes convém sejam re­primidos, cria a lei o fato punível. E mais: - no Brasil, com receio das idéias de Tobias Barreto, que preconizava a adoção do princípio da analogia, para daI' fim à área da subdelinqüência, inscreveu-se na Constituição que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente e na forma ele lei anterior" (ari. 141, § 27).

:6J evidente que, em certos casos, o crime antecede à lei. A violação do direito à vida, por exemplo, cons­tituiu ato eriminoso desde quando a humanidade 8U­

perOll a fase da harhárie, e ainda que, em certas nações, suhsista a vena de morte.

Na generalidade dos casos, porém, é a lei que gera o crime, porque ela segue fielmente o direito pôsto ao serviço da definição dos delitos.

Se o direito varia, de aeôrdo eom as alterações das estruturas eeonômieo-sociais, a capitulação dos

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atos, estigmatizados coomo delitos, fiea ao arhítrio do legislador.

Tudo depende do ponto de vista predominante do grupo que empolga a superestrlltuTa da sociedade. O aluguel do trabalho humano, por exemplo, considerado crim8 nos países comunistas, é lícito e constitui até uma das bases da prospel'idade dos países capitalistas. Da eseravidão humana. como a tivemos até recentemente , ., pode dizer-se a mesma coisa. E assim por diante.

A mudança do regime l'epercute intensamente nas ações das criaturas.

O Cristo pregou - não furtai'ás - 8, todavia, os homens continuaram ÍllTtando e em larga escala, por­que a vida atual é cheia de tentações.

NaU nião Soviética, restringida a propriedade par­ticular, deixou de haver a UEUTa, acabou a usurpação de terras, excluídos fOTam os açambarcamentos de gê­neros, terminou a exploração da economia popular, pelo que, ipso-facto, caíram extraordinàriamente os níveis da incidência dos furtos, estelionatos e outros crimes contra o patrimônio. Em compensação, surgiTaIl1 figuras no­vas, em substituição, que constituem delitos contTa o Estado.

Colocada a (lUestão dêsse ponto de vista, pode-se prever, quando se modifiquem certos conceitos de nossa sociedade, o quase desaparecimento do crime ele adul­tério, de contrabando e outros, mediante a simples ado­ção do divórcio e franquia elas Íl'onteiras, pois que há sempre um direito novo, em formação, pronto para substituir o \'{"lho, que caduea. Inversamente, teremos a lei criando um'os delitos, tomo ainda agora aconteeen com essas que VIsam, com penas hramlíssimas, a proteção

A ,n:STIÇ'A A SERVIÇO Dü CllIMB 19

da economia popular, ou aquêles, que recebem eomin<\­ÇÕ8S graYÍ8simas, ehmnados geralmente de crimes ]Joli­tieos ou contra a segurança nacional.

14. Georges Ripcl't assim se manifesta:

"Os estudos recentes, que possuímos sôbre as transformações do direito privado durante o século XIX mostram com perfeição C01110 o d(lscl1Yolvimento da civilização material e as mudanças na qualidade das riquezas tOTnaram necessária a reforma da legislação civil, e tam­bém como as nossas idéias e concepções foram em mais dum ponto transf0l111adas por essas novas regras. Mas, ao ler êsses estudos, dir­-se-ia que essa evolução foi ao mesmo tempo fatal e benvinda. A mna sociedade nova COT­responde um direito novo; não é para espantar o ensino de que o direito é um produto da vida social, e devemos até felicitar-nos se tôdas as novidades forem cousideradas como um progresso" 2.

IDquivale dizer, rnutatismutandis, que coada civili­zação tem seu crÍIn€. O cavalheiro de indústria tomoll o lugar do cayalheiTo de punhal.

15. Eseolhemlo com relativa liberdade os atos o fatos que devem ser definidos como crime, a lei despreza o conceito do qU8 seja anti-social, substitnindo-o pelo quc {; antijnrídico.

2, o Regime Democrático e o Direito Cívil 1llodcr11O, ítem primeiro.

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20 AURUDA CAMPOS

Não vamos perquirir o que Rejam o bem e o mal. Baste-nos a noçào vulgar, que os homens sentem antes mesmo de compreender, e que subsiste, sempre, no co­raçào da criatura humana. Tal seria fôssemos dizer aqui o que seja o mal, o que seja o bem.

O delito é um fato. É mn fato que tem a sua re­percussão, porque cria, modifica ou faz desaparecer uma determinada situação pré-existente. O delito é também um ato. É um ato, porque depende da intercorrência do elemento vontade.

Num conceito amplo, delito deveria ser todo mal praticado, dolosa ou culposamente, por causa do pre­juízo causado a alguém, ou à coletividade. Situado no espaço, seria todo o ato anti-social.

Anti-social, no sentido da comunidade perfeita que se procura alcançar, não a que subsiste em determinado momento e que se recobre de um direito para ela feito sob medida.

A lei da classe dominante, porém, estabelece uma distinção. L~bandonando o conceito do anti-social, que envolveria muitos dos atos praticados pelos seus elemen­tos mais representativos, cria, aTbitràriamente, o concei­to menOT, do ato emt1:jurídico.

Essa distinção abre caminho à compreensão do quc, restrito o exame ao campo do direito criminal, em se­guida se vai consignar.

Figurativamente são dois círculos que se eOlltêm um dcntro elo outro. O maior envolve os atos anti-sociais e o menor apenas os atos antijnTÍdicos. Entre os dois há um espaço. Há uma faixa circular, vazia, uma área que chamaTcmos de subdelinqüência, onde todo o

A .JUST1ÇA A SERVrçO DO CRI:Mlll 21

nwl pmticad o não i1npl'icn na, Ú1 fmQão dn lei pennl, ainda que cause danos aos indivíduos ou à pTópria sociedade.

Todo o esfôrço elas inÍra-estruturas sociais, na pro­dução de um direito novo, tem por objetivo reduzir a largura dessa faixa, para que os dois círculos se con-

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fundam. Pode-se até estabelecer um critério para afe­rição do grau de cultura de um povo através da medida da largura elêsse espaço que os anseios populares pro­curam preencher.

Há um êrro. O êrro está em que, em vez de constituir uma ação

voltada contra a sociedade, o delito é considerado tão-

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ARRt'bA CTMPOS

-SiJlll('nte lllIJa aç50 voltndi! eoutra a lei. Pode o agente do ato atingir a sociedade, que não ineidirá na lei penal. Permanecerá incólml1e e Ímplmc desde qne não ahan­done a área da snbdelinqüência.

A êsse respeito nunca será excessivo lemhrar que, se a transgressão do dever jurídico, no campo do di­reito civil, eria uma sanção, que, reduzida a números, pode ser considerada equivalente ao dano, já na esfera ela criminalidade não há critério fixo que justifique as diferentes graduações estabelecidas pelo legislador. Não há proporcionalidade constante entre as faltas co­metidas e as punições que elas acarretam. O crime de abandono de família dá margem a penas ridículas e mesmo o homicídio, que no Código de 1890 autorizava a condenação a 30 anos de prisão, no atual se ajusta entre 6 e 20 anos.

Da lei de Talião - ôlho pOJ" ôlho, dente por dente - pode dizer-se que tem efetiva aplicação no Direito Civil. Ê a indenização, são as perdas e danos, são os lucros cessantes, os juros da mora. Ê a regra, quase matemática, de correspondência entre uma COlSa e outra, entre a infração e a compensação.

No cTÍme, todavia, inclusive no capítulo da legíti­ma defesa, não há respeito a essa regra de proporção. O dÍl'eito do eieladão fica à mercê de fórmulas, quase sempre vazias - da habilidade, ou inaptidão do advo­gado, ou do pn)]l1otOl', e sujeito ao julgamento de cria­turas que projetam adiante seus próprios problemas 8.

geralmente decidem humanamente, ou seja, em função de suas angústias, de suas al0grias e de seus d0-"enganos.

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16. .A opinião que pI'edol1lina entro os doutos é a de que o princípio mtllurn crlmen sine Icgc visa defender os cidadãos, colocando-os a salvo de quaisquer violências. Não lJodem os governos, nem as polícias, nem os juízes, cometer ação contrária à lei, donde a conseqüência de que não podem perseguir ou fracionar a liherdade de quem quer que seja, se a pessoa visada não praticou atos definidos como delitnosos.

V on Liszt é de opinião diferente, afiançando que tal sistema não protege o cidadão comum, nem a ordem legal, nem mesmo a sociedade, mas o indivíduo que comete o crime - uma vez que lhe outorga o direito de não ser castigado, senão nas condições e dentro dos limites legais.

Parece-nos, todavia, que a questão é outra. O pre­ceito neulZum crimen sine Zege não visa a proteção do cidadão comum. O homem normal, vida a fora,. está sempre longe da delinqüência, pelo que lhe é indiferente essa modalidade de amparo legal. Igualmente não aco­herta o criminoso, porque constitui justamente o catálogo elas penas que lhe são cominadas. Quem se beneficia da aplicação dessa regra é ° agente que pratica atos anti-sociais sem sair da faixa da subdelínqüência. Êsse não é o homem comum. Tamhém não é o criminoso. Ê

o indivíduo que usa o Código Penal como uma carta de navegação. Que faz o seu contrahando junto dos es­e01h08 e nunca avança pnJ'a o mal' alto da honestidade.

17. O dogma nu1l1l1l'& crimen sine Icge está hoje suficientemente desmascarado. Entretanto, sua falsida­de se ressalta quando se eogita do que, num outro eu­femismo, os jUl'istas chamam de crime político.

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24 ARRImA CAMPOS

Enquanto as connmiências dos grupos dominantes se ajustaram, certos homGlls da Alemanha, dos E. U . .A., da França, da InglateTra, da Itália, da U. R. S. S. e do Japão, eTa111 tidos C01110 gTandes individualidades. Quando os interêsses dêsses grupos, nas diferentes na­ções em que dominavam, entraram em choque, provocan­do a conflagração, passaram subitamente à condição de bandidos. E quando a guorl'il terminou, os vencidos foram considerados criminosos.

Seguindo a lei do mais forte, os governos triunfantes refluÍTam às fontes mais remotas, e conseqüentemente mais bárbaTas, e delas retiTaTam novos princípios paTa justificativa da exemplificação que pretendiam fazer.

Com representantes dos juristas dos governos vi­toriosos, foi criado U111 tribunal internacional paTa jul­gamento dos antigos gTandes homens. A côrte de Nu­romborg exprimiu, num dado instante, o grau máximo da cultura jurídica das nações vitoriosas.

Contudo, o dogma nullnm cl'imen sine lege foi ba­nido. Guerreiros ilustres, que cumpriam ordens, que venceram batalhas, foram responsabilizados. Em ne­nhum texto penal se encontravam os dispositivos que pudessem enquadrar o seu patriotismo e a sua bI'avUJ'a. Todos os códigos que acaso fôssem consultados - exce­ç'ão feita do Dinamarquês e do Soviético - estipulavam uniformemente que não há crime sem a prévia definição da figura delituosa. Não ohstante, foram condenados. Não ohstante, foram mortos '.

3. O Código Penal Dinamarquês de 1930, revelando o alto grau de ci­vilização do país, adotou o princípío da analogia. Já o Código Soviético, em elaboração, que substituirá a legislação penal das díferentes repúblíci1S da URSS,

A JUSTIÇA A SERVIÇO DO CRIME 25

Foram assassinados, eomo eriminosos, em nome da ordem jurídica.

AgaTa, que desapaI'eccram, podem os tratadistas continuaI' cantando 10as ao p1'incípio de que nulZum cri­num sine lege e proclamar que êle constitui a garantia do cidadão comum. Mas, os mesmos gOyeTllOS, que 1'Ca1'111am os alemães, italianos e japonêses vencidos, e lamentam o trucidamento a frio de tão bons cabos de guerra, que lhes poderiam ser úteis na próxima guerra qne intentam preparar, já revelaram claramente que, quando convém aos seus grupos dominantes, podem até pisotear o direito.

18. Dentro ainda do eufemislllo - crime político - há tamlJém a fórmula do julgamento de mdem pes­soal. Ê uma pequena digressão, mas o caso ajusta-se ao tema. Ao propagandista da paz, que quer pacifi­camente disputar uma inocente eleição pode-se atribuir a intenção de snbverter violentamente a sociedade, fa­zendo inclusive a guerra. Haja vista a decisão almixo transcrita do egrégio Tribunal Regional da Justiça Elei­toral de São Paulo:

"Os três candidatos que se apresentam nes­sa qualidade, não como elementos do PTN, mas assim como candidatos a vereadores pela Alian­ça Popu.lar pela Paz e contm a Carestia, en-

elimínarâ o sistema instituído em 1926 "porque a delinqüência está de tal forma reduzida que não há necessidade de dar essa arma aos julgadores para que ajudem o guvêmo no combate à crírnlnalidadc".

A questão não ê de substância, mas simplesmente ilustrativa. Por isso, fica apenas o reçristro dela.

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tidacle desconhecida e ilegal, não escondem SHas tendências, e o seu jôgo nos estribilhos de sempre. .. Há, finalmente, as incisivas infor­mações prestadas pelo DelJartamento de Ordem Política e Social elo Estado.

Merece reparo a afirmação do Dl'. .r uiz de Direito, com fundamento num exame parcial da Constituiç.ão, de (lue ninguém tem o direi­to de impedir que o povo se oriente para a esquerda ou para a direita, porque o povo é soberano e sua vontade eleve ser respeitada, donde a impossibilidade jurídica da criação de (lUalquer impccilbo à expressão da vontade popular.

Ê que a citada Constituição, promulgada 1)810s legítimos representantes do povo brasi­leiro, sem as influências de ideologias impostas 1)01' estranhos, ao mesmo tempo que declara livre a manifestação do pensamento, não tolem l)l'Opaganda de guerra e de processos violentos para subverter a ordem política e social I'('i­nante no País (art. 141, § 5. Q). Ora, os co­munistas ativistas pregam exatamente essa sub­versão violenta de nossos princípios e das nos­sas tradições. Ignorá-la é agir com. evidente má-fé. O Partido Comunista Brasileiro foi deelarado fora da lei por decisão ele nosso mais alto tribunal. Não existe "ele jure", mas existe de fato, na sombra, embora em franco declínio. Não poderá, conseqüentemente, em ligação wm inescrupulosos partidos, enqnanto vigente a

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.\ ,TFSTI('A A SETlV1Ç'O bo enJ-:\rr.

Constituição (' as leis que cnssarmn seu registro, eleger representantes aos corpos legislativos do país. São Paulo, 8 de outubro de UJ51"'.

19. Para melhor preservação de seus interêsses os grupos dominantes têm partidos políticos de reserva, que surgem apenas nas vésperas das eleições. São agre­miações fantasmas, que não incomodam os tribunais elei­torais, apesar do profundo mal que causam ao fllneÍonn­mento do sistema democrático ..

Não passam de meras legendas, devidamente re­gistradas, que pertencem a determinados grupos, cuja função, além da venda de lugares a candidatos avulsos (para que seja assegurado o mínimo legal de votantes necessário à Sl1 hsistência do suposto partido), é a de servir de cunha no jôgo dos interêsses contrariados, para favorecimento de alguns em detrimento dos demais.

Em relação a êles não há nenhuma providência defensiva do regime. A Justiça Eleitoral nada pode fazer - e nada faz.

Pa/l,tidos, já o dissemos, deveTÍam ser órgãos da opinião pública. Deveriam ser estruturados del110cràt.i­camente, atraindo eleitores de acôrdo com seus progra­mas. Em vez disso, constituem pirâmides invertidas. São dirigidos de acôrdo com as conveniências elos grupos que têm os llOInes de seus membros inscritos nos regis­tros eleitorais. Tal, exatamente, eomo slleede ccom os pTivilégios ele invençã.o, (lHe são propriedade de al­guénl.

4, Acórdão n,~ 18.735 ~ Publicado no "Diário Oficiar do Estado, de 23 de outubro de 1951, pág. 46.

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Quando os gTUpOS dominantes se sentem realmento em perigo, quando o recnrso da chapa única se revela ineficaz, quando os Jloderes do Estado não conseguem conter a infra-estrutura, então recorrem ao gesto extre­mo, caracteTístico dos Jlaíses subdesenvolvidos, onde a soberania do povo não passa de uma vaga e inexata ex­pressão: - rasgam a Constituição, como foi rasgada em 1930, depois em 1937, como rasgada acabou sendo a de 1946. Rasgada (1955) e colada de noyo. Para isso ela é de papel.

20. Ê assim que Jlodemos voltar ao início dêste trabalho, quando escrevemos que o direito ainda é uma cristalização da fôrça, ou uma ficção sistematizada, que se criou para que os homens fortes, que se articulam na superestrutura da sociedade, possam defender seus privilégios, abafando as reivindicações dos que vivem na infra-estrutura.

Caricatos são os juristas quando comparados aos que se dedicam às ciências positivas, que aludem às doutrinas do Corpus JW'is com a mesma gravidade com que a matemático faz a demonstração de um teorema. Nu171l1n ct'imen s!ne 7ege, com exceção de Nnremberg - e elo resto.

21. O resto age na área moyediça da subdelin­qüência, fazendo uso das sondas para medir a profundi­dade dos lugares por onde conduzem a naye suspeita de seus peTversos intuitos. São, em linhas gerais, os quc rompem o equilíbrio entre o capital e o trabalho e ahrem brechas no sistema capitalista, pelo fato de que anferem lncms injustos.

A J eSTI~',\ ,\ Slmnço DO CllDm

Grupos inwnsos c podeTosos existem, que se for­mnnllll como a bôna da guena, eu;jo ganho não on­eontra justificativa nem mesmo nas complacentes normas da vacilante moral dos dias de hoje. Seu dinheiro vem drenado da infra-estrutura e causa o empobreeimento de dezenas de milhares de criaturas. Produz, além do mais, uma concentração Jlerniciosa, que os autoriza a gastos imoderados, a num vida acintosa na almndância e no luxo, detenninamlo 11 elevação geral do custo das utilidades.

}jsse lncro não sUTgill do trabalho normal das na­ções capitalistas, como a Inglaterra, a França, a Itália, os Estados Unidos. Veio foi da desarticulação da so­ciedacle, que se anestesiou e já não sabe se defender. Ê o lucro do que ganha com o (lue devia dar de graça, e que Santo Tomás define como. caracterizador do usurário.

Consolidados 110 seu Jloderio econômico, êsses sub­delinqüentes, que praticam atos genuinamente anti-so­ciais, quase num suicídio coletivo, fazem mais. Rei­vindicam e conseguem o poder político. Para êles não existem informações da Polícia. Indivíduos que pra­ticaram crimes C01111ms, e que estão sendo processados pela Justiça, atravessam fàcilmcnte os largos cl'Ívos da .Justiça Eleitoral e compram votantes como se fôssem mel'eadol'ias para cOllsegllÍl' a imunidade pal"lam8ntar (lue lhes dará a impunidade.

Quem semeia votos colhe legislação '.

5 _ Daí i'l notória incapacidade do legislador brasileiro, sobretudo quando se trata de reformat" a legislação, dentro de um plano de conjunto, conseqüen­temente trab,'I1hoso e dificil de ser lc'vado adiante. E mais fácil ao Parlamento

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:!II .\llRl.'DA ('.\):1POS:

22. São de Ripert êstes conceitos: - "Os jurisbs não podem ignorar por quen~ e como é feita a lei. Sabem que esta é apenas a expressão da vontade duma maioria de parlamentares, por sua vez eleitos por uma maioria de eleitores. Como os indiferentes são mais numerosos do quo os atuantes, trata-se no fundo da expressão da vontade duma minoria, e, como sôbre mais dum ponto nem os eleitores, nem os parlamentares vêem com clareza, a lei rel)resenta simplesmente a yontade persistente dUlll homem ou de alglms homens. Sabe-se que determinada lei foi preparada e proposta por determinada pessoa ou gl'llpO, que o yoto foi facilitado por uma campanha de imprensa, e que o dinbeiTO pagou determinada p1'O­pagancla. Nos debates do Parlamento os grupos polí­ticos OlJÕem-se; os homens lutam pelos seus interêsses OH a satisfação do seu orgulho; os parlamentares ohe­decem às exigências imperiosas dum grupo ou dum ill­diyíduo; e por vêzes, no meio da indiferença geral, um indivíduo isolado impõe uma reforma, em nome não sei de que ideal, int.erêsse ou capricho. Os juristas 8a­hem-no, mas não o dizem. Desde que a luta dos interês­SGS ou a indiferença geral permitiu o voto dum texto, f.ste, peja virtude do decreto ele promulgação, tOTna-se para êles coisa sagrada. li:, no entanto, quem poderia descobrir na elaboração legislativa moderna um plano

cuidar de uma reforma constitucional, que vise permitir a prorrogação de mandatos ou a ree!eíção dos ocupantes das maís altas posições nos governos, que elaborar lIma pequeniui'l lei que proteja as vitimas dos textos mal en­quadrados.

Assinale~se, todavia, que à falta de espirito democrático do Judiciário, que o leva a um estado de pe.rmanente acomodação, deve ser carregada uma parte da responsabilidade pelas omissões atuais, O Judiciária não aponta camínho, não reclama, não reivindiCil ~ prderindo omitir~se, cõmodamente, a mostrar ao povo que está inocente e não tem meios de agir.

A ,n'SnçA A SImnç'O DO cnnm :ll

de organização do país? Se acaso tomáSSCIJ10S uma após outra as leis votadas lll'stes últimos anos, poder-Bo-iam intentar cmioBas açôes de paternidade. ,Aliás, um pro­jeto inspirado pelos motivos mais diferentes sai muitas vêzes do Parlamento dilacerado pelas discussões e re­mendado com disposições cessionais. Tôdas as leis mo­dernas sofreram uma olJeração cirúrgica e os operadores são numerosos, se não desinteressados. Os tratados de direito civil não fazem nenhuma alusão a esta influência do poder político sôbrc a confecção e a transformação das leis. Acusam eo111 fl'eqüêneia a inabilidade do legis­lador, mas nunca ousam dizer qual o interêsse político que ditou o projeto ou deformou a lei. li:nsinam que existe uma evolução elo direito, mas obstinam-se em desconhecer os (1118 se esforçam por levá-la a cabo" '.

23. ",\'marrado à Constituição o Poder Judiciário cumpre a lei. Pelo menos em teoria. Não lhe é dado discutir as origens dela, nem investigar a intenção de seus autores. Não pode TeCOTl'er à analogia para al­cançar nas suas malhas os que agem contra a soeiedade, empobrecendo-a injustamente, levando-a à miséria e, por fôrça da miséTia, à própria escravidão. Não pode nem sequer salvar da ignorância as crianças que na época propícia aos estudos são forçadas a ajudar seus geni­tOl'es no ganho do pã.o de cada dia. Ao Judiciário cabe assistir ele braços cruzados () desenyolvimellto dêsse dra­ma da infância perdida, dêsse ato anti-social pavoTOSO que constitui um crime de lesa-pátria. Há que se cingir aos textos, impossibilitado de apanhar os que cÍl:culmn

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ArtRrDA CAMPOS

entre os artigos do Código Penal, sem tocar Plllllellhulll,

porque ellmI'l'll o jUl'alllPllto eOllstitneional e, no campo do direito el'Íminal, segue o pl'incípio (h> que Jlll17nm

(Timen sine 7ege,

Daí a razão pela qual a ,Justiça está ao serviço dos gl'llpOS de homens fOl'tes, que lhe distribuem as tarefas atI'ay6s de Códigos e leis esparsas, Castiga o "vigal'isb" (lUe ilndill o paspalho, recebendo dinheiro bom a trôco de papéis velhos, sem valor, luas não põe a mão no illeOl'pol'ador de sociedades anônimas iTl'eglllal'cs, ou no instituidor de condomínios fantasmas, que iludem o mes­mo inelisíeluo, recebenelo elêle elinheiro bom a trôco de papéis novos, sem valor, porque, num caso, aginelo sob a eliscivlina elo Cóeligo Penal, o agente perpetrou um estelionato, enquanto llOS outros, rnanobranelo sob a pro­teção elo Cóeligo Civil, realizou apenas 11m negócio, São sutilezas que distinguem o ilícito civil do ilícito penal na área da s11hdelinqüêneia,

24. Todo o esfôrç,o da humanidacle tem sielo diri­gielo no sentido de reduzir a extensão da faixa de 811b­dp]im[üênein, Em eompensnção, os qne, sem títulos ele pl'opl'iedaele, a ocupam, e que' nela têm a sua lavoura (](' voümtes, tratam de alargá-la cad,\ Y<'Z mais.

:B'iquem pois assinalados, fOltemellte assinalados, 2stes qnatl"O pontos que restringem o i'imhito da prím(;il'a

THute clêste pequeno estndo:

(/) 1l lei l'C}Jresenta o interêsfw dos gl'npos eeonú­mieos elominanh's;

A JrSTlçA A SERVIÇO 00 CUBlE 33

11) o .Judiciário, escravo ela lei, mas sem nenhum apoio no povo, serve aos interêsses elêsses gru]los;

c) o elelito, em vez ele abrangm' o ato anti-social, envolve apenas o ato ::mtijurídico;

li) o pTiucípio de que n1!llwn crimen s'Í1w lege visa a proteção elos que, praticando atos anti-so­ciais, não chegam a violar a lei.

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CAPÍTULO UI

A JUSTIÇA APLICA A LEI

25. Podemos agora, do plano geral, descer ao par­ticular, ahordando o assunto que nos moveu a compor o presente trabalho.

Para a defesa da superestTutura, bem assim de algumas camadas privilegiadas da infra-estrutura social, o poder público estabelece normas, define os delitos e atribui a um ramo do Judiciário, - a Justiça Criminal - a tarefa de aplicá-las.

O objetivo básico da Justiça é o de selecionar o in­frator da legislação, sopesar-lhe a responsabilidade, me­dir o grau de sua periculosidade, puni-lo, reajustá-lo, devolvendo-o em seguida à coletividade para que seja um elemento útil no convívio social. É o essencial.

Pouco importam os intuitos subjetivos, que animam as discussões acadêmicas, quando se procura indagar se a pena constitui vingança, represália, castigo ou exem­plo. O illterêsse da sociedade é um só. É o de que o delinqüente retome curado, para que cuide cOlTetamente de suas obrigações eomo a gen8m1idade dos cidadãos.

Quaisquer que sejam, as teorias que procuram expli­caI' as razões da punição confluem sempre na questão do comportamento do criminoso desde o instante em que termina o cumprimento da pena.

A JUSTTÇA A SERVIÇO 00 CRIME

Nesse instante, das grades que se abl'em, é que a sociedade vai ver se os homens que aceital'<1m a tarefa de administrar a .Justiça Criminal, são de fato dignos da missão que pleitearam, ou se, ao contrário, não passam de indivíduos enfatuados, halofos, senão mesmo 1I81'ver80s ou pernICIOSOS.

26. O roteiro da Justiça Criminal é o Código Penal, que constitui o dicionário dos crimes e consigna o receituário das penas. No rigor com que trata os crimes contra a propriedade e, por exemplo, na bran­dura relativa aos delitos contra a honra, ou no esqueci­mento do mal decorrente das sonegações de impostos, ou da inércia quanto ao que produz a erosão das terras férteis, tTaz registrada a marca dos grupos dominantes. Dentro do mesmo exemplo pode-se ver que o Código garante a navegação dos snbdeJinqüentes, ainda qne, atTavés da evasão dos tributos legais, êles pratiquem um típico ato anti-social. Estão impedindo o pode.r pú­blico de prestar henefícios necessários à coletividade e locupletando-se ilicitamente em prejuízo do povo. Da mesma forma, o indivíduo que não combate a erosão do solo está saqueando as gerações futuras.

O Código Penal de 1940 foi elaborado por alguns juristas, que nnncapassaram de teóricos, não propria­mente desumanos, mas anti-humanos. O tBxto que pro­duziram desconhece o homem e ignora a soeiedade. Brutal e monstruoso, rasteja ao serviço dos poderosos, que, afinal, não Jlediram e não precisavam de tanto.

Pune o autOI' do desfalque, sem cogitar das cansas que determinaram o crime. Finge não saber que o

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36 ARRUDA CA1\IPQS

criminoso perdeu o dinheiro no jôgo, e o lJel'deu porque aprendeu a jogar na infância, apostando estampas nos álbuns de guloseimas, de cuja venda o govêrno tira proveitos; viciou-se depois no "jôgo do bicho", que sub­siste porque os banqueiros subornam as autoridades que deveriam prendê-los; acabou de desviar-se, pOl' fim, j 0-

gando nas corridas de cavalos, antros miseráveis que gozam de proteção oficial e são considerados de utilidade pública.

Castiga o ladrão, sem ter em conta que, regra geral, êle é produto do meio em que foi abandonado, da miséria desesperada em que arrasta a sua existêneia. Não toma conhecimento das maltas de meninos desamparados, em relação às quais o poder público nada faz; filhos de sentenciados, de alcoólatras, de vagabundos, crianças sem lar, sem brinquedos, esquálidas, esfaimadas, rôtas, bi­chos que dormem nas ruas e que as autoridades, egolsti­camen te, preferem simular que desconhecem.

O Código Penal não percebe que aqui o delinqüente tira o seu diploma nas escolas de crimes que o Estado mantém. Passa por cima de todo êsse complexo e os­tensivo processo de desintegração do (!aráter dos in­divíduos, das oportunidades que o Estado cria para que, cedendo às tentações, o adolescente enverede pela senda da criminal idade.

Foi elaborado na frieza dos gabinetes, sem que seus autores sentissem o cálido arfar de um só sentimento de humanidade. Obra gerada em regime de ditadura, surgiu, aberrante no seu rigor, divorciada da vida, so­bretudo da vida dos brasileiros. Bom, talvez, pal'a lê

Suécia, onde o Estado não ensina as crianças a :iogar, a

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A .TVf>.TIÇA A SERVIÇO DO CRIME 37

beber, n8m muito menos a faz81: um curso completo de mbtração do alheio.

A desonestidade dêsses homens é patente. Os ju­ristas da ditadura, que souberam prever penas k'io exa­geradas para certos crimes, também sabiam que não te­mos os estabelecimentos de regeneração que descreveram na Parte Geral. Fíxaram~ as sanções visando tão-somen­te a segregação do elemento reputado mau, pelo maior tempo possível, para impedir que continuasse pertur­bando a tranqüilidade coletiva, sem se importar com a pessoa do delinqüente, nem ainda com o interêsse da sociedade que terá um dia de recebê-lo de volta. Um, que é acionista de estabelecünentos bancários, majorou o castigo da apropriação indébita para defender o seu banco; e outro, que é rico e tem jóias em casa, puniu duramente o ladrão para resguardar as jóias de sua mulher.

O Código não teve em consideração o elemento lm­mano na paisagem social brasileira. Não levou em conta o desajustamento de nossos homens, que se desenvolve de uma forma diferente do que se passa na Escandinávia. Na Suécia, forma-se o cidadão, enquanto aqui temos máquinas de entortar cTianças, de perverter jovens e adultos. Aqui, deforma-se o homem. O Código, porém, tratou-nos como se fôssemos uma nação do mais elevado grau de cultura.

Por tudo isso, e mais coisas ainda, deve defender-se o delinqüente dos rigores do CMigo Penal. Trata-se, afinal, de causal' o menor mal possível a um homem que, condenado, vai seI' sacrificado. Tudo pOI'que meia dúzia de üJóricos, ele coração endurecido, enl­pafiados pelas suas culturas germanizadas, italianizadas

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38 ARRUDA CA?IPOS

(l afnmecsadas, nioll essa estrutura desalmada, em que um defendeu o seu banco, outTO as ;jóins da família, enquanto o tereeiTo, por via das dúvidas, 1,810 art. 240, tratou de pôr a salvo a própria mulher.

27. Bem longe poderíamos ir se fôssemos compa­rar os critérios do legislador na estipulação das penas, cominadas, por exemplo, aos delitos contra o patrimônio em relação aos crimes contra a honra. É vergonhosa a insignificância destas, sobretndo diante do exagêro daquelas, numa demonstração clara de que, para o Có­digo Penal, a honra é o de menos, enquanto os valores materiais são o essenciaL

Haja vista o caso do latrocínio, que o legislador incluiu entre os crimes contra cc proprieda,de, sem ter sequer a preocupação de lhe dar n01nen juris: está de­finido no parágrafo de um artigo que capitula o roubo. Daí uma certa jurisprudência no sentido de que êsse delito não se inclui na esfera de competê.ncia de jul­gamento do Tribunal do Júri.

O indivíduo mata para roubar a quantia de dez mil cruzeIrOs.

Pune-se a subtração dos dez mil cruzeiros, com a majoração acessória decorrente da morte do paciente.

O indivíduo mata para roubar a quantia de dez cruzeIrOs.

Pune-se a subtração dos dez cruzeiros, com a ma· joração acessória deconente da morte do paciente.

O indivíduo mata para roubar uma carteira, que supunha estar cheia de dinheiro. Vendo-a vazia, aban­dona-a sôhre o cadáyer da yitima.

A JUSTIÇA A SERYIÇü 00 CHUrE 39

Pune-se a intenção de suhtrair o dinheiro, em ca­ráter prineipal. Quanto à "ida humana roubada, tem importância menor elo ([ue a carteira vazia.

Há mais. A mulher abandonada que pretenda alimentos,

mesmo os provisionais, para si e para seus filhos, deve ajuizar uma ação contTa seu marido. Arma-se um pro­cesso litigioso, com depoimeutos pessoais, inquirição de testemunhas, vistorias, perícias, etc. Sujeito aos aza­res das pautas, prolonga-se o feito, ou arrasta-se, na conformidade das regras do contraditório. E trata-se de obter alimentos para que uma mulher e seus filhos não pereçam!

Como se a Vida se sujeitasse aos mtigos dos códi­gos, meses se passam até que o assunto seja resolvido ]}TOvisoriamente. Um credor qualquer, porém, munido de uma promissória, ou ele uma letra de eâmbio, tem meios de exigil' o pagamento do débito em vinte e qua­tro horas.

É a eontrallTova de que à lei capitalista pouco se lhe dá o sofrimento da criatura humana, contanto que o patrimônio do indivíduo seja resguardado.

Inverte-se o velho provérbio.

Vão-se os dedos, mas fiquem os anéis.

Contudo, nã.o é apenas essa feição, que exaspera o castigo dos que ameaçam ° Telógio e o quintal do le­gislador, que vicia e macula o Código Penal. Outras falhas existem, que só não são corrigidas porque até aO'ora nenhum hom8m poderoso sentiu na earne os seus

b d" 1 efeitos. É o caso da concessão do livramento con 1810na tão-somente para os eondenados 11 penas de reclusão

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40 AURrDA CAMPOS

ou detenção snperi01'es a três anos, deixanclo, até êsse máximo, aberta a porta para a injustiça, pois fica im­possibilitado de obter o benefício todo o agente cuja condenação foi fixada abaixo dêsse limite. O condenado a cinco anos pode liv1'ar-se após dois anos e meio, en­quanto o que teve a sua pena graduada em três deve pagá-los integralmente, pois a lei, odiosamente, lhe 1'e­cusa o direito ao lil'Tamento.

Veja-se a imprescritibilidade da pena acessória (a1't. 118), quando prescrevem as penas principais, e tome-se tento da inépcia dos que ignoram a regra elementar de que o acessório segue o principal. O acanhado ânl­hito da reabilitação (art. 119), que deveria ser muito mais amplo e alcançar tôdas as conseqüências adminis­trativas da pena; a questão do critério de reincidência para os crimes culposos e dolosos, a negativa do s'wl'sis ao reincidente que voltou a infringir a lei depois de longos anos de separação entre um delito e outro; o esquecimento da ameaça nos crimes de violêneia arl)i­hária, com a preocupação apenas da violência física. , .

Bem longe poderíamos ir. Contudo, o que ficou assinalado é suficiente para nos livrar do prosseglli­Inento. ,Já é muito.

28. Falseado o conceito jurídico de crime, tudo o mais tem base precária. Não se aperceberam os juízes ele (pIe estão a serviço, não da Justiça, mas de uma jus­tiça de classe, de preconceitos, de inteTêsses vulgares. Os próprios magistrados, que vão enquadrar os fatos à lei, são recrutados de modo vicioso. Embora a Cons­tituição declare que todo o pode?' emana do povo e em seu, norne é ca;ercido, o poder dos jnízes emana de nma

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ensta. Não participa o povo, mm.ca participou, ele ne­nhum modo, do processo de escolha dos que devem jul­gá-lo', As constituições aparecem e desaparecem, mas não interferem na indicação dos que devem ser nomea­dos ou promovidos. Daí o desenvolvimento da política pessoal nos tribunais, que os transformam em conven­tilhos togados, diante dos quais o povo e os próprios jlÚ­

zes são totalmente impotentes. Daí, também, o fato já apontado por alguns escritores, de que, enquanto o Exe­eutivo e o Legislativo reagem diante dos golpes de fôrça, o Judiciário sempre se rende. Preocupadíssimo com vantagens para seus membros, aceita a iml)Qsição e se ncumplicia aos vencedores, pois, mais apêgo têm certos magistrados eminentes a seus cargos que aos princípios que j1lI'aram defender.

A soberania do povo é uma simples palavra, desa­companhada de sentido, diante da majestade colosso de

7. A tese da eleição dos magistrados, ou pelo menos de certos magis­trados, não constitui novidade, nem muito menos nenhuma heresia.

Se o povo indica o presidente da Repúblíca, nada impede que lhe caiba eleger pelo menos os presidentes dos tribunais, O mesmo princípio que levou o legislador constitucional a determinar que- as cõrtes judiciárias reservem um quinto de seus lugares a cidadãos alheios à carreira __ medida salutaríssí­ma, que vai dando os melhores resultados __ pode ser invocado para justi­ficativa da escolha dos presidentes dos tribunais pelo processo eletivo popular.

A má administração da Justiça decorre exatamente dessa falha. Pela vontade dos juizes, o ideal será a justiça cara e demorada, Assim, os pos~ tuJantes desanimarão antes de ajuizar suas ações. Daí o prestígio crescente do brocardo segundo o qual ê melhor um mau acôrdo do que uma ótima demanda __ optimae lití mala pactio praeferenda,

É preciso que o povo, que sofre as conseqüências do péssimo regime ju­diciário, eleja quem redima a Justiça de suas falhas, ponha escrivães apro~ veitadores na cadeia, numa palavra, faça o que os juizes não se mostram CZlpazes de fazer,

O eleitorado brasileiro está em condições de atuar na formação do Poder Judiciário, pela simples razão de que quem pode o mais pode o menos, Quem elege o preSidente da República pode escolher o presidente do Supremo Tri­bunal Federal.

Fora d.GÍ será preconceito. Será a indébita tutela do povo, muito do agrado dos oniscientes que

sabem o que interessa e o que não interessa à coletividade.

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pes de barro. 0 eleitorado, que clege 0 CongressG e 0

Presidente ela RCPllblica, naG tern 0 pocler de afastal' urll simples jniz rclapso do exel'cieio clas fUJ1(;oes, para as qnais, a revelia da coletividade, foi cscolhido.

Nao c de se admiral', diante disso, que a Justiga cada vez mais se apl'oxime do poder e se afastc do povo. E, se os grnpos dominantes a qnercm dessa forma, e po1'­que assim cIa lhes couvcm. Maleavel, amoldavel, quase como 0 liquido que toma a forma do vaso que 0 abriga.

29. Os Juizados de Menores, l'egra geral, sao inc' ficientes e inoperantes.

Nos grandes centros transformam-se em Jufzos de ilfaiores.

Limital11-se a consentir que a Policia prenda os me­nores infratores, para que nao continuem a dar tra­halho aos delegados, a servir a indllstria e 0 com6rcio, fornecendo-lhes autorizagoes especiais de trahalho a menOTes - a criar]()as que ficarao il111tilizadas, pela impossibilidade de levar adiante os estudos na epoca apropriada.

Os menoTes pOT ai se COITompem como se seus jui­zes nao existissem. Mocinhas, 110 proprio scni<;;o, nos halcoes, sao encantadas pOl' individuos de escassos eS­CI'llpulos. Sao seduzidas, sao prostituidas, sem que providencias de amparo sejam tmuadas. Quanto aos rapazes, perdem-se nas mas companhias e em numero elevadissimo enveredam pela senda da criminalidade.

o jogo e franco. J oga-se ate atrav8s de gulosei­mas destinadas a infancia, pOl' meio das chamadas ba­lers figuTinhas, que 0 governo federal, inconscientemen­te, alltoriza sejam fabricadas e vendidas a cnaIH,as.

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A ,rrSTI\,A A sEln'rQo 1)0 ('RBfE

E as histol'ias de quod1'inhos, de urn poder detel'ioran­te espantoso, que as autoridades snpcriol'es eonscnt0111 eontaminem a infilncia ~

Nao ha necessidade de alongamento de exemplos. Diga-se arenas que os magistrados proenram se eOIll­pensar e tranqiiilizam a propria consciencia, iludindo­-se a 8i proprios. Dai 0 rigor com que agem nos hailes, teatros e cinemas, impedindo a entrada de menores, ainda que aeompanhados de seus genitores.

Em voz de protetores de imatm'os sao J uizes de a ((1'nav(tZ.

30. No fnndo os juizes tem lIma vaga idcia da injusti\;a cle sua jnstiga. A. falsidade da lei penal pro­duziu a meeaniza<;ao de sua aplicagao. Geron 0 processo pnramente formal, frio, imovel, do qual nao se des­prende a manor centelha de humaniclade.

Entre Pedro e Paulo ha a mesma dife1'el1<;a que entre 4 e 5, aincla que 0 Pedro soja Pedro 0, entre 4 e 5, modeie um ano de prisao.

A jnstificativa da pella - vinganga, castigo, ensejo de recupc1'agao - nao e levada em conta. Pune-se, quase sempre, porque a lei ilssim 0 determina. 0 resto ponco importa. Tanto que os jnizes tem medo de olha1' os resultados de sua oh1'a e de eontemplar os destroQos humanos que, E'nquanto aVal1<;a111, vao ficando atras.

o wlto das teorias legais, tao do agrado dos ma­gistrados, posto nan passe de eita~oes supeTiiciais, no fundo constitni 0 desabafo de. 11111 sentimcnto de culpa. Bnsca-se, nao a verdacleil'a ,jnstiQa, que 8011s01a o cora gao, mas 0 brilho de 11ma sentenga que pnvaideee o espirito fMil de sen pl'Olator.

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AfmUDA CAMPOS

0, llIngistl'arlos «(11(' mais Sf' destnenm pelo rnnso Jl1an de sua ori(mtagao, igrejeiros, pnritanos, melifluos on inquisitoriais, sao os que mais se dedicam a c0111pi­la<;ao de antores nucionuis e estrungeiros. Empetecu111 a maldacle em qne se cOll1praz('m,eitanclo acordaos. Men­cionanc1o frases de mll Iatim, que, regTa geral, nao en­tcndem, on muis freqiicntemente, os italianos, os fl'an­eese,s, os espanhois, que nada sabem da realidade bl'a­sileira, mas sel'vem aos pI'opositos desalmados desses qne, julgando 0 proximo, tratam preci"puamcnte da de­fesa de seus pToprios interesses.

POl' isso e que as referencias eruditas, tao do agrado dos jnizes bl'asileiros, f'nfeitam a maioria clas suas de­cis6es. Sao desculpas, conscientcmente jl1stas, para nma injllsti"a as vezcs inconsciente.

31. Em eonseqiiencia do principio - que consti­tni quase lUna caractel'istica dos povos latinos - se­gundo 0 qual os h0111ens devem prOya1' sua idoueidade antes de merecerem credi to, temos entre nos a consa­gra<;ao do peTjurio.

A testemunha falsa, como 0 perito falso, 0 tradu­tor on interprete, que minta, ou cale a vCl'dade, cons­cientemente, ate mediante suborno, tem direito a 1'e­trata~ao, qne eqllivale a mn bill de impunidade

a tato cleixa (Ie ser punivel, se, antes cla sen­tenga, 0 agente se j"etnda, alL declam a verilade (Cocl. Penal, art. 341, § 3:).

o legisladol' pune apenas as conseqiiencia.s da fal­sidacle, 11ao a falsidacle em si meSIno considel'ac1a.

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A J"cR'fI!';A A SETIVH':;O DO CRnfB 45

1)810 C6digo Penal a imoralidmle do ato, que cons­]lurea e contamina todo 0 Direito, nao tem nenhuma significagao.

Nos E. U. A., pOT cxemplo, onde a posigao do in­di vidno diante dos agcntes do Poder Publico e inver­sa, heneficiando-se os cidadaos, ate prova em eontrario, cla presul1gao de icloneidade, 0 perjurio e 11m dOB de­litos mais graves. As antoridades llol'te-americanas sao inexoraveis na perseguigao clos que falseiam suas afirmag6es, porque esse crime poe em perigo toda a estrutura da justiga, que se haseia no prcssuposto de honcstidade de toda l)essoa humana. Tanto que, no elvel, sentengas sao proferidas, mesmo a revelia clos TeUS, bastando para iS50 que 0 advogado do autor afirme sob juramento que pessoalmente eiton 0 reqnerido para a ai,iao.

Basta uma palavra e cria-se uma certeza - ell­qua11to entre 110S exige-se a fii publica de um oficial de justiga, que, muitas vezes, entra em conluio com a paTte contraria, deixa-se Bubornal' - e, principalm8nte, Ja­mais sofre as conseqiiencias de seus crimes.

32. 0 fato criminoso e sUTpreendido pela autori­clade como um fenomeno isolado, inteiramente clissociado clo l'cspectivo mcio. E como a ehuva trovical, que num instante se forma, desaba e depois d(esaparece, sem qne os hom8ns tenham meios de cvita-ln.

Nao entTa nas eogita~6es cloB que decidem s6bre as a~6es alheias a realiza0aO de um habalho de avaliagao clas responsahilidades do meio soeial no aparecimento da delinqiiencia. N em, alias, adiallta J emhrar-se alguem desse fato, se as cOllseqiiencias de uma tal h'mbranga nau

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ARRUDA 0A;\IPOS

podem influir eficazmente na solução do caso. A .Justiça ignora até me,mo as modernas conquistas da psiquia­tria, talvez (numa interpretação benigna), porque não haja psiquiatras em número suficiente para atendê-la. O indivíduo acusado é apenas um réu, não uma cl'iatUl'll, não um indivíduo, em grande parte produto do am­hiente em que VIve.

33. :PJste trabalho seria apenas de ostentação se não insistisse, se não ferisse, para provocar reação. É

preciso que se proclame qne a .J ustiça Penal brasileira tem mêdo de olhar as conseqüêneias de sua atuação.

Pode-se compará-la à medicina, porque, em ambos os casos, o objetivo é a Cllra do doente.

É então como, num hospita.l, se os médicos se reu­nissem paTa diagnóstico de uma determinada enfermi­dade. fj como se discutisselll long'amente sõbre o mal, em função do paeiente e de seus antecedentes, do local onde contraiu a doença e das circunstâncias que deter­minaram a eontaminação. É C01110 se chegassem por fim a uma conclusão definitiva, irremovível, ou coisa julgada, que faz do prêto branco e de uma pedra um pedaço de madeira. E, uma ,-ez atingido êsse resultado, é como se os médieos 8nviassern o dO<'llte à enfel'luaria e abando­IT assem o caso.

A ,Justiça aleança o diagnóstieo final e manda o réu para o lazareto. Daí por diante, para ela, acabou-se o pl'ohlema. Não quer saher se o tratamento dispensado é celto, se, o doente está melhorando ou piorando. se êIr está OH não contaminando os demais.

Nos hospih1is verdadeiros é difeI'ente. Os doentes são homens, não simplesmente números. Se a 8nfer-

A JrSnçA A SImVrçO DO CRI:ME

mal'ia é mal aparelhada, se não tem recursos, nCIll por isso a pessoa fica ahandonada. Há sempre o médico caI'idoso que desce ao salão humilde e vai tomar, pelo menos, a temperatura de seu cliente. Para que êsse gesto de confõrto e solidariedade substitua o remédio que não existe.

Os médicos olham atrás l' quase todos se orgulham elo que fizeram.

34. O art. 261 do Código de Processo Penal, dis­põe que nenhum acusado, ainda que ausente ou foragi­do, será processado ou julgado sem defensor.

É a regra, que decorre do texto constitucional:

"É assegurada aos acusados plena defesa, com todos os meios e recursos essenciais a ela, des­de a nota de culpa, que, assinada pela autori­dade competente, com os nomes do acusador e das testemunhas, será entregue ao prêso den­tTo de 24 horas". - (Al't. 141, § 25).

Por sua vez o art. 263 do Código de PTOcesso Pe­nal declara que "se o acusado não o tiver, ser-lhe-á no­meado defensor pelo juiz, Tessalvado o direito de, a todo tempo, n0111ea1' outro de sua confiança, ou a SI

mesmo defender-se, caso tenha habilitação".

Por denadeiro, o art. 265 do mesmo diploma es­tabelece mais que o defensor não poderá abandonar o ])7'oce880 senão por rnotivo irnpel'io8o, a critério do ju,iz, sob pena de 1nulta . ..

A realidade, porém, sobretudo nos grandes centros urbanos, é muito outra.

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48 ARRUDA CA}iIPOS

o rico, ou mesmo o hOlJlem de recnrsos financeiros normais, que é chamado a prestar contas à Justiça, sempre tem meios de consultar previamente um advo­gado, de modo a ajustar suas declarações à versão que o profissional vai sustentar nos seus arrazoados.

Quanto ao pobre, êsse há de aceitar o dativo, no­meado na hora, com o qual não troca palayra e de quem não recebe nenhuma orientação.

Nas metrópoles populosas a .Justiça contenta-se eOlll a defesa f01'nwl do acusado: basta que tenha sido nomeado um advogado, basta que o advogado haja assi­nado os têrmos legais, paTa que a exigência constitn­elonal seja considerada satisfeita.

Nos corredores dos Palác~os da ,Justiça é comum assistir-se ao espetáculo de escTivães (; escreventes pe­dindo a causídicos que assinem depoimentos de teste­l11lU1has, ou interrogatórios já consumados, de juízes que fazem nomeações retroativas, para homologação de falhas insanáveis e de trilmllais qne se conformam com clefesas puramente nominais, quando não ineptas, tElO­-somente porque a regra da Carta :l\Iagna foi teorica­mente atendida.

35. Há também o êno de fato, que decorre elo def(>ito do sistema de captllm elo conhecimento.

c\üompanhemos de novo nm caso, desde que êle che­ga aos ol1Yidos dc) alltorirlacle policial. Em vez de apu­rar a verdade, o delegado se limita a nmnir elementos qlle são proximamente contrários à 1108ição do indicirtclo, desprezando os antecedentes remotos, qne possivelmente der[tll1 eansa à ação. Se, por exeluplo, o caso é o de lnll ladrão, não cogita sabpl: se se trata de uma criança

A Jl7STIÇA A SERVIÇO DO cnBIE

abandonada, OH dc' filho de mn senhmciarlo, que erescl?n no lén, em malta de meninos vagalmndos 'lue a família te o l~stado não ampararam; se do autor ele um desfalque, não pesquisa se o acusado não se viciou no jôgo, mesmo naquele estimulado pelo Estado; se de uma prostituta, não quer saber se a Fazenda Pública não cobrava dela \uu tributo pela "casa de pensão". O inquérito desco­nhece o organismo social, como o Código Penal desco­nhece o homem. Há por assim dizer um mecanismo psicológico que se repete. O Delegado de Polícia qner a condenação do indiciado para se livrar ele novos ha­Imlhos, para se compensar do esfôrço qne o 1)rOC8SSo lhe exige, para provar a seus superiores a sua eficiência. Desoansa nessa hostilidade, que o faz esquecer de que não está levando em consideração o outro crime maior, ]>raticado pela sociedade. Daí. a espantosa freqüência com que o Judiciário 1'811818 as conclusões dos inquéritos, ,]nando não acontece, pela prova dos alibis, de apurar que "confissões" foram obtidas por meios fraudulentos, não raro pela própria violência física.

36. O inqnéI'ito policial é uma peça indiciária, que aponta Ulll crime (; um criminoso. Parte do pressuposto de que a responsabilidade é exclusiva do delinqüente. Daí não se exigir UIna busca minuciosa dos antecedentes, para dar ao julgador os meios necessários à imposição ele uma penalidad(' .insta. Parte do erime, quando deYÍa eomeçar elas cansas do crime. É como o médico que atalhasse a fehre sem procurar indagar das causas ela fehl'p. O pior é que as tC'sten1llnhas e as próprias partps, colocadBs rw1a primeira vez diante de agentes do poder público, deixam-se muitas vêzes amedronta]', omi-

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;:;0 .\RRGDA CA:\IPOS

Hl1é1óclucxagel'nndo filto's,(;\n'següiéla fixados nas 1'88-

peetivns declarações, üando ao caso mna versão divm'sa da real.

~4.té hoje, não se deu a impmtância devida a êsse primeiro contacto, que vai servil' de alicerce a todo o processo criminal. Certos fatos são levados a ;julgam8n­to, até a última illstância, em versões deturpadas, tão­-somente porque a peça inicial foi movimentada por investigador, por comissário, p01' esc1'ivão, por um d("le­gado, ou mesmo por uma vítima que não soube ou não quis agi1' com perfeita honestidade.

Os psiquiatras eonhecem casos 1'ese1'vados de sedu­ção eUI que as ofendidas, na defesa do próprio pudor, inventam histórias as n,ais variadas para justificativa de sua aquiescência. São necessárias longas, TeiteTadao e insistentes entrevistas, até que se obtenha uma coneln­são que se supõe seja a verdadeira. Entretanto, quando uma jovem se vê descoberta, é ouvida snmàriammlte TIOI'

11m indivíduo que mais se delícia com a obtenção de pOl'InCnOl'es do ato sexnal elo que 8011] o intuito ele in­vestigar a existiineia de um delito. E suas declarações passam a servir de base ao processo.

37. Na Inglaterra uma lei do século XIV con­sidera em estado ele legítima defesa o indivíduo que é importunado pela curiosidade alheia. Pune-se quem es­pia indiscretamente, porque êsse gesto justifica a rea­ção do ofendido, cTÍando ensejo para uma possível per­turbação da ordem l)ública.

Em cOllseqüência, quem passe à noite pelo Hyde Pal'k, verá casais praticando intimidades, que não cons­tituem . objeto de atenção especial de ninguém pela

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.-\ .n~STIÇ'.\ A RERVIÇO DO CRum Si

razão de qlle só l)odem ser observados pelos euriosos - que, llOr serem curiosos, são cOIlsiderados 111'0'1'0-

cadoTes. Entre nós, mun retôrno à perseguição do pecado,

nossa ineficiente Polícia, que não consegue defender a população, vai além da caça aos pa1'es amorosos (como se fôsse possível impedir o acasalamento elas criaturas humanas!) e invade os lugares mais discretos, inclu­sive hotéis, vexando os que lá se encontram. E quase sempI'e extorquindo dinheiro de porteiros, ou de seus proprietários - e'llt nome da lei.

38. Vale citar, como simples sugestão o episódio relatado por H .• I. Laski, a que êle assistiu na União Soviética:

"Onvi um p1'ocesso no qual se julgava uma mulher, nmdedol'a de uma 1iv1'aria, por haver furtado desta 170 1'ubl08. Era uma mulher de 40 anos de idade e se tratava de seu segnndo delito. Foi interrogada primeiro pelo jniz p1'O­fiS8iona1 e a l'ispidez das suas p8Tguntas fêz a Té cair em chôl'o. Quando terminou o interro­gatório, passou a acusada a um dos juízes lei­gos, llllla operarIa. Com uma ternura snave, impossível de se descrever, logrou que a pro­cessada t'efcrisse tôda a sua história. Ganhava 90 rnhlos por mês; tinha o marido inutilizado na guerra e quatro filhos pequenos; não havia freqüentado nenhuma e8('01a notnrna; nada se

fazia para aliviar-lhe a carga de seus filho:;. Tinha dívidas e se havia deixado arrastar por lmm tenüll;iio repentina. Pelo telefone solleÍ-

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52 ARRUDA CA"lI:IPOS

tem-se o auxílio de um n'p1'Gsenttmtc sindica­lista e de um membro ela eomissão diretora da casa de apartamentos em que vivia a 1)1'oce8-sada. Fomm tomadas as providências neces­sárias para que ela pudesse tomar aulas de datilografia e taquigrafia, enquanto seus filhos visitavam os vizinhos e alguém cuidava de seu espôso durante tTês noites 1'01' semana. Foi­-lhe dito que devolvesse dez rublos por mês enquanto ganhasse o seu salário atual; e quan­do seus novos conhecimentos lhe 11el'lnitissem obter um aumento, pagaria quinze ruhlos por mês. Ao sair do tribunal a mulher era mna pessoa transformada; evidentemente, pela pri­meira vez, em muitos anos, a esperança havia entmdo em sua vida. Mas, ainda mais notável foi o que ocorreu depois de haver se retirado a ré. A mulher-juiz dirigiu-se ao seu colega profissional e o repreendeu pelos modos que havia manifestado; ao réu deve compreender-se, ajudar-se, não atacar-se. Se, em outra ocasião, OCOl'l'esse uma bl'1üalidade semelhante, disse, ela levaria o caso ao "soviet" local, porque tal atitude era incompatível eom os hábitos da Justiça".

E adiante:

"Creio que 6 importante que os juízes se con8idel'cm obl'Ígados a realizar uma tm'efa de saneamento sodal. JDles resolvem prohle­mas de desequilíbrio soeial, não somente apli­cam penas. l

A JrSTlçA A SERVIço DO cnBIE 53

Vinculam os cnsos a resolver lê tôdas as condições econômicas que podem descobrir. E no caso que acaho de narrar nada se teTÍa O'anho enviando a ré a 11m presídio; e muito b

ponco se fôsse colocada em liberdade depois de um período de prova. O que se fêz deu-lhe oportunidade de um desenvolvimento pessoal que lhe fortaleceu o auto-respeito; e isto se realizou com um mínimo de máquinas adminis­trativas, como parte da expressão natural de 11m ambiente ao qual os juízes pertenciam tanto

, . d ". quanto a propna l)l'ocessa a .

39. Um ensaio, que causou tremendo efeito ao desenvolvimento do sistema ]Jenitenciário brasileiro vul­garizou uma expressão fascinante: - Sua Excelência, o Réu. Partindo de pressuposto errado, seu autor, jogou com a comparação entTe o tratamento dispensado ao réu e à vítima e tirou falsas conclusões. Deu fôrças aos displicentes, aos ignorantes e aos relapsos, que sa­colejam os ombros, e, como uma tábua de salvação, re­petem o título da monografia. Se as vítimas não obtêm reparação, por que tantos cuidados C011'l os réus ~

O mal que ê.sse trabalho cansou ao Brasil é espan­toso. PaTece que juízes e tTibunais não queriam outra coisa senão alguém que lhes empl'estasse fôrças para desenvolvimento de sua mazelas.

Ora, a situação do réu é uma e a da vítima é outra inteiramente diferente. Pouco importa que a vítima seja quase 88m1)]'(\ ahandonada. É abandonada }Jor culpa

8. Laski," El Peligro de Ser: Gentleman y Ofros Ensaios" -- Buenos Aires s/d ~ págs. 84/85.

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ARRT1DA. {\\~\IPOS

do Estado, não da Jnstiçü. Aos magistrados não COlll­

pelA ndar pelas vítimas, senão apenas julgar os dc­linqüentes, da mesma fOI'ma como ao médico não cabe tratar da pessoa que levou o doente no hospital, mas tão· somente do enfêrmo.

Se o Estado não se incomoda com as vítimas, êsse fato não deve agmvar a situação dos réus. Aos juízes, está reservada a tarefa de médico, a quem os acom­panhantes não interessam, pois não sã,o doentes.

Pugnemos pC'las vítimas, que pagam pelo que não fizeram. 1<J um dever sonial. Mas, pugnemos tamhém pelos réns, (jue, se pagam pelo que fizeram, em com­pensação ao seu lado têm eriatmas qne sofrem sem nada ter feito. É uma ohrigação legal.

40. A Justiça brasileira não interessa o homem, :iá ficou dito. )\ .Jnstiça não interessa a .Justiça, .iá, ficou assinalado.

Então - pode perg'lmtm'-se - (lHe afinal a in­teressa '?

}, .Jnsti,a, do modo por que funciona, interessa tão­-somente o asp.ecto fOTTnal dos casos que lhe são sub­metidos a ;julgamento. Cultna 11 exterioridade, não a ('ssêneia. Assim, sendo o réu um nome, não uma pessoa qll8 vive, palpita, anseia e chora, pouco se lhe in~porta (pie S(;ll procedin10nto seja. .justo.

Há aqni mais nma lamentável deformação.

.Justiça teu'da niio é jnstiça. .Tnstiça que passa da pessoa do deli1]{[üpntr' é injustiça. A ,Jnstiça, para qU8

JnüTeça. fSS(I nOl1H', há de ser l1W 19l'ndo a :nee(,~RáJ'lR re­dllmlância -- lllna .insti(~n ;insta.

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.\ ,lTsnç,'A A SERVIÇO DO CRL\1E 55

41. COll1mnente acontece que o criminoso continua em libl'nlmlr após a prática do delito. Corre o ln'oeesso lentamente, vagarosamente, porque niio há possibilidade de qne srja decidido depressa. O réu se arrepende e toma rumo na vida. Regenera-se, entTega-se ao trahalho honrado, assumo COllll)l'omissos, constrói até o seu lar. Quatro anos clel'0ís, l1nm tribunal, trava-se uma grave disC118são sóbl'e a arqnitetnra interna de um certo órgão feminino. Tratadistas insigl1es são mencionados. Exal­tam-se os ;julgndol'cs, muna disputa acirrada, como se estivessenl decidindo SÓbl'B UI11 dogma de fé. Surgem os dell0imentos e as recordações pessoais. Os textos legais são esmiuçados, com citações de Manzini, Sabbatini, Del V E'cchio. Bnsea-se, através das interJ)retações, autêntica, analógica, gramatical, autoritáTÍa e lógica, busca-se uma solução. Naquele instante, dir-se-á que a segurança da sociedade depende de n111 pedaço de mucosa, sem qualí­ficatiyos, qne há quatro anos, segundo opinião de um médico recém-formado do interior, tanto podia ser com­placente como iudifenmte. E de repente, pelo voto de Minel'va, que às vêzes é aplicado contra o réu, a con­denação desaba sóbrc a caher:a de um ehefe de família, arrastando-o à prisão.

]~ o médico que, \'cl'ificando que o doente sarou, ainda () l'(·meie à mesa de operações.

42. A ,Tustiça hrasileira não lida com homens. Daí () fato de que llw ó indiferente a sorte do sentenciado. O homem pode ter mudado, SCl' outro, sem comparação ('0111 o qne existia nlí. ocasião do crime. Seu nome, po­rém, é o mesmo. O nome se agrega ao indivíduo 8 se confunde com a sua personalidade. Não há necessidade

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de se perde]' tempo pm IJ8squisas visando mn resultaclo que coincida com 0 desejo real da sociedade. Nao ha necessidade, nem ao menos de se inclagar qual seja 0 ob­jetivo da pena. N esse instante ficam de lado os teoricos que snstel1tam que a pena visa a regeneragao, ou 0 casti­go, au mesmo a vinganga. .J a pode tel' hRVido a vinganga, ahaves de nll1 ontro crime; ja pode tel' havido 0 castigo, atraves de atos positiyo.'i, denotando a plena e acabada reforll1a do individuo.

Qnatro on cinco anos depois do fato, conforme as circnl1stancias, expede-se lUn mandado de prisao, no qual vai lallgado um nome. A pessoa, que leva esse nome, e recolhida ao xadrez. A ,Jnstiga, agora se resume na eliminagao de 11111 chefe de familia, na desagregaQao de Hln lar, na pTOstitui<;ao de uma esposa e no abandono de 11111as crian<las que vao ser ama11ha delinqtientes.

43, Apesar do que dele dizem seus inimigos, 0 jlui tem as suas vantagens. Sel'ia 8xcessivamente be­nel'olente. RegTa gera\ POrel1l, os que mais 0 criticam sao os maiorE's facinoras da legalidade. Sao supostos pntendidos, que, ate agoTa, nao compre.enderam que a sociedade nao quer apenas ])unir, s8nao 1'ecupe1'a1' 0

t1'ansviado para que ele nao 1'eincida. Que adianta a prisao, se nao produz 0 resultado da 1'egeneragao?

Os hom8ns simples do POl'O sentem essa 1'ealidad .. que os dOlltoI'(,S ignoram. E pOT iSBO que 0 juri da ro<;a f1'C(ltientemenie se eomove e os das capitais, ile­galmentp seleeionados, nas mais das vezes sao incle­mentes. Os jurados, que julgam 0 bto com hom sen so, csUtO fartos de conh8881' a ineficacia dessa jnstiga que ahandona 0 eondenado e ate 0 IWTverte. SOl1wnte os I

I

.\ J CSTll.:A ,\ sImVi~O ho cfiDrl<:

quc se viciarmn nit· soeiedade e absOl'VCrml1 sens clefeitos pntendem qne e preciso esmagar 0 criminoso.

o juri tern defeitos, mas e um orgao que impede, no sell setol', a COl1snma<;ao de inumeras e inuteis vio­lencias. Mil vezes a absolviQao injusta do que a C011-dena<;ao, I)OI'ventura jnsta, que vai agravar 0 prohlema da deli11qiiencia.

Se eada povo tem 0 governo que mere.ee, assim bmbem as pequenas comunidades tem 0 juri de que podem dispor, cujos membros tambiim sofTem as san­<;088 de seus pares e reagem de acordo com 0 amhiente 8m qne vivem, (londe Ulll equilibrio relativo em suas

11<;oes. Aos que pretendem 11 eliminaQiio do Trihunal Po­

lmlar pode perguntar-se: para suhstitui-lo pOl' magis­tTados insensivcis, calejados no oficio ~

44. N 11 prescngao 0 Estado rennncia ao seu di­reito de 111mir. Considera a a<;ao do tempo e entende que ela apaga a memoria do delito. Concorda em que a sua inercia permitiu que 11 situa<;ao se lllodificasse e, ao dar 0 dcEto pOl' p1'eserito, liberta, em definitivo, 0

agenh> do crime da sua obrigaQao de resgata-lo. 0 instituto da prescTigao marca 0 fim. Dali, a persegui­~ao, que come<;ou no instante em que 0 delinqiiente foi condenado, nao pode passaro E 0 que se pode chamaI' de ponto final, em oposi<;ao ao ato que constitnin 0 ponto d(, partida.

Ao legisladol' cahe fixal' 0 derracleiro marco. Tanto pode distende-lo, como pode 1'8cua-10, ])01'que a He com· pete 0 julgamcnto da convenicncia da maior 011 mellor distancia entre os dois pontos.

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Ha llma fallm llil 10gislil~ao penal que podemos avontnr eorno SPIHlo a (Jue na,o cs(alona. a presel'iQ.ao; de modo a estaheleeer preserigoes Ilflrci'lis nu progressi­vas. fie 0 impnlso - direito de plmir - vai se perder, inclusiYc porqne, enquanto 0 tempo £lui, ha a presnn~ao de que 0 criminoso se eOITigill vivcndo dentro da propria soeiedade, e logico qne. esse fatol importantissimo deve ser leva do em conta na gradua\'ao da pena para que ela possa l'calmente preencher sens objetivos.

.Nos paises onde 0 tra balho dc, ca ptnra e mal or· ganizado, a IJrCscrigao SOb1'8Vem freqilentemente, ou pOT­

qne 0 agente do delito procnmu-a deliberadamente, 8n­hornando por amizade ou pOl' dinheiro os que deviam JJI'ende-lo, OU 8m conseqiiencia dos proprios defeitos do sistema repressivo. Contudo, h,l individuos que sao condenados quase no fim do lap80 em que perdura 0

direito de pnnir, e entao, .iiI readaptados, com a vida orientada Ilnm hom sentido, sao Sllbitamente arraneados de sen meio, sem qne ninguem leve em conta que du­rante todo aquele per-indo cHes viveram honradamcnte, d,mdo mna prova de que, sozinhos e espontaneamente, reconheceram sna falta e t.rataram de imlledir qne eia S(' repetisse.

A individuaIiza,ao da penn nclmite em parte a cor-1'8,aO dessa faUm. .Mas, 0 que se yi" csta longe de sat.isfazer os que tem sedo de .illstiga. A proporgao que se pereebe a aproximiv;ao do mareo prescricional intensHica-se 0 anrlmnento do processo para que 0 li­mite nao sc.ia alcan~ado. J!J 0 medo dos agontes da Jus­ti~a de serem chamados a respol1sahiliclade. Entao, (lUanclo 0 ohjetiyo C atingiclo, it lei e ap1ieacla eomo se

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o delito nac> estiwsse sepm'ado da sel1ten~a conclenatoria 1)('10 flnxo de ,{lrios 'lJ1OS. A pelm C calenlada corno so pOl'vcntura 0 uilne honvesse siela perpetraclo meses antes e ainda pCTdnrasse na sociHlncle 0 clamor qne a sna execu<;ao provoco11.

U III assnnto dessa onlem, nao deve seT enhegue ao ]lllrO arbitrio do jnlgador. A lei cabe a fixagao dos limites e 0 estabelecimento de IJrescri~5es l'arciais on jlrogressivas. Assim, de 11ma forma segnra, 0 Codigo Pena I tera iucorporado no sistema ela individnalizagao da penn 0 principio salutar da pr8scri<;ao progressiva, forgan do 0 magistrado a considerar, no instante em qne vai exercitar a persecuJio criminis, a prova de readap­ta,ao qne clecor1'e necessariam811te semp1'e 'Inc 0 delin­qiient.e nao reincidin e yiven llo)'malmente 11a sociedade durante nJJ1 cletel'mina,lo lapso de tempo.

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CAPITULO IV

A PENA PERVERTE

45. Variam as penas como variaram os delitos atraves dos tempos. A morte foi imposta sob moelali­dades hizarras e crueis: pelo fogo, nas forna1has ou em praga publica, em piedosos antos-de-fe para os he­reges; pelo afogamcnto, para os parricidas; pe1a 1api­dagao, pam os aeltilteros e traidOTcs; pela erncifica<)ao, pelo esquartejamento, ate pelo enterramento, como acon­tee-ia com as vestais. A morte ehegava as vezes el1ll1lcio de festus, como nm espetacu1o, quando, no ultimo ato, o condenaclo era atirado as feras. Havia a forca, 0

barago, 0 cutelo, a Toda, 0 emprego do azeite ferventc. As lllutilagoes, 0 cegarncnto, a amputaQao, a mal'cagao com ferro Plll brasa. As ga1eras, cheias de homens, os homens que sirgavam as E'mbarcagoes rios acima, os degl'edados, os conelenados a trabalhos forgados, os de­sonrados pOl' varias geTa<;oes. 0 pelollrinho.

S6 l'ecentemente aparecpu 0 carcere, ~~ prisao car­cerarin (: antiga, mas sempre excepcional; recente, mo­derna, (: a ma YllJgarizagiio, 0 sen alaTgamento pela Europa, pOT volta do 8eculo XVIII, ao ponto de snhs­titllir a o'eneralidade das ontras l)e11as.

" No Brasil nao temos uma verdadeira tradigao no

'l1Ie cliz l'Pspeito a aplicagao de penns. Cabral deixon dois degl'edados, CIIl<' fiearam 11a llistoria eOl1lO os pri-

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A .n~STT~A A SERYlr;O DO Duum 01

lllPiros eolonizadmes, TiVPJ1loS alguns enforcamcntos, l'uiclosos esqnal'tejamcntos, fuzilamcntos e ate degl'edo.

COlltndo, talvl'z pOl' causa da falta de pesquisas so­bre 0 assnnto, parece certo que no BTasi1-colonia millea se passon elo agoite e ela transportagao para as colonias militares. Celebres fOTaIll 0 presidio de Fernando ell' Noronha, no norte, e as colOnias ell' Itapura e Ignatemi, na zona 8nl, fnnelaelas estas liltimas inclusive com 0

objetivo ell' fon;ar a penetragao e 0 dominio das areas ocupaelas pe10s jesuitas espanhois.

A cadeia plibliea teve n80 generalizado entre nos, porque n0880 desenvo1vimento e contemporaneo da sua expansiio em Portugal. Mas, dcsde 0 come<)o, 0

carcere foi mnaldi~oado, como se ve elo velho e probo Pereira e Souza: "Pois que 0 objeto da prisao e a segul'an<;a do Reo, nao deve a sna detengao na cadeia ser nma contilluagao de angustias, cnja ideia l'epngna tanto a hllmanidade como a J ustiga".

Eis ai, como a prisao eel \lIar e recente. E hasta, Hesse sentido, nma leitura do livro quinto das Ol'elena­<;oes do Reino, 1mra que se veja como a detengao indi­vidual constitnia efetivamcnte uma excegiio, que acabou transfoTll1acla na base da quase totalielade dos sistemas peni tenciarios.

46. Senten"a cla A1gada, proferida no Rio de J a­!Hmo, a 18 de a hril ele 1792:

"PORTANTO, condemnam ao reo.J oaquim J os6 da Silva Xavier, pOl' alcllnha 0 Tiraclentes, alfcl'cs qne foi cla tropa paga dn capitania de Minas, a que com bara"o e pregiio 5e,ja COll-

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1'1(.1.

.\RRUDA CA::\lPOS

rln7,ido pelas nws publieas no lugar da forca, " ll'ella morra mortc natural para sempre, c (lllC depois de morto lhe sCõja eortada a cabeça e levada à Yilla Riea, aonde em o lugar mais publico d'ella será pregada em um poste alto até que o tempo a consuma; o seu corpo será dividido em quatro quartos e pregados em pos­tes pelo earninho de Minas, no sitio da Ya1'gi­nha e ele Sebo las, aonde o réo teve as suas infames praticas, e os mais nos sitios de maio-1'8S IJovoações, até que o tempo também os con­suma, Declaram ao réo infame, e infames seus filhos e netos, tendo-os, e Bens hens aplieamlxl-1'a o fisco e cama1'a real, e a casa em que vivia em Yi1la Rica será arrasada e salg'ada, e que nunca mais no chão se edifique, e não sendo ])l'OIJI'ÍaS, serão avaliadas e pagas ao seu dono pelos hens confiscados, e no mesmo chão se levantará Ulll padrão pelo qual se conserve em memol'Ía a infamía d'este abominavel réo",

47. O empl'êgo indiscriminado da prisão carcel'á­é mmt decorrêneia do individualismo desenfreado

que vai minando o oTganis1l1o social. Ê uma conseqüên­('ia do imediatismo que inspira n maior parte das ações dos indivíduos em sociedade. :BJ um paliativo, não um Teméc1io, nem ainda uma tentativa de solu'ião.

Desaparecendo n vantagem das galés, pela rueeu­nizaeão elos harcos, surgindo a indústria, lJue sufocon o mte~am1to, eonfiwmclo-se a utilidade elos presídios-co­lônia, e, Hobrdmlo, cl'eseendo a eompetição econômiea entre os homens, tornou-se mister o (,stabelecimento du

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A ;Jnrl'l{.'.\ A SERVIc,'O DO enDJE

ma 110'1'0 regime de segl'C'gação dos indivíduos pertul'­bndol'cs da paz social, ahavós de U111 sistema (lue ae1l'1TC­

tasse um mínimo de inconvenientes,

A característica principal dêsse tipo de punição é de trazer pronto alívio, Contudo, seus efeitos ul­terio1'8s são muito piores. Como sucede com o ópio, a cadeia, no primeiro instante, produz uma sensação de euforia coletiva. O delinqüente desaparece da circulação e êsse fato cria nas comunidades uma sensação de se­gurança, O problema lmmano, porém, eontinna em ense, Pl'iyada do chefe, a Eamí.1ia do delinqüente se deeompõe, O l)I'ópl'io criminoso sente que seu pátrio poder não atravessa as gracles e qne não lhe é dado im­pedir a desagregação ele seu lar. Em vez de 11m apoio, a par-til' do qual possa se reergncl', recehe a sua ração de desespêro. A visão da 111ulher, (lue hesita, dos filhos, que se rehelam, E se atola por fim na ociosidade, para que se corrompa, em definitivo,

Anos depois, 1'eton1a ao convivio social. Em vez de voltar arn\]lendido, Teapareee cnTregado de ódios. Ces~

sado o efeito do ópio, não há senão aplicar-se outm dose, até qae o organismo soeÍal se torne insensíveL

A isso, a sociedade dá o nome de Justiça.

48. Kl'optkille nos descreve uma l)risão modelar <la Fmnea em fim; do séenlo passado, que "tinha todo o aspect<; ele Ullla pequena "idade manufatureira, ro­deada de hortas e émnpos de trigo e cercada de um lllUTO",

Os presos eram hem hatados, e0111 refeições (jUentcii, simples, mas de hoa qualidade, "e cada um de nós pôde obter U111 hom 80]10 ele vinho da região, que fI cantina (la pdS80 n'l!dia aos pl"isioneiros pelo preço módico de

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ARRUDA CAMPOS

24 cêntimos o litro". :ilíostrou-lhe o diretOT os quartos "e como eu lhe ohservasse que eram muito bons, mas 11lll pouco pequenos para nós, êJe 1108 deu mais alguns compartimentos do edifício que servia outrora de alo­jamento ao supeTÍol' da abadia e onde funcionava agora um hospital",

Entretanto, falando do sistema dessa pl'Ísão, que está tem 1uros acima de qualquer casa de grades do Brasil, que diz o eminente escritor russo, que, da sua cela re­digia artigos ]mra a Enciclopédia Britânica?

Diz isto:

"Durante a minha estada em Lião eu co­meçara a perceber a influência desmoralizan­te do regime das prisões sôbre os detentos. Minhas observações, durante a permanência de três anos, em Clairvaux, levaram-me a condenaI' mais tarde de maneira ahsoluta tôda institui­ção das l)risões.

A anemia, (lue mata a energia e o gôsto pelo trabalho, que enfraquece a vontade, des­trói a inteligência e perverte a imaginação, instiga mais ao crime do que a pletora, e é precisamente 68se inimigo da espécie humana que é produzido nas cadeias. O ar que se res­pira em tôdas as pTÍsões é apenas uma glori­ficação dessa paixão pelos jogos de azar, que constitui a verdadeira essêneia do roubo e da fraude, ela extorsão e de outTos atos anti-sociais da n:188ma natureza. Gerações inteiras de fu­turos prisioneiros criam-se nesses estabeleci­mentos, que o Estado mantém e a sociedade

A J tTSTIÇA A SERvrçD DO CRIME 65

tolera, simplesmente porque não desejam que os seus próprios males sejam discutidos e clis­secados. "Aquêle que estêve uma vez prêso 1W

mocidade torna-se lJrisíonei1'o paTCi tôda avirla" eis o que ouvi dizer por todos os que se haviam ocupado dessas questões".

E acrescenta:

"Assim, vendo aquelas crianças e imagi­naudo o futuro que lhes estava reservado, não podia deixar de perguntar a mim mesmo: -Qual o mais criminoso ~ A criança, ou o juiz que a condenou a semelhante destino ~ Admito que o crime dêsses juízes seja inconsciente. Porém, os crimes pelos quais se aprisionam as pessoas, serão todos tão conscientes como em geral se supõe.

Dmante as primeil'as semanas da minha prisão fiquei muito impressionado com uma coisa que, entretanto, escapa à atenção dos juízes e criminalistas. É que a prisão, na maio­ria dos casos, sem falar dos erros judiciários, pune mais severamente pessoas completamente inocentes do que os próprios condenados.

Quase todos os meus camaradas, que 1'e­])l'csentavam a verdadeira média da população operária, tinham mulher e filhos paTa susten­tar, ou, então, uma irmã, ou uma velha mãe, que viviam exclusivamente do seu salário. Abandonadas agora a si próprias, essas mulhe­res faziam o possível para encontrar trabalho, e algumas o encontravam, mas nenhuma che-

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66 ARRUDA CA?I-IPOS

gayD, reab11ente a ganhar 11111 franeo e cinqücnhl ]lor dia. Nove francos por semana ~ e muitas vÉizes apenas sete - era o máximo que conse­guiam ganhar para viver, com os filhos. Isso significava alimentação insuficiente, privações de tôda a espécie, enfraquecimento da saúde, diminuição da inteligêucia, ela energia e da vontade. Compreendi, pois, que as condenações pronunciadas pelos tribunais, inflingem a pes­soas inteiramente inocentes, sofrimentos de tôda a sorte, na maioI'ia dos casos piores do que os impostos aos pl>ÓpI'Íos condenados.

Acredita-se geralmente que a lei pune o homem inflingindo-lhe diferentes torturas fí­sicas ou morais. 11:as o homem é um ser que se habitua pouco a pouco a tôdas as condições de vida que lhe são impostas. Não podendo fUI'tar-se a elas, aceita-as, e, ao fim de certo tempo, adapta-se a elas da mesma maneim que se habitua a uma moléstia crônica. Mas, que acontece à mulher e aos filhos de um prisio­neiro, criaturas inocentes, cuja existência de­pende do trabalho dêle? São punidos muito mais cruelmente do que o pTóprio condenado. E graças ao nosso espírito rotineiro ninguém pensa na enorme injustiça que assim se comete. Eu mesmo só penseI mS80 quando ohrigado

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49. O legislador sempre sentiu o mal do reglll1e carcerário. Ê assim que encontramos, desde a COllsti-

9. Em Tôrno de uma Vida, trad., Rio, 1946, capo VIL

A ,H:STIÇ'.\ A SEIWIÇO DO CRLMB

tnição Política do IlllTJério do Brasil, Carta de Lei de 25 de março de 1824, al't. 179, §§ 8." e 10, disposições que se l'elacionam à detenção dos indivíduos ~ ningliém podej'á ser J1rêso sem cu7pa fOl'l1Jadn ou (1 exceção ele flagran.te delito a jJrisão não pode scr executada senão por oJ"ilem escrita da autoridaele legítima) e hem assim na legislação ordinária subseqüente, desde o Código Criminal de 1830 ~ odenaT a pT'isão ele qualquer pessoa sein ter para isso competente au.to'rúlaele, 1nC!ndar meter em prisão, on não 1nanel(f]" soltaj' dela o 1'i3M qJie eler fiança legal, receber o cw'cereij·o nlgum prêso sem oY(Zen~ cscritl[ da competente autol'iclade etc.

Deve suspeitar-se da exata aplicação dêsses dispo­sitivos, que se limitaram a copiar as cartas constitucio­nais francesa e norte-americana, porque, ainda em 1835, pelo Decreto n." 4, de 10 de junho, estabeleceu-se um processo especial para punÍçã.o dos escravos que tentas­sem contra a vida de seus senhores, pessoas da família dêstes, feitôres, etc., l('i que vigorou até 1886, e que bania para os negros o preceito também constitucional de que (I, lei seráiglwl p(l'i"(( todos. Por ela matava-se o escravo, porventura condenado pelo jÚTÍ do têrmo onde fôm o crime cometido, não cabendo recurso da decisão, que desde log'o se tornava exeqüível, mun linchamento lega­lizado. Como o regime era patriarcal, como o senhor de escravos mandava e desmandava, entregava-lhe o le­gislador, "rol11àntieamente liberal", como costuma ser cantado, entregüya-lhe a vida do eSCl"avo à diserição, para que a ceifasse, 011 npgoc.iasse, na conformidade do grau de seus sentimentos.

Felizmente o amor do dinheiro salvava os míseros eativos.

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68 ARRUDA CAMPOS

Na sua "Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo", J. J. Von Tschudi, depois de lembrar (já então!) que havia desaparecido dentre nós o respei­to ao direi to, pergunta;

"Quantas vêzes aconteceu no Brasil que um homem rico e influente tivesse sentado no banco dos réus a fim de se justificar de seus crimes ~ Quantas vêzes teria sido condenado tal homem·~ Certamente nunca. O promotor público jamais ousaria proceder contra um ho­mem de posição. E se um promotor o quisesse fazer, não havia de faltar dinheiro que abafasse o escândalo; nem faltariam jurados convenci­dos da suprema importância e do direito oni­potente do dinheiro. Ai da testemunha que ousasse opor-se a um acusado desta espécie. Ficaria na alternativa de desaparecer durante o processo ou sofrer a vingança pessoal do acusado quando terminasse o julgamento".

Ilustrativo é êste trecho de seu depoimento:

"Certo escravo assassinou, por motivos ele vingança, o genro de seu amo e a polícia C011-

seguiu deitar-lhe a mão a tempo de evitar a justiça privada do amo e o trancou no xadrez. :Mas o dono do escravo não poupou esforços para libertar o criminoso, a fim de poder ir vendê-lo em outra Província, o que lhe evita­ria ao menos prejuízo financeiro".

A JC'S'1'IÇA A SERVIço no cnlMÉ 69

Diante disso pergunta o ilustre embaixador da Suíça: - "Haverá melhor exemplo de decadência moral do que êste~"

. A cadeia, porém, aos poucos se generalizou. O ópio entrou a ser usado. E, à medida que as cidades surgiam ou cresciam, levantavam-se estabelecimentos dêsse g'ênero, para centralização do local de cumprimen­to das penas.

A República, prosaica, utilitária e imediatista, ho­mologou de uma vez por tôdas o regime carcerário. Viciou-se no uso do alcalóide.

50. Quando se fala em delinqüente é preciso que se tenha em conta o efeito psicológico da palavra, que induz, a p1'ioTi, a suposição de que se trata de um in­dividuo de maus sentimentos. Bem outra, todavia, é a realidade. A grande maioria dos criminosos é consti­tuída de 110mens normais, como os antigos degredados de Portugal. Apenas, nêles predominou, em determi­nado instante, uma fraqueza, que deu margem à prática de um ato condenado. Em seguida sobreveio o arre­Ilendimento, mas, a essa altura, já o delito estava co­metido.

Êsse fato não pode deixar de ser tido em conta. Ê preciso que se proclame que a maior parte dos de­tentos não precisa da cadeia para que se regenere, pelo. simples fato de que não necessita de regeneração. São homens que vão para o xadrez porque a pena visa tam­bém a intimidação. São homens para os quais subje­tivamente, o simples arrependimento é suficiente. E que talvez, na sociedade futurA, nem sejam considerados criminosos.

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70 .\RTIt'DA C':\"l\fP0S

J\. detenção dE' indivídnos assÍln cOllstituídos, em pTomisenidade com ontros de fOITnllção moral defo]'­nmda, deveria constituir um delito previsto no Código Penal. Aos juízes não lhes assiste o direito de impor 1l alguém a vida em comum com pervertidos. A socie­dade, pelos sens magistrados, tem a obrigação de pI'O­mIraI' redimir os vencidos, de lutar pela elevação, pela regeneração dos que se perderam. Êsse trabalho não deve ficar afeto ao detento de hons sentimentos, porque, na l)l'isão, êle deve lutar contra a revolta que domina, mas precisa ser executado, de fora paTa dentro, através da mão estendida por entre as grades.

Infelizmente o problema é descurado. A realidade, dura de ser dita, é a de que a promiscuidade faz as suas vítimas dentro da própTia prisão. Em vez de s08rgui­mento, o que ocorre, nas cadeias brasileiras, é uma coisa só: o rebaixamento moral a um nível inferior ao das próprias sarjetas das ruas, o depauperamento, até a JwóPTia inutilização física.

51. Estudando a lei e a justiça na Rússia Sovié­tica, refere () insiglHe e insuspeito Harold J. Laski que GOTig, na sua famosa investigação nos cárceres da U.R.S.S., verificou que não há uma razão geral para que se sllpImha que o criminoso comum seja muito diferente do homem que compõe a população ordinária.

"O vinco saliente do sistema TUSSO, tal co­mo fuueiona, é a sua capacidade de educar a massa de reclusos para o trabalho útil, de modo que podem retornar à vida normal sem temor da l'eineidilneia. O fato de que hOlllel1s eom

li .rrSnç'A A SERVIÇO DO CRntE 71

I11Ill1eTOSaS condenações converteram-se em en­genheiros, advogados, funcionários mlmilllstra­tivos, diretores comerciais de êxito, de que alguns ingl'eSSaT<llll no ExéTcito Ver1110lho e no Partido Comunista e justificaram amplamen­te sua escolha, demonstl'a pelo menos que exis­tem fundamentos para expeTimentar, com a teoria russa, em um grau que nenhuma admi­nistração cal'cel'ária ocidental estêye disposta a fazer até o momento" 10.

52. .Mesmo sem estatísticas pode dizer-se que, na cadeia encontram-se cêrca de 90ro dos presidiários, se­jam sentenciados ou presos que aguaTdam julgamento. Uns, reincidentes, outros primários. Outl'OS, ainda, nem sabem se vão 801' condenados ou absolvidos.

A cadeia se compõe de uma· série de quartos, de­vidamente gradeados, providos cada um de uma latrina. Em algumas cidades o xadrez tem um chuveiro. Nas outras, que constituem a grande maioria, nada mais há, Helll cama, nem mesa, nem cadeÍTa, nem sequer uma janela envidraçada que possa ser fechada nos dias de chuva ou nas noites de frio.

N esse recinto os pl'esos pagam a pena que lhes foi imposta. As necessidades fisiológicas êles as satisfazem em públieo. Dormem no chão, sôhl'e colchões e esteÍTas, (pIando existem esteiras e colchôes. Comem ele marmita uma comida muitas vêzes roubada pelo fornecedor. En­tretanto, o mesmo poder público que assim os trata,

10. Laski, ob. dt, pág. 89,

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72 ARRUDA CAMPOS

exige nos bares que os sanihirios sejam afastados das salas de cOllsumagao e cstas sejam rcvcstidas de azulejos!

Escrevemos que os presos pagall1 a pena que Ihes foi imposta, mas e obvio que escrevemos mal. Sofrem a pena. 0 jovell1 tempestuoso, que reincidiu no crime de lesoes corporais, e colocado junto do ladrao, que tem a malieia de quem ja nao encontra em si 0 menor res­quieio de uma no gao de moral. 0 homicida, que ll1atou em legitima defesa, que foi absolvido no juri, mas de cujo julgamento pende recurso para 0 Tribunal, e con­servado em contacto com 0 estelionatario ou com 0 assas­sino pro fissional. Ha, pois, uma grande desigualdade, que 0 juiz nao considera ao lavrar sua sentenga: U11S

suportam mais, outros, men os, 0 sofrimento da prisao. Ate Ia nao desce a justi<;a, como 0 medico no hospital para vcrificar 0 estado de seus clientes. Como nUln zoologico, os homens manuseiam apenas dados nume­l'iCOS e nomes; e, se foge um tigre, ou Ulna raposa, ou me81110 um gato selvage111, para eles 0 problema e iden­tico e ae resume mmla coisa so: - no envio de gual'das para que 0 fugitivo seja l'ecapturado.

53. As medidas de seguranga, tecnicamente con­sideradas, nao sao penas. Eusebio Gomez as divide em (lurativas, educativas, tutelal'es e eliminatorias.

Gnrativas, quando consistem no tratamento ade­quado, em estabelecimentos especiais, dos delinqilentes declarados inimputaveis, em razao de anomalias men­tais; edncativas e lutelal'es, quando adotadas em rela­~ao aos menores delinqtientes, pam suprir a falta de educagao e de amparo, ordinariamente a causa da sua

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A .nJSTI(,A A l:mnVHjO DO CItIMt 73

delinqlieneia; e ehminat6rias, aplicadas HOS delinqilen­tes habituais.

No Brasil, de acordo com 0 Codigo Penal, as me­didas de seguranga - que alcangam ate objetos inani­mados - sao de duas ordena: patrinwniais, pela inter­digao de estabelecimento ou sede de sociedade ou asso­ciagao e pelo confisco; e pessoais pela interna<;ao em manicomio judiciario ou em casa de custodia e trata­mento, on em colOnia agricola, ou em instituto de tra­halho, de l'eeducagao ou de 8n8ino profissional (deten­tivas), 011 pela liberdade vigiada, pela proibiQao de freqlientar determinados lugares e }Jelo exilio local (nao detentivas).

Tecnicamente, a medida de seguranga nao e pena.

Entao, pOI' nao se tratar de pena, muitos juizes car­regam na medida de seguranlia, llna vez que estao p~'o­tegendo os delinqlientes. E os pobrea ficam na mesma prisao comum, porque 0 Estado, que se arroga 0 di­reito de puni-los, nao cumpl'e a sua obrigaQao de cons­truir os estabelecimentos adequados que He proprio criou - no papel.

54. Cerea de tres quartos dos detentos sao homells validos, que estavam em plcna faina quando foram recolhidos a prisao. Em muitas cadeias do interior a pOl'centagem chega a ser de cem pOl' ccnto, quebrada apenas pelos ladr6es e pOI' alguns poucos de delinqlien­tes mais agressivos. Regra geral nao ha pl'esos peri­gosos. Estes dificilmente tem rcsidencia fixa e aflnem para os grandes ccntl'os, onde, com maior dose de segurall<;a, podem ex€rcer a sua atividade. N as pris6es do interior encontram-se ordinal'iamente homens que

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foram retirados do trabalho () q11e, em \'8Z de eontímwr a prestar 'Cl'YÍços à coletiyidadr, passam, sem lHml11l1n pro,rito, a constituÍT um pÉ\so morto para o Estado.

A cadeia destrói a família. O detento casado cor­re o risco de perder a mulher. Se ela tem boa conduta, entre os dois se interpõem sentimentos de dúvida, ou pelo menos de indiferença. Os filhos, livres de fisca­lização, consomem-se no abandono, tendo de um lado o exemplo pateI'11o, de outro as tentações cotidianas. O amor desaparece, da 1118S111a forma como se extingue o princípio da autoridade patema e marital. Com ex­eepcional gravidade, reponta o problema econômico. Por último, ao lado da insensibilidade, que liquida os laços familiares, surge fi tuberculose, que é doença dos cár­ceres.

O indivíduo prêso e que - diga-se outra vez de passagem - na maior parte elas vêzes é um homem normal, sente feneT em si o geTme da Tcvolta. Assiste à del'Tocada de seu lar, aumenta a sua própria agressi­vidade contra 11111a sociedade que o trata com tamanha m·ueldade. Se não cOl1segne dominar-se, sozinho, resolve vingar-se, reincidindo.

"A qufJle que cstêvc 1011(1 vez prêso lUt mocidade, tor­n.arse prisioneiro para. tôdn ({ vida." . ..

55. Há ainda um assnnto que merece 11111 item (,sJlGcial. Referimo-nos à questão sexual, tão aguda que, frCtlÜentemente, desata paixões aherrantes e chega a dar margem à perpetTação de horrorosos crimes passionais.

O prêso é U111 homem que tem a suas necessidades, pnhe as qnais figura a da satisfação genésica. Desde

) í!

7;')

'lHe se 1118 nega o (liTeÜO de manter relações carnaIS 00111 a sua pTópl'Ía espôsa, recorre ao onanismo ou à pederastia. O primeiro é inofensivo pôsto que depri­mente no adulto. A segunda, eolocaclos de lado os que se divertem CO]11 ela, constitui uma violência à pessoa, que as leis Ilenais punem com rigor.

Para a eliminação dêsse mal, já foram tentados nos estabelecimentos bem organizados variados recursos, desde o emprêg'o do regime a liIllentar adequado, até a dureza do serviço diário, visando o tolhimento das li­berdades ela imaginação. Tndo tem sido feito sem pro­,'eito, conforme se vê dos desenhos que os detentos lan­çam nas pared0s e que exprimem as formas de evasão de q11e se sentem possuídos. A natureza impera, a na­tureza domina, a natureza empresta ao indíviduo fôrças desconhecidas que, mesmo na prisão, o emp\1na111 para a delinqüência.

A lei penal prevê sanções para os que ajudam ou eriam facilidades à fuga d(l presos. Mas não há pena para os que submetem os detentos a mn regime dessa ordem, levando-os às vêzes, conforrne as condições pes­soais de cada 11m, à prática de atos de desespêTO, para satisfação de uma necessidade fÍsiea como outTa qnal­(luer. Não há pena para a autoridade insensível que ohriga um homem a viver llUm lugar onde sabe que VaI ser violentado.

O regime carcerário é assim: destrói os hábitos sociais, abala a saúde, animaliza o indivíduo, detennina grandes despesas ao Estado e por fim ainda estimula o erime em quem já S8 encontra prêso.

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76 ARRUDA CAMPOS

56. O Código do Processo Penal, no art. 295, tí­tulo relativo à prisão e à liberdade provisória, estipula que "serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujei­tos a prisão antes de condenação definitiva: I, os mi­nistros de Estado; 11, os governadores ou intervento­res de Estados, ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários e chefes de Polí­cia; III, os membros do Parlamento Nacional e das Assembléias Legislativas dos Estados; IV, os cidadãos inscritos no "Livro de Mérito"; V, os oficiais das Fôr­ças Armadas e do Corpo de Bombeiros; VI, os magis­trados; VII, os diplomados por qualquer das faculda­des superiores da República; VIII, os ministros de confissão religiosa; IX, os ministros do Tribunal de Contas; X, os cidadãos que já tiverem exercido efeti­vamente a função de jurado, salvo quando excluídos da lista por motivo de incapacidade para o exercício da­quela função".

A lista dos privilegiados, porém, paulatinamente aumentou. É a legislação de favoritismo. Hoje, de um certo ponto de vista, a prisão chamada comum consti­tui a exceção.

Fazem jus à regalia da detenção especial mais os oficiais da marinha mercante, os dirigentes das entida­des sindicais e empregados no exercício de representa­ção profissional, os secretários do prefeito do Distrito Federal, os prefeitos, vereadores, chefes de Polícia, os funcionários públicos federais em serVIço de Polícia,

A JVSTIÇ,".\ A SERYJÇO DO CRIME 77

os fnncionários públicos federais pertencentes à Gum:­da Civil, à Polícia Marítima e Aérea e à Polícia Espe­cial, bem como os lotados nas delegacias de polícia, quan­do em função estritamente policial, os jornalistas, os cOlIl<?I'ciantes matriculados, etc.

A odiosidade dos regimes de excessão aí está, numa de suas mais repugnantes manifestações!

57. Há meia verdade na frase de Machado de Assis quando afirma que o provérbio está errado.

"Não é a ocasião que faz o ladrão", dizia êle a alguém; o provérbio está errado. A for­ma exata deve ser esta: - "A ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito".

(Esaú e Jacó, capo LXXV).

Meia verdade, porque ninguém nasce ladrão, como ninguém nasce assassino, como ninguém nasce religioso. Admite-se que a influência hereditária deforme o caI'áter e as tendências do indivíduo - é uma possibilidade; mas qne o meio social modela o cidadão - é uma certeza.

O ladrão, como já assinalamos em outro item, é formado na eSCoola do crime, tolerada pelo Estado, ou oficializada pelo Estado. Os menores, que passam pelos institutos especializados, raramente se salvam, ordinà­riamente se peI'dem. Há institutos de menores que são verdadeiras academias de criminalidade, perdendo ape­nas para as cadeias e casas de detenção, que são as universidades. Um inquérito realizado na Penitenciária de São Paulo chegou à seguinte e monstruosa conclusão;

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Alutl!DA C,\":\lPO~

de C({da nlÍl erianças do Estado de 81ío I)allJo unw é reco­lhida em abl'igo de l)]'ote.,,1ío; ele cada ma abrigados, 140 encontravam-se condenados na Penitenciária, com sentença transitada em julgado, com exclusão portanto dos detidos nas cadeias e sujeitos a processo crime! 11

Significa que, pelo menos êsses chegaram à gatu­llClgem por causa do mau encaminhamento que lhes foi dado, na adoIescê.ncia, pelo próprio Estado. Por aí a fora, bá, pois, ladrões que se fOI'luaJu sob a proteção oficial, embora, no instante da condenação, nenhum punho hesite em adotar contra 1'1es a sanção máxima pre­\-ista no Oódigo Penal!

Haja compreensão, haja remorso, haja mna reação visando corrigil' os grandes enos. Vá lá mna palavra ele simpatia por êsses indivíduos que, na maioria das vêzes, são muito mais vítimas, porque fOl'am furtados na opOTtunidade de levar nma vida honesta. . O ladrão subtrai o supérfluo de quem tem sobras e para tanto arrisea a 8na liberdade, cnqnanto homens importantes existem que agem na área de suhdelinCJüêneia, que pro­mcam desequilíbrio social mais pronunciado. Êsses furtam ela coletividade até lllesmo o neeessário e, não ohstante, gozam da proteção da lei.

Ladrão que fmt.a ladrão tem cem anos de perdão -diz o provérbio popular. O ladrão investe contra a pro]Jriedade. E houve um homem, que era também um gn111de homem, ,T. P. Proudhon, que escreveu um liv-To para provar o axioma qne adoton no título de sua obra: - a ])]'opriedade é um roubo. Amanhã, quando essa

11. Anais das "Semanas de Estudos do Problema de Menores", São Paulo, 1952, pág. 125.

I 1

I

I I I .

A Jl;STIÇA A SEUnçn DO CUDIE 79

idéia prevalecer, se pr(T<11 eco]', e possivelmente prova­lec81'á, os eOll(]enados de ho;jo ficarão na lllesma situação dos jon'llS pOl'tllgnêses degredados por haverem dor­mido com freiras, ou queimados em praça pública por não ahraçarem a religião católica.

Que pessoas de COTação bem formado atentem llO

que fica assinalado. A índole dos detentos é boa, 11

maioria dos reclusos é eonstituída de indivíduos quase normais, seus atos podem não ser eonsidel'ados crimes amanhã. Dentro das cadeias e das penitenciárias o pior elemento é ordillàriamente o ladrão. E, por causa elo ladrão, institui-se Ul1l regime de tratamento dos sen­tenciados verdadeiramente desumano.

58. Dizia-nos um amigo elo alheio, elo flU1do ele uma prisão: - Regenerar-se é o de menos. O difícil é permanecer regenerado com 11 polícia que aí existe!

59. Não ficaria o quadro completo se aqui não fôsse incluído mn tópico sôbl"e o carcereiro, essa figura genial a quem a Justiça comum entrega o trabalho elo enfermeiro na cura ele seus doentes.

Como sucede aos sacristãos, o cal'ceTeiro é de or­dinário um cretino, quando não U111 delinqüente, no rnú1Ímo em potencial. O contacto permanente com cri­minosos desperta-lhe estranhos sentimentos. Quase sem-1ll'e desalmado, sádico, é miniatura do carrasco medieval. Explora os detentos, c.obl'a-lhes comissões nas vendas de pequenos objetos da insignificante indústria carcerária.

Se o detento é pessoa ele reeursos, comlU118nte lhe outorga certas vantagens a trôco de dinheil'O - cela especial, cama, rádio, saída para banhos, cerveja e até

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mulher. Se o prêso é miserável, dispensa-lhe uma aten­ção igualmente miserável. A alguns chega à perfeição de transformar em feras. Tanto assim que nesses casos confessa-se incapaz de entrar desacompanhado no xa­drez em que o delinqüente se encontra.

Exerce flmções importantíssimas. Decide sôbre as transferências de celas, coloca em contacto, no mesmo recinto, assim o ladrão de cavalos, criminoso veterano e malicioso, assim o primário que furtou um terno pela primeira vez e confessou, chorando, o delito. Raros os delegados, promotores ou juízes que lhe cerceiam o ar­bítrio discricionário nesse mister.

Nas prisões maiores êsse indivíduo transaeiona eom maconha e vende o seu silêneioquando um prêso .jovem é estuprado pelos mais antigos.

O carcereiro é mn homem vencido que tem sob as suas ordens outros homens vencidos. Então saboreia o seu poderio, porque está nas suas mãos a alegria e o sofrimento daquelas pobres criaturas, como agente que é da Justiça.

60. Estamos diante de uma realidade, que não podemos alterar de uma hora para a outra, e que reclama Ullla atitude, já que se não consegue para ela uma so­lução. Uma atitude, que implique na abertuTa ele um caminho novo.

N a sua insinceridade interesseira, o legislador limi­tou-se a repetir o que lhe vinha de trás, e que vinha vindo sempre sem aplicação. Recorreu aos princípios ela labortcrapia, embora não cogitasse de dar meios de emprêgo dessa terapêutica. NpJ11 por isso os juizes estão

.\ JUSTIÇA A SERVIÇO DO CRUll'J 81

antol'izados a ernzar os hraços. Se algum magistrado cll'seja realmente dar desempenho às suas funções, há de tentar pelo menos cumprir o que a lei lhe determina, em vez de, antes de começada, abandonar a luta.

Todos estão cansados de conhecer juízes que se ton1alll conhecidos pelo l'igor das suas decisões e pela ,;ua atuação no combate à criminalidade. São os qne c:ostumam aliviar a consciência quebrando a pena da eaneta que lhes serviu para subscrever a sentença con­denatória. Quebram. Em seguida, compram nova pena. Bem poucos, todavia, têm notícias dos juízes que adqui­riram nomeada pelo carinho que dispensam aos presos, J!rocurando lenUltar-lhes o físico e o moral, dando-lhes trabalho lJara o corpo, com remuneração para amparo da família, mais uma assistência espiritual constante, direta ou indireta, paTa que sejam Tealmente recupera­dos e voltem à sociedade como homens CÜSIJOstos a ser dignos dela.

Juristas r:onsagl'ados, aferrados à rotina, sem ne­nhmlla experiência de regime carcerário, que vivem a vida através das suas exterioridades, e (lue, numa pa­lavra, nunca sentiram a crueza dêsse problema, são os <lue maior dose de interêsse revelam em ignorar o que ,(' passa nas cadeias. Fogem a um exame do assmIto, paI'a que não sintmn o dedo acusador que se levanta do -fundo de suas consciências. Acostumados a tonull' o meio pelo fÍln, l'CC\lSmll-Se mudar de atitude e perma-1l8CClll impenetráveis atrás de uma COluaça de propo­sitada ignorância. Í~ mais uma pTO\'a ela falsidade ge­Tal (lU(' minou o direito, l'l'incipalmente o dÍTeito cri­minal: depois do desvirtuamento do princípio nullun~ crimc}l) nlllla poenn sine lcge, para proteção dos semi

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delinqüentes, surge o amolgmnento final, do julgamento dos resultados da aplicação da lei.

A ação dos juízes acaba quando o prêso é recolhido ao xadrez. É o grande mal. Deveria acompanhá-lo en­qnanto cumpre a pena e quando de novo é restituído ao convívio social. Meia justiça ou justiça pela metade.

61. O homem criou Deus à sua imagem e seme­lhança. Deus é apenas juiz. O executor da pena é o Demônio. E o clamor desesperado dos que, por causa de uma falha, sofrem a condenação eterna, nunca che­ga ao ouvido do excelso magistrado.

CAPÍTULO V

A LEI NÃO É RESPEITADA

62. Se a lei está cheia de defeitos, sua execução é ainda pior. Não podendo modificá-la, ao magistrado compete cumpri-la. Contudo, nem todos os direitos e garantias individuais, assegurados pela Constituição Fe­deral, encontram amJ)aro por parte da maioria dos juízes. A vigilância do Judiciário freqüentemente se esvai, conforme os humores dos magistrados.

Dispõe o art. 141:

§20 - Ninguém será prêso senão em fla­grante delito ou por ordem escrita da autori­dade competente, nos casos expressos em lei;

§21 - Ninguém será levado à prisão ou nela detido se prestar fiança permitida em lei;

§ 22 - A prisão ou detenção de qualquer pessoa será imediatamente comunicada ao juiz competente, que a relaxaTá, se não fôr legal, e, nos casos previstos em lei, promoverá a res­ponsabilidade da autoridade coatora.

Estabelece o Código Penal:

Art. 350 - Ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as for­malidades legais, ou com abuso de poder:

Pena -- Detenção, de um mês a um ano.

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Paragl'afo {mico - rm mcsma pena incol'-1'0 0 funcionario que:

I - ilegalmente recehe e 1'ecolh8 alguem a prisao, on a estahelecimento destinado a exe­cu~ao de pena privativa de liherdade on de medida de segnral1(,a.

Nao e de hoje que se luta eontra a v"iolencia po­licial. Sao de ;r oao Mendes estas palavras, comel1tando as circulares imperiais que, desde 1865, verbera1'am as deten<;oes simp1esmente policiais, atraves das quais, contra a Constituigao, algumas autoridades se investiam em poderes que jamais tiveram:

"Sirva isto de estigma as autoridades que buscavam e de estil11ulo as autoridades que buscam coonestar arbitrios, alegando a preten­dida necessidade de saltar pot' cima da lei, com t6da a coragem da prevaricagao, com 0 cinismo da af1'ollta aos mais sagrados direitos, hipocritamente cohrindo a 1'ila11ia do seu ca­rater, on a negligel1cia no cnmprimel1to do dever, com 0 pretexto da imp08sibilidade de, em todos os casos, se sllbordillarem as forma­lidades legais".

Aplica-se 0 Codigo Penal contra os delinqiientes que vio1am as 110l'mas garantidas pe1a policia. Rara­mente, por8m, sabe-se de alguma alltoridade policial punida pelas 1'iolencias perpetmdas. A propria Cons­tituigao Federal, na parte em que cerceia 0 campo de a'lao dos agentes policiais, submetendo-os a direta fis-

A JUSTJ~A A SER"r~() DO CRtME 85

caliza<;ao do .J lldici[rl'io, poueas vezea encontra quem, pOl' sistema, se de ao traba1ho de executa-lao 0 que ha, nessa parte, e 0 relaxamento gera!. Para que a policia nao seja desprestigiada l11uitos juizes permitem que ela tome 0 freio nos dentes.

63. Nao ha nenhuma inova<;ao nas disposi<;;oes do CMigo Penal que tratam das penas de 1'eclusao e de deten<;ao. Nao ha novidade nem mesmo na desfagatez com que 0 legislador 1'edigiu 0 texto dos respectivos ar­tigos, com diferentes tipos de evasivas. Seguin 0 exem-1310 do Codigo Penal de 1890, como este repetiu 0 de 1830, ambos elegantemente formais, quando falavam em estabelecimentos penitenciarios inexistentes, em regimes impraticaveis, nos quais aos detentos seria dispensado o tmtamento 111ais perfeito ate entao imagillado pelos mai8 insignes penitenciaristas.

A materia e disciplinada pelos seguintes artigos:

REGRAS COMUNS AS PENAS PRIVATI­VAS DE LIBERDADE

Art. 29 - A pena de reclusao e a de de­tengao devem ser cumpridas em penitenciaI'ia, ou, a sua falta, em s8<)ao especial de prisao com11111.

§ 1.' - 0 sentenciado fica sujeito a traha­Iho, que deve ser remune.rado, e a isolamento dUI'ante 0 Tepouso noturno.

§ 2.' - As mu1here8 cmIlprem pena em estabelecimento especial, ou, a falta, em segao adequada de penitenciaria on prisao commn, ficando sujeitas a traba1ho interno.

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§ 3." - As penns de reclusao e de detenQao imposhls pela juStigl1 de urn Estado podem ser cumpridas em estabelecimento de outro Estado ou da U niao.

RECLUS.AO

Art. 30 - No periodo inicial do cumpri­ll1Emto da pena de reclusao, se 0 permitem as suas condig6es pessoais, fica 0 recluso tambem sujeito a isolamcnto durante 0 dia, pOl' tempo 11ao snperior a tres meses.

§ 1." - 0 1'80111S0 pas sara, posteriormente, 11 trabalhal' em comum, dent1'o do estabeled­mento, on em ohras on servigos Pllblicos, fora dele.

§ 2." - 0 reclnso de hom procedilllento pode ser transferido para colOnia penal on es­tahelecimcnto similar:

I - se Ja cUll1priu metade da pena, (lUando esta nao e superior a hes anos;

II - se ja cllmpriu lU11 tergo da pena, quando esta e supeTior a hes anos.

§ 3.' - A pena de l'eclusao nao admite 8nsp8n8ao condicional, salvo quando 0 conde­nado e menol' de vinte e Ulll aIlOS ou maior de setenta, e a condenaga.o nao e pOl' tempo snp8J:ior a dois anos.

A J US'l'IQA A SERVIQO DO cnn\'IE 87

Art. 31 - 0 condenado a pena de detengao fica sempre separado dos condenados a pena de reclusao e nao esta sujeito ao periodo i11i­cial de isolamento diurno.

Paragrafo unico - 0 trabalho, desde que tenha carateI' educativo, pode ser escolhido pe-10 detento, na confOTmidade de suas aptid6es ou de suas ocupaQ6es anteriores.

Nao 5e diga que esses dispositivos se referem tao­-somente aos estabelecimentos penitenciarios especiais, devidamel1te aparelhados, nem muito menos que, em conseqiiencia, deixam de tel' a11licagao nas cadeias co­muns. Nao ha na lei n8nhuma determinagao 11e8se 8en­tido, ou mesmo, vagamcnte, que autorize semelhante en­tendimento. 0 que 0 art. 32 declara e que:

REGULAMENTO DAS PRISOES

Art. 32 - Os regulamentos das pri86es devem estabelecer a natureza, as condig6es e a extensao dos favores gradativos, bem como as l'estriQ6es ou os castigos disciplinares, que merega 0 condcnado, mas, em hipotese alguma, podem autorizar medidas que exponham a pe­rigo a saude ou of end am a dignidade hum ana.

Pal'agrafo unico - Salvo 0 disposto 110

art. 30, ou quando 0 exija interesse relevante da disciplilla 0 isolamellto nao e permitido fora das horas de repouso noturno.

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ARRUDA CA,,{l~OS

Hepila-se, portanto, desele logo, qual(l1wl' interpre­tação mais indolente, baseada numa atitude intelectual de quem se limita a desconhecer o problema, para não senti-lo, e que não quer senti-lo, para não se ver na eontigência de enfrentá-lo.

A maior parte dos pn'sos cumpre penas, não nas penitenciárias, mas nas cadeias. Em tôdas deve haver um regulamento que atenda ao direito dos detentos de receber atenção favorável quando a mereçam. Essa é uma regra de caráter geral, imperativa, que não pode deixar de ser obedecida. Pois, se há meios de se man­ter nm indivíduo no xadrez, também os há de se tirá-lo de lá. Para que tome sol, paTa que preste serviços in­ternos, para que acabe, como prêmio, trabalhando em obras ou serviços públicos, dentro ou fora do estabe­I ecimento.

É espantoso conto se poele só do delinqüente exigir o respeito à lei. Quando chega o instante dela ser CU111-

prida pelos agentes ela Justiça, as autoridades se re­fugiam no argumento ela impossibilidade, que às mais elas vfizes, nada significa senão simples e acabado descaso.

64. O clesfibrall1\lllto dos juízes, que, recrutados à reyelia do POYO, eevam-se nas garantias de inamovi­hilidadE:, vitaliciedade e irredutíbiliclade de vencimentos, h'ans11arece llO ele,'pTêzo que votam ao poder que lhes foi concedielo de agir independentemente de pTOvocação da Ilolícia ou elo MinistéTio Público e, principalmente, ao instituto de habeas-corpus.

A persecutio crl1nmis nos magistrados em vão.

originária não foi deferida Devem êks agiT de ofício

quando falham os órgãos que os auxiliarn. Contudo, embora se trate de um dever ]pgal, nem sempre se mo­Y8m. Exemplo típico é o Cjl1e sucedeu em São Paulo, quando 11m ímproho administrador tTazia o Ministério Público de rédeas curtas e montava a polícia. O jôgo ilegal campeou. Delegados existiam, sem resquício de dignidade, qne se incnmbiam de proceder à arrecadação do numerário destinado ao l)agamento da impunidade !los ('ontraventoTcs. Dentro dessa deletéria sitnação, raros foram os magistrados que deixaram de sacrificar a lei ao seu comoclismo.

Mais damoroso é o que se pássa em relação ao Jw.ueas-coTpns. O remédio heróico, que a Constituição manda que os magistrados administrem de graça, sem requerimento, pràticamenü, só heneficia os (lue têm dil1heiro para pagá-lo. Somente nos casos de maior repercussão é impehado por algum promotor desejoso dE' publicidade. Apesar de inscrito na Magna Carta, o habeas-corpus de ofício, se assim o podemos chamar, não existe.

A Constituição FedeTal, art. 141, dispõe:

" § 22 - A prisão ou detenção ele qualquer ]l8SS0a será imediatamente comunicada ao juiz (;ompetente, q11e a relaxará, 8e não fôr legal, (', nos casos previstos em lei, promoverá a res­]1ol1sabilicladp ela autoridade (;OatOTa".

O texto, como eliTia Ruy, é incisivo como uma lâ­mina ele aço e infrangív(,l COUlO um cí1'(mlo de ferro. 'I'ôda prisão OH ddenção será comunicada ao juiz (lOlll-

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90 AltnUDA C\},IFOs

potente, qne a relaxará, se não fôl' legal e promoverá a rcspollsahilidade elo coator.

Não há possibilidade de duplo entendimento. As­sim, os juízes que, para se livrar de trabalhos, fingem ignorar o texto da Constituição, e que não impõem a seus delegados o sistema da pronta comunicação de tô­das as lil'isões efetuadas, estão sobrepondo seu indiferen­tismo a uma norma de fundamental importância lJara sobrevivência das instituições.

Com que direito agem dessa forma? Quem os autorizou pisotear a determinação legislativa superior rg

Que fôrça moral podem ter para condenar delinqüentes, se são réus do crime comum de prevaricação '?

Consultem-se as coleções dos provimentos dos tri­blmais. Não há um que, diante do abuso, tenha uma só frase de recrimiuação aos magistrados de primeira instância que se julgam em condições de revogar a Constituição. Reclamam contra os que excedem prazos, contra os que simplificam demasiado as audiências, con­ha os que usam carbono nos têrmos dos processos, contra 08 que residem fora das respectivas comarcas, mas não têm uma ÚllÍca palavra visando lembrar os juízes de que têm obrigações a cumprir. Nem mesmo os titulares das Execuções Criminais, do Distrito Federal ou de São Paulo, prestam obediência a êssB preceito da :Magna Carta, numa comprovação evidente ele que o mal é geral.

Já se pensou em quanto as populações seriam res­guaI'dadas se os investigadores, os soldados, os cabos, sargentos e delegados, soubessem que as detenções que efetuassem. seriam comunicadas ao .Juiz de DiTeito ~

O habeas-corpus de ofício, de caráter correcional, é uma impostura constitucional. A Polícia faz o que eu-

A ,Jt1STI~~A A SERVIÇO DO cnnm

tende e o que todos sabem. E o Ministério Público, tão desfigurado quanto a magistratura, apesar de scr o fiscal da lei, nenhuma iniciativa toma para que o preceito da Constituição seja cumprido.

65. Apesar da relevância do assunto, que passa despercebido porque os humildes não têm quem os de­fenda, a verdade é que, diante da omissão dos magis­trados, qualquer pessoa poele fazer a comunicação da prisão ao juiz competente, para que a relaxe e promova a responsabilidade do culpado. Trata-se de gaTantia eonstitucional 8, assim, a iniciativa de terceiros (Cons­tituição, art. 141, § 37), é perfeitamente legítima.

Que fazem os Promotores Públicos que não suprem a desídia do .Judiciário?

Tecnicamente não se trata de habeas-corpus, pela razão de que não há o recurso ex-off1:âo, mas de medi­da simplesmente cOTI'ecional, que se enquadra na alçada do Ministério Público.

Como observa o Professor Vicente Ráo, o § 22, do art. 141, do estatuto básico, confere ao juiz a atribuição de receber comunicação das prisões ou detenções efe­tuadas para os fins ali determinados. "Se a Constitui­ção lhes outorga essa competência, impllcitamente, mas 118cessàriamente, também lhe impõe o dever de exercê-la, e, pois, o de exigir das autoridades policiais o cumpri­mento efetivo de sua obrigação de comunicarem as pri­sões ou detenções que efetuarem. ~4.ssim sucede, IJor se tratar de garantia constitucional de direitos, razão pela qual a inércia dos juízes, diante do não cumpri­mento sistemático do precf;ito constitucional, não se jllstifiea.

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02 ARRUDA C.\:M:POS

f; óbvio que no :\1iní"t6l'Ío Púhlico também (oompetc prOlllowr a obsl'l'v5neia da mencionada prescrição con8-titueional, pelos meios de direito de que dispuser; mas, daí não se infere devam, ou possam, os juízes, aguardar a iniciativa de quem quer que seja para tornar efeüI"U 11 acenada competência que, dada a sua natureza, C01'­

responde a um derer funcional. A função principal do juiz é, sem dúvida, a de julgar, - mas não é, essa, sna ímica função, pois à vista do art. 141, § 22 da Oonsti­tuição também lhe incumbe ser fiscal do respeito da liberdade física, como direito fundamental dos cidadãos. E mantendo ou relaxando uma prisão, comunicada, nada mais faz senão proferir uma decisão preliminar sôbre a leg'alidade ou ilegalidade dessa prisão. Ao conhecer dos processos criminais instaurados contra seus presos, ou ao conhecer de pedidos de conversão da simples de­tenção em prisão preventiva, os juízes têm ensejo de ycrificar a falta de cumprimento do citado preceito cons­titucional e, no entanto, não nos consta que, 1)01' sua vez, promovam a responsabilidade dos infratores, por inter­médio do Ministério Público.

É certo que os juízes não deverão condenar as au­toridades infratOTas, setn denúncia, sem processo; mas é tamhém certo qne podem e devem ordenar ao Minis­téTÍo Público que promova a apuração da responsabi­lidade" 12.

66. Recolhido ao xadrez, o detento também julga a Justiça que o COnd<211ou. Sabe que tem dÍTeitos e que êstes não lhe são reeonheeidos. É um homem como qual­quer outro que sente a iniqüidade do tratamento que lhe é dispensado.

12. Vicente Râo, O Direito c t:l Vida dos Direitos, 2,~ vol., item n,9 134,

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A .JrSTI('.\ A SEH\'IÇO DO ('RD,rn

Denho elo sisümm do Oódigo Penal o lJl'êso pode pleitear o livralllento condicionaL É o princípio da in­(1jyidnalização ela l)('na que se prolonga e vai, atraYcs­sando os Conselhos Peniteneiários - a cujo ]XUeCCT,

obrigatório, o ,juiz não está adstrito - influir na própria extPl1são do castigo.

Entretanto, de nenhum magistrado se sabe que tenha ol'g'anizado um prontuário para o fim de aeOll1-]lanhar o cOlllportamento do recluso, habilitando-se a infOTlIlar eom precisão o respectivo Oonselho Peniten­ciário, quando da forll1ulação do requerimento de graça. De nenhum que haja determinado aos delegados que lhe prestem informes periódicos, úteis a êsse esclarecimento. O prêso não tem sequer oportunidade de mostrar que está desenvolvendo suas boas qualidades, paTa fazer jus ao ]iyramento. Oom êle, ninguém se incomoda. A Jus­tiça esvai-se quando o trancafia na pequena cela. Tal como se a sua missão fôsse apenas a de impol' conde­nações.

67. Na técnica do Oódigo Penal os presos ficarão repartidos em dois grupos, conforme hajam sido conde­nados a penas de detenção ou de reclusão. A separação tem um fundo IJl'ático, porque a detenção abrange os menos desadaptados, ou os que mais fàcihnente podem ser recuperados. Incluem-se no segundo grupo os res­tantes, ainda qUE' entre êles se encontrem indivíduos de boa formação.

Oonhecidos os reclusos através da observação, a questão prineipal do pequeno presídio se resolve na es­colha das celas e na distribuição - lJor alguém que tenha real inteTêsse - das pessoas que devem ocupá-las.

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.. \RRUDA CAIUPOS

Várias regras - isolamento diurno, transferêl1cia ]JaTa (;olôllÍa penal ou cstabelceimcllto similar - não passam de disposições estabelecidas sem scntido prático. Já a prisão de mulheres depende de cuidado maior, porque a lei, em quanto a elas, ficou abaixo daquele mí­nimo de respeito à dignidade humana. No fundo do palavreaclo frouxo, que admite a falta do essencial, fica apenas a prisão C0111tnn, o xadrez no estilo medieval, que, para a mulher é degradante.

Os juízes devem exigir trahalho educativo para os detentos. Note-se que os presos geralmente indicam o caminho. Fahricam canetas, cahides, tinteiros, rêdes de pesca, covos, ehapéus de palha, jacàzinhos, etc. Cedendo a um impulso interior incoercível, muitos prOCUTam fu­gir do ócio e se entregam ao trahalho. Faz-se mister nsar dessa fôrça regenerativa, que é como um protesto contra a inatividade forçada e uma prova de que o detento querganhal' a vida honestamente para prover a própria subsistência e a dos seus.

68. Os membros do Judiciál'io só servirão a J us­tiça quando, estipulando o cumprimento intransigente da lei, acompanharem de perto o processo recuperativo e se utilizarem, em benefício da regeneração dos indi­yíduos, de todos os elementos que estiverem ao seu aleance: - o ambiente familiar, a religião, o interêsse econOll1leo. O detento do interior deve permanecer no interior, a não ser 110S etl.SOS excepcionais. Há uma série de fatôl'cs de fixação e de fortaleeimento ético, que existem nos meios provincianos e desaparecem nos gran­des centros, e que não podem ser desprezados.

De nada adianta a remessa do recluso para os es­tahelecimentos das capitais, quase sempre cadeias talll-

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A n~STIçA A ~ERVIÇO DO CRUIE

hém, embOTa de grandes pl'Oporções, nas quais os pro­hl emas crescem na razão direta do vulto d.a população carcerária, se, sabidamente, nelas o tratamento é inferior ao que pode ser dispensado aos presos no interior. En­quanto essa situação perdure, o princípio predominante há de ser o que manda o magistrado defender o sen­tenciado 1Jela sua colocação no lugar onde melhor possa reencontrar as fôrças que o abandonaram.

O trabalho, na prisão, será forçosamente de natu­reza simples. Ainda que se permaneça no artesanato, muita coisa se poderá fazer pela dignificação do homem, contanto que se tenha amor. A melhor política será a elo desenvolvimento da iniciativa do prêso, que desco­hriTá a tarefa que lhe convém - exatamente como se preceitua na lei.

69. Tolice é negar-se ao detento a posse de certos instrumentos de trahalho, sob o fundamento de que as­sim se torna possível o cometimento de outros delitos. O estupro é comum nas prisões e nem por isso se cuida impedi-lo. Nos grandes estabelecimentos penitenciários de todo o mundo os sentenciados de bom comportamento manuseiam nos a"ougues internos facas afiadíssimas e rar1.ssimamente delas se utilizam para matar os com­panheiros; nem os barbeiros das navalhas, nem os sa­pateiros das sovelas; e, outros, têm em mãos serras capazes de eliminar quaisquer barras de ferro, sem que se lembrem de empregá-Ias a não ser no serviço que lhes está afeto. Em compensação, onde tudo é negado ao pl'êso, acha êle meios de trazer em seu poder naYa­lhas, facas, sovelas e serras, com as quais, ou pratica novos delitos, ou então consegue a almejada evasão.

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Df; AHRl'D,\ C.\:\IPOS

Tudo llrpl'llde de 11ma ,wlpção arlpqmldn de P(',:;01\:; (' soln·etudo de vigilâlll:Ía. A detenção é ganmtida, nfto tanto pelas grades materiais, mas ]Jrineipalmente por outras, de tipo diferente, (jue vão desde o olhar vigi­lante elo gnal'Cla armado de metralhadora, até as barras (la bondade e da eonfiança.

70. O que mais contribui para as desfigurações do sisü'ma penal, impedindo o cmprêgo ele novas práticas, que visem o aperfeiçoamento e até f1. eliminação do regi­me carcerário, é o horror da responsabilidade. Há um sentimento difuso de mêdo que domina todos os setores. J\fêdo sobretudo de que o rechlso se evada.

Em certas nações a fuga <5 examinada de outro ân­gulo. Sabe-se qne é eonsíderada um episódio normal, ou, pelo menos, quase natnral. Nas oficinas o f1.eidentc do trabalho é também nm evento que não pode sc.]' evi­taclo, porque, em meio de uma coletividade de indivíduos, de quando em vez um ou outro sempre se deixa apanhar pelos dentes de uma engrenagem. Do mesmo modo nu­ma cadeia, ou numa llenitt'neiária, não deve causar es­h'an]wza que llm detento, qne parecia recuperado, maR '1ne na realidade era um simnlador, ganhe liberdade à (,l1sb ele um descnido ou em conseqüência de um f1.lmso rle ('ol1fial1ça.

As evasões devem ser estudadas, }JOl'que as suas cansas podem residir em defeitos do próprio sistema adotado no estabelecimento. A dureza do tTatamento, por exemplo, costuma estimular fugas que em outras C'Íl'Cllllstâncias não ocorreriam. Só deve caher l)TOcedi­mento criminal para llunição elos culpados quando BC)

wrifiqllc a e::\'Ístência de alguma interferência indéhita,

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A JUSTIÇA A SERVIço DO CRIME 97

seja produto de negligência, impnldência ou imperícia, ou de dolo, praticada por funcionário ou por estranho. Uma dose de compreensão há que envolver os resp011-sáveis quando se apure que agiram, ainda que eulposa­mente, movidos por sentimentos generosos, com o obje­tivo de alcançar, pela bondade, um resnltado superior.

Entre nós êsses pormenores não são levados em conta. O soldado tem mêdo do carcereiro. O carcereiro tem mêdo do delegado. O delegado tem mêdo do juiz. O juiz tem ll1êdo do triblmal. Quando ocorre uma fuga, o mêdo se canaliza e ganha fôrça. Busca-se o culpado, com mais afã do que o empregado na captura de um delinqüente, porque o mêclo da responsabilidade tem que ser fixado numa pessoa, para que as outras respirem desafogadas. Para que sintam a sensação do dever cumprido.

71. A fuga deve ser combatida, mas desarrazoado e que se lhe empreste importância que não tem.

O foragido tem dois caminhos a seguir: ou se ajusta à vida normal, ou permanece à margem da conduta usual. No pI'Íllleil'o caso passa desapercebido, e, então, não há inconveniente em que continue em liberdade; no seglmdo, atrai sôhl'e sua pessoa a atenção dos agentes da auto­ridade, retornando afinal à prisão.

As conseqüências de uma fuga, a não ser em casos multo especiais, nada têm de alarmante. Não obstante, pam que um não fuja, os presos, regra gemI, são todos l'smagados. }'Ol' êsse preço é adquirido o descanso dos (lne não querem ter respollsabilidf1.des,

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98 ARRUDA CAMPOS

72. Há 1ll11a curiosa inversão cl(" valores, digna ele mn estudo mais apl'ofll1l(lado, no eapítnlo qn8 diz respeito à evasão ele sentenciados.

Ficou assinalado que uma fuga constitui sempre objeto ele 111Jl processo administrativo especial, de ex­traoI'ClináTio rigor, no qual se busca um responsável. Ficou demonstrado também que a fuga pode ser compa­l'aela ao acidente do trabalho, prosseguindo a fábrica na sua faina, sem que a produção seja paralisada para a realização de um inquérito. Ficou salientado, por úl­timo, que o prêso evadido, como decorrência necessária dessa situação, não cria, para a sociedade, qualquer pe­rigo extraordinário.

Como se explica então, além do mêdo, êsse senti­mento que invade a maioria dos agentes do poder público e que poderia ser chamado de cornplexo da evasão?

É possível que as autoridades se sintam diminuídas e queiram se compensar da injúria sofrida. É possível também que sejam ll10yidàs por mn impulso sádico quan­do percehem que alguém logrou escapar elos ferros que o prendiam. É possível ainda que se vejam na situação de quem foi rouhado de determinado objeto cuja gual'cla lhe fôra confiada. É possível, e até provável, que pre­tendam demonstrar que a falha foi de terceiros.

Tudo é possível, em se tratando de uma reação do espÍTito humano diante ele um fato inesperado e inde­sejado. Daí a valm'ização do evento; que é logo comen­tado púhheamente, noticiado 1108 jOI'Ilais, e que cl'ia am­biente para agravos de amoT-própl'io e sugere represálias em vários sentidos.

A ,TUSTIÇA A SERVIÇO DO CRIME 99

73. Inversamente, há desvalorização quando se tem peja frente um mandado de prisão não emnpTido. .T á não há mêdo. A responsabilidade é diluída. O tribunal não pode inculpar o juiz. O juiz não pode se voltar ('ontra o delegado. O deleg'ado está impedido ele agir contra o investigador e o soldado. Na frente de todos se encontra o delinqüente, o qual tem o poder de se ocultar quando percebe a aproximação dos agentes da lei, isentando a pirâmide hierárquica do ônus da res­ponsabilidade 13.

74. Se foge 11111 pl'êso deve providenciar-se a sua recaptul'a. Deve averig'uar-se ainda se, para atingir êsse resultado, não foi ajudado por terceiros.

Assinalamos que não há inconveniente em (lue o prêso foragido permaneça em liherdade: - o mal repon­ta quando êle volta a delinqüir.

A compreensão dêsse fato, pela eliminação do receio da fuga, serviria pm'a o estabelecimento ele um regime maior de compreensão pela sorte dos sentenciados. Faz­-se mister uma radical mudança de atitude psicológica

13. Neste momento existem no Estado de São Paulo cêrca de 26.821 mandados de prisão a ser cumpridos, São 26.821 indivíduos condenados que permanecem em liberdade. No fundo são exatamente iguais aos que se eV3m

diram das cadeias, com a única diferença de que êstes já foram presos e oS outros ainda devem ser presos. Désses 26.821 inúmeros já faleceram, ou al~ CEmçaram a prescrição, ou, fugiram para outros estados ou outras nações. Dá~se com éles a mesma coisa do mesmo dilema a seguir: ~ ou se ajustam à vida normal. ou permanecem à margem da conduta usual. No primeiro caso passam desapercebidos e então não há inconveniente em que continuem em liberdade: no segundo atrairão sõbre as suas pessoas, novamente, a atenção dos agentes da autoridade.

A situação não admite paralelos. Os que foram presos e fugiram não chegam a trezentos; os que ainda não foram presos sobem a 26,821. Contudo o alarme é dado por causa daqueles, e não por causa dêstes. E, entre êstes, muitos são os que compram a liberdade mediante subõrno, ° que significa que continuam delinqüindo, corrompendo. sem que haja comentários, noticias nos jornais, ou mesmo inquérito policial para apuração de responsabilidades pelos mandados não cumpridos (cf, "Diârio Oficial" do Estado, de 25-1,.1959, pâg. 8).

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100 ARRU DA CA~IPOS

a respeito de 11m assunto que se reveste de tamanha sim­plicidade. É preciso resistir, é preciso, às vêzes, en­frentar a crítica, até que se imponha êsse ponto de vista, em benefício da própria sociedade.

Na situação atual não há outra alternativa. Já que se não dá ao prêso o tratamento mínimo que lhe deve ser dispensado, então pelo menos que se reconheça na fuga um ato de legítima defesa de quem se vê rou­bado em anos de vida. Que o foragido ganhe êsse mundo, não reincida e viva honradamente.

75. O carcereiro deve ser restituído à sua verda­deira função. Em cada cadeia precisa existir mIl au­xiliar do Juízo das Execuções Criminais, cargo não re-111l111crado, pl'ov-ido sem quaisquer formalidades pelo magistrado responsável pela recuperação dos detentos. É fácil a obtenção de quem se incumba dêsse mister, porque, felizmente, ainda há generosidade no coração dos homens.

Elementos recrutados nas diferentes seitas religio" sas estão sempre prontos a servir e, costumeiramente, revelam nesse mister uma dedicaç.ão que chega a ser comovente. Éles se incumbirão de prestar aos senten­ciados o apoio de que necessitam, elentro e fora da prisão, até mesmo depois do cumprimento da pena, mediante a simples remuneração que consiste no sentimento de um dever cumprido. Há mesmo necessidade da gra­tuidade da flmção, para que o móvel do trabalho seja a})enas a satisfação elo coração.

76. Observou Harold J. Laski que nenhum agente da autoridade pode realizar adequadamente a sua tarefa

A .tUSltlÇA A SlmVlço no CRÍl\I~ 101

se não acompanha ele Pel·to a sorte dos homens por cujo destino é em grande parte responsáveL

Na U.R.S.S. - diz o eminente jnrista inglês - a ad­ministraeão carceI'ária se vê submetida a uma constante corrente> crítica pública que a obriga a cnidar atenta­mente de seus atos. Por isso, conclui:

"Todos os reelusos realizam mn trabalho industrial nOl1nal e todos recebem seu salário. Têm o diI'eito de gozar férias; recebem visitas em abundância; sua faculdade de escrever e de receber cartas é pràticamente ilimitada e não está submetida a censura. - Podem fumar quando não estão trabalhando. Não lhes é proibido conversar com os outTos presos, nem com os guardas. Ninguém que haja percor­Tido uma prisão russa, comparando-a com Ulna prisão inglêsa, duvidará das vantagens do sis­tema russo. Os presos com os quais conversei, jovens e velhos por igual, eram homens empe­nhados em sna regeneração. Sem dúvida eram fracassados. Todav-ia, tive a impressão defi­nida de que aquêles com quem palestrei re­gressariam ao mmldo mnito melhor prov-idos que antes para lutar com sens problemas. A disciplina não os havia convertido em máqui­nas. Compreenderam o valor do trabalho re­gular. Não se lhes fêz sentir que estavam excluídos do mnndo exterior. Não temiam a sensação de estar sob a supervisão contínua de nn1 ôlho inamistoso. Não são estas grandes vantagens as que permitem apreciar com acêrto

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AnurDA r.UIPOS

a teoria l'1il que se haseia ôste regime de tra­tamento. A realização do trahalho indnshial norl11i\1 a trôco do pagamento eOrJ'C'nte é, por suposto, a tese básica dêste sisf011l1l. Contu­do, Sllrpreendel'-me-ia se a experiência não demonstTasse que o uso orgânico das horas de óeio pelo detento seja apenas menos im­portanh'. O rádio, aulas sôhre temas cul­turais e profissionais, livro''', T0presentações dramáticas, concertos para os presos ou exe­cutados por êles mesmos, um jornal do cárcere cuja característica principal é o direito de for­muI ar queixas, são manifestações correntes. Conheci presos que nas suas horas de ócio assistiam a aulas na uninJI'sidacle. Iam e vi­nham da prisão sem guardas, nem temor de que pudessem eS<lapaI'. Conheci dois homens que cumprindo as suas penas, haviam sido di­plomados em advocacia e química na Univer­sidade de .Moscou. Em um estabelecimento penal, a admirável escola secundária tinha de­corações murais realizadas por um grupo de presos qmé haviam aprendido essa arte nas classes noturnas da pTisão. Chamaram-me a atenção as excelentes relações entre os presos

. e os guardas. E tive a sensação de homens (Iue viviam uma vida útil, livre da tortura que significa a impossibilidade de exteriorizar a própria personalidade, característica predomi­nante de nosso sistema" ".

14, LaskL ob. dt, págs, 90;91.

A Jt'STI('A A SEHVIÇO DO CRÜIE 103

77. Até aqui tratamos da máquina judiciál'ia e elos homens que a movimf'ntmll, Paltam outros que exercem funções paralelas, como o Delegado, o Promo­tor e o Advogado. A êles cabe a erítica formulada aos juízes, porque são coniventes com o descalahro. Ad­mitem, como 11reSsllposto, que é assim, pOTque há de scr a8SH11. Na polícia estamos hahituados a encontrar' no noticiário dos jomais infonnações sôbre barbarida­des ali cometidas. Há delegados que procuram suprir a própria indigência intelectual pelo emprêgo de mé­todos inquisitoriais, chegando ao ponto de matar as suas vitimas, ou levá-las ao suicídio. No Ministério Público reina, domina e fulgura a hipocI'isia, ()leVada ao apogeu. Há promotores que se gabam do seu I'igorismo e somam as condenações e os anos de cadeia que conseguiram, supondo - pobres infelizes - que assim estão subindo os degraus de uma noya escada de Jacó. Na advocacia, o Cllxurro dos inco11111etentes, contribui pal'a mn des­caimento elo nível fnncional da classe e permite a luta desigual entre o promotor calejado no ofício e o pro­fissional ignorante, em prejuízo do desgraçado réu, que é qnat.ro v<'ZGS réu: - réu da opinião pública, réu do processo, réu do seu próprio defensor e réu do seu juiz.

A espantosa cTisc que assola o Brasil se manifesta na esfem da Justiça fechando os olhos às criaturas que ,-êem, entupindo os ouvidos às que ouvem, tapando a bóca às que falam, que gritam e que proclamam o sen prot.esto,

Se, no dia elo .Juízo Pinal, o Senhor interpelar os que participaram da tragicomédia da .Justiça Pública hrasileira, indagando o que fizeram pelos que por êles foram sent.enciados, bem poucos terão o que responder.

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104 ARRUDA CAMPOS

Muitos dirão, ao ouvir um nome conhecido: - conde­nado. Bem poucos exclamarão com firmeza na voz: - recuperado.

78. Trata-se em resumo, de uma simples mudan­ça de ponto de vista. Em lugar de presos, deve con­siderar-se que nas cadeias vivem homens. O homem tem uma dignidade que é preciso seja preservada, ainda mesmo no cárcere, ou principalmente no cárcere, porque todo o trabalho de reconstrução do delinqüente visa justamente o fortalecimento elêsse sentimento de digni­dade. Ê óbvio que se a dignidade é esmagada, nada sobra para ser salvo.

Se os homens são desiguais, tratá-los com igualda­de, significa tratá-los com injustiça. É preciso que haja coragem e que o princípio de que todos são iguais pe­rante a lei seja entendido em tênuos, como manda a Justiça.

Dentro da cadeia deve haver um culto. Ali, mais do que em qualquer outro lugar, a noção do justo deve ser venerada. Como a justiça humana é falha, ali tam­bém, mais do que em qualquer outro lugar, deve ser cultivado nos detentos a noção do perdão.

Que se possa dizer amanhã, aos 1,re808 que se sen­tirem vítimas, que nos perdoem; e aos que se sentirem simplesmente justiçados, que se reammem, porque os juízes os ajudarão.

79. Chegamos ao fim. Antes, porém, queremos nos referir a um caso que oconeu com um magistrado, que era agnóstico, e que, presidindo um júri, foi sur­preendido pelo advogado de defesa com um pedido no

A JUSTIÇA A SERVIÇO DO Cnr:M& 105

sentido de que mandasse cerrar as cortinas do Cristo que pendia ela pareele. O advogado argumentou dizen­do que era materialista e se sentia mal falando diante do símbolo de uma religião que não professava.

O juiz respondeu: - "Deferido. O Cristo é em1 símbolo da religião católica e a Igreja está separada do Estado. O senhor Oficial de Justiça que cerre a cortina".

Nos instantes finais do julgamento, quando interpe­lou os jurados sôbre se tinham algum esclarecimento a pedir ou algeml requerimento a formular, um jurado, que era religioso, elisse mais ou menos o seguinte: -"Senhor juiz. Sou católico e só posso decidir tendo dian­te dos olhos a visão do Cristo. RequeiTo portanto a

d t · " V. Ex.' que mande escerrar a cor ma . Então o magistrado decidiu: - "Se o senhor jurado

é católico deve ter o Cristo no coração e não precisa dêle na parede. Indeferido".

Êsse episódio, que até parece anedótico, tem con­tudo um fundo expressionista admirável. Ê que a gran­de maioria dos homens não qner saber do Cristo, como Cristo, senão como um objeto decorativo, ou o símbolo do poderio de uma religião sôbre as demais. Entroni­zam o Cristo no salão nobre, porque se trata do salão nobre. Ninguém se lembra que o Cristo também de­veria ser colocado no xadrez, na cela imm1da, para edificação dos sentenciados. Para que êles, contem­plando dia e noite aquela figura triste, do homem pregado na cruz, C0111 a cabeça coroada de espinhos, pudessem reencontrar as fôrças que os haviam desam­parado e voltar curados ao convivio dos bons.

O problema ela criminalidaele tem Ullla prof\mdi­dade que ninguém até hoje conseguiu medir. Ê o

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1(16 ;\lm ('DA CA:\lpnS

rl1'oblCllW do hOlllC'm, na mais dramática das suas ex­pl'cssões. Porque não adianta apenas educar. Os maio· res delinqüentes são justamente os mais inteligentes e mais cultos. São às vêzes educadíssimos.

O que adianta é entronizar o Oristo no coração de cada criatlll'a, visando a purificação dos sentimentos lmmanos.

A linha que separa o líei to do i Hei to é vária e ir­regular. Ela é traçada pelo legislador, que exprime num tendênüia, uma conjuntura social e econômica. POl' isso, temos a esperança de que surja, 110 mundo novo que se está formando e cujos prenúncios sentimos nessas lutas que se travam em todos os países, que llesse nllmdo novo apareça também um direito novo, qne puna igual­mente o vi.garista e o incorporador de certas sociedades, e puna também o índnshial G o eomel'ciante podero­sos, que, à custa de lucros extraordinários, conhihuem para o encarecimento da vida e criam a pohreza e a miséria coletivas.

Êsse mundo novo está à vista, embora ninguém saiba como se constituirá. Nêle haverá mais igualdade e pos­slyelmente mais justiça. Os homens, llessa altura cum" pl'irão o preceito divino do com.erás o teu pão com o suor do teu rosto. E, em vez de se cligladiarem na podia do lncI'o, do ganho à custa ela perda de terceiros, res­peitarão a palavra do Oristo, dêsse Oristo suave e amoc 1'OSO, dêsse Oristo tii.o eXIllorado, quando disse às pobres criaturas que somos nós: amai-vos. Amai-vos 11ns aos outros.

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OAPÍ'I'ULO VI

NOTAS AVULSAS

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LIMITES DA AÇ1\0 DO JUíZO DAS EXEOUÇÕES 15

J~ste ensaio aborda o problema das pequenas ca­deias e não o das penitenciárias. Oomo estas não têm eapacidade para abrigo da maioria dos detentos, nem é conveniente o deslocamento de certos delinqüentes para os grandes centros urhanos, continua tendo atualidade, porque abrange o geral e não o especial.

15, Em 1956, na Capital paulista, por haver um repórter encontrado na rua um sentenciado. pràticamente recuperado, que, com licença de viajar sozinho de uma prisão para outra, se desviara do trajeto normal, o egrégio Conselho Superior da Magistratura baixou tlma determinação que até hOje não foi revogada:

"PROVIMENTO XLVI

O Conselho Superior da M agistrafura, no uso de suas atd~ buíções legais,

DETERMINA aos senhores Juízes de Direito da Capital e do Interior do -Estado que fica proibida a saida de presos das cadeias publicas locais e estabelecimentos penais do Estado de São Paulo, para visitas em geral, casos de moléstia ou morte de pessoas da família, bem como por qualquer outro motivo, exceto para atos judiciais ou remoção de detentos pata hospitais~ em casos de enfermidade pessoal. por determinação expressa dos juízes competentes. Publique-se, registre e cumpra-se,

Slío Paulo, 10 de janeiro de 1956". (Diário Oficial, de 12-1~1956).

Daí o pronunciamento do diretor do Departamento de Presidios do Es­tado, que transcrevemos ~ data venia ,-' pela circunstância de que traz va­liosos subsídios para melhor estudo do assunto.

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108 ARR"FDA c.nrPos

Quanto ao es})ceial, saliente-se que até agora nem o Legislativo, nem a Justiça, decidiram a quem compete a orientação da reeducação dos reclusos nos estabele­cimentos de maior vulto, se às autoridades administra­tiyas, se às judiciárias.

A êsse respeito parece oportuna a transcrição de trechos de um trabalho que sôbre o assunto foi publicado na imprensa pelo Dl'. João Gomes da Silva, quando diretor do Departamento de Presídios do Estado, no qual reinvidica sua competência, então negada pelo Con­selho Superior da Magistratma de São Paulo:

H • • om1SS18 ...

Cite-se, a propósito, Roberto Lira, que escreve: "Em alguns Estados existe o juízo de execução, mas a tendência é desenvolver a ação dos conselhos penitenciá­rios, sem retirar às autoTidades carcerárias a indispen­sável margem de iniciativa e orientação. O problema da liltervenção do juiz na execução preocupcL e divide os especialistas, assumindo importância fundamental para os que preconizam a indeterminação da pena. Mesmo sob o regime de indeterminação relativa, como o nosso, sobretudo pela adoção das medidas de segurança, a matéria merecc o maior aprêço. Estudaram-na a Sociedade Geral das Prisões, na sessão de 12 de março de 1932, estabelecendo conclusões em tôrno dos debates ele 23 de dezembro de 1931, 27 de janeiro e 27 de fe­yereiro de 1932; a União Belga de Direito Penal, a 2 de junho de 1934; o Congresso Penal e Penitenciário Internacional, de Berlim, em agôsto de 1935; o IV Con­gresso Internacional de Direito Penal, de Paris, em ;julho de 1937. No Congresso de Berlim predominou a solução alternativa. O conflito envolve a subsistência

I

1

A rCSTlç'A A SERVIÇO DO CRIME 109

e os limites do direito à execução ou às Illodalidades essenciais desta, abrangendo o conjunto do regime car­eerário".

"O ProL Jorge Americano, em conferência proferi· da em 1943 nesta capital, numa semana de estudos penitenciários proIllovidos pela Secretaria da Justiça, escreveu: "Nessas condiçõe8, uma vez IJroferida uma sentença pelo juiz, está cessada a sua função jurisdicio­nal. O Poder Judiciário, em princípio, não a tem na execução da l)ena, em face de não haver colisão de in­terêsses da parte da sociedade em relação ao réu que vai cumprir a pena. Há coincidência de interêsses, em­bora o réu não tenha dela consciência plena". E mais: "Condenado êsse homem, entrega-se, então, à autoridade representativa do interêsse social o cumprimento da pe­na. Deve se1" só a autoridade administrativa a que providencie a execução da pena, ou deve ainda prolon­gar-se a função da autoridade judiciária durante a exe­eução da pena? Não seria possível entregá-lo à auto­ridade judiciária para ela mesma providenciar sôbre a execução da pena. Existe uma série de estabelecimen­tos confonlle a natureza da pena a eumpl'ir, uma série de providências, de tratamentos que distrairiam comple­tamente a autoridade de sua função jurisdicional para tl'ansfol1ná-la em mera autoridade administrativa. E se, em principio, resolvêssemos atribuir à autoridade ju­dicial a direção total na execução da 1'8na, teríamos apenas nominalmente uma função jurisdieional. A au­tOl"idade se transformaria em uma autoridade adminis­trativa para providenciar o tTatamcnto penal devido ao condenado". Por fim, aereseentn o mestre: "A inter­venção da autoridade jmliciária na execução da pena que

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110 AHnrDA cnrros

wráter reveste 'I Em centos casos, o em'áter jurisdicional. ]~lll eertos outros Casos, n ml'áter adminishat.ivo. E em certos outros casos, o caráter de lUera fiscalização e snpervisão. Dail'CS1.17ta a, possibilidade de confusão de atribwições entre autol'iclades (1.dministmtivas e jndi­clárias, c, )1.(1. prática, ú!.tervençõesindébitas de atl'ibui­cões. Esta confusão que, em tese, pode ser prevista e ~el'á delimitada, suprimida ou reduzida a um mínimo (lesde quelww legislação wZeq1Ladc1. deter'mine a rigor qual a f'unçüo da autoridacZe administrativa, qlWZ a in­tervenção da cudorúlade jucliciá,l'ia, dist'inguinclo o poder ,iwrisdl:cional do administrativo, e, dentro do poder ad­ministrativo, qnal aquela autoridade a que deve COIl1})('tir e em que proporção, e conferindo à autoridade judiciária a faculdade de supervisão, do contrôle da execução da peua que ela mesnia pronunciou". Infelizmente, ainda não existe, entTe nós, essa "legislação adequada". Um antepl'O.ido de Código Penitenciário se fêz, após a IV Reunião PenitenciáI'Ía Bntsileira, que teve por sede Belo Horizonte, a fim de que se viesse a "regular, de forma elara e definitiva, em todo o telTitól'io nacional, tuelo o (lue diz respeito à execução das penas criminais e às lIledidas de segurança detentivas" ( Da Justificação do anteprojeto). Êsse anteprojeto, entretanto, apesar de entregue ao Oov1'1'no PedemJ, ainda não foi tnmsfOTma­do em lei".

H , •• 0ll11SS1S •• ,

Cita em seguida uma cota do ProL Plamínio Pá­"\"ül'O:

"O ntnaI gO\"êI'110 por sua vez, reportalldo-se ao lko'eto-lei Jl.' J:3,2H8, de 194:3, lmixon o de ll." 24,5;1l,

I f li I

J11

(18 13 de maio de 1955, entre en,jos "c01l.úderallclos" COllS­

ta êste: "cowlidcl'uw1o qm, aqllêle decreto-lei necessita Sel' aplicado de forma a permitir que a ol'gllm:,zaçlLo penitenâária paulista te1171a um órgüo qlW a 8~tperden­da, dirija e oriente, a fim de preenche'!' plenconente as ,luas finalidades, i11clusive () cumprimento das deternú­nações constantes cio Código Penal e do Código do P'J'O­cesBO Penal", decreta, etc, Êsse "órgão", pelo decreto, outro não é senão o D€1)al'tam8nto, ele que sou o diretor-

J t '1 . - d ". t d'" "d',' . " -gera, com essa a 1'1 )\Uçao e supenn en er, lUgl1' 8 "orientar" (al't. 5."). Aí está, lJOrtanto, o Executivo ]Jroclamando a intenellção da autoridade administra­tiva. E também o LegislatiYo o faz, pois pela Lei H."

2.699, ele 17 de junho de 1954, importante atribuição se eonfere ao Departamento (art. 5.'), no sentido de levar presidiários a cultivarem "as terras devolutas situadas nos arredores ou nas cidades cu.ios presídios não dis-

1 d ' 't' ." pon iam e areas aproveI aV81s.

"O que há, pois, fi uma divergência deintcl'pretação, e 11unca, jamais, falha ou abuso da autoridade admi­nistrativa. O Código de Processo Penal regula o poder do juiz na execução ela pena e seus incidentes, não me parecendo que lhe atribua função administrativa. Esta, a meu ver, cabe ao órgão executivo. De outra parte, note-se que a concessão "dos favores gradativos", a que se refere o art. 32 do Código Penal, é matéria l)ertinente à administração prisionaL"

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112 ARRUDA CA::\Il'OS

II

TRAJ3ALHO DE SENTENCI.ADOS REMUNERAÇ"\O 16

A Delegacia Regional do Trabalho, consultada pelo DelJartamento de Presídios do Est.ado sôbre a legali­dade elo trahalho dos sentenciados na construção da Casa de Detenção, na qual vão receher salários da firma vencedora da concorrência, opinou que o contrato de trabalho não poderá ser feito entre a companhia elll­

pl'egadora e os sentenciados. Admitiu, contudo, o con­t.rato de trabalho indÍTeto, isto é, entre a fiTl1la e o cli­l'etor-geral elo Departamento de Presídios do Estado,

Essa foi a notícia que um jornal publicou e que não foi desmentida nem retificada. "Deverão ser res­peitados os direitos comuns aos operários em geral, como o salário mínimo, hOl'ário de trabalho, descanso semanal remunerado e demais direitos previstos na Consolidação das Lt'is Tra haJhistas, tendo em vista o regime ,igorant.e na Penitenciária, quanto [la "modus vivendi" elos 8en­teneiados qne se propõem a executar tais obras denho das snas respectivas funções e possibilidades técnicas tl

profissionai.s." Isso, entre aspas, consta da resposta da eOlIsnlta, o que sig'llifica que a notícia se reveste de inteiro teor de yemcidade, J)odendo sel"Yir de base ao ]lrcsfmte comentário.

Apesar da boa yontade que se nota nas dnas partes, eonsnltante e eOllsnltado, que pl'Oélll'mn encontrar uma

16, Sol !las Cadeias, artigo do A. in "O Estudo de São Paulo", de 2,11-1952.

.\ JUSTIÇA A SfmVlçO DO CRIME 113

801ução pa1'>\ O caso do" detentos que 'lucrem trabalhar, não se pode deixar de obsol'var que ambos partem de ])rcssupostos inteiramente errados. Aliás, trata-se de uma reiteração, porque até o Conselho Penitenciário claudicou nesse mesmo ponto quando, examinando um processo oriundo de UIna comarca do interior, onde exis­tem pl'esos que trabalham, bateu na mesma tecla da existência de contrato.

O pl'êso não trabalha porque assim o deseje. O h'abalho é uma decorrência legal, um imperativo do Có­digo Penal, pouco impOI-tando que poucos o respeitem nesse ponto. Não há contrato, porque o contrato supõe acôrdo de vontades e não há vontade num detento que vai para o serviço porque a êle está obrigado. U go Conti esclarece bem a questão ao afirmaI' que o prêso "não presta o trabalho por livre contrato, mas justa­ll1cmte por obrigação inerente à pena". Um dos elabo­radores de nosso Código Penal, Roberto Lira, suste11ta o mesmo ponto de vista, que aliás transparece do texto do Código com melidiana clareza: - "O trabalho car­em'ário não se confunde, porém, com o trabalho espontâ­neo e éontratual da vida livre, pois entra no conjunto dos deveres que integram a pena". Conseqüentemente, são insustentáveis as afirmativas, e descabidos os receios tmüo do Conselho Penitenciário quanto do relator da resposta da Delegacia Regional do Trabalho, qnando admitem a possibilidade de existência ele contrato conmm, bilateral, entTe duas pm'tes lines c plenamente capazes, pela simples razão de que uma delas tem a fma vontade coada ]lor um pn:ceito de lei.

O assunto não é todavia muito claro quando se co­g-ita da dellominac;ão que se deve dar à retribuição do

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114 ARRUDA CA".l\fPOS

trabalho do detento, POHj1l8 ,l([lli há divisão de opiniões, Plltcnclendo uns que 813 trata de salário, enquanto outros aludem a mera gratifieação. Questão secundária. A nosso ver nã.o há saláTÍo, mas llma compensação econô' mica que decorre do principio geral do direito civil de que o trahalho não se preS1ll11C gratuito. Com o dinheiro conseguido através da prestação de seniços o recluso tem meios de pn,parar a sua vida hOllrada após o cum­primento da pena, em vez de sair da prisão, como agora, desajustado e sem dinheiro, ou preparado para reinci­dir na infração da lei penal.

Os presos podem trabalhar. Os presos devem tra­balhar. É neeessário que os presos trabalhem. A lei exige que os presos trabalhem. Assim como ela foi al1licada contra o delinqüente, pOTque êle a violou, assim também deve ser aplicada a favor elo delinqüente, para qne êle encontre meios de se recuperar.

Se a doutrina não é clara, se há dificuldade na in­terpretação de eertos textos, se não se esclareceu per­:feitamente a questão da responsabilidade no caso de aeidente, ainda assim às autoridades cumpre levar por diante a execução do programa de tratamento dos cri­minosos, deixando os· casos futuros para serem resolvi­dos quando apareçam. Se não há jurisprudência oTÍ.cn­tadOTa, pouco im]Jorta; à medida que as questões forem surgindo, os tribunais formarão a jurisprudência que falta, provoeando a ação do próprio legisladOT paTa que regulamente melhOT a matéria.

O que não <3 possível é a continuação dês se regime atual, em que todo o mundo vê fantasmas, supõe lJcrigos e reagiJ em função de riscos imaginários. Porque, en-

[ I

.\ JTSTIÇA A SERVI!',:D DO CRIME 115

qnanto aqui fonl UllS pensam assim, c assegul'am a 1)1'6-pria tranqüilidade, niio criando easos, no eárccre c(mtiJ­nas de criaturas sofrem l'01'que não podem nem mesmo dar provas de que estão animadas de bons p1'Opósitos e querem demonstrar de fOTll1a inequívoca que nêles a pena atuou beneficamente.

111

VISITA A UM REFORMATÓRIO INGLÉS 17

Os inglêses não relutaram quando lhes manifestei o desejo de abril' mão de Cambridge por um simples reformatól'io de menores. Através de uma explicação pTeliminar, percebi que muito mais desejariam mos­trar-me a famosa universidade, onde a mocidade se pre­para e se faz britânica. Contudo, nem foi preciso insis­tir. Nosso "guia", o magnífico 11:1'. Stow, da embaixada no Rio de J anei1'O, deixou transparecer que somente es­tava desapontado por causa do desapontamento que eu sentiria. E foi só. Levou meus companheiros ao tTa­dicional centro de ensino e deu-me um carTO para uma

visita a Lewes. Foi assim, às nove e meia da manhã, num dia nu­

blado e triste, que lHe pus a caminho Tumo sul, C01110

([uem S8 dirig'e para () Canal da Mancha.

Londres demorou, mas cedeu. A cidade imensa acabou diluída em bairros e por fim numa rua. Al­cançamos a estrada de asfalto, Tampemos por uma

17. Um Reformatório Inglês,. artigo do A, inédito (1950),

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116 ARRUDA CAMPOS

encantadora zona SCmi-I'111'nl, cntremeacla ele casas de campo e de aldeias. Cinqüenta e oito quilôme­tros, como de São Paulo a J tmdiaí, cruzando carros pela esquerda, a perna cansada de tanto comprimir a tábua de apoio dos pés na procura de um pedal inexistente. Pelas tantas alcançamos os limites do condado de SU8-sex, onde a paisagem entrou bruscamente a se modi­ficar. Começaram a aparecer montanhas de forma<:ão calcárea, índice da aproximaç.ão de Doyer.

Ao longe delineou-se a região de Hastings, em que os inglêses perderam a última batalha travada no solo da Grã-Bretanha. E de repente, por hás de uma dobra de terra, Lewes se incorporou aos meus olhos, como uma cidadezinha antiga, muito quieta, de ruas estreitas e tor­tuosas, subindo e descendo elevações, criando o proble­ma máximo das autoridades policiais, que é apenas o do tráfego.

Vou direto para a cadeia, cujas instalações são mo­destas, limpas e se apresentam 11a mais perfeita ordem. Celas semelhantes às nossas, pôsto mais confortáveis, sem o aspecto de indignidade que caracteriza o xadrez típico brasileiro. As instalações sanitáTias estão 110 pró­prio quarto, mas a descarga é dada do lado de fOTa, para que sejam evitados suicídios. Há camas c aparelhos de aqueeímento para o inverno. O detento enfim é tra­tado como gente.

O delegado, MI'. Breffit, me exibe os livros comuns de l'egistro de presos e lmrwnta não haver nÍJ1gném na prisão para que eu o interrogue. Há três mp,S8S não aparece nem mesmo mn bêbado.

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A ,JUSTIÇA A SERVIÇO DO CRUtE 117

Após o almôço, no \Vhíte Art Hotel, encaminhamo­-nos paTa o reformatório de menores. Aqui nos esperam Mr. Mitchell "deputy goyernor", diretor do estabeleci­mento. Por primeiro mostra-nos o museu, no qual se destacam as peças de um processo universalmente fa­moso, muito recente, do cidadão que usava ácido sulfú­rico para dissolver os C01])OS de suas vítimas. Entre­tanto, muito mais interessante que a visão dos vestígios de seus crimes, mais importante que a contemplação dos antigos instrumentos de suplício das várias idades pas­sadas, é nm certo fato ocorrido com o célebre criminoso, que já estava na prisão de Lewes quando foi chamado de "vampiro" por um jornalista londrino. Pois bem. Da cadeia onde se encontrava, o prêso moveu uma ação por injúria contra o autor do qualificativo e conseguiu fôsse êle condenado a três meses de detenção e ao paga­mento de dez mil libras de multa.

Êsse fato, possível na Inglaterra, parece-me ver­dadeiramente espantoso. Imaginem se tal regime pu­desse ser aplicado no Brasil. ..

O reformatório é destinado a menores delinqüentes. Como aqui tudo é tradicional, penso que suas regras datam do século passado. Prédio velho, rodeado de muros altíssimos, de oitenta anos mais ou menos. Trin­ta guardas para 250 rapazes, dos quais 5,/0 reincidentes e 23,/0 duplamente reincidentes. Daí o motivo pelo qual os restantes, primários, so"frem h01'1'ores. Não é à toa que eUl todos os cantos são vistas grades de arame tipo "pago", estendidas horizontalmente, como as rêdes que defendem os acrobatas nos circos de cavalinhos. Para que os rapazes não sintam vontade de se matar.

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J18 ARRUDA CAMPOS

O trabalho é forçado e cxecutaelo sob cOllStante vigilância. Fui informado de que poclem conversar, mas o que notei foi um silêncio pesaelo, em tõdas as ocasiões em que pude observá-los sem ser pressentido. Trabalhos de marcenaria, sapataria, trabalhos ele pe­elreiro e fabricação ele tapêtes. Anoto esta última ati­vidaele e vejo como é fácil proeluzir capachos. Penso em que pelo menos êsse tipo de serviço poderia ser adotaelo no Brasil, como fonte ele renda para os deten­tos, mas Mr. Mitchell me informa que vai abolir a fa­bTicação elo artigo por ter ficado provado que o serviço. é anti-higiênico.

À medi ela que percorro as diferentes salas do ca­sarão vou colhendo informações. Chaves em abundân­cia, caeleados a três por dois. Na biblioteca verifico que os rapazes lêem méelia ele quatl'o livros por semana, que é o máximo que se lhes concedé. Não têm propria­mente jantar, mas chocolate, seguido de uma hora de silêncio, nas celas, cujas portas ficam abertas. Então, os mais atrevielos se passam para os quartos vizinhos e quando apanhaelos são duramente castigados. Vinte e oito e.stavam senelo pm1Íelos.

Hospital vazio, o que à primeira vista significa­ria bom indício. Todavia, mostram-me objetos que os reclusos engolem, pregos in.clusive, na esperan.ça ele ser tratados fora, quando então poderiam tentar a fuga. Êsse pormenOT elá bem idéia do elesespêro daquela mo­cielaele tranSviada e da revolta que ela há ele sentir ao se ver trataela com tamanha frieza.

O diretor lamenta a situação. O pior - eleclal'a­·m.e - é que aqui s() encontram m('nOl'es que ainda não

A JT.~S'rIçA A SER\'IÇO DO CRIME 119

foram julgados. Isso é contra a lei, mas não há outro remédio. Jb pl'cferivel qU0 fÍfllwm aqlli do qne soltos ...

A linguagem não me é desconheeida. O problema é ielêntico ao de São Paulo e os inglêses não levam nenhuma vantagem quanto ao fator egoísmo. Lá e

cá ... Tenho ponto ele vista firmado a respeito elo asslU1to

e acho que o menor delinqüente eleve ser sôlto, para que roube à vontaele, até que a socieelaele aprenela e elê meios às autorielaeles paTa que possam tratá-lo. Não se poele sacrificar o menor porque a socieelaele é desleixaela, descuielaela, elesumana, e não procura socorrê-lo. Por­que o l'esultado é êsse: - liquiela-se um jovem, COTTom­penelo-o no contado com elementos ela pior espécie, por calma ela ineliferença ela coletividaele; e ela, venelo-se livre daquele elemento que podia sel' recuperado, mas que entrega à 11crelição, não sente necessidade de reagir. Gasta fortunas imensas em festas, em recepções, em "boites", numa ostentaçã,o ele riqueza que é uma aÍTonta para os humildes e recusa apoio a uma campanha séria paTa concêrto da situação. Um abominável círculo vi­cioso, que deveria ser quebrado por uma pTOvidência violenta e escandalosa, capaz ele proeluzir pelo menos alg'um reslútaelo prático.

Chego ao fim da visita. Da janela gradeada da enfermaria distenelo os olhos e avisto uma faixa azul­-cinzenta que rebrilha aos l'eflexos do sol. Já é o mal'. Do outro lado do canal famoso aelivinho o continente

europeu. MI'. Mitchell fala-me ela limpeza rigorosa do esta-

beleciment.o, dos banhos de imersão que os inteTllados

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J20 ARRUDA CAMPUS

tomam uma vez por semana, da alimentação que é ahllll. dante e sadia. Perceheu minha tristeza em voltar de­cepcionado, sem uma idéia nova para trazer à minha terra. .Eu olho e vejo. Vejo a limpeza rigorosa das coisas, os baldes vermelhos sempre cheios de água na previsão de um incêndio de colchões e conseqüentemente do velho prédio da prisão. O piso encerado, as paredes imaculadas. Tudo rebrilhante. .E, melancolicamente , concluo comigo que a limpeza é só das coisas inanima-das. Lá, como aqni, ninguém cuida de limpar o homem.

IV

VISITA À UNIÃO SOVIÉTICA 18

A camarada Tatiana Sergueiva, professôra do Ins­tituto de Direito da Academia de Ciências da U.R.S.S., que me concedeu uma entrevista especial para colheita de informes sôbre a situação atual do direito penal so­viético, conhece com alguma profundidade a legislação específica dos países da .América Latina. Comeca a conversar livremente e me pede a opinião sôbre po~ltos de intel'êsse prático tão vaTiados que, às vêzes, me em­haraço na resposta. Pergunta-me como há tantos anos admitimos no Brasil () absurdo existente no Código Pe­nal do liVl'amento condicional na metade do prazo de­ferido apenas ao sentenciado qne deve cumprir uma pena superior a três anos, ficando os outros, de menos de tTês anos, obrigados a, permanecer no cárcere por todo o período, sem qualquer benefício, ainda que hajam

18. Notas de um caderno de vingE'l1l à União Soviética (1955).

I I fr I.

A JT·STJ~.\ ;\ SERVIÇO DO CRI;\m 121

cometido delitos de menor gravidacle. Observa-me que 110S80 Código mais defende a propriedade privada do que o indivíduo e quer saber dos índices de reincidência, pois não é possível que, ignorando a pessoa do crimi­noso, tal regime possa produzir resultados práticos no sentido de reeducar o delinqüente. Depois, sorrindo, diz-me que seu interêsse é puramente científico, pois na U.R.S.S. mtútos CITOS têm sido cometidos e é necessária uma atitude de permanente vigilância para que as fa­lhas sej am corrigidas. Assim, não faz críticas por mal, senão apenas porque quer permanecer sempre atenta, contribuindo com sen quinhão para a redenção dos homens .

.Em seguida entra a explicar-me que na União So­viética, não havendo propriedade privada, nem a explo­ração do homem pelo homem, forlUll de plano eliminadas as principais causas dos desajustes que entravam o progresso nas demais nações capitalistas. Não obstante, diz, ainda há muito que se fazer, pois é grande o número dos inadaptados que, por vícios educativos, derivam pa­ra a delinqüência.

Na U.R.S.S. o princípio constitucional de que "quem não trabalha não come" só não é cumprido por uma par­cela Ínfima da população. É justamente aquela que acaba na criminalidade. A experiência mostra que o trabalho constitui o melhor derivativo. Onde o homem se entreg'a às fainas produtivas, não ocorrem crimes a não ser por fôrça de motivos especialíssimos.

O furto ainda produz dores de cabeça e seu combate é feito indiretamente, pelo ataque às suas causas, pela educação dos que trabalham com bens alheios, pela or­ganização de sistemas de "col1trôle" dêsses bens (geral-

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122 ARRUDA CA1.1PO$

mente do Estado) c, pl'ineipalmoute, pela melhoria das condições de vida do povo.

Em 1947 foram tomadas IJelo govêrno duas reso­luções: - por uma se cogitou da defesa dos bens pú­blicos e, por outra, da dos bens particulares. A res­ponsabilidade 1Jenal imlepende do valor do objeto subtraído e as sanções foram tomadas ainda mais seve­ras, por se ter verificado que as Plillições anteriores não atingiam o resultado visado. Não obstante, certos delitos de escassa gravidade fOl:am contemplados com castigos menores, por se ter apurado que, nesses casos, o abrandamento da pena facilitava a recuperação.

Os delinqüentes primários fazem jus a um trata­mento que varia do trabalho de coneção, em lugares que não constituem prisões (fábricas com assistência de pesquisadores sociais), ou de detenção de segundo grau, até um ano. No IJTimeiro caso o sentenciado deve inde­nizar o Estado, pagando-lhe multa até 255"0 do salário, conforrne a condenação. Perde ainda direito ao tempo paTa o efeito de aposentadoria, mas não o de fruição de férias, pois que estas são uma exigência biológica e não um prêmio. Em certos códigos das repúblicas sovié­ticas há o direito ele opção, cabendo ao condenado a es­côlha da punição que melhor consulte seus interêsses pessoais ou familiares. Finalmente há o instituto do 81['1'8/:8, que é ordinàl'iamente concedido, quase sem res­trições de qualquer natureza, depois de fixada a sanção.

As penas são sempre detemlÍnadas, isto é, têm pra­zo certo, embora os dirigentes dos estabelecimentos pe­nais tenham o arbítrio de reduzi-las. Ê, conseqüente­mente, uma sanção provisória, que pode ser alterada

i i I

A ,TUSTtÇA A SEltVIÇO no Cllt::\U<: 123

1m1'a menos, caso se YCl'ifiquc que houve exagêro no cálculo, lllas nunca maj orada. O máximo é de 25 anos, excepcionalmente; na prática, não vai além de dez anos.

Existe a pena de morte em tempo de paz, para os réus de crimes extraorclináTios: - homicídios qualifica­dos, com requintes de perversidade, atos de banditismo, sabotagem, espionagem e traição ela pátria. A pena de morte foi abolida em 1947 mas acabou sendo restabe­lecida por exigência da opinião pública entre 1950/52.

Laborterapia nas prisões, gozando o detento das re­galias comuns dos operários. Não quis responder sôbre a parte sexual. Há livramento condicional, existindo institutos especializados que se incumbem de verificar se o liberado de fato se readaptou.

A responsabilidade pessoal começa aos 14 anos, de acôrelo com os atos pmticados e previamente definidos em lei. . Em outros, como no caso de homicídio e de furto, desde os 12, podendo a Justiça suspender o an­damento do processo e confiar o menor infrator aos seus genitores, bem assim,conforme a periculosidade, entre­gá-los a institutos ele reeducação. Há também a plena imputabilidade, ou maioridade criminal, aos 18 anos, limite que a Dr.' Tatiana acha que vai ser elevado, em virtude das ponderações dos estudiosos SOviéticos. Refere que o Código Penal deverá ser modificado, aca­bando-se inclusive com o instituto de analogia, o qual, diz, vem sendo muito mal compreendido no exterior.

"A analogia é do crime, não da condenação. Cri­me é uma ação perigosa contra a sociedade que esteja prevista em lei. Ora, o homem pode ser condenado se o ato que praticou é semelhante a outro definido em lei como crime."

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12-1 ARRl'DA C.UIPOS

Faz uma pausa c, ao procurar o exemplo, repete o que já sei: - no Brasil os indivíduos furtavam energia elétrica e não eram punidos, porque a lei, que só previa o furto de objetos, não enquadrava na sua defil1icão o fluido da eletricidade. Havia o ato anti-social ; não havia a defesa da sociedade. Só mais tarde o legislador (midou de ampliar a figura delituosa, apanhando tam­hém os ladrões de energia elétrica.

Observa que essa é uma questão por assim dizer acadêmica, sem nenhum interêsse prático, porque o Có­digo Penal da U.R.S.S. é semelhante aos outros e está suficientemente aperfeiçoado, de modo que podemos dis­pensar a analogia. RaTÍssimas vêzes a analogia é apli­cada, a tal ponto que cogita o govêrno eliminá-la, por dt'snecessária.

Prossegue: - a emoção não elimina a responsabili­dade, bem assim a emhriaguez, a não ser quando total. Para fixação da responsabilidade entra em jôgo como fator preponderante a execução dos atos preparatórios. Quanto aos delitos políticos, são todos aquêles atos que se voltam eontra o intel'êsse do Estado, ou contra o in­terêss: do povo, os quais são julgados pelos tribunais Snp81'10re8.

A U.R.S.S. também se utiliza da anistia e, em 1953, houve um al111Jlo decreto que beneficiou centenas de de­linqüentes, inclusive políticos. Cogita-se agora de uma reforma total da legislação, com abrandamento de penas par~ os crimes comuns e estabelecimento de bases para llmfleação das leis penais, instituindo-se um Código Pe­na~ ún~co,. com perfeita caracterização da norma de que a ll~OCenCla se presume, cumprindo à aeusação a 1)1'0-

duçao de prova em contrário.

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1

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Em tôda a U llião Soviética passarIam a VlgOTnr estas normas principais:

1) O aeusado teria direito a um advoga­do, a paTtir de 11111 certo ponto da instrução preliminar;

2) Alguns delitos não mais seriam pu­nidos, segundo o Código Criminal, em parti­cular quanto ao artigo que prevê a condenação do acusado por analogia entre os delitos, o qual seria suprimido;

3) As penas por propaganda contra-re­volucionária e vários outros delitos análogos seriam reduzidas.

O novo Código comportaria duas partes. Na pri­meira, seriam definidos os princípios gerais de juris­dição soviética. Na segunda, seriam enumerados os crimes e delitos que acarretam o procedimento criminal, em cinco capítulos:

(I) Crimes contra a segurança do Estado e contra a paz;

li) Crimes e delitos· qne atentem contra os bens públicos c contra a economia socialista;

c) Crimes e delitos (lne atentem eontra 11 administração do Estado, contra a .Tnstiça e contra o Partido;

d) Crimes e delitos contra as pessoas; c) Crimes que atentem contra a defesa

nacional (delitos militares). -

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126 ARRUDA CA:\fPOS

A pena de morte apenas será mantida em easos exccpeiowtÍs. No ([\w eoncerne às outras penas, seriam as seguintes:

Privação da liberdade (em prinCÍpio, dez anos llO

máximo) ; trabalhos de "reeducação"; privação dos di­reitos civis; proibição de permanência, multa, infâmia pública. '

v UMA PRISAO SOVIÊTICA (2,' grau) 19

Partimos para a colônia ele reeducação de Kriukovo, nos arredores ele Moscou, que é a única das imediações. Não é propriamente uma colônia, mas uma fábrica, tendo ao Tedm as demais instalações do estabelecimento. Sou festivamente recebido e a lllesa posta 110 gabinete do diretor 1ll0stTa que o dirigente da prisão já sabia da minha ida.

A.dianta-me que aqui são abl'igaclos os reclusos con­denados por crimes comuns (que envolvem os delitos de trabalho), os quais são inicialmente examinados para verificação de suas aptidões físicas e mentais, condições ele família, etc. Os que são casados não devem sofrer preocupações, pois, como a pena não pode passar da pes­soa elo delinqüente, se o salário fôr insuficiente, o Es­tado garante o restante necessário à subsistência dos seus, criando dessa forma condições propícias para que a readapbção se processe com rapidez. Constitui par'l. o gOVêl'110 um excelente negócio a outOl:ga do perdão no prazo mais llT8V8 possível, donde o amaciamento

19. Notas de um caderno de Viagem à União Soviétita (1955).

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A Jl;STIÇ'A A 8EUnç.'O DO CRD.lE 127

psicológieo elo delinqüente, para que êle se arrependa e resolva retomar o bom caminho.

A biotipologia é uma superfetação cal)italista. Os presos são selecionados rnais ou, menos e postos a tra­balhar. Êsse é o sentido da expressão "trabalho for­çado" do Código Penal Soviétieo, pois, tôda a faina recuperativa oficial é baseada na laborterapia. Se não há no presídio a especialidade do recluso, deve êle pro­curar outro seTviço e aprender novo ofício.

A fábrica produz utensílios de alumínio, filtros de óleo para automóveis e tratores, mostradores de relógios despertadores. Nada mais senão isso, o que me parece ridículo, dada a ciTcunstância de que estão aqui reco­lhidos cêrca de oitocentos delinqüentes, os quais são remunerados na forma comum, peça por peça, na média de 300 a 400 rublos por mês.

EmbOTa seja uma penitenciária fechada e l'eservada ao sexo masculino, vejo que trabalham, ao lado dos re­clusos, 1111meT08as mulheres, contra tôdas as regras pre­conizadas pelos penitencial'istas que conheço. O diretoT, porém, sorTindo, chama a primeira môça que aparece e a submete a um breve interrogatório. Ela, que não conta mais do que 30 anos, trata-o de igual paTa igual e, depois de uma breve troca de palavras, em russo, atende minha curiosidade. Através de intérprete asse­gurou-me que nunca foi desrespeitada por ninguém, mesmo porque não teria cabimento uma coisas dessas num lugar de trabalho, sobretudo como êste. Ao con­trário, recebe a todo instante Inovas de considcTação. Í~ solteira e vive com um operário que tmbalha nos arredores. Antes de se retirar quer que eu saiba e proclame que o povo soviético é pela paz ...

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128 Al1Ilt'DA CAMPOS

o diretor me acrescenta (lue, alóm das nmlheres, 'existem outros trabalhadol'us voluntários, que serVellJ

mediante salários mais altos, para que os presos não percam o contacto com o muudo exterior e sintam o desejo de voltar à vida livre, onde pod8r\1 ganhar im­portâncias mais elevadas.

A alimentação ó servida três vêzes por dia, gra· tllitan18nte. r\S roupas, entretanto, são adqlúridas pelos detentos. Não há censura na correspondência e as \"Í­

sitas das espôsas são livres, havendo apartamentos onde elas podem passar alguns dias, periodicamente, com ,pus maridos.

O trahalho ocupa oito horas. O prédio tem bi­hljoteca, com 7.500 volumes (freqüência de 86'10), ci­nema grátis (duas ou três sessões por semana), campo de esportes, yoleibol, hola-ao-cêsto, xadrez, etc. Conta com médico, díniea e ambulatório.

Ao que me aS5egura o diretor do estabeleeimento, a lll'oclm:ão da fábrica é ,le boa qualidade', a despeito ela heterogeneidade do elenwnto ImmmlO com qne 1Jode contar. Há uma grande emulação elJtre os reclusos, não SÔlllC'nte porq1le são ajudados }lelos orientadores téc­nicos e assistentes sociais, eOI1lO ainda porqUG, "sentem" a c1illlinni,ão da pena, eonforllw o grau ele compol'ta­lIH'nto flIJl'esentado. l-m dia de bom habalho vale até :1 dias de abatimento no castigo, quando sc trate ele 'C'ITíço pesado, nas cOllstTnções ]lara ampliação da co­lônia; o, na indúsh'ia, leves, :justificam ahono de nnl a dois dias.

T0m organizações sotiais (' um Conselho de Ativis­tilR, escolhido pelos p1'6pl'ios preso,;, ellja função 6 n <1(' estlldnl' os j'Jl'ohlemas da VJ'odnção e as difie.llldades

A .n::SnçA A SERYIÇO DO ('num ] 29

]lal'tieulal'es de cada deliu'liienh'. J~sse eOIlficlho faz admoestações aos rebeldes te pede providências adminis­trativas nos casos de falhas do estabelecimento. Existe também um tl'ilmnal de camaradas paTa .iulgamento dos atritos mais graves, cujos membros são escolhic1os pelos presidiários, e que aplica sanções como a de privação de troca de cartas pOI' periodos ele 13 a 30 dias, ou de recehimento de visitas.

Ao ser liberado o senteneiado recehe passagem de \-olta e dinheiro para sua alimentação até o lugar de OrIgem.

Continuo a repl'Oduzil' as minhas notas, tal como as colhi na ocasião, donde uma certa desordem na enu­meração dos fatos.

Os serviços da colônia podem ser criticados nos jornais murais manticlos pelo Conselho dos Ativistas. Há uma escola para os de escassa instrução, chegando alguns a completm na prisão o eurso secundário. Quan­to ao mais, procura-se dar ofíeio a (ll1PIll nada sallP.

O diretor me afiança que llO ano passado, 1954, onze presos não tinham experiência alguma e que 29 mal conheciam o trabalho. PaTa êles foi aberto um ClUSO

de tratoristas e hoje estão Tlrestes a tirar diploma, po­dendo conseqüentemente ganhar a vida honradamentc.

A fáhI'Íca dá lucros, os quais são aplicados em parte na outorga de }Jl'êrnios aos melhores elementos. Aliás, conta duas handeiras, que são os seus títulos prin­cipais, conquistados, um pela produção e, outro, pela eficiência na reeducação, dado que não se verificam reineidências .

.L:\S penas VUTÜlln, de UHl Inês a dez anos. A WHr101'

parte, porém, é de condenações entre um e três anos.

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130 AItRTIH CAMPOS

N esse pel'iodo 0 criminoso perde 0 dinMo no n80 do titu 10 de camal'ada.

Os presos trabalbam em "brigadas" e l'ccebem llO­tas diiirias de comp0l'tamento e apl'oveitamento qne in­flnem na COl1CeSSaO do perdao, chda a cil'cnnstancia de que, quando todas as informa~oes coin eidem, nao hii ra­zao para que 0 individuo fique retido na prisao. A soltnra e detel'minada pelo ]lropTio diretor do presidio, sem andiencia senao de sens anxiliares diretos, entre os quais figul'am alg,ms Pl'CSOS. Hii 0 caso de ml1 que cumpriu a pena e nao quis sail': - ficou como operiirio voluntiirio, pOl' sentir-se litil ao trabalho de recupcTagao dos demais.

Pe<;o explicagoes ao 1n8U informal1te sobre as difi­culdades que tem encontrado no exercieio de seu misteT. Existem homicidas? lDk me responde que nao. Diz que os mais dificcis de screm tratados sao os prcsos (lue nao telYl oficio definido, os quais sao assim justamente pOl' causa da yagahHndagem anterior que os ealejou. Igual­mente, tanto os SPlll 1'8sic!encia fix a como os sem familia cOl1stituem problemas para a administl'agao.

Os vadios sao tel'riveis - assegura-me - mas neles os castigos surtcm resultados, emboTa nao haja 8olita1'i[[ 11em pnni!tao corporal. 0 simples fato cIa prisao seT

feehada .iii constitui um clemento favoriivd ao trabalho. o vice-diretol' faz comentiil'io em russo e 0 diretor

me obsE'l'Ya: - 0 men col ega esta dizendo que os ladl'oes raTamente el'iam outros casos a nao seT 0 de que 58 reeusam trabalhar ...

-- Entao ha muitos ladroes nn U.R.S.S.? A resposta e vecuwnte. Sim, nmitos, mas nao tan­

tos quanto nos paises capitalistas, oude a propriedade

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A ,TFSTH;;A A SERVIQO DO CRIME 131

privada constitui nm estimulo pam 0 furto. r1.qui nem lui 0 que rollllar, a nao ser pequ8110s objetos nos apa1'­tamentos, ou dinheiro abandonado sem cuidado nas mo­radias. Facilmente, porem, os gatunos sao IJresos, por­que nao sabem explicar a origem de seus bens.

Nesta hora penso comigo em que, no meu pais, se fOssemos chamaI' a contas todos que nao sao capazes de explicaT a origem de seus bens, terramos de executar 0 plano sarciistico de Oliveira Filho, de mudar 0 Brasil para a ilha de Fernando de N oTollha, de gradeii-la con­Yellientemente e deixar 0 COlltinente reservado a fU11gaO de presidio aberto ...

o diretoI' prossegue: - os piores elementos que jii tivemos llesta colonia foram alguns vadios e ladroes que ofendiam os seus superiores, jogavam eaTtas e TOU­bavam seus colegas de pTisao. El'am dois e nao tivemos ontro recul'SO senao 0 de envia-los a uma peniteneial'ia de terceiro gran.

A colOnia de Kriukovo funciona. ha 21 anos e nunca eegistrou, nem fuga, nem suicidio. Nao ha razao, pam Ul11a coisa nem outra. Afinal, 81es sabem que aqui 110SS0

intuito Ii 1'efo1'ma-los, devolvendo-os a coletividade tao logo quanto nos seja possive1. Recebem 11111a boa ligao, afiam 0 SCll senso de justiga, eompreendem que erra1'am c nao quercm sabel' de voltar. Regm geral basta ensi­Hal' um oficio ao sentcl1ciado para que ele reencol1tre a satisfagao de ViVCT e de tmbalhar hOl1mdamente. No Brasil }Jareoe qUB nao e bem assim, diz, e a essa altura procura na memoria, recordar Ullla certa revolta, 11U­

ma certa ilha de um certo territorio.

- Ilha Anchieta.

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132 ARRUDA CAl\fPDS

Êlle não lembra o nome. Sabe apenas que foi numa ilha no Brasil e condena as prisões isoladas, so­bretudo assim, num lugar rodeado pelo mar, longe de tudo. Faz mn comentário: - até o diretor se trans­forma em sentenciado ...

Peço nma estatística dos detentos, classificados se­gtmdo os delitos cometidos. Depois de algum tempo a intérprete traduz-me o rol que demorou ser encontrado:

Roubo (propriedade particular e estatal) 432 estupro ............................... 15 crime militar ........................ 21 porte de armas ...................... 11 especulação .......................... 17 perturbação da ordem pública .......... 258 outros motivos ........................ 81

835

Tento explicações, já que não estou a par das de­finições legais e não posso formular um juízo seguro sôbre tais delitos. Roubo da propriedade do Estadú, por exemplo, é, entre nós, geralmente o peculato, em­bora outras figuras também possam coexistir. A intér­prete, todavia, encontTa dificuldades na pesquisa dos vocábulos adequados. Entendi que a maior parte dos "ladrões" é constituída de indivíduos que dilapidaram bens da Nação, bem assim que os crimes militares são delitos comuns, de escassa importância, que dispensam julgamento militar, na maioria desordens.

Por que tantas condenações por fôrça de perturba­ção da ordem pública 1

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A ,TT'STIÇ;A A SERYIÇO DO CRIME 133

Explica-me o dÜ'ctor que são indivíduos que se em­briagam habitualmente e criam incidente.s de, certa ~r~­vidade. inclusive com agressões. A bebIda e um VIClO

terrív~l, diz-me êle. E, num gracejo, ingere mn cálice de vodca. Olha o vidro, {unido, pensa um instante, e, quando baixa o braço, faz uma afirmação peremptória: _ mas está acabando. O povo precisa de álcool, por causa do frio. Contudo, o govêrno subiu o preço do vodca e baixou o do vinho. O vinho demora mais para

embriagar. Quero saber se tem notíeia de casos de homosse-

xualidade e obtenho resposta negativa. Aqui, não. Nos estabelecimentos de terceiro grau já ouvi dizer que sim. Nossos presos são tratados como homens, recebem suas mulheres e companheiras, não precisam descer a essas baixezas. No regime severo, porém, é possível que a:é isso aconteca. Não afirmo, mas acho possível. Se for v;rdade, t;ata-se de lmla falha que temos de corrigir.

Tento novas investidas, mas o russo fecha-se no silêncio. Não acha correto falar sôbre assuntos sôbre os quais não tem elementos seguros. Propõe obter pa­ra mim uma visita a uma prisão dêsse tipo, mas acha também que é longe, porque essas penitenciárias estão associadas aos "sovcozes" mais distanciados. De minha parte agradeço, porque preciso retornar à min~a terra.

Lembro-me de ter ouvido que os sentencIados na D.R.S.S. têm direito a férias e não quero deixar passar

o enseJo. O diretor faz uma cara de espanto. _ Mas, claro! Êles não são máquinas. Gozam férias,

vão paTa casa, descansam e depois retornam. Isso é na­

tural. ..

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134 ARReDA CAMPOS

À saída os dois diretores mo observam que esqueci de bater fotografias. De fato, a câmara estava ao meu lado e não me ocorrera utilizá-la. Voltamos ao pátio e tiro várias chapas quando um prêso, engenheiro cons­trutor, se aproxima. Enquanto curiosamente inspeciona a máquina, indagam de mim se quero ouvi-lo. Segue-se um diálogo rápido:

- Sim, a condenação foi justa. Eu me aproveitei de muita coisa para construir minha "datcha". Me­reci a pena que me foi imposta.

Pergunto aos que me acompanham se não há in­conveniente numa indagação sôbre a eficiência da ad­ministração. Dizem-me que não e a resposta é pronta.

- No geral é boa, mas há muita pulga. Além dis­so, acho a direção muito frouxa. Penso que se deveria agir com mais rigor, porque há muitos abusos. Se houvesse a necessária energia muitos sentenciados CUI­

dariam de sair da prisão mais depressa.

A resposta do engenheiro fêz rir a todos, inclusive a êle.

No portão quero fotogl'Sfar meus dois amáveis acompanhantes, mas êlesse esquivam. Não é costume, dizem-me, e não insisto.

Oferecem-me de presente uma panela de alumínio, anedondada, capaz de abrigar um frango, fabricada no estabelecimento, que, apesar do pêso, faço questão de trazer de avião para tê-la em minha casa. E, no ins­tante da despedida, o diretor me diz, com integral se­riedade: Eu queria dizer-lhe alguma coisa da qual o senhor pudesse se, reeordar. Vejo, pOTém, que aquela

A ,TL'STIÇA t\ SERVIÇO 00 CRIME 135

A ,< ]1, ,'lH,«,S()", lIa ll<ll'nha frente e me roubou a moça opel'ana 'u

palavra. A pTincípio não compreendo. É a intérprete quem

me esclarece: - êle se refere à que lhe falou em paz.

Olho para os dois e digo-lhes, quase com solenidade:

- Mi1'! Êles vêm ao meu encontro e me abraçam calorosa­

mente. A tal ponto que meu coração sentiu o ritmo daR batidas dos seus corações. E, no mesmo mstante, sen­timos os três qne êles batiam no mesmo ritmo.

Paz, para os homens de boa vontade. . Paz, para que êles se compreendam e m~tuamente

se ajudem, e mutuamente se perdoem, e mutuame~te se amenl _ tal como, mml velho, antigo e e~quecido d1a, recomendou-nos, de coração sangrando, o FIlho de Deus,

feito Homem.