arquivo e memória - relação indissociável

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TransInformação, Campinas, 21(1): 55-61, jan./abr., 2009 ARTIGO ARTIGO Arquivo e memória: uma relação indissociável Archive and memory: an inseparable relation Dirlene Santos BARROS 1 Dulce AMÉLIA 2 RESUMO Abordagem do arquivo e da memória como uma relação indissociável na sociedade da informação. Evidencia- se tal relação como imprescindível, visto que o arquivo está impregnado de práticas e sentidos mnemônicos e rememorativos que compõem a identidade de um povo. Enfatiza-se a importância do arquivo como lugar para a realização da pesquisa histórica e para a produção do conhecimento. Criam-se, assim, novas formas de compre- ender os fenômenos e a maneira como eles se desenvolvem. Essa prática permite o cruzamento harmônico com a Ciência da Informação no que concerne a sua abordagem representacional. Enfoca-se, nesse processo, a relevância das fontes arquivísticas, que, ao serem inseridas no contexto socioeconômico, político e cultural, têm o ser humano como produtor de sentidos. Palavras-chave: arquivo-memória; sociedade da informação; pesquisa histórica; documentos arquivísticos. ABSTRACT Archive and memory approach as an inseparable relation within Information Society. This relation is evidenced as essential, thus the archive is imbued of practice and mnemonic and remindful senses that form the identity of a population. It is emphasized the importance of the archive as a place for achieving historic research and knowledge production; in such case, new ways of understanding the phenomena and the way they develop themselves are created. This practice allows the harmonious intersection with the Information Science concerning its representational approaching. It is focused the importance of the file source, which, when inserted in the social-economic, political and cultural context, points to the human being as a sense producer. Keywords: archive-memory; information society; historic research; archivist sources. 1 Mestranda em Ciência da Informação, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal da Paraíba; bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão – FAPEMA; e funcionária do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. São Luis, MA. Coorespondencia para/Correspondence to: D.S. BARROS. E-mail: <[email protected]>. 2 Doutora em Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão – FAPEMA; e professora associada do Departamento de Ciência da Informação do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal da Paraíba. E-mail: <[email protected]>. Recebido em 6/3/2008 e aceito pra pulicação em 15/12/2008. INTRODUÇÃO A sociedade da informação é um fenômeno universal, fruto do desenvolvimento da Pós- Modernidade. É marcada pelo expressivo e crescente papel social da informação e pela grande potencialidade transformadora que exerce sobre os eixos econômico, social, cultural e político. A dinamicidade desses eixos,

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arquivo e Memória

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    TransInformao, Campinas, 21(1): 55-61, jan./abr., 2009

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    OArquivo e memria: uma relao indissocivel

    Archive and memory: an inseparable relation

    Dirlene Santos BARROS1

    Dulce AMLIA2

    RESUMO

    Abordagem do arquivo e da memria como uma relao indissocivel na sociedade da informao. Evidencia-se tal relao como imprescindvel, visto que o arquivo est impregnado de prticas e sentidos mnemnicos erememorativos que compem a identidade de um povo. Enfatiza-se a importncia do arquivo como lugar para arealizao da pesquisa histrica e para a produo do conhecimento. Criam-se, assim, novas formas de compre-ender os fenmenos e a maneira como eles se desenvolvem. Essa prtica permite o cruzamento harmnico coma Cincia da Informao no que concerne a sua abordagem representacional. Enfoca-se, nesse processo, arelevncia das fontes arquivsticas, que, ao serem inseridas no contexto socioeconmico, poltico e cultural, tm oser humano como produtor de sentidos.

    Palavras-chave: arquivo-memria; sociedade da informao; pesquisa histrica; documentos arquivsticos.

    ABSTRACT

    Archive and memory approach as an inseparable relation within Information Society. This relation is evidencedas essential, thus the archive is imbued of practice and mnemonic and remindful senses that form the identity ofa population. It is emphasized the importance of the archive as a place for achieving historic research andknowledge production; in such case, new ways of understanding the phenomena and the way they developthemselves are created. This practice allows the harmonious intersection with the Information Science concerningits representational approaching. It is focused the importance of the file source, which, when inserted in thesocial-economic, political and cultural context, points to the human being as a sense producer.

    Keywords: archive-memory; information society; historic research; archivist sources.

    1 Mestranda em Cincia da Informao, Programa de Ps-Graduao em Cincia da Informao, Centro de Cincias SociaisAplicadas, Universidade Federal da Paraba; bolsista da Fundao de Amparo Pesquisa e ao Desenvolvimento Cientfico eTecnolgico do Maranho FAPEMA; e funcionria do Tribunal de Justia do Estado do Maranho. So Luis, MA. Coorespondenciapara/Correspondence to: D.S. BARROS. E-mail: .

    2 Doutora em Cincia da Informao, Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora da Fundao de Amparo Pesquisa e aoDesenvolvimento Cientfico e Tecnolgico do Maranho FAPEMA; e professora associada do Departamento de Cincia daInformao do Centro de Cincias Sociais Aplicadas da Universidade Federal da Paraba. E-mail: .Recebido em 6/3/2008 e aceito pra pulicao em 15/12/2008.

    INTRODUO

    A sociedade da informao um fenmenouniversal, fruto do desenvolvimento da Ps-

    Modernidade. marcada pelo expressivo e crescentepapel social da informao e pela grande potencialidadetransformadora que exerce sobre os eixos econmico,social, cultural e poltico. A dinamicidade desses eixos,

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    em alguma medida, dependente da informao(Wersig, 1993).

    A sociedade da informao tem como eixo umanova e hegemnica concepo de desenvolvimento: aproduo do conhecimento em um cenrio de mltiplasinterpretaes por parte de seus atores sociais. atendncia cientfica (Arruda, 1998).

    H, ainda, a to presente tendncia tecnolgica,representada pelo contnuo desenvolvimento dasTecnologias de Informao (TIs) (Robredo, 2003) e pelaconseqente celeridade da sua prpria obsolescncia,que tm incidido sobre prticas e funes de instituiesque registram a multifacetada herana cultural dasociedade e evocam a sua memria.

    Nesses termos, uma das instituies envolvidasnesse processo e ser somente acerca desta que seir refletir neste artigo o arquivo, mais precisamenteo arquivo histrico ou permanente, concebido comoum dos alicerces e lugar da informao e da memria.

    O arquivo torna-se parte constitutiva dasociedade da informao por buscar uma atuao emconsonncia com as tendncias tecnolgica e cientficada sociedade, ou seja, em funo de as tecnologias deinformao no limitarem os conceitos do mundovivenciado pelo ator social, uma vez que este ocupavrios espaos ao mesmo tempo, potencializando,assim, a transmisso da informao.

    H, assim, uma fragmentao dosacontecimentos pelo conjunto dos seus registros e, aomesmo tempo, uma ausncia de conhecimento damultiplicidade de informaes existentes. Para Barreto(2007), ocorre uma desintegrao e um afrouxamentosimblico da memria.

    Nesse sentido, o arquivo potencializa-se, sejapor assumir novas funes, seja por renov-las, pois,alm de coletar, salvaguardar, preservar, armazenar edisseminar a informao funes tradicionais ,proporciona sua reorganizao em face s TIs, deforma a promover o encontro do cidado com ainformao.

    A memria, nesse contexto, torna-se objeto deestudo com dimenses que necessitam ser bem maisanalisadas e compreendidas. Entenda-se, com estaafirmao, no apenas a compreenso das dimensesque compem a memria, mas, sobretudo, aassimilao da forma como elas vm-se transformando

    em elementos cada vez mais necessrios para que sejapossvel trabalhar o passado e assimilar suas relaescom a sociedade da informao.

    O arquivo visto aqui como um lugar em quea memria se torna participante do processo deidentidade, como praxe e representao da sociedadeda informao. No se pretende com isso afirmar ser oarquivo a nica instituio da memria, haja vista aexistncia de outras, como o museu, a casa de culturaetc. Neste trabalho, entretanto, enfoca-se apenas oarquivo. Ele concebido, ainda, como elo com umpassado de continuidade e de descontinuidade, queleva a aclarar suas dimenses sociais e suascontribuies diretas na organizao da sociedade dainformao.

    O presente artigo aborda a relao entre oarquivo e a memria; aborda, tambm, o arquivo comoum espao de referncia para a pesquisa histrica,ressaltando, nesse ponto, os documentos arquivsticosem que se buscam as relaes existenciais entre o sujeitoe a sociedade.

    ARQUIVO E MEMRIA: UMA RELAOINDISSOCIVEL

    A importncia dos arquivos no mundocontemporneo ganhou dimenses gigantescas, pois,com o desenvolvimento de conceitos sociais,econmicos, polticos e culturais da humanidade, asociedade da informao - como fomentadora dessecrescimento - cada vez mais exige do arquivo precisonas informaes fornecidas ao seu pblico-alvo.

    Essa importncia est diretamente relacionadaaos aspectos histricos, jurdicos e administrativos, umavez que, segundo Duranti (1994, p.50), [...] atravsde milnios, os arquivos tm representado, alternada ecumulativamente, os arsenais da administrao, dodireito, da histria, da cultura e da informao..

    O primeiro desses trs aspectos - o histrico -representa a memria de um povo, de uma instituioou de um indivduo, e, finalmente, constitui-se em fontede pesquisa para todos os ramos do saber.

    Bellotto (1989, p.81) afirma que: [...] afinalidade ltima dos arquivos, seu objetivo maior, ,pois, comprovadamente, o acesso informao, sejaem que idade documental for e, conseqentemente,em que mbito arquivstico for.

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    Dessa forma, a funo bsica do arquivo tornardisponveis as informaes que esto sob a sua guardano acervo documental, visto que o arquivo [...] umsistema bidimensional e nunca unidimensional. Nelese projecta com maior ou menor expresso a entidadeprodutora/receptora de informao [...]. (Silva et al.,2002, p. 40).

    Percebe-se, ento, que esse status do arquivono condiz apenas com o testemunho da identidadede uma sociedade e, tampouco, com uma instituiode guarda e preservao dos discursos de um povo.Constitudo em base slida, sua atuao extrapola taisconceituaes: ele gerador de conhecimento. Por isso,ele se impe como lugar indispensvel para o exerccioda pesquisa.

    O arquivo torna-se um locus com essaespecificidade, quando o pesquisador permite que osdiscursos partcipes desse meio se revelem pelo dilogocom outros dilogos ocorridos em diferentes pocas,de forma a estabelecer uma relao com a escuta dodito e, tambm, do no-dito. Tal assertiva complementada por Novaes (1992, p. 9):

    Nossa histria foi construda no esquecimentodaquilo que Paul Valry chamou de as duasmaiores invenes da humanidade. O passadoe o futuro. Sem passado e sem futuro, estahistria oficial esvazia no apenas nossospensamentos, mas principalmente a prpriaidia de Histria. Narrar a histria de um povoa partir apenas do tempo presente, tempofragmentado, direcionado, instante fugidiotido como nico tempo real, negar aarticulao de pocas e situaes diferentes.O simultneo tempo da histria e o pensamentodo tempo.

    o dito, a priori, que torna os acontecimentosnicos, ao estabelecer relaes mltiplas, renovando-se em face s rupturas e ao processo decomplementaridade de outros acontecimentos. Oarquivo torna-se ponto preponderante na atualizaodo que est dito com as outras facetas, pois so ascoisas ditas que figuram como acontecimentossingulares, diferenciados em face de sua existnciamltipla.

    Alm disso, importante que se tenhaconscincia da complexidade da realidade. Isso refora

    a necessidade de um estudo mais profundo sobre asnormas que regem o arquivo, uma vez que osdocumentos s permitem o conhecimento de certonmero de relatos, os nicos que emergiram graas sua preservao nessa instituio chamada arquivo.

    A complexidade do sentido do arquivo reforaa importncia do seu estudo e de prticas deinvestigao histrica e documental face necessidadede produo de contedos com base nas informaescontidas em seus conjuntos documentais.

    O arquivo, nessa compreenso, adquire umanova postura, no apenas de guardio da memria,mas, sobretudo, como um espao de referncia daproduo do conhecimento, que incita a efervescnciada informao de maneira dinmica e atualizada.

    A partir da, torna-se evidente que a relaoentre memria e arquivo imprescindvel. Aquela temeste ltimo como espinha dorsal. Tudo isso foi possvela partir da necessidade do homem de externar de formafsica os pensamentos, quando passou a registrar seusfeitos, eternizando informaes que entendia comomemorveis. Segundo Lodolini (1989) apud Gagnon-Arguin (1998, p.34):

    desde a mais alta Antigidade o homem sentiunecessidade de conservar a sua prpriamemria, primeiro sob a forma oral, depoissob a forma de graffiti e de desenhos, e,finalmente, graas a um sistema codificado, isto, com smbolos grficos correspondentes aslabas ou a letras. A memria assim registradae conservada constituiu e constitui ainda a basede toda e qualquer actividade humana: aexistncia de um grupo social seria impossvelsem o registro da memria, ou seja, semarquivos.

    Assim, surge a memria registradora quedelegou ao arquivo a funo de mant-la viva, de formaa desacelerar o desaparecimento dos sinais do que sedeseja manter, em face da necessidade do lembrar.

    O arquivo, portanto, consagra-se como o locusque se mantm vivo e atuante no meio da sociedadeque o teceu, permitindo, assim, a externalizao e amediao entre o tempo e os acontecimentos passados.Essa consagrao reafirmada por Cook (1998, p.148),quando ressalta que:

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    Os arquivos so templos modernos templosda memria. Como instituies, tanto comocolees, os arquivos servem comomonumentos s pessoas e instituies julgadasmerecedoras de serem lembradas. Igualmente,as que so rejeitadas, por serem julgadas nomerecedoras, tm seu acesso negado a essestemplos da memria e esto fadadas, assim,ao esquecimento de nossas histrias e de nossaconscincia social.

    Tem-se, pois, que o arquivo um sistema deinformao social que se materializa em qualquer tipode suporte, sendo caracterizado, principalmente, pelasua natureza orgnica e funcional associada memria.Desse modo, a principal justificativa para a existnciado arquivo a sua capacidade de oferecer a cadacidado um senso de identidade, de histria, de culturae de memria pessoal e coletiva.

    A memria est em voga no s como tema deestudo entre especialistas. Tambm a memriacomo suporte dos processos de identidade ereivindicaes respectivas est na ordem do dia.[...] Palavras-chave so resgate, recuperaoe preservao todas pressupondo umaessncia frgil que necessita de cuidadosespeciais para no se deteriorar ou perder umasubstncia preexistente. (Meneses, 1999, p.12).

    Observa-se, assim, que a memria se apresentacomo uma questo necessria na sociedade dainformao, visto que atua como representao defragmentos que mantm uma coletividade e quepermitem a edificao e a legitimao de uma identidadesocial, sendo [...] processo, projeto de futuro e leiturado passado no presente [...]. (Jardim, 1995, p.2).

    Segundo Pollak (1992, p. 211), a memria podeser compreendida, em um primeiro momento, comoum fenmeno individual. Contudo, o autor ressalvaque ela deve ser vista [...] como um fenmenoconstrudo coletivamente e submetido a flutuaes,transformaes, mudanas constantes, consolidando-se no espao, no objeto, na imagem, no suporte.

    Entretanto, no se pode nem se deve concebera memria sob o prisma da memorizao. A memriadeve, sim, ser concebida como as prticas e os dizeresdas sociedades consubstanciados nas informaes quese mantm sempre atuais, sem lapso de tempo, e que

    podem ser referenciadas, atravs dos espaos em quehabitam e das relaes que constroem com essesespaos, denominados lugares de memria.

    Lugares de memria uma expresso criadapelo historiador Pierre Nora (1993), que os concebecomo marcos testemunhais de uma outra era: era dasiluses eternas e materializadas nos museus, arquivos,cemitrios, colees, festas, aniversrios, tratados,processos verbais, monumentos, santurios eassociaes.

    Os lugares de memria so, antes de tudo,restos. A forma extrema onde subsiste umaconscincia comemorativa numa histria que achama porque ela a ignora [...]. O que secreta,veste, estabelece, constri, decreta, mantmpelo artifcio e pela vontade uma coletividadefundamentalmente envolvida em suatransformao e sua renovao. [...]. Os lugaresde memria nascem e vivem do sentimento deque no h memria espontnea. (Nora, 1993,p.13).

    Para Nora (1993), esses lugares de memriano tm seu espao minimizado pela materializao.Na realidade, correspondem ao material constitudode significados que se encontram em um plano abstrato,propiciando a busca e o encontro de vestgios capazesde fomentar mudanas nas prticas sociais.

    Na verdade, esses lugares atuam comorepresentaes de fragmentos que mantm, porartifcios, uma coletividade envolvida portransformaes. Estabelecem relaes de pertencimentoa espaos que no so mais habitados, mas quetonificam a preservao do simblico.

    Dessa forma, o que se tem posto que a relaoentre os acontecimentos vividos e a sua transmissoproduz memria; e o arquivo, aqui, se apresenta comouma das formas de difundi-la, por meio do registroinformacional presente em seus documentos.

    Nesse sentido, o arquivo o lugar de memriapara a pesquisa histrica. Concebido como locusinterativo entre o pesquisador e o objeto, por meio darevisita e da equiparao das teorias existentes, o arquivopossibilita o progresso e a humanizao destas teoriase, ao mesmo tempo, o cultivo do pensar crtico e criativodo pesquisador. Servindo-se, assim, do arquivo, opesquisador constri a sua prpria produo, para

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    responder ao desafio da socializao do conhecimento,conforme enfatiza Foucault (2000, p. 26):

    [...] as margens de um livro jamais so ntidasnem rigorosamente determinadas: alm dottulo, das primeiras linhas e do ponto final,alm de sua configurao interna e da formaque lhe d autonomia, ele est preso em umsistema de remisses a outros livros, outrostextos, outras frases: n em uma rede.

    Assim compreendido, o arquivo como lugarde memria d vida aos documentos por meio daanlise do discurso do que est posto e do que estoculto, tocando no mais ntimo dos acontecimentos.Por essa ao, cria-se um elo temporal e espacial quebloqueia qualquer ao na direo do esquecimento.

    Todos esses aspectos contribuem paracaracterizar o arquivo como um espao de refernciapara a pesquisa histrica, que busca estabelecer umestudo crtico ao investigar os mltiplos discursosexistentes no arquivo. Esse arquivo, sendo um lugarpara a construo de tal saber, o mediador que permiteo acesso do pesquisador ao objeto da pesquisa,ampliando, dessa forma, as possibilidades de avanopara o exerccio da produo do conhecimento.

    PESQUISA HISTRICA E DOCUMENTOS AR-QUIVSTICOS

    A pesquisa histrica tem sido uma necessidadempar para a formao e a solidificao da produointelectual nas Cincias Humanas e Sociais. Essasingular importncia da pesquisa histrica deve-se noapenas ao fato de ela servir para a apreenso de umconhecimento instrumental, mas, tambm, devido aofato de remeter prtica de novas abordagens queconduzam compreenso da realidade.

    Esse campo se enriquece quando interage comas outras reas do conhecimento, sempre preservando.porm, os espaos de cada uma das reas envolvidas,e, ao mesmo tempo, ressaltando a riqueza e adinamicidade de sua ao interdisciplinar.

    indiscutvel a fora vital dessas interaes queestudam as prticas locais e a sua insero social epoltica, quando interagem com os instrumentos, asconcepes e os saberes contidos nas fontesdocumentais, conforme ressalta Foucault (2000, p.7):

    [...] desde que existe uma disciplina como ahistria, temo-nos servido de documentos,interrogamo-los, interrogamo-nos a seurespeito; indagamos-lhes no apenas o queeles queriam dizer, mas se eles diziam averdade, e com que direito podiam pretend-lo, se eram sinceros ou falsificadores, beminformados ou ignorantes, autnticos oualterados. Mas cada uma dessas questes etoda essa grande inquietude crtica apontavampara o mesmo fim: reconstituir, a partir do quedizem estes documentos s vezes meias-palavras , o passado de onde emanam e sediluiu, agora, bem distantes deles; o documentosempre bem tratado com a linguagem de umavoz agora reduzida ao silncio: seu rastrofrgil, mas, por sorte, decifrvel.

    Sob essa viso, torna-se possvel pesquisar osprocessos de gerao de conhecimento por meio dosujeito cognoscente, na busca de explicar a interaoentre o sujeito que realiza cincia, o objeto construdoe a representao do saber.

    Alm desses aspectos, inclui-se tambm a lin-guagem, o mtodo e a concepo de que a legitimaodo conhecimento gerada social e historicamente,visualizando a pesquisa sob o ponto de vista do con-texto, das circunstncias e como produto das relaesde fatores sociais, polticos, econmicos e culturais.

    A compreenso desse panorama permite ocruzamento harmnico com a Cincia da Informa-o, no que concerne sua abordagem repre-sentacional, visto que tal enfoque proporciona [...]introduzir a informao na esfera do humano, nocontexto do conhecimento e da linguagem.(Gonzalez Gmez, 2002, p.1).

    Dentro desse contexto, o arquivo emerge comolocus dinamizador da prtica da pesquisa histrica,com o objetivo de possuir em seu cerne as muitaslinguagens que compem o real, representado peladiversidade de tipos documentais. Dessa forma, osconjuntos documentais do arquivo so constitudos deelementos que [...] funcionam como um inconscientecultural, que assume um papel decisivo, e que intervmpara orientar uma apreenso, um conhecimento [...]profundamente baseado nas lutas imperialistas domomento. (Clavel-Lvque, 1974 apud Le Goff, 2003,p.537).

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    Contudo, o processo investigativo dopesquisador, como um usurio vido pela recuperaoda informao desejada, no se encerra nasinformaes contidas nesses documentos, pois sedesdobra na anlise dessas informaes diante de umcontexto, de uma situao.

    Visto assim, os documentos arquivsticosconstituem peas fundamentais para a pesquisa histricae, conseqentemente, para a materializao doconhecimento.

    Em um sentido amplo, lidar com documentosarquivsticos na pesquisa histrica significa trabalharcom a produo de sentidos: estabelecendointerpretaes sobre as condies em que foramproduzidos; regulamentando movimentos; incentivandoou reprimindo discursos que vo se associar maneiracomo se constroem significados; e tentando explorar odesenrolar dessa produo na busca do ponto centralcom a informao produzida.

    Com base nesse entendimento, concebe-sedocumento arquivstico como um bem culturalpatrimonial, emanado do saber e da memria dahumanidade, com sentidos determinados pelas posiesideolgicas colocadas em jogo no processo scio-histrico em que as palavras so produzidas.

    O documento arquivstico figura, desse modo,como um fenmeno da produtividade de informao,a qual, por sua vez, opera em tenso constante com onovo, o diferente. Aquilo que, em determinadomomento, dito de uma maneira diferente engendratransformaes nos processos de significao, gerandorupturas na verdade que fora cristalizada por meio doprocesso de repetio.

    Para Foucault (2000, p.7), o significado dedocumento arquivstico passou por uma metamorfoseno campo histrico. Essa transformao, que continuaacontecendo at os dias atuais, precisa ainda seraperfeioada: [...] o documento, pois, no mais,para a histria, essa matria inerte, atravs da qual elatenta reconstituir [...] o que passado e o que deixaapenas o rastro [...].

    O pensamento de Foucault consubstancia umanova dimenso para o documento: ser visto no apenascomo aquilo que diz a verdade por meio dainterpretao, mas que precisa ser analisado no seumago e elaborado de forma a escutar a informaoexpressa e a no expressa.

    Essa crtica, na realidade, possibilita umasuperao no que concerne ao processo de produodo conhecimento, uma vez que tal produo se encontra

    ancorada em uma estrutura de informao caracterizadapor inclinaes pessoais e determinaes globais quelimitam seu campo em determinado contexto.

    Esse conhecimento estaria apoiado no suporteinstitucional do arquivo e sob o fluido de um universoaltervel e temporal, cujas oscilaes teriam comocondicionantes os imperativos sociais, polticos,econmicos e culturais que pautam o construto dacincia e do saber como um todo.

    Assim, os documentos arquivsticos se constituemem fontes de informaes indispensveis a serinterpretadas, analisadas e cotejadas. Eles so obrashumanas que registram, de modo fragmentado,informaes ricas e complexas sobre relaes coletivas.So interpretados, ento, como exemplos de modos devida, de concepes de mundo, de possibilidadesconstrutivas especficas de contextos e de pocas, sendoestudados tanto na sua dimenso material como nasua dimenso abstrata e simblica, que tornamefervescente a produo do conhecimento na sociedadeda informao.

    CONSIDERAES FINAIS

    O estudo da compreenso, no sentido amplo,de memria produz um debate instigante, sobretudoporque o termo memria est inserido nos maisdiversos ramos do conhecimento. Isso gera tanto umagama de interpretaes no cerne de cada rea comoum estreitamento de relaes com estas reas.

    Dentre os saberes que mobilizam a noo dememria, destaca-se a Arquivstica, que busca aidentificao de aspectos salutares para a formao epara o amadurecimento em face da sociedade dainformao.

    O desenvolvimento da memria, aquiconsiderada como condio primordial para a formaoe a consubstanciao da identidade individual e/oucoletiva, compreende sua transio das tradies oraispara a sua produo moderna nas sociedades comoum todo, por meio do documento.

    Esse contexto, portanto, faz com que o arquivono se reduza mera instituio de guarda da memria,mas extrapole tal funo. Ele representa um forte meionecessrio para a definio social e cultural,assumindo, assim, uma postura de mediao naconquista de direitos, no que tange aquisio deinformaes e criao de novos conhecimentos.

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